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segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24971: Notas de leitura (1650): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Entrevistado na dimensão ainda em voga da História Oral, o comandante Pedro Pires fala da sua vida ao serviço do PAIGC e do PAICV. Confesso que me toca positivamente o que ele comenta quanto à dedicação às causas pela luta da independência dos dois países, não há para ali nem charamelas nem o vemos atrelado a nenhuma carro triunfal, resistiu a muita insídia e comentários soezes por parte da oposição, quando perdeu em 1991, faz-nos ver que Cabo Verde caminha saudavelmente como uma democracia liberal, é um verdadeiro farol africano. Não se entenderá, à luz dos conhecimentos históricos, que continue a dar como certo e seguro que Spínola e a PIDE/DGS mandaram matar Amílcar Cabral, foi mantra de grande conveniência durante algum tempo, acontece que não há nenhum, absolutamente nenhum, documento que comprove qualquer ligação do Governo de Bissau, da delegação da polícia política com o assassinato de Cabral, houvesse e dele se teria feito a devida publicitação, mas não há, não houve marinha portuguesa à espera do barco de Inocêncio Kani, e é preciso ter um grande estômago para pôr como coordenador do complô Momo Touré, não sei como pessoas com pesadas responsabilidades históricas ainda têm e tanta desfaçatez, e parecem aliviadas quando propalam tais inverdades.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu Presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel, FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires assume elevadas responsabilidades na luta da Guiné-Bissau, é um quadro político de peso e é nessa altura que é questionado pela equipa entrevistadora sobre o assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973. Começa por referir que Amílcar Cabral já tinha alertado sobre a probabilidade desse risco, a partir da recolha de várias informações de amigos no seio do exército português. Considera ter havido falhanço nos serviços de segurança, o próprio Amílcar Cabral não teria dado o valor necessário a tais informações. Nesse dia, 20 de janeiro, Pedro Pires encontrava-se na base de Kandiafara, na Frente Sul, as informações pareciam suspensas, só quase ao anoitecer é que alguém lhe veio dizer que ouvira na BBC a notícia do assassinato. Através de um emissário enviado a Boké receberam-se pormenores dos acontecimentos pelo responsável local, José Pereira, fora em Boké que Inocêncio Kani fora detido.

Uma semana depois, na companhia de outros líderes, como Nino Vieira e Cármen Pereira, estão em Conacri, assistem às cerimónias de homenagem a Amílcar Cabral, o ambiente encontrado era pesado e de muita tristeza. Pedro Pires propõe aos seus colegas do Comité Executivo de Luta a realização de uma reunião extraordinária para análise da situação, fez-se a reunião e traçaram-se novas linhas de orientação, todos voltaram para as frentes de luta, ele regressou à Frente Sul. Dá-se a sua visão sobre o apuramento das responsabilidades sobre os acontecimentos do assassinato, justifica a importância da operação Amílcar Cabral que tinha como objetivo geral a intensificação e multiplicação da ação militar nas três frentes, era necessário tornar a vida insuportável aos militares portugueses. Associa tais acontecimentos ao golpe de Estado de 25 de Abril, detalha ao pormenor o cerco a Guileje, e não deixa de ressalvar a diferença introduzida na luta pelos mísseis Strela. Fala num embate que teria tido lugar em território manjaco da qual um tenente dos Comandos africanos se passou para as forças do PAIGC.

A explicação para o assassinato do líder fundador do PAIGC pôde dar muito alívio a Pedro Pires, mas não tem qualquer consonância com factos documentais e elementos de prova. Que era urgente travar Amílcar Cabral antes que fosse tarde demais para a sobrevivência do Império português; que no plano interno português tinha crescido a oposição e o descontentamento pelos sacrifícios humanos, económicos e financeiros impostos ao país; que o prestígio e a credibilidade internacional de Amílcar Cabral atingira a sua quota máxima e estava em andamento uma dinâmica que devia conduzir à emergência do Estado soberano da Guiné-Bissau; que as autoridades coloniais, num esquema de guerra antissubversiva, aproveitara-se de alguns traidores que fomentaram a divisão do PAIGC entre guineenses e cabo-verdianos; refere antecedentes como a Operação Mar Verde, em que se procurara liquidar Amílcar Cabral; que Inocêncio Kani era o principal responsável pelo crime de traição.

Este mantra fez o seu percurso útil para liquidar os elementos do complô que os tribunais revolucionários decidiram, fez-se um hábil desvio histórico da fundamentada e multisecular tensão entre guineenses e cabo-verdianos, hoje é argumento de venda para puros nostálgicos, faz deliberadamente esquecer que não se podem entender os acontecimentos de novembro de 1980 e o afastamento da liderança cabo-verdiana na Guiné sem ter em conta a tensão existente em Conacri e mesmo nas bases do PAIGC no interior da Guiné, Pedro Pires nem refere que no dia do assassinato Inocêncio Kani esteve sempre na companhia de Osvaldo Vieira, e que este assistiu à distância ao assassinato do líder – pormenor de pouca importância, claro. Para consolo de nostálgicos e permanente enigma para a história é a destruição de todo o material que se acumulou sobre os julgamentos dos elementos associados ao assassinato. Há explicações que são de farsa, pôr o Momo Touré a liderar uma sedição de centenas de pessoas é por de mais caricato, não tinha nem envergadura nem credibilidade para tal cometimento. E penso que não se tem feito qualquer pressão para ouvir as figuras que participaram nos julgamentos (caso de Joaquim Chissano), que disseram ter lido toda a documentação (caso de Ana Maria Cabral), os testemunhos de quem compareceu em tribunal e não sofreu da pena capital, etc. São de presumir razões fundadas para manter esta pesada barreira de silêncio.

Pedro Pires fala do segundo congresso do PAIGC, da eleição de Aristides Pereira, a líder do PAIGC, e descreve-se o processo da Independência da Guiné-Bissau e tudo quanto aconteceu até ao reconhecimento de Portugal da Guiné-Bissau como Estado independente.

Não se pode desdizer que Pedro Pires não seja um homem de consciência tranquila sobre o seu comportamento político como Primeiro-ministro de Cabo Verde, e ele próprio explica os insultos miseráveis que sobre ele proferiram elementos de oposição. Teria tudo a ganhar em mostrar de corpo inteiro que soubera perder as eleições em 1991, que as calúnias proferidas ficaram por demonstrar, responde aos seus entrevistadores com elevado nível de tolerância, escusava de dizer qual era, no seu entender, a origem do MpD:
“Muitos foram militantes do PAICV. Por outro lado, houve gente de boa-fé entusiasmada com a abertura política que quis uma alternativa ao PAICV. Era um grupo heteróclito. Constituía uma autêntica frente dos contra. Faziam parte desta aliança ex-militantes do PAICV dececionados, os trotskistas, os herdeiros do colonialismo, os despromovidos socialmente que tinham perdido privilégios de classe, funcionários desonestos sancionados, os imediatistas à espera de resultados milagreiros em curto prazo, gente que discordava da Independência, também pessoas de boa-fé que queriam uma mudança do Governo e, ainda, os fiéis que acreditaram nas intrigas veiculadas pelo clero católico, pela rádio e pela imprensa escrita de inspiração católica. Foi mais ou menos isso. Era esse o contexto sociopolítico em que lutou o PAICV, naquela altura, e os adversários contra os quais se tinha batido”.

Comentários completamente escusados, diga-se em abono da verdade. Ao comandante Pedro Pires saem por vezes comentários que não o dignificam. Já aqui repontei com aquela sua tirada de que os Comandos Africanos cobiçavam trazer artigos das bases do PAIGC, eram artigos que eles não tinham à sua disposição no mercado da colónia, escreveu num prefácio do livro O PAIGC Perante o Dilema Cabo-Verdiano (1959-1974), de José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015. Enfim, dislates pouco abonatórios para um líder do seu tamanho.


Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Notas do editor

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Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24943: Notas de leitura (1648): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É nos dada a oportunidade de ouvir na primeira pessoa a trajetória de um líder que viveu desde de 1961 missões de que Amílcar Cabral o incumbiu, uma das mais importantes terá sido a formação de um grupo que iria desembarcar no arquipélago de Cabo Verde, missão depois considerada inviável e que leva este grupo cabo-verdiano preparado em Cuba a ir combater no interior da Guiné. O comandante conta-nos a sua história desde a infância na Ilha do Fogo, as lembranças que ele guardou da vida do arquipélago até chegar a Lisboa, pensava tirar um curso na Faculdade de Ciências para ser professor, foi oficial da Força Aérea, desertou em 1961 e chegou a Conacri. É um discurso sereno, não há arroubos nem farroncas, uma crença inquebrantável no pensamento de Cabral, tem lugar de destaque na hierarquia do PAIGC, foge sempre com subtileza à questão tensional Guiné-Cabo Verde, ou defende-se com o mantra de que foram os colonialistas quem acirrou esse ódio, que não tinha fundamento. Não se entende como este octogenário, cioso para que haja uma história feita pelos independentistas africanos, não tenha documentação suficiente para saber que a questão cabo-verdiana se tinha naturalmente agudizado com a ocupação dos lugares chaves da administração colonial guineense por cabo-verdianos, desde administradores de circunscrição, a notários, a professores, a empresários, situação que se vivia essencialmente desde a separação da Guiné de Cabo Verde, em 1879. Não sei o que ganham estes homens que exerceram altos cargos no PAIGC e no PAICV a fugir à realidade, está tudo documentado. E, como veremos a seguir, Pedro Pires vai ter a desfaçatez de considerar que o assassinato de Cabral foi perpetrado a partir de Bissau, pela entidade colonial e a PIDE-DGS.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (1)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel", FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires nasceu na Ilha do Fogo em 1934, origem eminentemente rural, filho de pais médios proprietários rurais. Fala da sua família e do Fogo, onde viveu até aos 7 anos; depois fez a escola primária em São Filipe; aos 12 anos foi fazer a admissão aos liceus em São Vicente, estudo com interregnos, o dinheiro da família não chegava para tudo; inevitavelmente fala das fomes e da condição atroz da vida cabo-verdiana, da muita emigração, refere também a revolta dos famintos; em 1956, com 21 anos, terminado o liceu, vem para Portugal, inscreve-se na Faculdade de Ciências, frequenta a Casa dos Estudantes do Império, mas em 1957 vai prestar serviço militar obrigatório, depois de Mafra, fez a formação na área de controlo aéreo, tornou-se oficial controlador aéreo de radar, colocado em Montejunto. Assume que é por esta época que começa o seu crescimento político, a sua condição de colonizado, fala das suas leituras, recorda "Geografia da Fome", de Josué de Castro e as obras de Jorge Amado. Confessa que não fez parte de nenhuma organização comunista. Decide fugir de Portugal em 1961, vai com uma enorme leva de companheiros africanos, sobretudo angolanos, lembra outros companheiros de viagem, como Manuel e Lilica Boal, Amélia Araújo, Elisa Andrade e Osvaldo Lopes da Silva. Em Paris, o grupo foi visitado por Mário Pinto de Andrade e por Dulce Almada Duarte, ligada ao PAIGC. Viaja para o Gana, em Acra tem o primeiro encontro com Amílcar Cabral. Em Conacri recebe como missão ficar agregado ao secretariado da CONCP - Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, depois foi destacado para trabalhar em Dacar no seio da comunidade cabo-verdiana residente no Senegal. Fez depois formação na União Soviética. Tece elogios à personalidade de Amílcar Cabral.

Descreve os inícios da luta armada, os primeiros líderes revolucionários formados na China, depois um grupo formado em Marrocos, onde aliás Pedro Pires esteve em missão, os envios de armas e até incidente resultantes do envio de munições de Marrocos de que Sékou Touré suspeitou que pudessem ser munições para um golpe de Estado. Considera que a obsessão pela luta armada era inevitável. “Portugal não estava em condições de seguir uma via pacífica e negociada. Não estava em condições de negociar com quem quer que fosse, porque o regime dependia política e economicamente do colonialismo. Ele só tinha futuro, tal como existia, aliado ao regime colonial”. E explica o pensamento de Cabral relativamente à natureza da luta armada que se ia fazer na Guiné. “Para Amílcar Cabral, era fundamental evitar que se transformasse numa guerra de fronteiras, que dizer, estar do outro lado da fronteira e fazer ataques armados a partir do exterior. E escolheu uma localidade do centro-sul da Guiné, Tite, para começar a luta armada. Mas já tinha havido um trabalho prévio de mobilização dos camponeses, de mobilização dos guineenses, quer em Bissau, que no interior do mundo rural”. Considera que no espírito de Amílcar Cabral esteve sempre presente a ideia de que Pedro Pires devia trabalhar prioritariamente no quadro do desenvolvimento da luta em Cabo Verde.

Pedro Pires visita pela primeira vez a Guiné-Bissau em 1968, foi destacado para a Frente Leste, em substituição do secretário-geral e na companhia de Osvaldo Vieira. Refere-se ao Congresso em Cassacá e da necessidade de jugular as arbitrariedades de líderes assumidamente criminosos. Fará parte da delegação do PAIGC à Conferência Tricontinental que se realizou em Havana, no início de 1966. Fez formação militar em Cuba. Na impossibilidade de fazer desembarque em Cabo Verde, e após completar nova formação militar na União Soviética, volta para Conacri, o grupo de que ele faz parte irá instalar-se na base Kambéra, na região de Madina de Boé. “A minha incumbência era criar as condições de acolhimento e distribuir os recém-chegados pelas três frentes, buscando, sobretudo, tirar benefício dos mais bem qualificados, e que entrariam especialmente no corpo de artilharia das FARP, com o objetivo de melhorar a eficácia da nossa artilharia. O que se conseguiu grandemente, e viria a constituir o pilar principal da derrota do exército colonial.” Faz alusão à africanização da guerra e à política da “Guiné Melhor”.

Os entrevistadores pretendem apurar qual o grau de tensão entre os dirigentes cabo-verdianos e os guineenses. “Suponho que talvez pudesse existir alguma coisa, provavelmente inveja, preconceito retrógrado, mas não dava para afirmar que houvesse tensão”. Não teve conhecimento de que houvesse conflito expresso com os cabo-verdianos. “O certo era que a presença cabo-verdiana nas FARP perturbava as autoridades coloniais e militares porque sabiam que constituíam uma mais-valia importante do ponto de vista militar e ameaçavam a sua segurança”. Da sua análise, em 1968, a guerra encontrava-se numa fase equilíbrio entre as forças opositoras, nem o movimento de libertação estava em condições de expulsar as tropas colonialistas e estas não estavam em condições de derrotar a guerrilha. Falava-se da Operação Mar Verde, da resposta do PAIGC à campanha da “Guiné Melhor” com a criação dos “Armazéns do Povo”. Considera que a rutura do equilíbrio é dada pela chegada dos mísseis Strel
a, Manecas Santos, da Frente Norte, fora o chefe da missão do grupo que se formou na União Soviética. E acrescenta:
“Os combatentes do PAIGC dispunham de uma outra arma de artilharia, ligeira e muito prática, com bom alcance, também de fabrico soviético, o 3P132GRAD-P. Numa guerrilha em que as armas e as munições são carregadas pelos combatentes, é importante que não sejam pesadas. Ora, o GRAD-P respondia a esses critérios operacionais. Além do mais, podia ser empregado com um só tubo de lançamento ou com vários tubos, em bateria, em que era mais eficaz e com menor dispersão de tiro. Trata-se de uma versão reduzidíssima da arma pesada que o exército soviético tinha usado na II Guerra Mundial, conhecida por órgãos de Estaline, é uma versão mini.”

E inopinadamente, os entrevistadores orientam a conversa para o assassinato de Amílcar Cabral.

(contínua)

Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24931: Notas de leitura (1647): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24306: Antologia (89): Cabo Verde, "refém de uma história contada" (Expresso das Ilhas, 27 de janeiro de 2022)

Expresso das Ilhas,  Praia. Cabo Verde > 27 jan 2022 16:52   


País refém de uma história contada

A propósito das controvérsias que sempre aparecem na chamada Semana da República entre os dias 13 e 20 de Janeiro, o Presidente da República, José Maria Neves, disse que “não temos cumprido uma grande promessa da democracia que é a educação para a cidadania”.

 Acrescenta ainda que “quem quer ser cidadão tem de procurar conhecer a história, sobretudo, a contemporânea do seu país”. A falha detectada pelo PR tem pelo menos duas causas mais visíveis.

A primeira é que o Estado não se esforça o suficiente para passar para as pessoas, para a sociedade e em particular para as novas gerações os princípios e valores universais a começar pelo respeito pela dignidade humana e o direito à liberdade, que estão plasmados na Constituição de 1992, nem a importância do pluralismo, do princípio da separação de poderes e da independência dos tribunais no funcionamento pleno da democracia. 

Em consequência, fica por desenvolver adequadamente a vontade de participação, autonomia de pensamento e acção, auto-responsabilidade e o espírito de pertença à comunidade que se espera de cidadãos plenos. 

Pelo contrário, põe-se demasiado ênfase em alegados actos libertadores e heróicos de indivíduos e grupos, revoltas e ressentimentos do passado e manifestações de um paternalismo “salvítico” que deixa todos gratos e dependentes do Estado e na condição de cidadãos menores.

A outra causa tem a ver com a disputa permanente no país entre a “história contada” e a “história vivida”, entre factos e mitos, entre a procura da verdade e as tentativas de mascarar a realidade fazendo apelo a sentimentos, a lealdades antigas e a demonização do outro. 

De facto, a única história que realmente se é permitido conhecer não é a que aconteceu nas ilhas, mas a que supostamente teria passado nas matas da Guiné e em Conakry. 

Uma história perpassada por narrativas carregadas de heroísmo, de generosidade e de boas intenções que depois com as independências e o poder conquistado não se viu correspondência com a realidade dos regimes implantados tanto na Guiné como em Cabo Verde. 

Os seus protagonistas surpreenderam toda a gente com a perda da liberdade, a arrogância de “melhores filhos” no exercício do poder e a visão curta de quem sempre que foi dado a escolher entre desenvolvimento das pessoas e do país e o seu regime político ditatorial invariavelmente optava pela manutenção do poder

A outra história, aquela vivida nas ilhas e que foi da ditadura, de oportunidades perdidas e de vidas amarfanhadas pela falta de liberdade, pela inibição de iniciativa individual e pela sujeição a ideologias simplistas e ultrapassadas, essa durou quinze anos, mas é como se não tivesse acontecido.

É uma história praticamente ignorada pelas instituições, pelas escolas, pela comunicação social pública e até pelos estudiosos e académicos. 

Só se estudam acontecimentos até à independência e depois da chamada abertura política em Fevereiro de 1990. São os momentos em que os “heróis” entram em cena, num caso para dar ao povo a independência e noutro para, em mais um acto de generosidade, oferecer liberdade e democracia. 

No meio fica um hiato que ninguém quer transpor com receio de ferir as susceptibilidades dos auto-indigitados “Comandantes” (ver decreto-lei nº 8/75 e decreto nº 18/80) que ocuparam os lugares-chave do poder durante a ditadura. 

Mesmo assim, nunca estão satisfeitos e todos os anos pelo 5 de Julho e pelo 20 de Janeiro repetem que a história da luta não é estudada suficientemente nas escolas e que os ensinamentos da Cabral não estão a ser seguidos. É uma pressão que vai continuar mesmo que hipoteticamente um número de pessoas próximo, dos 100% se submetesse à narrativa heróica, declarando “estar em paz com a história”.

Com esse tipo de pressão, feita com o beneplácito do Estado e das suas instituições, dificilmente vai-se ter o cidadão pleno que o PR diz que precisa conhecer a história contemporânea do seu país. 

Não se ajuda, porém, nesse conhecimento quando se procura transpor o hiato dos quinze anos, durante os quais a aplicação dos ensinamentos de Cabral pela organização por ele criado, o PAIGC, e por dirigentes por ele formados resultou em sucessivas tragédias na Guiné-Bissau e em um Cabo Verde sem liberdade e economicamente estagnado, e se propõe elegê-lo “como o símbolo maior dessa luta pela liberdade e dignidade da pessoa humana e pela igualdade”. 

Pedro Pires tem mais razão ao apresentá-lo como personalidade que “deu tudo o que tinha a favor da libertação do país”. E é libertação porque liberdade e dignidade individual, que certamente não é reconhecida quando em vez de pessoas se veem massas populares e se define a pertença à comunidade política com base em concepções do tipo o povo é quem está com o partido, são princípios e valores que só seriam conquistados 15 anos depois pelos homens e mulheres das ilhas.

Pelas reacções de diferentes personalidades durante a chamada Semana da República vê-se claramente que mais de trinta anos depois da instalação da democracia a “história contada” ainda se sobrepõe à “história vivida” mesmo quando colide frontalmente com os princípios e valores constitucionais. Instrumental nisso tudo tem sido precisamente as instituições do Estado e particularmente os órgãos de soberania. 

Resistências várias impediram durante 17 anos que o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, fosse comemorado pela Assembleia Nacional, a casa da pluralismo e a sede do contraditório na democracia. Agora já há quem queira comemorar o 20 de Janeiro com uma sessão especial da Assembleia Nacional quando se sabe pela experiência de outras democracias que comemorações da independência, da república e da memória, porque momentos de unidade e exaltação nacional, normalmente são presididas pelo presidente da república. A guerrilha continua como que para demonstrar o quanto a iniciativa da semana da república é um fiasco na tentativa de reconciliação à volta das datas históricas.

Nos últimos dias a colisão de narrativas históricas com a Constituição centrou-se sobre o que devem ser as comemorações do Dia das Forças Armadas (FA). O Governo na pessoa da Ministra da Defesa, em linha com os ditames da Constituição de 1992, realçou a função constitucional das forças armadas de assegurar a defesa nacional, a sua subordinação ao poder civil, o seu serviço à nação e o seu apartidarismo e neutralidade política. Os “comandantes” vieram à liça reivindicar a reposição da história das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e o papel que teriam tido na sua origem.

O problema é que as FARP que sempre foram concebidas como braço armado do partido, como está explícito no texto da proclamação da Independência e confirmado pela voz autorizada de Aristides Pereira em 1985 ao dizer que “a acção política e ideológica constitui uma componente essencial no trabalho das forças de defesa” e ter-se referido ao facto de as FARP, serem integradas, não por militares, mas por militantes armados”, deixaram de existir com a entrada em vigor da Constituição a 25 de Setembro de 1992 dando lugar às FA. Não faz, portanto, qualquer sentido referir-se a papéis ou missões passadas que conflituam directamente com as funções constitucionais actuais.

Mesmo na questão do Dia das Forças Armadas nota-se a conveniência e o desejo de auto glorificação. Até 1987 o dia das FARP comemorava-se a 16 de Novembro em referência à origem das forças em 1964 na sequência do Congresso de Cassacá, assim como é ainda comemorado pelas FARP na Guiné-Bissau. O objectivo então era identificarem-se com a luta na Guiné. 

Em 1988, oito anos depois do golpe na Guiné e com o poder seguro em Cabo Verde acharam que podiam fazer das suas pessoas a referência do braço armado do partido. Com um simples decreto (decreto nº 5/88) criaram um novo Dia das FARP (15 de Janeiro de 1987). Agora acham que as FA não podem ter outra referência mais consentânea com a sua função actual. É mesmo patético.

É evidente que o país não deve continuar refém de uma narrativa que glorifica pessoas responsáveis por um regime ditatorial, que promove o culto de personalidade em plena democracia e que pode causar instabilidade institucional pelos seus persistentes conflitos com os princípios e valores constitucionalmente estabelecidos. 

Os titulares dos órgãos de soberania devem lembrar-se todos do seu juramento de respeitar e cumprir a Constituição da República. Estar ao serviço do povo e não de quais outros interesses é a via certa para a construção de uma vida de liberdade, paz e prosperidade para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.

(Reproduzido aqui com a devida vénia. Revisão / fixação de texto / negritos, exlusivamente para publicação neste blogue: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 
18 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23991: Antologia (88): estereótipos coloniais: os balantas de Bambadinca, vistos pelas NT (BCAÇ 2852 e BART 2917)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez "o maior mistério da absurda e inútil guerra colonial"... (Luís Graça)

Amílcar Cabral (1924-1973) > c. 1970 >  Foto  do líder histórico do PAIGC, incluída em O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB. (Pormenor curioso: Amilcar Cabral fazia questão de se deixar  fotografar pelos fotógrafos estrangeiros com o barrete ou gorro "sumbia", usado por fulas e oincas... Foi-lhe oferecedo numa Tabanca do Oio ainda antes do início da luta armada,  escreveu o irmão no seu livro de memórias ... Dava-lhe um toque mais africano ou mais guineense. E na verdade tornou-se uma peça emblemática do seu vestuário ou "farda", e que ele usava sempre que visitava, de vez em quando, as "barracas" no mato...)

1. Na Revista do Expresso, edição de 22 de janeiro passado, José Pedro Castanheira (JPC)  (n. Lisboa, 1952), jornalista e escritor, volta a fazer a pergunta sacramental, que todo o mundo já fez e que se vem repetindo ao longo dos anos, "ad nauseam": "Quem mandou mandar Amílcar Cabral?"... São seis páginas de texto e fotografia (Revista, pp. E|32 - E|37), que merecem que façamos aqui uma condensação e uma breve análise.

Já em 1993, o jornalista havia publicado no semanário "Expresso" uma extensa reportagem, com o mesmo título interrogativo, e que depois iria desenvolver em livro, de 326 pp., com igual título, publicado em finais de 1995 sob a chancela da Relógio de Água. (Traduzido em italiano e em francês, teve na sua apresentação o gen Spínola e o Luís Cabral, ambos sentados lado a lado: os inimigos do passado não se conheciam até então pessoalmente.)

Essa reportagem de 1993, um verdadeiro trabalho de jornalismo de investigação, cada vez mais raro na nossa imprensa escrita, e justamente premiado,  levou-o, além da visita ao local, em Conacri, onde Amílcar Cabral foi morto a tiro por Inocêncio Cani, a outros sítios e a entrevistar cerca de meia centena de pessoas, oriundas de Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde. 

Para a elaboração do livro fez uma nova ronda de entrevistas e teve acesso, em primeiríssima mão, a dois importantíssimos arquivos portugueses: (i) o Arquivo da PIDE/DGS, à guarda da Torre do Tombo; e (ii) o Arquivo Histórico-Diplomático, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para além das Actas do Conselho Superior de Defesa Nacional

"O livro provocou uma enorme polémica. Principalmente porque questionava a versão oficial do crime, em que coincidiam, quer o Presidente Sékou Touré, quer o PAIGC, e que a generalidade das organizações anticolonialistas aceitou pacífica e acríticamente" (pág. E|34):  o autor moral do crime eram os colonialistas portugueses, dividindo-se as culpas pelo  gen Spínola e a PIDE/DGS.  

Ainda hoje há muita gente, a começar naturalmente por antigos altos dirigentes do PAIGC (como o 'comandante' Pedro Pires, cabo-verdiano, ex-presidente da República de Cabo Verde, entre 2001 e 2011) que continua a defender essa tese, a que não é alheio o trabalho de dois jornalistas que não podem ser considerados, segundo JPC, "independentes". Cita os casos do moçambicano, de origem goesa, Aquino Bragança e do russo Oleg Ignatiev.

Ainda hoje Pedro Pires, sem qualquer suporte documental, nem evidência factual, continua a incriminar Spínola e a PIDE/DGS, como de resto o fez no discurso de abertura do Fórum Amílcar Cabral, 18 de janeiro de 2013 (e que foi transcrito na íntegra por "A Semana 'On line'", Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde, 20 de janeiro de 2013, uma publicação mutimédia próxima, política e ideologicamente, do PAICV, o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). Vale a pensa transcrever um excerto:

(...) "Do lado das autoridades coloniais, estava em curso uma campanha militar desesperada, lançada pelo seu Comando político-militar, na tentativa de reverter a seu favor o estado de equilíbrio militar, portador de muitos riscos, que vinha prevalecendo, apostando na recuperação das regiões libertadas, o que estava a ser muito difícil, conjugada com uma intensa e diversificada campanha sociopolítica demagógica, em torno da chamada Guiné Melhor. 

"O recurso ao assassinato do Líder do PAIGC insere-se na busca de saída para o grave dilema em que vivia o poder colonial, precisamente, quando sentia que estava em vias de perder a guerra, com consequências desastrosas para o futuro do império colonial. Nada melhor do que decapitar o PAIGC, solução experimentada em outras guerras coloniais. Reside aí a razão principal da decisão última de avançar com a operação do assassinato de Amílcar Cabral pelos serviços secretos portugueses e por seus homens-de-mão."(...)

Mas voltando  ao Aquino de Bragança (1924-1986): era então um importante quadro e intelectual da FRELIMO, sendo  "o único jornalista estrangeiro autorizado a fazer uma investigação in loco", ou seja, em Conacri (estamos a citar o JPC.).

As suas fontes maioritárias terão sido as "confissões dos conspiradores arrancadas através de tortura", o que é ética  e deontologicamente inadmissível para jornalista profissional. Um mês depois, escreveu um artigo na "Jeune Afrique" e a sua versão "passou a ser uma espécie de verdade oficial"... E incontestada, durante anos.

Oleg Ignatieev foi outro jornalista a escrever sobre a trágica morte de Amílcar Cabral ("Três tiros da PIDE - Quem, porquê e como mataram Amílcar Cabral" (Lisboa, Prelo, 1975, 185 pp.). Para JPC, o Ignatiev não tinha a "indispensável credibilidade", tudo indicando que ele, na época, devesse  pertencer ao KGB, os serviços secretos da antiga União Soviética. 

É desta fonte a hipótese do envolvimento, na conspiração, de altos  quadros dirigentes do PAIGC, guineenses, como o Osvaldo Vieira, primo-irmão do 'Nino' Vieira...

A reportagem do JPC sobre "o maior mistério da Guerra Colonial" (que ele adjetiva como "absurda e inútil") partia de "quatro hipóteses plausíveis, muito provavelmente interligadas":

(i) uma ação do gen Spínola e dos seus homens, na iminência de "perder a guerra":

(ii) uma operação especial da PIDE/DGS, além fronteiras;

(iii) uma jogada maquiavélica e antecipada de Sékou Touré, um ditador que sonhava com a "Grande Guiné", e via no Amílcar Cabral um rival de estatura pan-africana;

(iv) o desfecho inevitável da crescente conflitualidade existente no interior do PAIGC, entre os combatentes (guineenses) e a "nomenclatura", dirigente (cabo-verdiana). 

A reportagem de 1993 não era conclusiva nem o livro de 1995 (tal como não o é nenhuma outra investigação, independente, feita até agora, em qualquer outra parte do mundo).     


O livro do  JPC foi mal recebido, nomeadamente em Cabo Verde, sendo o autor acusado de "branquear" o papel dos militares portugueses e da PIDE/DGS. 

Da Guiné-Bissau, o JPC não teve reações. O livro nem sequer lá foi apresentado. E o próprio Amílcar Cabral é, diz ele no fim deste artigo que estamos agora a recensear,  uma figura histórica, cada vez mais esquecida e ignorada, como se ele nem sequer fosse guineense de nascimento... (Em contrapartida, o aeroporto internacional de Bissau continua a ostentar, "suprema ironia", o nome do suspeito ou controverso Osvaldo Vieira.)

Mas,  nos anos seguintes, o JPC continuou a aprofundar a sua investigação, explorando nomeadamente o inesgotável poço de informação que é o arquivo da polícia política do Estado Novo e as entrevistas dadas por alguns dos seus antigos operacionais, com destaque para o ex-inspetor Fragoso Allas, homem da confiança de Spínola, e que chefiava a delegação de Bissau (foi entrevistado em 2017 pela historiadora Maria José Tíscar, vivia ele então na África do Sul).

O que o JPC constatou, "com surpresa" (sic), foi que a PIDE/DGS estava infiltrada ao mais alto nível, na direção do PAIGC, "com acesso direto a Cabral"!...

E quanto ao Spínola e o seu estado-maior? Contra ele, Spínola tem a Op Mar Verde, a invasão de Conacri em 22 de novembro de 1970, em que deliberadamente que se quis mudar o regime em Conacri e decapitar o PAIGC: a liquidação de Sékou Touré e de Amílcar Cabral. (Aqui o JPC parece ter esquecido que as instruções que o comandante Alpoim Calvão tinha era para apanhar o Amilcar Cabral, "vivo ou morto": mas ele valia muito mais vivo e trazido para Bissau).

 Fracassada a operaçáo ou gorados os objetivos político-militares mais importantes, Spínola passou a empenhar-se cada vez mais noutras soluções para o conflito.

"Todos (ou quase todos) os oficiais com responsabilidades em Bissau já abriram os seus baús de memórias. Memórias muito variadas, por vezes contraditórias, onde se denotam velhos ódios e ajustes de contas, mas que não incluem a eliminação do comandante inimigo, pelo menos em 1973. Com efeito, desde 1971 que Spínola se virara afanosamente para a busca de uma solução política, mulltiplicando-se em iniciativas para chegar à fala com Amílcar Cabral " (pág. E|36).

Por outro lado, das atas do Conselho Superior de Defesa Nacional, órgão que acompanhava toda a evolução dos acontecimentos nos três teatros de operações, não há sequer  qualquer alusão à morte do líder histórico do PAIGC. 

Em conclusão, pode dizer-se, segundo JPC, "que dos arquivos portugueses e das memórias dos seus principais intervenientes, já tudo ou quase tudo se conhece". O mesmo não se passa "do outro lado"...

Veremos, noutro poste,  a segunda parte do bem pensado e estruturado artigo do JPC.

(Continua)
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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23993: Agenda cultural (827): Lembrar um construtor de nações, meio século depois do seu assassinato, no Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro", na Assembleia da República, Lisboa, 13 e 14 de janeiro de 2023 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Só na véspera à tarde é que recebi um mail a confirmar que podia participar neste colóquio, já tinha compromissos assumidos para sábado, de modo que o meu relato cinge-se ao que me parece ter sido o essencial do primeiro dia do colóquio. Recomendo a leitura do jornal O Expresso do próximo fim de semana, acerquei-me do José Pedro Castanheira para lhe pedir o texto, para mim uma das peças mais importantes daquele dia de trabalhos, respondeu-me que a sua comunicação será publicada integralmente no jornal, razão pela qual não ma podia facilitar. Não escondo a grande surpresa que tive com a categoria intelectual do Presidente da Assembleia da República, felizmente que podem ler na íntegra a sua intervenção.

Um abraço do
Mário



Lembrar um construtor de nações, meio século depois do seu assassinato

Mário Beja Santos

A Assembleia da República acolheu um colóquio intitulado “Amílcar Cabral, História do Futuro”, promovido por um conjunto de instituições universitárias, nos passados dias 13 e 14. Lamentavelmente só pude participar no dia 13, pelo que vou reportar, em síntese, o que ali se disse sobre a vida, a obra e a atualidade do pensamento revolucionário do líder do PAIGC.

Abriu o colóquio o Presidente da Assembleia da República, Augusto dos Santos Silva, que se debruçou sobre os lugares e as ideias de Amílcar Cabral, pegou em duas frases de Cabral sobre como a libertação é um fator de cultura e a distinção entre cultura e manifestações culturais. Para quem ali estava a ser evocado, importa entender que um povo colonizado está excluído pelo colonizador. Cabral entendia a libertação como processo de resgate, um resgate de identidade nacional, era na própria libertação que se ia construindo uma cultura agregadora, uma matriz nacional, superadora de diferentes crenças, de diferentes idiomas, e com a capacidade alavancar uma nação para o desenvolvimento socioeconómico e cultural. Cabral, observou o orador, entendia que o povo português era aliado de quem procurava a independência. Em síntese, para Cabral a libertação não era só a independência, adquirida esta era imprescindível passar para o desenvolvimento e aí a cultura era crucial como processo de transformação, seria a encarnação de uma identidade múltipla (comunicação integral do orador disponível em: https://www.parlamento.pt/sites/PARXVL/Intervencoes/Paginas/Intervencoes/Intervencao-PAR-na-sessao-abertura-coloquio-Amilcar-Cabral-Historia-do-Futuro.aspx)

Interveio, seguidamente, Fernando Rosas, centrou a sua comunicação sobre os termos e os modos como se deve ir mais além desta memória histórica que entrou perigosamente em esquecimento, importa retomar os estudos e as investigações alusivos à obra de Cabral e conhecer melhor todo o período da luta de libertação, aprofundando o que há de atual no pensamento de Cabral.

A comunicação seguinte coube a António Sousa Ribeiro, que na continuação das observações do comentador anterior deplorou o inconsciente colonial, postura que também foi mantida por Joana Dias Pereira que aludiu ao domínio do presentismo, uma historicidade que agora parece subordinada a estudos posteriores ao fenómeno do colonialismo; uma convidada estrangeira, Marga Ferré, pronunciou-se sobre os desafios que o pensamento de Cabral propõem para o futuro e não deixou de se sublinhar o que ela tratou como anomalia histórica, Cabral estava destinado a ser um agente colonial, provavelmente numa posição de todo, e rebelou-se contra o colonialismo, o que nos leva a refletir sobre lugares e ideias que impõem o vigor de um pensamento novo, daí a importância de continuar a estudar Cabral.

Seguiu-se a este período de apresentações o primeiro painel intitulado “Guerra colonial: memória e silenciamentos”, em que participaram Miguel Cardina, Carlos Cardoso, Patrícia Godinho Gomes e Cláudia Castelo. Cardina retomou a reflexão sobre o quadro do esquecimento sobre as lutas de libertação e propôs um conjunto de desafios que poderão contribuir para revigorar a memória destes acontecimentos, citou a necessidade de haver uma rede conjunta de arquivos, investigação sobre os modos com que se fez a guerra e a relação soldados/população, incentivar a investigação académica nos novos países independentes, entre outros.

O investigador guineense Carlos Cardoso recordou que a luta armada foi constitutiva da nação tal como ela existe e sublinhou a omissão existente no país quanto a políticas de perdão; para o investigador, a História da Guiné tem de ser contada com histórias e saudou o facto de hoje em dia os cinco países africanos de língua portuguesa terem resolvido estudar conjuntamente as suas lutas de libertação; Patrícia Godinho Gomes centrou a sua intervenção sobre as mulheres silenciadas na luta armada, chamou a atenção para a urgência em proporcionar investigações de história oral sobre estas mulheres, são testemunhos enriquecedores; Cláudia Castelo debruçou-se sobre o papel da Casa dos Estudantes do Império na luta de libertação.

Seguiu-se novo painel intitulado “Amílcar Cabral, trajetos de vida e memória viva”, fora intervenientes Vítor Barros, José Neves, Julião Soares Sousa, José Pedro Castanheira e Leonor Pires Martins. 

Ganharam realce as intervenções de Julião Soares Sousa e José Pedro Castanheira. Julião Soares Sousa comentou os olhares contemporâneos sobre o líder do PAIGC, favoráveis ou desfavoráveis: mártir, herói, autoritário e cultor da personalidade, homem previdencial, enfim, são revelações abonatórias de que continua a ser necessário estudar aquele tempo, a sua vida e a sua obra. 

José Pedro Castanheira recordou à assistência a investigação que leva há décadas sobre o assassinato de Cabral, mantêm-se as incógnitas sobre a origem do complô, referiu os diferentes arquivos e documentos onde é patente de que não houve qualquer ordem de autoridades portuguesas ou da PIDE para matar Cabral naquela altura, nada consta, referiu, nos arquivos na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico-Diplomático e nas Actas do Conselho Superior de Defesa Nacional, sabe-se hoje que nos diferentes tribunais (foram três) se debruçaram sobre o assassinato de Cabral todos os presumíveis ligados ao complô foram guineenses, não foi inquirido nem acusado de qualquer culpa um só cabo-verdiano.

No final deste painel, foi recordado que em finais de março, no Palácio Baldaia, estará patente uma exposição sobre Amílcar Cabral.

Retomados os trabalhos da parte da tarde, a comunicação mais esperada a do comandante Pedro Pires que começou por referir que não era isento nem imparcial, valorizava o triunfo de Cabral durante a luta armada e post mortem, enalteceu a estratégia do líder por se ter preocupado em primeiro lugar com a consciencialização das massas camponesas, ter procurado a todo o transe apoios para formar quadros revolucionários, como aconteceu e ele próprio se ter encarregado da primeira preparação desses quadros, nas escola piloto em Conacri.

Recordou a resistência dos povos da Guiné contra a presença colonialista e interrogou-se sobre o valor histórico da colonização portuguesa. Logo que demonstrado que Salazar não queria aceder a qualquer tipo de negociação de abertura para a independência da Guiné, Cabral preparou etapa a etapa a solução militar, nunca escondeu a surpresa de como a luta de libertação se revelou fulminante e decisiva logo em 1963 e 1964. Lembrou também que coube a Cabral procurar romper o equilíbrio estratégico e que se deslocara à União Soviética não só para ali se prepararem os utilizadores do míssil terra-ar como que eles fossem cedidos com bastante rapidez, em 1973, tal como aconteceu. Pedro Pires mantém a tese de operação da PIDE para assassinar Amílcar Cabral e mantém a esperança de que a geração de Cabral continue a testemunhar e a ser ouvida sobre a visão do líder e do seu legado político e moral.

É este o apanhado que me parece mais pertinente para os meus confrades do blogue.

Artigo de Bárbara Reis, publicado no jornal Público em 14 de janeiro, com o título 50 anos depois, Amílcar Cabral está esquecido e está na moda, disponível em: https://www.publico.pt/2023/01/14/mundo/noticia/50-anos-amilcar-cabral-esquecido-moda-2035088, com a devida vénia.
Abertura do colóquio e comunicação do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva
Intervenção de Julião Soares Sousa
Intervenção do comandante Pedro Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23975: Agenda cultural (826): Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro"... Organização: CES/UC (Projeto CROME Memórias Cruzadas; Políticas do Silêncio). Local: Assembleia da República, Lisboa, 13 e 14 de janeiro de 2023

sábado, 31 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23935: Antologia (88): Cabo Verde: história das suas forças armadas, constituídas a partir de um núcleo de antigos combatentes do PAIGC (excertos de artigo de Pedro dos Reis Brito, "Revista Militar", n.º 2461/2462, de fev / mar 2007)

1 Apesar de tudo, Cabo Verde está também no coração de muitos de nós; os pais de alguns de nós foram lá expedicionários durante a II Grande Guerra; temos camaradas naturais de lá, que estão inscritos na Tabanca Grande; um ou outro dos membros da Tabanca Grande fez lá também a sua comissão de serviço militar,  nalguns casos estiveram lá alguns meses, ou em trânsito para o CTIG, sobretudo no início dos anos 60...  

Cabo Verde é um país da CPLP sobre o qual temos falado pouco... Ou sobre o qual tem havido pouco que falar, aqui no nosso blogue, apesar da presença histórica de Portugal na região e nas ilhas desde meados do séc. XV. E pode vir a ser, num futuro próximo, um parceiro da NATO.

Bem, na realidade temos 470 referências sobre Cabo Verde, o que não é nada mal.  Temos falado pouco de Cabo Verde dos anos 60 para cá, como antiga colónia portuguesa e depois como país lusófono independente.  

Temos falado muito pouco sobretudo da sua discretíssima independência (mas nem por isso "pacífica", dados os interesseses geoestratégicos em jogo, com o PAIGC , pós-Amílcar Cabral, na altura claramente pró-soviético).  

Como temos falado pouco do golpe de estado de 'Nino' Vieira em 14 de novembro de 1980 que deu a machada final no "mito" da unidade Guiné-Bissau / Cabo Verde, tão acarinhado por Amílcar Cabral e um punhado de cabo-verdianos do seu partido e aceite, a contra-gosto, por muitos guineenses (alguns dos quais saudaram efusivamente o golpe, que teve consequências irreversíveis).

Não sou dos saudosistas que pensam que Cabo Verde hoje bem poderia ser uma região autómoma de Portugal  e estar plenamente integrada na União Europeia, tal como as Canárias, os Açores ou a Madeira. A escolha (política) do povo cabo-verdiano é/foi soberana.   

A memória é curta, pelo que é bom recordar  que "a 19 de Dezembro de 1974 foi assinado um acordo entre o PAIGC e Portugal, instaurando-se um governo de transição em Cabo Verde. Este mesmo Governo preparou as eleições para uma Assembleia Nacional Popular que em 5 de julho de 1975 proclamou a independência." (Sítio oficial do Governo de Cabo Verde > O arquipélago > História )

Mas nós aqui temos a natural curiosidade, como antigos combatentes,  em saber o que se passou até à independência, e mesmo depois sob o regime único do PAIGC / PAICV.  E vamos continuar a fazê-lo dentro do respeito do princípio da não-ingerência, dos antigos combatentes da guerra colonial,  na vida interna de Cabo Verde e da Guiné-Bissau (dois países que nos são queridos, além das demais antigas colónias portugueses, hoje países independentes). Além disso, a "morabeza" impõe...


2. Excertos de um artigo publicado na Revista Militar, n.º 2461/2462, fevereiro/março de 2007, "Os Quarenta Anos das Forças Armadas de Cabo Verde", do então tenente-coronel Pedro dos Reis Brito, na reserva, entretanto falecido (1953-2014).

Segundo o semanário Expresso das Ilhas, de 23 de agosto de 2015, este oficial das Forças Armadas de Cabo Verde que atingiria o posto de posto de coronel "entrou para a corporação após ter concluído o estágio de Comissário Político de Companhia, em junho de 1975 em Cuba"... Trata-se, pois, de um dos primeiros elementos a integrar as Forças Armadas da República de Cabo Verde.

Voltando à nossa fonte, "de julho a agosto de 1975, desempenhou as funções de comissário político da Companhia Manuel Monteiro do Comando da Primeira Região Militar, de agosto de 1975 a maio de 1976, desempenhou as funções de comissário político no Centro de Instrução Político Militar do Tarrafal; em 15 de maio de 1976 foi promovido ao posto de segundo-oficial, para a 4 de Janeiro de 1978, ser promovido ao posto de tenente" (...) e em 1995 foi promovido ao posto de capitão, tendo entretanto concluído, em novembro de 1995, "a licenciatura em Economia, por correspondência, na Universidade de Havana, em Cuba".

Era então tenente-coronel quando escreveu este artigo para a "Revista Militar", portuguesa. Desse artigo vamos selecionar com a devida vénia, alguns excertos com factos relevantes para a história das Forças Armadas de Cabo Verde. Vão em itálico e separados por parênteses curvos, os subtítulos são nossos.


As Forças Armadas, uma instituição que orgulha os cabo-verdianos

(...) Celebrar os quarenta anos de existência das Forças Armadas é, de facto, revisitar marcos históricos da Nação Cabo-Verdiana, alguns perdidos no tempo ou nos recônditos da memória, outros mais presentes. Para além da comemoração ser um dever da instituição é, simultaneamente, um tempo de festa - pelas realizações e êxitos conseguidos - e de análise e reflexão com vista a corrigir os erros, projectar melhor o futuro e agir com maior coerência no presente.
 
Trinta e um anos depois da conquista da sua independência, Cabo Verde - este país ilhéu e saheliano do Atlântico médio - deixa o grupo dos PMA (Países Menos Avançados) e ascende à condição de país de desenvolvimento médio. Mérito é, facto, do povo caboverdiano, mérito dos sucessivos governos e mérito das instituições, pequenas e grandes, que enformam o estado e a sociedade. O nível de desenvolvimento atingido nestas dez ilhas é fruto de trabalho árduo e de muitos sacrifícios, (...)


Nesses anos de construção sobressai uma instituição que orgulha os cabo-verdianos e que acaba de completar 40 anos: as Forças Armadas de Cabo Verde. A história das Forças Armadas, assim como a formação da Nação, precede a independência e confunde-se nas trilhas da luta emancipadora com o doloroso, sacrificante e honroso caminhar para a nova aurora.

O Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde - ver listagem completa no final do artigo - por circunstâncias e vicissitudes diversas - diria, quase, por imponderáveis do tempo histórico - é constituído em meados dos anos sessenta do Século XX e lá do outro lado do oceano.

Realmente, a necessidade de dar inicio à luta armada em Cabo Verde levou a direcção do PAIGC - movimento libertador das Ilhas e da Guiné - no fragor da luta a mobilizar um punhado de jovens de que faziam parte estudantes, camponeses e trabalhadores emigrantes, juntamente com outros militantes anteriormente mobilizados, e enviá-lo a Cuba, onde, em plena clandestinidade e nas montanhas dessa ilha, permanece cerca de dois anos, recebendo preparação militar que seria, posteriormente, continuada na União Soviética.

É a 15 de janeiro de 1967, ainda em Cuba, finda a preparação e em vésperas de partir que, perante Amílcar Cabral, a quase totalidade dos membros do Grupo, individualmente, prestou um juramento solene: “de fidelidade à luta pela independência de Cabo Verde 
[sic 
 ]  fosse em que circunstâncias fosse. Esses jovens, então, afirmaram-se, dispostos para o sacrifício supremo se necessário para se poder alcançar a liberdade da Pátria, mas também pelo seu desenvolvimento e engrandecimento”. (...)

Hoje, é com orgulho que se constata que se cumpriu o Juramento. Por isso, em 1988, o Governo de Cabo Verde no primeiro gesto de reconhecimento da importância deste facto, escolheu e fixou o dia 15 de Janeiro como “Dia das Forças de Cabo Verde” (...)

Em 1975 é nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).


 Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde 

Por conseguinte, retomando, a trajectória iniciada nos anos sessenta, feita com perseverança e determinação, pode-se afirmar que, com certeza, se cumpriu, também, o destino. De facto, o Núcleo Fundador das Forças Armadas, após ter-se empenhado duramente em todos os sectores e frentes da luta pela independência, onde alguns dos seus integrantes tombaram no campo da honra, nas vésperas da independência nacional e nos anos que se seguiram, assume activamente a organização das Forças Armadas nacionais, integrando, preparando e dirigindo os jovens voluntários que massivamente se prontificaram em defender o país e prosseguiram edificando as Forças Armadas caboverdianas.

E não se limitaram à esfera militar, tendo-se registado uma vasta e qualitativa participação aos mais altos níveis de actividade do Estado de membros desse Núcleo. Assim, depois da proclamação da Independência Nacional, a Lei de Organização Politica do Estado atribui ao Ministério da Defesa e Segurança - criado pelo Decreto-Lei n.º 4/75 de 23 Julho - a responsabilidade pela defesa da independência, da soberania e integridade territorial, sendo nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz 3 e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas4 nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).

É o Decreto n.º 26/75 de 20 de Setembro, que cria o Comando-Geral das FARP e Milícias e o Comissariado Político Nacional das FARP, tendo este último à frente o Comandante João José Lopes da Silva. É esta, pois, a liderança - apoiada por vários oficiais, ainda sem postos definidos e sem patentes - que no dia-a-dia vai erigindo o novo “edifício militar” cabo-verdiano, em paralelo com a construção do novo Estado.

(...) Ao longo desses quarenta anos várias foram as gerações de cabo-verdianos que de uma forma ou de outra, viriam a dar o seu indispensável contributo para a formação das Forças Armadas, seguindo as peugadas do Núcleo fundador.  
 
(...) A sua estrutura orgânica sofreu adaptações aos momentos e contextos históricos vividos no país, mas como reestruturação de fundo registam-se: na década de oitenta, a aprovação de legislação estruturante, designadamente a Lei Orgânica, o Estatuto do Oficial e do Sargento, as Normas de Promoção e o Regulamento de Disciplina Militar (RDM); na década de noventa, que começa com introdução de novas missões para as Forças Armadas no quadro da Nova Constituição, a aprovação de leis decisivas destacando-se a Lei das Forças Armadas, a lei que define o estatuto da condição militar, a lei que define a organização global e efectivo das FA, o Estatuto dos Militares, o Estatuto Remuneratório, o Código de Justiça Militar e a revisão de várias outras normas jurídicas, onde sobressai o RDM; no período actual, convencionalmente enquadrado na reforma das Forças Armadas, a elaboração de importantes estudos conceptuais: o Projecto da Reforma das Forças Armadas e o Projecto de Conceito Estratégico da Defesa Nacional; e a adopção de dispositivos conceptuais e legais: as Grandes Opções do Conceito Estratégico da Defesa e Segurança Nacional, a Lei que estabelece o Regime Geral das FA e outros documentos importantes para organização sistémica e integrada da defesa nacional.

Se nos anos noventa se assistiu à criação da Guarda Costeira, composta por Unidades Navais e Unidades Aéreas e à formação da primeira Companhia de Fuzileiros Navais, depois de uma experiência que não vingou em finais dos anos setenta, este período que a instituição vive ressalta a sua reestruturação por forma a poder dar melhor resposta no que respeita, também, à segurança interna.

É assim que surge a Guarda Nacional, que será integrada essencialmente por Unidades de Policia Militar, de Fuzileiros Navais e de Artilharia e a Guarda Costeira, reorientada para os objectivos essenciais da sua constituição que são: a vigilância e fiscalização dos espaços marítimo e aéreo, bem como a sua preparação para acções de busca e salvamento, ao mesmo tempo que se forma a primeira unidade especial de reacção rápida para o enfrentamento das ameaças, sobretudo à segurança interna, de carácter mais violento.

Antes de abordar as realizações de vulto no seio das Forças Armadas, no transcurso de tempo decorrido, importa dizer que a perenidade da instituição deve muito ao seu papel que tem desempenhado e à sua utilidade na sociedade. Realmente, não obstante estar vocacionada e lhe seja cometida pela Constituição a “… defesa militar da república contra qualquer ameaça ou agressão externa.”, e ainda para missões com maior afinidade com a responsabilidade referida, aliás assumida em demais leis que enformam o corpo normativo da instituição, elas têm sabido dar uma contribuição de valor em várias outra frentes do desenvolvimento.

O testemunho da sua presença começa nas campanhas de arborização e protecção do meio ambiente e vai até ao apoio às populações em tempos de crise. No concernente a realizações, propriamente ditas, deve-se registar que o crescimento da instituição castrense cabo-verdiana foi acompanhado de um grande esforço no sector da formação de quadros. Desde o início as Forças Armadas preocuparam-se com a formação dos seus efectivos no domínio técnico-militar e no cultural, independentemente da sua condição de prestação de serviço, visto que a formação do homem é sempre um investimento no desenvolvimento.

É gratificante encontrar pelo país fora, nos mais diversos ramos de actividade, profissionais de níveis e especialidades mais díspares formados pelas Forças Armadas ou graças à sua acção e apoio. Eles são professores e músicos, médicos e enfermeiros, engenheiros e marinheiros, técnicos de construção civil, etc. Dificilmente, o nível de desenvolvimento e o estádio de organização seria atingido se não tivéssemos contado durante esses 40 anos com a colaboração internacional.

Com efeito, o crescimento das Forças Armadas, desde do primeiro instante teve na cooperação técnico-militar um elemento fundamental e o leque de apoiantes é extenso: países como a antiga União Soviética, os Estados Unidos da América, Portugal, a França, a Angola, a Alemanha, China, Cuba e Senegal têm sido excelentes parceiros nas várias etapas da vida das FA, tendo o Governo, através do Ministro da Defesa, na década de noventa do século passado, em sinal de reconhecimentos e agradecimento, agraciado algumas das suas representações aqui no país, com a Medalha Militar de Serviços Relevantes.

Mas a presença internacional das Forças Armadas não se tem limitado à cooperação, no plano operacional as tropas cabo-verdianas, nos últimos anos têm tido uma participação em vários exercícios internacionais, o que evidencia o bom nível de preparação das nossas tropas no total de treze exercícios militares multinacionais, no quadro da CPLP (...).

As Forças Armadas cabo-verdianas completaram, no passado dia 15 de Janeiro 40 anos de existência. A efeméride vem sendo comemorada desde o mês de Novembro, tendo o Programa iniciado com a cerimónia de condecoração de militares e civis que participaram com brilho no Exercício da NATO “STEADFAST JAGUAR 2006”, pela Ministra da Defesa Nacional.

O ponto alto da celebração aconteceu na Cidade da Praia no dia 14 em que foram homenageados os Membros do Núcleo Fundador da instituição. O Acto Central do 40.º aniversário das Forças Armadas de Cabo Verde foi assinalado no passado dia 14 de Janeiro - Domingo, presidido por Sua Excelência o Presidente da República, Pedro Verona Rodrigues Pires. O acto contou, também, com a presença do Primeiro-Ministro, Dr José Maria Pereira Neves.

Durante a cerimónia, carregada de simbolismo e emoção, foi homenageado o Núcleo Fundador das Forças Armadas, que recebeu do Chefe do Estado-Maior das FA a Medalha Estrela de Honra das Forças Armadas. A medalha colectiva foi recebida, em representação do Núcleo, pelo 1.º Comandante Agnelo Dantas, membro do núcleo, em seguida ela foi oferecida às Forças Armadas, sendo colocada no Estandarte das FA pelo Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, Pedro Pires, então Líder do Núcleo Fundador.

Os membros do Núcleo presentes (14) receberam as correspondentes insígnias representativas da condecoração colectiva. Usaram da palavra no acto o 1.º Comandante Agnelo Dantas - ex-Chefe do Estado-Maior das FA, em nome do Núcleo para agradecer a homenagem recebida, a Ministra da Defesa Nacional, Dra Cristina Fontes Lima, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Coronel Antero Matos e o Presidente da República, Pedro Pires.

A cerimónia terminou com um desfile das Forças em parada, que integrou a Infantaria da Guarnição do Estado-Maior das FA, a Polícia Militar, a Artilharia de Campanha, a Defesa Aérea e a Banda Militar da terceira Região Militar e os Fuzileiros Navais da Guarda Costeira, num total de 300 militares. 

De ressaltar que enquadrado no Programa de comemorações que se prolongará até 18 de Março - Dia da Unidade “Justino Lopes”, do Comando da 3.ª Região Militar - foram realizados: o Exercício Militar “Zézé Aguiar”, levado a cabo nos Concelhos de Santa Catarina e São Miguel, na ilha de Santiago; os Jogos Militares Nacionais, em que a equipa da 3.ª Região Militar se sagrou vencedora; palestras alusivas à data em vários estabelecimentos de ensino do país; paradas militares nas sedes das 1.ª e 2.ª Regiões Militares; e encontros entre militares no activo e Combatentes da Liberdade da Pátria, na sua maioria militares e/ou Membros do Núcleo Fundador. (...)


MEMBROS DO NÚCLEO FUNDADOR DAS FORÇAS ARMADAS DE CABO VERDE

Primeira Unidade Combatente de Cabo-verdianos

1. Alcides Évora (Batcha)
2. Afonso Gomes*
3. Agnelo Dantas
4. Amâncio Lopes
5. António Leite
6. Armando Fortes
7. Armindo Ferreira
8. Estanislau João Ramos
9. Fernando dos Santos Rosa
10. Honório Chantre
11. Jaime Mota*
12. Joaquim Pedro Silva (Barô)
13. José Anselmo Corsino
14. Júlio César de Carvalho
15. Manuel Jesus Gomes
16. Manuel João Piedade
17. Manuel Maria dos Santos
18. Manuel Monteiro
19. Manuel Pedro dos Santos
20. Maria Ilídia C. Évora
21. Nicolau Pio*
22. Olívio Melício Pires
23. Osvaldo Azevedo
24. Pedro 
[Verona Rodrigues ] Pires**
25. Silvino Manuel da Luz
26. Sotero Nicolau Fortes
27. Wlademiro Carvalho*.

* Já faleceram (até à data da publicação do artigo)

** Líder do Grupo

*** (LG) Falecidos depois da data do artigo (2007): (i) Joaquim Pedro Silva (Baró) (2019)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Linsk / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG. ] 

[ Não nos compete contestar ou apoiar a tese do autor, que já é de resto institucional, sobre a data de 15 de janeiro de 1967, em que um punhado de jovens cabo-verdianos jurou lutar pela libertação de Cabo-Verde, na presença de Amílcar Cabral, em Cuba,  no final do seu treimo e formação político-militares. O assunto já é do domínio da história e do seu contraditório, não devendo, por isso,  servir para degradar ainda mais  as relações entre antigos militantes do PAIGC e,  nomeadamente, entre guineenses e cabo-verdianos. ]
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23341: Notas de leitura (1454): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
O casal Éric e Jeanne Makédonsky dão como explicação de que este acervo apreciável de testemunhos recolhidos junto de intervenientes guineenses, cabo-verdianos e portugueses, entre 1980 e 1982, não foi publicado logo a seguir atendendo a que a aura de que a guerrilha guineense se cobrira de glória, no campo internacional, perdera-se, deixou de haver interesse em acompanhar o fenómeno revolucionário da Guiné-Bissau, entrara-se por um caminho sombrio, a própria investigação, que continuou a fazer-se, perdeu muito do interesse inicial. No entanto, a despeito de que todos estes testemunhos introduzam novidades de maior, a sequência cronológica como se estrutura a obra permite ao iniciado seguir a trama de forma sequencial, do princípio a uma quase atualidade. Tudo começou em estado de tormenta e em tormenta e profunda inquietação prossegue.

Um abraço do
Mário



Assitiram à independência da Guiné, décadas depois publicam livro (2)

Beja Santos

“La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky, L’Harmattan, 2018, é uma obra que forçosamente nos surpreende. Marido e mulher eram jornalistas que permaneceram longamente no continente africano. E abrem o seu livro explicando porquê, só agora, dão à estampa os testemunhos que recolheram décadas atrás. Entenderam os autores que a guerrilha guineense em poucos anos perdeu o furor e o entusiasmo com que eram vistos pelo movimento revolucionário à escala mundial. No entanto, não quiseram deixar de contribuir para que a investigação sobre os acontecimentos relacionados com a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde perdesse a possibilidade de conhecer os testemunhos de inúmeras personalidades intervenientes, do lado guineense, cabo-verdiano e português.

Após o testemunho dos guineenses (Nino, Paulo Correia, Vasco Cabral, Fidelis Cabral d’Almada) que dão conta da evolução da luta a partir de 1968, fica-se com uma apreciação do quadro político e militar até ao assassinato de Amílcar Cabral. É um dado curioso, atenda-se que estes testemunhos são recolhidos entre 1980 e 1982, do lado cabo-verdiano já há insinuações de compromisso guineense ao mais alto nível. Aristides Pereira chega a dizer quando foi raptado e metido numa lancha cuja marcha foi travada em Boké, ouviu elementos do complô referir nomes de altos dirigentes do PAIGC naturais da Guiné. Mas não diz quais. Refere a reação dos órgãos diretivos e a intensificação da luta. Pedro Pires enfatiza a preparação e execução da operação Amílcar Cabral e as consequências associadas aos mísseis Strela e ao uso de viaturas já no interior do território da Guiné para lançar mísseis sobre os quarteis. Pedro Pires recorda o pedido que fez a Aristides Pereira, então em tratamento em Moscovo, era necessário mais artilharia pesada, canhões 122, novas rampas de lançamento de mísseis GRAD e os temíveis morteiros de 120 milímetros, bem como canhões B10 e de 85 e 76 mm. O Conselho Executivo da Luta dera luz verde para uma ofensiva prevista para os meses de novembro e dezembro de 1974 com blindados T34 e BRDM, isto num quadro em que ainda se desconhecia qual seria a decisão da Organização de Unidade Africana, que tinha apelado à formação de um exército africano para expulsar as forças portuguesas.

Sobre as mesmas matérias do assassinato e da reação político-militar do assassinato de Amílcar Cabral, depõem José Araújo, Manuel dos Santos, Osvaldo Lopes da Silva, entre outros. E seguem-se os testemunhos guineenses de Nino, Vasco Cabral e Fidelis Cabral d’Almada. Uns atribuem o complô a quadros que se tinham marginalizado e que até viviam do roubo, há também quem atribua um papel relevante a Momo Touré e Aristides Barbosa, na época era uma acusação que parecia vingar, ainda não se sopesara tal inviabilidade quando o complô, como se veio a apurar, envolvera centenas de participantes de diferentes perfis. Do lado português irão depor Carlos Fabião, Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Matos Gomes. Fabião nega perentoriamente qualquer envolvimento de Spínola ou das Forças Armadas, mas fica a pairar no ar a possibilidade de uma intervenção completamente fora das regras clássicas de Alpoim Calvão, que ao tempo dirigia um discreto serviço de informações em Lisboa. Mas não exclui uma intervenção da PIDE, a título meramente institucional. Otelo também se mostra persuadido da intervenção da PIDE e recorda que encontrou Alpoim Calvão em Bissau em dezembro de 1972. À distância destes anos todos, estes depoimentos revelam-se profundamente datados, presunções sem mostra de prova.

Chegamos ao 25 de Abril, há um conjunto de depoimentos sobre o que era possível fazer de descolonização da Guiné, como se atuou em 25 de Abril, como se abriram conversações com o PAIGC, etc. Obviamente que os testemunhos cabo-verdianos remetem-nos para a realidade do envio de quadros para Cabo Verde, o modo como tal se processou é contado por Aristides Pereira, Pedro Pires, José Araújo, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Julinho e Corsino Tolentino. Do lado guineense, Juvêncio Gomes confirma um depoimento que deu igualmente noutros locais sobre o seu papel de primeiro interlocutor do PAIGC após o 25 de Abril.

Insiste-se que a generalidade destes depoimentos não se reveste de aspetos inovadores. Nino Vieira, a propósito do golpe de 14 de novembro de 1980, repete que existia um quadro persecutório cabo-verdiano e que eram humilhantes para os guineenses os contextos institucionais existentes em Cabo Verde que inferiorizavam a Guiné, segundo Nino, Luís Cabral estava incapaz de ler a realidade. A linha guineense, caso de Fidelis Cabral d’ Almada, não deixará de referir os excessos da polícia de segurança, que gradualmente se tornou um Estado dentro do Estado. Dá-nos um quadro alucinante de uma pseudo insurreição dos antigos Comandos africanos, quando eles vieram do Senegal, aonde se tinham refugiado, apareceram praticamente sem qualquer armamento, quem os chamara dissera que vinham para apoiar Nino para fazer parte de um grande exército nacional, foram presos pela segurança e mais tarde executados.

No final desta recolha de depoimentos e dado que a sua publicação ocorreu em 2018, os autores dão-nos conta do que se passou com todos estes protagonistas: 

  • Fidelis Cabral d’Almada, Ministro da Justiça após o golpe de 14 de novembro de 1980, depois Ministro de Estado na Presidência, deixou a esfera pública em 1996 para se dedicar aos negócios, faleceu em 2002; 
  • José Araújo manteve-se em Bissau até ao golpe de 14 de novembro de 1980, foi para Cabo Verde onde seria Ministro da Educação, faleceu em 1982; 
  • Vasco Cabral manteve-se em funções governativas depois da rutura entre a Guiné e Cabo Verde, já faleceu;
  • Vítor Saúde Maria foi várias vezes ministro, será nomeado Secretário Permanente do PAIGC e membro do Conselho de Estado, faleceu em 2009; 
  • Paulo Correia irá ocupar altos cargos e será detido em 1986 acusado de tentativa de golpe de Estado, sujeito a espancamentos e depois fuzilado; 
  • Juvêncio Gomes será afastado do cargo de Presidente da Câmara Municipal de Bissau após o golpe de 14 de novembro, será depois recuperado e exercerá funções de responsabilidade, incluindo o Ministério do Interior, faleceu em 2016; 
  • Manuel dos Santos (também chamado Manecas) ficará na Guiné-Bissau depois do golpe de Estado e será várias vezes ministro, dedicar-se-á mais tarde aos seus negócios; não deixará de publicamente se insurgir quanto às pensões de miséria dos antigos combatentes, dando o exemplo de um velho combatente, com deficiência, não recebia mais de 21 euros de pensão; 
  • o destino de Nino é bem conhecido, irá gradualmente proceder como um ditador, será afastado do poder após o conflito político-militar de 1998-1999, para espanto geral regressa do exílio português e apresenta-se como candidato presidencial, será eleito, irá entrar em conflito frontal com as chefias militares, será acusado de ter mandado liquidar Tagmé Na Waié e em sua sequência, em março de 2009, morto em sua casa, de forma bárbara.

Reconheça-se que o trabalho de Éric e Jeanne Makédonsky merece realce relativamente à cronologia dos acontecimentos desde a era das independências africanas até ao período pós-independência da Guiné e Cabo Verde. São relatos após a recente rutura entre a Guiné e Cabo Verde, há, como é evidente, alguns indícios de ressentimentos, mas no essencial os testemunhos guineenses e cabo-verdianos mantiveram consistência ao longo de décadas.

Éric Makédonsky
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23331: Notas de leitura (1453): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (1) (Mário Beja Santos)