quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24306: Antologia (89): Cabo Verde, "refém de uma história contada" (Expresso das Ilhas, 27 de janeiro de 2022)

Expresso das Ilhas,  Praia. Cabo Verde > 27 jan 2022 16:52   


País refém de uma história contada

A propósito das controvérsias que sempre aparecem na chamada Semana da República entre os dias 13 e 20 de Janeiro, o Presidente da República, José Maria Neves, disse que “não temos cumprido uma grande promessa da democracia que é a educação para a cidadania”.

 Acrescenta ainda que “quem quer ser cidadão tem de procurar conhecer a história, sobretudo, a contemporânea do seu país”. A falha detectada pelo PR tem pelo menos duas causas mais visíveis.

A primeira é que o Estado não se esforça o suficiente para passar para as pessoas, para a sociedade e em particular para as novas gerações os princípios e valores universais a começar pelo respeito pela dignidade humana e o direito à liberdade, que estão plasmados na Constituição de 1992, nem a importância do pluralismo, do princípio da separação de poderes e da independência dos tribunais no funcionamento pleno da democracia. 

Em consequência, fica por desenvolver adequadamente a vontade de participação, autonomia de pensamento e acção, auto-responsabilidade e o espírito de pertença à comunidade que se espera de cidadãos plenos. 

Pelo contrário, põe-se demasiado ênfase em alegados actos libertadores e heróicos de indivíduos e grupos, revoltas e ressentimentos do passado e manifestações de um paternalismo “salvítico” que deixa todos gratos e dependentes do Estado e na condição de cidadãos menores.

A outra causa tem a ver com a disputa permanente no país entre a “história contada” e a “história vivida”, entre factos e mitos, entre a procura da verdade e as tentativas de mascarar a realidade fazendo apelo a sentimentos, a lealdades antigas e a demonização do outro. 

De facto, a única história que realmente se é permitido conhecer não é a que aconteceu nas ilhas, mas a que supostamente teria passado nas matas da Guiné e em Conakry. 

Uma história perpassada por narrativas carregadas de heroísmo, de generosidade e de boas intenções que depois com as independências e o poder conquistado não se viu correspondência com a realidade dos regimes implantados tanto na Guiné como em Cabo Verde. 

Os seus protagonistas surpreenderam toda a gente com a perda da liberdade, a arrogância de “melhores filhos” no exercício do poder e a visão curta de quem sempre que foi dado a escolher entre desenvolvimento das pessoas e do país e o seu regime político ditatorial invariavelmente optava pela manutenção do poder

A outra história, aquela vivida nas ilhas e que foi da ditadura, de oportunidades perdidas e de vidas amarfanhadas pela falta de liberdade, pela inibição de iniciativa individual e pela sujeição a ideologias simplistas e ultrapassadas, essa durou quinze anos, mas é como se não tivesse acontecido.

É uma história praticamente ignorada pelas instituições, pelas escolas, pela comunicação social pública e até pelos estudiosos e académicos. 

Só se estudam acontecimentos até à independência e depois da chamada abertura política em Fevereiro de 1990. São os momentos em que os “heróis” entram em cena, num caso para dar ao povo a independência e noutro para, em mais um acto de generosidade, oferecer liberdade e democracia. 

No meio fica um hiato que ninguém quer transpor com receio de ferir as susceptibilidades dos auto-indigitados “Comandantes” (ver decreto-lei nº 8/75 e decreto nº 18/80) que ocuparam os lugares-chave do poder durante a ditadura. 

Mesmo assim, nunca estão satisfeitos e todos os anos pelo 5 de Julho e pelo 20 de Janeiro repetem que a história da luta não é estudada suficientemente nas escolas e que os ensinamentos da Cabral não estão a ser seguidos. É uma pressão que vai continuar mesmo que hipoteticamente um número de pessoas próximo, dos 100% se submetesse à narrativa heróica, declarando “estar em paz com a história”.

Com esse tipo de pressão, feita com o beneplácito do Estado e das suas instituições, dificilmente vai-se ter o cidadão pleno que o PR diz que precisa conhecer a história contemporânea do seu país. 

Não se ajuda, porém, nesse conhecimento quando se procura transpor o hiato dos quinze anos, durante os quais a aplicação dos ensinamentos de Cabral pela organização por ele criado, o PAIGC, e por dirigentes por ele formados resultou em sucessivas tragédias na Guiné-Bissau e em um Cabo Verde sem liberdade e economicamente estagnado, e se propõe elegê-lo “como o símbolo maior dessa luta pela liberdade e dignidade da pessoa humana e pela igualdade”. 

Pedro Pires tem mais razão ao apresentá-lo como personalidade que “deu tudo o que tinha a favor da libertação do país”. E é libertação porque liberdade e dignidade individual, que certamente não é reconhecida quando em vez de pessoas se veem massas populares e se define a pertença à comunidade política com base em concepções do tipo o povo é quem está com o partido, são princípios e valores que só seriam conquistados 15 anos depois pelos homens e mulheres das ilhas.

Pelas reacções de diferentes personalidades durante a chamada Semana da República vê-se claramente que mais de trinta anos depois da instalação da democracia a “história contada” ainda se sobrepõe à “história vivida” mesmo quando colide frontalmente com os princípios e valores constitucionais. Instrumental nisso tudo tem sido precisamente as instituições do Estado e particularmente os órgãos de soberania. 

Resistências várias impediram durante 17 anos que o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, fosse comemorado pela Assembleia Nacional, a casa da pluralismo e a sede do contraditório na democracia. Agora já há quem queira comemorar o 20 de Janeiro com uma sessão especial da Assembleia Nacional quando se sabe pela experiência de outras democracias que comemorações da independência, da república e da memória, porque momentos de unidade e exaltação nacional, normalmente são presididas pelo presidente da república. A guerrilha continua como que para demonstrar o quanto a iniciativa da semana da república é um fiasco na tentativa de reconciliação à volta das datas históricas.

Nos últimos dias a colisão de narrativas históricas com a Constituição centrou-se sobre o que devem ser as comemorações do Dia das Forças Armadas (FA). O Governo na pessoa da Ministra da Defesa, em linha com os ditames da Constituição de 1992, realçou a função constitucional das forças armadas de assegurar a defesa nacional, a sua subordinação ao poder civil, o seu serviço à nação e o seu apartidarismo e neutralidade política. Os “comandantes” vieram à liça reivindicar a reposição da história das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e o papel que teriam tido na sua origem.

O problema é que as FARP que sempre foram concebidas como braço armado do partido, como está explícito no texto da proclamação da Independência e confirmado pela voz autorizada de Aristides Pereira em 1985 ao dizer que “a acção política e ideológica constitui uma componente essencial no trabalho das forças de defesa” e ter-se referido ao facto de as FARP, serem integradas, não por militares, mas por militantes armados”, deixaram de existir com a entrada em vigor da Constituição a 25 de Setembro de 1992 dando lugar às FA. Não faz, portanto, qualquer sentido referir-se a papéis ou missões passadas que conflituam directamente com as funções constitucionais actuais.

Mesmo na questão do Dia das Forças Armadas nota-se a conveniência e o desejo de auto glorificação. Até 1987 o dia das FARP comemorava-se a 16 de Novembro em referência à origem das forças em 1964 na sequência do Congresso de Cassacá, assim como é ainda comemorado pelas FARP na Guiné-Bissau. O objectivo então era identificarem-se com a luta na Guiné. 

Em 1988, oito anos depois do golpe na Guiné e com o poder seguro em Cabo Verde acharam que podiam fazer das suas pessoas a referência do braço armado do partido. Com um simples decreto (decreto nº 5/88) criaram um novo Dia das FARP (15 de Janeiro de 1987). Agora acham que as FA não podem ter outra referência mais consentânea com a sua função actual. É mesmo patético.

É evidente que o país não deve continuar refém de uma narrativa que glorifica pessoas responsáveis por um regime ditatorial, que promove o culto de personalidade em plena democracia e que pode causar instabilidade institucional pelos seus persistentes conflitos com os princípios e valores constitucionalmente estabelecidos. 

Os titulares dos órgãos de soberania devem lembrar-se todos do seu juramento de respeitar e cumprir a Constituição da República. Estar ao serviço do povo e não de quais outros interesses é a via certa para a construção de uma vida de liberdade, paz e prosperidade para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.

(Reproduzido aqui com a devida vénia. Revisão / fixação de texto / negritos, exlusivamente para publicação neste blogue: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 
18 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23991: Antologia (88): estereótipos coloniais: os balantas de Bambadinca, vistos pelas NT (BCAÇ 2852 e BART 2917)

9 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

No centenário do nascimento de Amílcar Cabral (que se comemora no ano que vem) é importante também ouvir as vozes daqueles e daquelas que, em Cabo Verde, contestam a sua herança política e o culto da personalidade que os seus seguidores lhe promoveram.

Dos históricos "Comandantes" do PAIGC, cabo-verdianos, que "fundaram" as Forças Armadas Armadas daquele país - irmão alguns ainda estão vivos. E também importante "saber ouvi-los"... Parece haver, nas ilhas, umavdissinancia entre a história recente "contada" e a "vivida"...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Queria dizer "uma dissonância"... LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tenho pena que os nossos amigos e antigos camaradas cabo-verdianos não queiram (ou não se sintam confortáveis em...) vir aqui para dar também o seu ponto de vista sobre esta alegada "dissonância congnitivca" em relação â história recente de Cabo Verde...

Quem vive numa ilha conhece toda a gente, o que tem muitas vantagens e, se calhar, ainda mais inconvenientes...

De qualquer modo, temos uma história comum, o que não significa que tenhamos o direito de hoje nos imiscuirmos na vida interna, político-partidária, de Cabo Verde... Queirmaos apenas compreender o texto e o contexto deste "recorte de jornal"...

Antº Rosinha disse...

O que a geração de caboverdeanos contemporânea de Amilcar Cabral e de Aristides queriam e sonhavam não era nada do que aconteceu com o fim da colonização.

Em plena colonização, o povo caboverdeano circulava "irmamente" por todo império português.

Nasceria daí a inspiração principal para Amílcar projetar a União Guiné/Caboverde.

É que até parecia simples aos olhos daqueles revolucionários tipo Amílcar e outros Estudantes do Império governar aquelas ex-colónias numa certa "fraternidade" que existia naqueles anos sessenta salazaristas de brandos costumes.

Levará muitos anos até os caboverdeanos falarem abertamente sobre as suas próprias contradições históricas que tantas são.

Contradições, que algumas serão muito complexas e ainda muito frescas para serem discutidas.



Cherno Baldé disse...


Caros amigos,

O titulo ficava melhor assim: "País(se) refé(ens) de uma história (mal)contada"

Um facto incontestavel é que Cabo-Verde e os Caboverdianos estao sempre a frente dos restantes paises africanos e nao so que faziam parte do império portugués até 1974 que, o advento das independencias colocou, de facto, numa situaçao de reféns de uma ideologia ao serviço de grupos restritos de cidadaos que se julgavam "os melhores filhos da patria".

E é precisavamente essa postura que eu considero de aproveitamento oportiunista e de usurpaçao dos direitos colectivos transformados em direitos privados imutaveis e que pouco a pouco podiam transferir de pais (herois da luta) para filhos e netos emboscados na sombra do oportunismo a fim de continuarem a usufruir das benesses conquistadas na luta que, em principio, devia favorecer o desenvolvimenbto de condiçoes de trabalho e de bem estar para o colectivo no seu todo.

Subscrevo na integra este texto critico da realidade Caboverdiano que fala em voz alta o que na Guiné-Bissau ainda so algumas pessoas sao capazes de sussurar uns aos outros, todavia os ventos da mudança ja começaram a soprar e, contra todas as expectativas, nas proximas eleiçoes o Paigc foi obrigado pelo STJ a alterar os simbolos que deverao representar a sua coligaçao com mais outros 4 partidos, afastando a possibilidade de utilizar a bandeira nacional que oportunisticamente também era utilizado em nome do partido, um passo simbolico, mas de grande significado para o futuro do pais. O Paigc sempre viveu de mitos e de narrativas (mal)contadas.

Cordialmente,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O problema não é único de Cabo Verde... Em todos os países em que há mudanças políticas "violentas" (golpe de Estado, golpe militar, guerra civil, etc.), os "libertados" tèm de gramar com o discurso "legitimista" ou "legitimador" dos "libertadores" (que muitas vezes, ou quase sempre, instalam um regime de partido único ou de auticracia pura e dura, que se vai manter durante alguns anos, quando não décadas, até ser derrubado por novos "libertadores"...). Veja-se a nossa própria história, veja-se a história da Europa, da Áfria, das Américas, da Ásia, enfim, do Mundo...

A história da liberdade e da democracia é um "parto" muito difícil... E, comparando com a história das sociedades humanas, e das diversas civilizações e nações, é uma história muito recente...

Um abraço para os nossos amigos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que póem nas suas "agendas" como prioritária a luta pela liberdade e a democracia. LG

antonio graça de abreu disse...

Diz o texto de análise do cabo-verdiano, a propósito de Cabo Verde: "A ditadura, de oportunidades perdidas e de vidas amarfanhadas pela falta de liberdade, pela inibição de iniciativa individual e pela sujeição a ideologias simplistas e ultrapassadas, essa durou quinze anos, mas é como se não tivesse acontecido."
E mais: " O hiato dos quinze anos, durante os quais a aplicação dos ensinamentos de Cabral pela organização por ele criado, o PAIGC, e por dirigentes por ele formados resultou em sucessivas tragédias na Guiné-Bissau e em um Cabo Verde sem liberdade e economicamente estagnado, e se propõe elegê-lo “como o símbolo maior dessa luta pela liberdade e dignidade da pessoa humana e pela igualdade”.

Há uns três meses atrás. Marcelo, o Presidente de Portugal, foi quase em segredo a Cabo Verde, fazer rasgados elogios a Amílcar Cabral. Lembram-se?

Diz bem o Cherno Baldé: "O Paigc sempre viveu de mitos e de narrativas (mal)contadas."

Abraço,

António Graça de Abreu

Valdemar Silva disse...

Em Cabo Verde, nas Eleições Gerais de 2021 venceu o partido MpD, de centro-direita, de democracia liberal que defende uma posição a favor da UE, com 48,78% dos votos, ficando em segundo lugar o PAICV que defende uma posição africanista, com 38,56% dos votos.
Nas Presidenciais de 2021 venceu o candidato do PAICV com 51,73% dos votos.
Em ambas as eleições a votação dos caboverdianos no estrangeiro foi ganha, nos círculos de África, América, Europa e resto do Mundo, pelo PAICV em todos os círculos, tendo ganho o círculo da Américo por 65%.
O jornalista Humberto Cardoso é um fervoroso simpatizante do partido MpD (Movimento para a Democracia) do Primeiro Ministro Ulisses Silva e grande critico do Presidente José Maria Neves do PAICV.
Quando em Dez.2022 foi inaugurada a nova colocação em posição de destaque a estátua de Amílcar Cabral, com a presença de Ulisses Silva e José Maria Neves, o Presidente de Portugal também estava presente, mas, dizem, por estar rodeado de muitos caboverdianos para uma selfie mal se via.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não devemos "imiscuir-nos" na vida interna de Cabo Verde nem da Guiné, isto é, falar da atualiddae político-partidária... Em todo o caso, a linha divisória entre passado e presnmete, é ténue... E ainda há, felizmente, gente viva, que fez a guerra colonial... E era bom ouuvir (e saber ouvir) o que ainda podem contar-nos...

Em suma, é preciso manter as pontes "transitáveis"... Eu sei que a tarefa não é fácil, nem tenho grandes ilusões sobre as possibilidadfes de diálogo entre antigos protagonistas de uma guerra, de um lado e do outro...O José de Moura Calheiros quisa dar "espaço" ao Manecas dos Santos, "Manecas" (o homem dos Strela), não só no seu livro ("A última missão"), como no lançamenmto do livro, na Academia Militar, em 2010... Não foi fáci, a avaliar por muitas reações...