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sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Deixo-vos o terceiro e último apontamento acerca do ensaio em que Philip Havik mostra o tratamento da imagem do homem e da mulher antes e após o período da ocupação efetiva. Ele não deixa de observar a mudança fundamental que se operou quando a vida do colono se transferiu das Praças e Presídios para o interior, apareceram as administrações e os postos, os governadores passaram a exigir relatórios anuais a estes funcionários, o modelo mais saliente destes anos 1930 foi o inquérito elaborado por um sobrinho do governador Velez Caroço, uma matriz que permite observar o que era a imagem da mulher. Neste tempo ainda imperavam teses raciais que proibiam categoricamente a mistura de raças, o que entra em contradição com a presença do colono neste interior onde os administradores e chefes de posto não levavam, em regra geral, a mulher branca, daí o mulato ter um desenvolvimento notório na Guiné. E há a preponderância de sinharas, como Nhá Bijagó e até perto da nossa presença colonial Nha Carlota. Este ensaio de Philip Havik é um estupendo ponto de partida para a continuação de estudos sobre as relações luso-africanas a partir de finais do século XIX e até ao fim do império.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3


Mário Beja Santos


Data de meados de 1930 a primeira monografia etnográfica que faz o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”. O seu autor deixa claro que a sua contribuição quebra o silêncio, haverá uma meia dúzia de trabalhos de grande interesse para alguns, mas destinado aos arquivos. Evidentemente que se produziram relatos pelos primeiros navegadores, somente publicados nos séculos XIX e XX, em que o registo in loco das tradições locais ocupa um lugar central. A monografia em apreço, "Babel Negra", tem uma lógica étnica e não administrativa, fornecendo dados sobre o parentesco, o casamento, a organização social, a agricultura e as línguas, obtidas essencialmente, mas não exclusivamente, pelos administradores e os seus intérpretes.

Os resultados eram em parte baseados sobre um novo questionário preparado pelo chefe dos assuntos indígenas do tempo do governador Vellez Caroço. As justificações dadas para este novo inquérito eram associadas ao projeto do novo Código Civil e Penal que se destinava a substituir as leis portuguesas então em vigor, considerando que não correspondiam à “mentalidade primitiva da população indígena”. O seu quadro e conteúdo são particularmente reveladores das doutrinas subjacentes ao pensamento colonial da época. O documento versa uma grande variedade de questões incluindo a família, refere por exemplo a divisão do trabalho entre sexos e nota-se uma boa dose de ignorância quando fazem perguntas como “Quem trabalha, os homens ou as mulheres?”. As questões referentes à autoridade paternal e maternal fazem-se acompanhar de perguntas postas do ponto de vista do marido: “Na vida do casal, quais são os papeis a que a mulher é obrigada a cumprir?”.

No livro "Babel Negra" identificam-se doze “tribos”, cada uma será objeto de um capítulo sob a forma de curtas vinhetas, isto ao mesmo nível do questionário atrás referido, tratando depois as características físicas e até as atividades de lazer. Cada capítulo inclui a fotografia de um homem e de uma mulher, bem como um glossário elementar do dialeto “étnico”. Dá-se mais importância aos grupos patrilineares, tais como os Mandingas e os Fulas, mas também aos Balantas “animistas” que aos grupos matrilineares. As relações entre homens e mulheres são sempre apresentadas como desiguais e demonstram a segregação existente entre os sexos que constituem um fio condutor no contexto destas sociedades dominadas pelos homens.

As liberdades sexuais das mulheres Baiotes são objeto de uma menção especial enquanto as suas proezas como remadoras ou lutadoras só são marginalmente referidas. O capítulo sobre os Felupes ou Djolas, caracterizados como “guerreiros” e “produtores de arroz” se releva o peso da autoridade da primeira mulher sobre o marido, situação que influencia a vida política da tribo, mas sem indicar especificamente em quê. Se bem que se vivesse num regime dito patriarcal, as sacerdotisas nesta gerontocracia masculina eram responsáveis pela manutenção dos lugares sagrados aos quais os homens não tinham acesso.

Philip Havik refere devidamente a teoria linguística sobre o género, e observa que os estudos etnológicos foram produzidos por administradores e não por antropólogos; os dados etnológicos extraídos dos relatórios coloniais sobre as populações da Guiné por mais que identifiquem modelos de discurso centrados sobre a imagem pejorativa das mulheres, fornecem nuances que obrigam a um exame semântico. Importa não esquecer que nas dinâmicas entre géneros nos setores do comércio e da intermediação aparecem mulheres grandes – as Nharas – impuseram-se nos pontos do comércio do litoral com poder e autoridade equivalentes aos que vemos associados aos homens da mesma região.

Depois da conquista militar, o poder político ficou doravante concentrado nas mãos de uma administração europeia e assistiu-se a uma mudança de paradigmas nas estruturas das relações entre os géneros. O centro de interesse colonial passou dos portos do comércio afro-atlântico para o interior, as chefaturas foram consideradas como aliados políticos potenciais e cooptados na administração local. O branco passou a viver com a negra, surgiram os mulatos. O questionário etnográfico de 1934 sobre o qual se baseou a maior parte dos trabalhos dessa década traziam já uma questão reveladora sobre a aparência das mulheres, se estas quanto tinham um tom de pele mais claro não tinham uma fisionomia mais perfeita e mais escultural. E passou-se a escrever muito sobre a poliandria e o matriarcado Bijagó, o que se vem a demonstrar mais tarde ter pouco ou nenhum fundamento, fazendo-se o contraponto entre a mulher Bijagó primitiva e a beleza das mulheres Fulas, dizendo-se mesmo que a mulher Futa-Forro era inteligente e entre todas as mulheres indígenas da Guiné a mais civilizada.

Dentro destas observações de categorização, destacam-se os manjacos por uma atitude positiva, por falarem mais o crioulo cabo-verdiano, por serem grandes trabalhadores, considerados pois como um dos elementos étnicos mais úteis no desenvolvimento e valorização da colónia, e tecem-se considerações elogiosas sobre a beleza das mulheres, não deixando de se escrever que o seu comportamento sexual libertário podia levar à extinção da “tribo”. Não se pode esquecer que os contactos entre os funcionários coloniais e as mulheres africanas não se limitava ao domínio público, estendia-se ao espaço doméstico onde elas muitas vezes partilhavam a cama com os seus senhores. Os administradores e os chefes de posto viviam e trabalhavam muitas vezes no mesmo edifício. As mulheres foram impulsionadas para a cena como geradoras, mas há que referir as teorias raciais que dominaram os anos de 1920 e 1930 em que a mestiçagem era fortemente criticada e desencorajadas as relações legítimas ou ilegítimas entre indivíduos de raças diferentes, havia inquietação de que se formasse um estrato de mestiços, a etnologia oficial a ela se opunha veementemente, acusando-a de degenerescência da raça. E com a finalidade de reduzir as ocasiões de relações sexuais entre os colonizadores e os indígenas procurou-se recrutar pessoal civil e militar casado, julgava-se assim que se ia impedir a procriação de mestiços.

Nos espaços urbanos a organização era de criar linhas que separavam os europeus dos africanos e também as etnias. Aumentou-se o número de enfermarias e da assistência indígena. Mas há um aspeto interessante e bastante ignorado da etnografia colonial que é a prostituição. A migração dos insulares Bijagós para o continente como de camadas urbanas para o arquipélago é mencionada em certos relatórios como a causa principal das doenças venéreas entre os habitantes das ilhas. Daí a tentativa de os governadores procurarem reter os Bijagós nas suas ilhas, protegendo-os da má influência dos cristãos.

Em suma, assiste-se em meados dos anos 1930 à consolidação do esquema que apresentava as mulheres no discurso oficial como criadores de filhos e trabalhadoras, excetuando sempre as mulheres Bijagós, tratando-as como dominadoras. Entretanto, e apesar dos dados etnográficos, a figuras da mulher continuou, no discurso colonial, a aparecer como um simples apêndice dependente da autoridade e do domínio do homem, uma sombra sem rosto. Mas, entretanto, deu-se uma mudança com implicações no estatuto da mulher. Essa mudança resultou da crescente atenção dos etnógrafos portugueses atribuindo à família o conceito de unidade sólida em vez daquela visão holística até então dominante das sociedades indígenas. Em meados dos anos 1930 era evidente a mutação das prioridades coloniais, mesmo pálida projetou-se a imagem da mulher africana, ela vai aparecer como a mulher indígena entendida como um poderoso agente de civilização e não como uma simples guardiã da espécie e uma besta de carga.

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de Novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia Bijagó, natural de Bissau).
"Mulheres combatentes do PAIGC com as suas armas”, exposição “Revoluções – Guiné-Bissau, Angola e Portugal (1969-1974) Fotografias de Uliano Lucas”
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25896: Notas de leitura (1722): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Um dos aspetos mais curiosos das informações que regularmente o governador do distrito manda para a Praia é a sua tónica de tranquilidade, o povo bem alimentado, o comércio animado, a vida nos presídios em sossego. Só que na prática as coisas não se passavam deste modo, é o caso de Geba, e por isso aqui se faz menção a três juramentos de vassalagem e obediência, no caso três régulos, isto enquanto se enviam contingentes militares à cautela, faz-se permanentemente referências a Churo, ali perto em Jufunco ocorrerá o chamado desastre de Bolor que alterará o quadro político vigente que era o Governo Geral de Cabo Verde e Costa da Guiné e que se irá transformar em Cabo Verde de uma lado e Guiné Portuguesa de outro. Um dos aspetos também bastante curiosos desta legislação passa pela adoção de um conjunto apreciável de regulamentos, eles aparecem no Boletim Oficial mas nem sempre se concretizarão, será o caso da administração judicial, sempre adiada, portanto a viver à moda antiga.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18)


Mário Beja Santos

Este ano de 1873 revela-se bastante proveitoso para quem queira investigar este período que precede a passagem da Guiné a Província autónoma, depois do desastre de Bolor, em 1878. No Boletim Oficial n.º 6, de 8 de fevereiro, temos novamente um extrato das notícias recebidas do distrito da Guiné Portuguesa, vieram obviamente por barco, trazidas pela escuna Mindelo: “Segundo participou o respetivo Governador, era então regular o estado sanitário, e de abundância o alimentício. Tinha sido excelente a última colheita dos géneros que constituem a alimentação dos indígenas. O estado comercial conservava-se animado, sendo para notar-se a afluência de navios portugueses que começam a ir comerciar aos portos daquele distrito. Nas margens do Rio Grande anunciavam-se guerras entre as tribos gentílicas das proximidades, mas nada havia ainda, até então, ocorrido que perturbasse o sossego público.
Em Geba continuavam em hostilidades mútuas os Mandingas e os Futa-Fulas. Com receio de que fosse perturbada a segurança do presídio que ali possuímos, havia o respetivo chefe requisitado ao Governador um reforço, que lhe fora mandado, seguindo para ali 50 praças de pré com dois oficiais. Para se obviar a falta que esta força ficou fazendo em Bissau, bem como para ser rendida a parte da força que carece de regressar ao arquipélago, foram enviadas para aquele distrito 74 praças do Batalhão de Caçadores n.º 1 comandadas pelo capitão Saint Maurice, que levou sobre as suas ordens um subalterno. Largaram do porto desta cidade a bordo da canhoneira Tejo no dia 5 do corrente. Na escuna portuguesa Benjamim 2.º que nos mês findo fez o serviço do correio, haviam também seguido para Bissau 30 praças de pré e dois oficiais.”


No Boletim n.º 8, de 22 de fevereiro, temos novamente notícias sobre o estado sanitário da Guiné, desta vez referente ao mês de dezembro de 1872. O movimento do hospital foi de 16 doentes: nove compadecimentos endémicos e sete esporádicos: saíram curados seis, melhorado um e passaram ao mês seguinte nove. Na clínica civil foram tratados 24 doentes, entre eles 19 com febres intermitentes quotidianas e uma febre perniciosa comatosa, à qual sucumbiu: foi este o único caso fatal que se deu tanto na clínica particular como no nosocomial. Assina esta informação o Chefe dos Serviços de Saúde, José Fernandes da Silva Leão.

No Boletim n.º 9, de 1 de março, importa relevar o extrato de uma notícia do Governador do Distrito para o Governador Geral: estado alimentício bastante lisonjeiro; comércio animado; segurança e autoridade pública sem alteração, Geba em sossego, também o presídio de Farim e os gentios dos arredores no maior sossego e tranquilidade, Cacheu em boas relações com o Churo, o régulo do Xime prestável. Dá-se agora uma nota curiosa relacionada com a parte não oficial do mesmo Boletim:
“A saída da canhoneira Tejo para Bissau no dia 5 do corrente, conduzindo a bordo 74 praças, dois oficiais do Batalhão de Caçadores n.º 1, deixou inquietos alguns espíritos, receosos de que conflitos graves com os gentios das tribos limítrofes do nosso território houvessem exigido o aumento da força militar ali destacada. Era legítimo o cuidado que preocupava alguns ânimos porque são sempre para recear-se as guerras no sertão de África, e porque é só na paz que pode medrar o trabalho da colonização, e sem ela esmorecem os interesses do comércio honesto e legal e moraliza toda a iniciativa e toda a coragem para o emprego do capital. Felizmente não havia receios bem fundados de guerra, mas só motivo para prevenção. As escaramuças que se estavam dando entre os Mandingas e os Futa-Fulas no território de Geba podiam incomodar o presídio que hoje possuímos, e prudente foi reforçar-se a guarnição dele. Mas nenhum ato hostil se havia cometido contra o nosso estabelecimento que se achavam em regulares relações com os gentios.”

Certamente com grande significado temos no Boletim n.º 16, de 23 de abril, a publicação de três termos de juramento de vassalagem e de obediência, vamos deles extrair alguns tópicos. O primeiro tem a ver com o régulo Donhá, senhor das terras de Ganadu, vassalagem à Coroa de Portugal. Este régulo compareceu na residência do chefe do presídio de Geba, capitão Alfredo Carlos Barbosa e prestou juramento de fidelidade, a conservar-se em perfeita obediência para com os delegados do mesmo Governo e prestar-lhes todo o auxílio para que possa dispor quando assim lhe for exigido.

Do régulo de Gofia, também com o nome Donhá, na mesma residência do chefe do presídio de Geba, compareceu o régulo acompanhado dos seus súbitos e presta juramento de obediência e fidelidade a Sua Majestade Fidelíssima, obrigando-se a conservar-se em passiva e perfeita obediência aos delegados do Governo, bem como de reconhecer como seus inimigos os régulos que tentarem hostilizar o presídio de Geba.

O terceiro termo de juramento de vassalagem envolve o régulo Joró-Fim, senhor das terras de Mancrosse, novamente na residência de Geba, obrigou-se também a conservar-se em perfeita e passiva obediência aos delegados do Governo, a prestar o devido juramento sob a bandeira portuguesa. Os três termos de vassalagem realizaram-se em 29 de março de 1873.

No Boletim n.º 18, de 3 de maio, mais um pacote de notícias: não havia ocorrido alteração ordem pública nem em Bolama nem em Geba. Em Bissau, um grilheta (pessoa condenada) havia agredido um gentio Papel de Antim, que faleceu passados dias. A tribo de Antim, julgando-se agravada pelo atentado feito contra um dos seus membros, havia deixado de comunicar com a Praça e suspendera o mercado diário junto da tabanca; mas o régulo, sabendo que as autoridades portuguesas haviam prendido o agressor contra o qual corria o competente processo judicial, veio à Praça declarar que se não julgava ofendido e que reiterava os seus protestos de harmonia e amizade com os portugueses. Na Praça de Cacheu, um gentio de Churo emboscado na noite fez fogo sob um degredado com quem trazia rixa particular, e que o feriu em ambas as pernas. Em Farim, uma mulher do presídio, chamando um chefe dos Fulas a um colóquio particular, atraiçoou-o entregando-o aos Mandingas, que o surpreenderam e assassinaram. Havia, por tal motivo, negociações com os Fulas que pediam satisfação pelo facto.

Suplemento ao Boletim n.º 7, 15 de fevereiro de 1873, notícia do falecimento da Imperatriz do Brasil, avó do rei D. Luís
Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 23 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25874: Notas de leitura (1720): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1872 a 1873) (17) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 26 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25882: Notas de leitura (1721): Breve história da evangelização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24899: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (19): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Mês de Agosto de 1970



"A MINHA IDA À GUERRA"

19 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

MÊS DE AGOSTO DE 1970

João Moreira



SITUAÇÃO
1. TERRENO
O capim cresceu desmesuradamente, as bolanhas estão alagadas. Os percursos tornam-se mais difíceis embora de dia a chuva ajude pois refresca.
Emboscadas noturnas insuportáveis pois a chuva é permanente.

2. NT
Mais experientes e adaptados, como é natural. Actuação calma.

b. ACTIVIDADE
Actividade normal com 1 saída diária.
Em 07AGO70 operação ALMA MINHA do BCAÇ 2861.
Uma série de notícias referem concentração de Grupo IN (MAQUÉ) na região de NHANE, BISSAJAR, BANCOLENE.
A CCAÇ 13 de BISSORÃ e a CCAV 2721 seguem juntas até BISSAJAR onde se separam. A CCAV 2721 para se dirigir a NHANE a CCAÇ 13 para BANCOLENE e JAGALI MANCANHA. Dois contactos da CCAÇ 13 em que sofre 1 ferido grave e provoca 2 mortos confirmados ao IN, recupera 3 (M) e 3 (C), captura 1 pistola e 1 canhangulo e destrói 5 casas de mato e meios de vida.
A CCAV 2721 não contacta e recupera 1 (M) em NHANE.
A operação foi comandada por PCV pelo Cmdt. Batalhão e foi apoiada por 1 heli-canhão.
Em 19 fugiram 2 mulheres que tinham sido recuperadas em JULHO em IRACUNDA.
Domingo, 231700, grupo IN não estimado flagelou o quartel e povoação com morteiro 82 durante 10 minutos, de BINTA 7E6 provavelmente. Provocou 1 ferido grave e 1 ligeiro, ambos civis. Foi pedido apoio aéreo visto ser a melhor maneira de provocar baixas. Dois FIAT não se fizeram esperar e metralharam a zona.
Mais tarde, série de notícias C-3 recebidas da CCAÇ 2465 refere que o IN sofreu 5 mortos nesta flagelação, entre os quais um comandante de grupo. Estas notícias são no entanto improváveis no julgar deste comando.
Em 26 fugiu 1 homem que fazia parte do grupo recuperado em IRACUNDA. Com este homem iam a fugir mais 4 mulheres que no entanto foram impedidas por elementos da população nos trabalhos agrícolas.
Nota-se já com a experiência que fica de Companhias anteriores que os MANDINGAS fogem muito enquanto que os BALANTAS pouco.
Este facto não deverá ser só atribuído a idiossincrasia étnica, a mentalização, etc.
Assim o facto mereceu uma pequena investigação, e algumas conclusões expostas no relatório A/P.

​EXTRACTO DO RELATÓRIO PERIÓDICO DE ACÇÃO PSICOLÓGICA N.º 5/70

FACTORES DA SITUAÇÃO PSICOLÓGICA

POPULAÇÃO

Motivações susceptíveis de virem a ser exploradas pelo IN
Acerca da fuga de recuperados mandingas, muito mais frequentemente que de outras etnias, provoquei uma discussão aberta entre os chefes da população fixados no OLOSSATO e elementos recuperados tendo chegado a uma conclusão que é possível tenha interesse:
(a) Um dos motivos que os levam a fugir são laços afectivos com elementos que ficaram no mato, por ordem de importância: filhos, maridos, mulheres e irmãos.
(b) No entanto há um outro, talvez ainda mais importante e que segundo concluí, conhecida mesmo entre a população controlada pelo IN e que pode ser um dos factores impeditivos de apresentações além de, como já disse, provocar fugas:
- Os recuperados, quando são libertados para se integrarem na população, vão, como é natural, para casas de parentes com os quais habitam e colaboram até poderem adquirir a autonomia social e económica.
Ora, enquanto entre fulas e balantas existe uma verdadeira vontade de entreajuda, entre os mandingas (nos quais se nota desde a chegada dos parentes um excesso de zelo e de afinidades de parentesco) persiste um certo espírito de exploração económica e de cobiça sexual, que tentam efectivar à sombra da bondade e vontade de ajuda do parente desprotegido.
Assim este último, ao fim de algum tempo começa a sentir-se alvo de pressões a que dificilmente tem coragem para resistir (não têm os parentes as "costas largas" com o apoio e confiança das autoridades civis e militares, enquanto elas são as réprobas, têm a "cabeça cheia de vergonha" e não devem merecer a total confiança das autoridades? - possivelmente serão os próprios parentes que lho faz "ver" explícita ou implicitamente por meio de observações, conversas, insinuações, censuras) e vai cedendo lentamente, parte das vezes permitindo até violações à tradição que tão fortemente o marca. A rapariga que tem o noivo no mato e se vê a casar com um camafeu estabelecido. O artífice que vai começando a ganhar "patacão" e é explorado "ab início" sob a alegação que está a ser ajudado pelo anfitrião. O "tio"ganancioso que recolheu em casa a rapariga recuperada e põe dificuldades ao seu casamento com o rapaz de que gostou porque quer receber o pagamento respectivo, (pois o pai dela está no mato, "sabe-se lá onde e como coitado") mas não tem direito a esse pagamento enquanto o pai dela for vivo, podendo aparecer em qualquer altura e exigir o dote à família do rapaz que não está para pagar duas vezes (não se trata aqui de respeitar um direito de tutor visto a rapariga ter já entrado na maioridade). O velho ou quase, que cobiça os braços da rapariga para a lavoura e a sua beleza e juventude para carinho e prestígio senil, forçando-a sob pretexto de gratidão a união desigual.
Enfim, um sem número de pressões, pequenos ultrajes, a que recuperado se vê sujeito no seio dos seus próprios irmãos e que forçosamente afectam a sua vontade de permanência.
Quase me arriscaria a dizer que o problema dos familiares (mesmo os filhos) ficados no mato, é de somenos importância, perante a submissão a que se veem obrigados, até porque a psicologia gentílica é muito mais atreita a factores de ordem económica e social do que propriamente a uma afectividade na maior parte das vezes consequência daqueles mesmos factores.
Suponho que o problema existe realmente e não é de desprezar para recuperação e integração dos Mandingas.

Em 27 durante a picagem da estrada para BISSORÃ, para uma coluna de reabastecimento, foidetectada e levantada 1 mina A/C reforçada com 1 mina A/P em BINTA1I8.31.

Da crítica à Act. Op. n.º 78 do COMANDO-CHEFE consta que:
"A CCAV 2721, que vinha desenvolvendo apreciável actividade, acusou, no período, ligeira quebra de rendimento".
A esta crítica respondeu o BCAÇ 2861: "Em referência à crítica supra, informo V. Exª. que a ligeira quebra de rendimento da CCAV 2721 foi devido ao facto de nos dias 29 e 30 de Julho, embora previstas acções nas regiões de BISSAJARINDIM e COLI SARE, conforme constava do Planeamento da Actividade Operacional elaborado pela CCAV 2721, aprovado por este Comando, do qual se envia 1 cópia, se terem realizado colunas auto entre OLOSSATO-BISSORÃ e BISSORÃ-OLOSSATO.
Por lapso não foi mencionado no n/SITREP n.º 529, a realização da coluna auto, BISSORÃ-OLOSSATO, a cargo da CCAV 2721.

Da crítica n.º 80 transcreve-se:
" . . . anotando-se ausência da actividade noturna da guarnição do OLOSSATO (CCAV 2721)."

(c) RESULTADOS
- Baixas ao IN
Recuperado - 1 elemento da população
Apresentado - 1 Elemento da população

- Material capturado
Mina A/C - 1 levantada
Mina A/P - 1 levantada

- Baixas NT
feridos - 2 elementos da população


Com baixa para saídas, por ter arrancado uma unha e não poder calçar.
Bilhete de Identidade Militar

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24877: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (18): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Julho de 1970 - Acção "Bacará"

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24892: Notas de leitura (1638): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma viagem sobre o trabalho de Hannelore Felizitas Nadolÿ da Silva, uma dissertação de mestrado. Ela retirou um conjunto de histórias da 1ª edição dos contos mandingas, de Manuel Belchior, irá espraiar-se sobre o papel da oratura, a palabra como memória viva de África, tecerá considerações sobre a problemática do conto africano, apresenta alguns dados sobre a História dos mandingas e fala-nos dos temas versados nestes contos do seguinte caráter: religiosos, didáticos, iniciáticos, humorísticos, entre outros. Atenda-se às suas conclusões, o papel dos contos é a transmissão de ensinamentos, os mais novos devem acolher este património de que costumes, crenças e tradições para mais tarde os transmitirem às novas gerações. O objetivo primordial é o saber viver através de uma moral social. Por isso o Griot usa os animais que são tipos morais simbólicos, através deles chegamos ao comportamento humano. Eles são a base da riqueza folclórica dos mandingas, tocador de kora é um transmissor cultural único, os mandingas têm consciência das suas potencialidades no âmbito da cultura e usam-na como mão de mestre. E despede-se do leitor lembrando que esta literatura oral entrou em sério confronto com a educação, com a mobilidade e com a família interétnica. O fosso geracional pode vir a fragilizar esta memória viva de África.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana (3):
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas


Mário Beja Santos

Pomos hoje termo a esta viagem sobre os contos mandingas analisados por Hannelore Felizitas Nadolÿ da Silva. No seu trabalho faz-se uma apreciação do papel da oratura na vertente da literatura oral tradicional, que poder ter a sua envolvente folclórica e musical, o papel da memória viva graças ao narrador, o Griot, foram elencados tanto a função do narrador como a problemática do conto africano, e depois a autora selecionou um conjunto de contos da obra de Manuel Belchior, uns exemplares ou edificantes, outros humorísticos ou envolvendo fábulas de animais, didáticos, iniciáticos, religiosos, etc. Resta-nos agora dar primazia aos contos iniciáticos e proceder à conclusão da autora.

Ela começa com o conto O Caçador e a Serpente, um homem grande está sentado no benten (espaço à sobra de uma grande árvore onde há uma grande esteira, é ali que os homens se sentam para conversar) e fala de uma serpente que atemorizava toda a população, tinha por uso e costume roubar as noivas no dia do casamento; um dia roubou a noiva do mais afamado caçador da região, este pôs-se ao caminho para a matar, anda acompanhado por uma mosca, vão juntar-se animais a esta perseguição, um chacal, uma águia e um elefante; a mosca entrou pela fenda de uma caverna e falou com as raptadas, uma delas esclareceu que a força vital da serpente estava dentro de um ovo, este dentro de uma pomba, este por sua vez na barriga de uma gazela e esta dormia no ventre de um veado, tudo acabava em duas colmeias de abelhas ferozes; havia que partir o ovo mas antes havia que evitar as abelhas e matar sucessivamente todos aqueles animais, com auxílio dos seus acompanhantes, o caçador teve sucesso. Findo o conto, o homem grande perguntou aos netos: “Depois daquilo que vos contei, dizem-me qual foi a ação que vos pareceu mais valiosa, a do caçador, a da mosca, a do chacal, a da águia, a da pedra ou a do elefante?”

A moral da história, como observou o Griot é que na vida todos nós temos um lugar e um desempenho. Segue-se um outro conto intitulado A Pedra com Barbas. Um lobo encontra uma pedra com um belo tufo de cabelos, tal foi a emoção que desmaiou. Escondeu a pedra dentro de uma gruta e ia levando ali alguns animais a pretexto de verem aquela singularidade, mas os animais desapareciam, inexplicavelmente. Um dia, convidou uma lebre que o acompanhou desconfiada, fez perguntas um tanto pertinentes e viu o lobo desmaiar. A lebre compreendeu então a maneira como os animais ficavam à mercê do lobo e veio contar aos outros animais, a pedra com barbas deixou de ser uma arma ao serviço do voraz lobo. Há um terceiro conto intitulado O Moço Viajante. Certo homem com pendores de marabu aconselhou um dos seus filhos a correr o mundo a fim de completar, através de uma variedade de experiências, a educação que lhe dera. Recomendou-lhe que guardasse na memória aqueles factos que acima de tudo lhe merecessem a admiração por ultrapassarem a sua capacidade de entendimento; ele no regresso como mais velho, procuraria ajudá-lo a encontrar para eles a necessária explicação. O moço pôs-se ao caminho, viu um homem a correr, apareceu depois um cavaleiro que não conseguia alcançá-lo. Tínhamos aqui matéria para pedir explicações ao pai; viu numa pradaria dois bois selvagens feridos por flechas, um brutalmente atingido, outro menos, mas era este que gemia mais, e dava-se o caso de ser o menos ferido quem animava o mais ferido, tínhamos aqui mais um caso intrigante que o pai teria de explicar; viu uma cobra sair de um orifício onde depois não pôde entrar, coisa estranha, pensou ele se havia abertura suficiente para a cobra sair também podia nela entrar, mais uma história para contar ao pai; no regresso encontrou uma árvore tombada, altíssima, por mais que tentasse não lhe conseguia encontrar fim, outra situação que merecia explicação do pai. Este fez os seus comentários, valorou os casos de resiliência e lembrou ao filho que nada mais importante há que dispor de uma mentalidade positiva.

A autora socorre-se de um comentário de António Carreira: “Contar à noite é ajudar o dia a suceder à noite”. Para a mentalidade animista, a palabra pelo seu poder mágico, encantatório, tem mais prestígio do que a coisa, e dado que o homem é produto da sociedade em que está inserido, é, portanto, também o homem uma peça do rito. A autora dá ainda exemplos de contos humorístico e históricos e fábulas de animais.

Chegou o momento de tirar conclusões:
“A falsa transparência em que as narrativas se parecem envolver refletem no fundo a sua grande variedade e singularidade. É a razão pela qual o conto deve ser situado no seu exato contexto social e cultural. A razão dos contos é, sobretudo na sociedade mandinga, a de transmitir um ensinamento. Os costumes, as crenças e as tradições transmitem-se através das narrativas, e as jovens gerações assimilam esse contexto mesmo sem se darem conta disso. Os animais são tipos morais simbólicos, tal como nas fábulas. Podemos inferir que o conto exprime de uma forma simbólica, através de determinados temas postos em realce, os problemas que o homem mais intensamente vive e que habitualmente recalca no seu interior. O texto transmitido não será o mesmo que o recebido, pois o executante nele cunhou o seu próprio texto. Nos contos mandingas encontramos traços da sua psicologia, apontamentos dos seus usos e costumes, características da sua índole, do seu temperamento.
Grande parte desta riqueza está, todavia, a ponto de se perder ou de se descaracterizar, tão grande é a força dos modelos universais. Mas os contos podem ser considerados como uma literatura experimental e positiva. Tem pelo menos o valor de documento histórico. Os mandingas devem ter consciência das suas potencialidades no domínio da cultura. Não é, pois, necessário que tenham os olhos apenas virados para o exterior.”


A autora recorda-nos que todo este mundo da literatura tradicional entrou em confronto com a atual sociedade aberta que é a Guiné-Bissau, não só os jovens começaram a frequentar a escola como viajam mais e aumentou impressivamente o número dos casamentos interétnicos. Involuntariamente ou não, gerou-se um fosso entre as gerações precedentes e as atuais.


Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Os Griots e a tradição oral africana
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24884: Nota de leitura (1637): "O universo que habita em nós: estórias com vida”, do nosso camarada José Teixeira, um talentoso contador de histórias e criador de personagens (Luís Graça)

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Parece-me ocioso repetir o que a autora já nos indicou sobre a literatura tradicional, oral e, por vezes, musicada, o desempenho que tem na memória de um povo, a dimensão cultural que é a transmissão oral de conhecimentos e tradições. No entanto, abono uma observação da autora, parece-me pertinente para o texto que seguidamente se vai ler: "A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística". Assim como no texto anterior se falou de Moisés e Alá, como se podia falar de outro conto religioso em que aparecem Adão e Eva e se fala da expulsão, do desencontro e da procura, a história do rei cruel e da corda de areia parece-me que tem um desempenho moral educativo de grande valor, e atenda-se à apreciação que a autora faz de que o conto é pedagógico, se bem que sujeito a leituras múltiplas e altamente educativo no sistema de representações de grupo. Recorde-se ainda que a autora foi buscar estes contos a uma obra de Manuel Belchior, que reputo como texto indispensável, trata-se de uma recolha muito séria que este então funcionário colonial fez na região do Gabu.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana (2):
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas

Mário Beja Santos

A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. 

Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano.

E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. 

Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.

Como vimos, os contos Mandingas fora objeto de estudo numa dissertação de mestrado de Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, estabelece considerações sobre o papel desta literatura oral, analisa o conto africano com base numa classificação onde pesam os contos religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e as fábulas dos animais.

Vejamos agora como ela vai apreciar o conto A Corda de Areia, que aqui se reproduz integralmente:

“O rei Bacar que há séculos governou em Tamba, um antigo reino do Sudão Ocidental, deixou merecida fama de despótico e crudelíssimo príncipe. Do seu reinado, ficaram principalmente gravadas na memória do povo, o primeiro e o último dia.

Quando subiu ao trono, Bacar mandou que viessem à sua presença os melhores e mais íntimos amigos e companheiros do seu pai, eles foram por ele escrupulosamente interrogados para avaliar o grau de intimidade que cada um havia mantido com o recém-falecido soberano e do valor dos serviços que lhe haviam prestado.

Depois de numerosas perguntas que levaram à rejeição de alguns e à aprovação de outros, verificou Bacar que havia cerca de cinquenta notáveis a quem o último rei muito havia estimado e a quem devera importantes serviços. Pensavam os pobres velhos que, após todas aquelas indagações, seriam talvez distinguidos pelo novo príncipe e quiçá alguns deles fossem escolhidos como conselheiros.
Aquele, porém, disse-lhes: ‘Não há dúvida. Vocês eram bons amigos do meu pai. Tão amigos, que a maior parte das vossas vidas e das vossas preocupações consistiu em servi-lo. Mas dizei-me: para que querem vocês viver depois que ele morreu? A quem vão agora servir? Para mim não têm a menor utilidade, mas pode muito bem ser que ele precise de vós no outro mundo’.

E depois de tão desconcertantes palavras mandou matá-los a todos.

Após este significativo começo de reinado, Bacar não mais cessou de mostrar o seu mau carácter cometendo com frequência revoltantes atos de opressão e impondo ao povo os seus caprichos cada vez mais difíceis de suportar, até que um dia deixou toda a gente estarrecida quando exigiu que lhe apresentassem uma corda feita de areia.

Todos os cortesãos a quem ele deu o encargo de a mandar fazer, declararam, apresentando as melhores razões, que a areia não é material de que se façam cordas, mas o único resultado que colheram de tão óbvia argumentação foi o de se verem taxados de incompetentes e cretinos, acabando por serem espancados e postos a ferros.

Reinava, pois, a maior consternação no país de Tamba, quando por ali apareceu um velho djila que de há muito era considerado um homem sagaz e fértil em recursos. Ao ouvir os motivos da apoquentação geral, afirmou: ‘Digam ao rei que se ele soltar todos os presos, eu fabricarei a corda de areia que pretende, na sua presença e na de toda a população’.

Tremeram os amigos do djila pela sua sorte, porque desde logo compreenderam que era a própria cabeça que ele arriscava. Mas o ancião disse: ‘Já vivi tempo demais, meus filhos, para que tenha demasiado apego à existência. Contudo, não temam, porque nada de mal me acontecerá’.

Aceite a proposta do velho, reuniu-se enorme multidão no sítio indicado pelo rei e à hora por ele marcada. No meio do maior silêncio dos circunstantes, o djila disse a Bacar: ‘Para que eu saiba o tamanho da corda que devo fabricar, mostra-me a que o teu pai mandou fazer, porque eu desejo que a tua seja ainda maior’.

O rei ficou surpreendido com o pedido, mas respondeu: ‘O meu pai nunca mandou fazer uma tal corda’. O djila retorquiu: ‘Mostra-me então aquela que foi feita no tempo do teu avô’. Já um pouco irritado, o déspota disse que tampouco o seu avô se lembrara de mandar fazer uma corda de areia. Porém, sereno, mas bem determinado, o velho comerciante pediu que lhe apresentassem qualquer corda de areia que tivesse sido fabricada por ordem do bisavô, do trisavô, etc. de Bacar, até que este, tremendo de raiva, gritou: ‘Para lá com isso. Nenhum dos meus antepassados teve uma corda como aquela que eu desejo possuir’.

Os olhos do djila circunvagaram demoradamente pela multidão, indicando-lhe que chegara o momento supremo de pôr fim a tanta insensatez de um mau rei, e olhando-o bem de frente disse-lhe: ‘Então se nenhum dos teus antepassados mandou fazer uma corda de areia, por que motivo afliges o teu povo com tal disparate?’

Bacar pensou que tinha ouvido mal, recusando acreditar que houvesse alguém disposto a fazer-lhe frente, depois enrubesceu, quis falar, mas a surpresa e a cólera embargaram-lhe a voz e foram sons desconexos, quase urros, que lhe saíram da boca. Ao mesmo tempo ouviu-se um sussurro, leve ao princípio, mas que subiu de tom e de volume até acabar atroador. Era a multidão que gritava: ‘Queremos outro rei, queremos outro rei!’.

E nesse dia Tamba mudou de soberano”.


E a autora comenta:

“Obra de um imaginário coletivo. A experiência assenta no grupo, na sua prática social, no seu vasto conjunto de regras, normas e valores que por sua vez constituem o seu património pelo sentido mais vasto do termo. Conforme os referentes que se considerem prioritariamente, assim se pode dar diferentes leituras aos contos. Pela nossa parte e no âmbito de uma perspetiva didática, os contos deste caráter foram selecionados em função da problemática sociológica e pedagógica. A simplicidade das narrativas revela certas opções que a sociedade Mandinga impõe ou recomenda, para resolver os antagonismos fundamentais que ameacem a coesão comunitária, e apoiam-se sempre no reconhecimento público do lugar reservado a cada elemento no tecido social.”

(continua)

Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24856: Notas de leitura (1634): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24856: Notas de leitura (1634): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
A tradição oral africana é um dos patrimónios culturais mais valiosos deste Continente, tão escasso de documentos escritos, de património edificado, de registos linguísticos, entre outros. Um pouco por toda a parte há a preocupação de se estudar este tesouro, dos mais diferentes ângulos. Tanto no período colonial como após a Independência esta tradição oral tem vindo a ser analisada, basta folhear o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa ou depois da Independência ler os trabalhos de Fernanda Montenegro. Foi uma surpresa encontrar esta dissertação de mestrado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, a mestranda teve o cuidado de utilizar uma das mais completas antologias existentes, os "Contos Mandingas", de Manuel Belchior, precedendo os seus comentários de pertinentes considerações sobre o valor da tradição oral e como ela carece de estudos, continuamente.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana:
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1)


Mário Beja Santos

A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos atrás, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano. E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.

Trata-se de uma dissertação de Mestrado em Literaturas Brasileira e Africana de Expressão Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1998, por Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, exatamente com o título “Um Olhar Sobre os Contos Mandingas”. A Hannelore diz ter vivido na Guiné-Bissau entre 1959 a 1965 e para o escopo do seu trabalho retirou um conjunto de histórias da 1.ª edição de “Contos Mandingas”, de Manuel Belchior. Antes de se debruçar sobre a análise dos contos tece comentários de índole teórica sobre este património. A oratura abarca a literatura oral, a literatura oral tradicional e a literatura folclórica. Observa que a literatura oral é anónima, a obra escapa ao seu criador para se tornar num bem comum, depende sempre da personalidade do contador, cada intérprete imprime a sua marca, tudo vai da vivacidade e imaginação do Griot (contador ou narrador, e muitas vezes com a capacidade de musicar, é o que se passa com os tocadores de korá). Designa por a palabra a memória viva de África. É nas sociedades orais que a função da memória está mais desenvolvida, a palavra testemunha tudo, é um retrato, a coesão da sociedade assenta sob o valor e o respeito da palavra. O universo visível é concebido e sentido como um signo.

Dado que na sociedade tradicional africana as atividades humanas têm frequentemente um caráter sagrado ou oculto, são particularmente estas que se constituem como vetor da transmissão oral de conhecimento e tradições.

Nas sociedades tradicionais crê-se que os atos mais importantes da vida quotidiana já foram realizados num tempo primordial, operados por deuses ou heróis, de modo que os homens nada mais fazem do que repetir esse comportamento enquanto arquétipo e modelo. A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, ou seja, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística. A função do narrador é de procurar transmitir um melhor conhecimento e adaptação aos fenómenos da vida e espaço, unificando-os, relacionando-os, numa linguagem simples com larga margem de variações, obedecendo a uma coesão de fundo.

Feitos estes comentários, a autora refere a problemática do conto africano, apresenta alguns dados históricos sobre os Mandingas e disseca a estrutura do conto. Diz-nos que geralmente os brancos tendem a talhar os africanos à medida do seu logos grego e da ratio romana, ou seja, à sua imagem e semelhança. Os povos africanos elaboram no tempo e no espaço as suas visões do Homem e do mundo; criaram os seus valores, hierarquizaram-nos de acordo com a sua filosofia, tanto no domínio do sagrado como no profano. O conto está sempre integrado nos diferentes aspetos da vida social; assegura as múltiplas funções de memorização, de código ético, de expressão estética. Os contos tecem-se não para convencer estranhos, mas para construírem o depósito de uma crença.

Dá-nos seguidamente um histórico sobre os Mandingas, a partir do Império de Mandé, recorda o que os primeiros autores da literatura de viagens sobre eles escreveram: Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira, André Álvares de Almada (século XVI), André Gonelha e Francisco de Lemos Coelho (século XVIII). Iniciando a sua proposta de análise, fala-nos na classificação feita pelos Mandingas sobre esta importante vertente da tradição oral: histórias verdadeiras (mas que incluem mitos, lendas históricas e contos exemplares ou edificantes) e contos mentirosos (os humorísticos e fábulas de animais). Segundo o inventário da autora, os temas dos contos são: religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e fábulas de animais. E insiste que a palabra tem um poder incomensurável, constituem um suporte cultural iniciático, na medida em que exprime o património tradicional e tece uma linha de continuidade entre gerações passadas e presentes. E temos como ponto de partida um conto religioso intitulado “Por que razão Deus não tem filhos?”. Moisés depois de alguns encontros com Alá no Monte Sinai, disse ao Criador: “Senhor, oiço a Tua voz, mas não Te vejo, e arde em mim a curiosidade de conhecer o Teu rosto, a Tua forma, o Teu aspeto, de conhecer, enfim, qualquer coisa de Ti. Deixa que o Teu servo Te veja, Senhor!” Deus respondeu-lhe que aquele pedido era impossível de satisfazer, Moisés insistia, queria saber se Ele era branco ou preto, homem ou mulher, a resposta veio breve, não era homem nem mulher nem branco nem preto e não tinha filhos.

Moisés estava confuso, mesmo dececionado. Então Alá deu ao Moisés três ovos e mandou a Moisés que regressasse para junto do seu povo e que mais tarde lhe daria a explicação daquilo que tanto o surpreendera. Moisés regressou à sua gente, um dos filhos quis brincar com um dos ovos, este partiu-se, tanto chorou que acabou por receber o segundo, e depois o terceiro, ambos se partiram. Quando Moisés voltou ao Monte Sinai e perguntado sobre o destino que dera aos ovos, lamentou-se, todos tinham sido partidos pelo mais novos dos seus filhos. “Ora aí tens, Moisés, admiraste-te por Eu não ter filhos e agora já te posso explicar a razão de não os ter. Se tu consentiste aos teus filhos que partissem os ovos que te dei, bem poderia aconteceu que Eu deixasse aos meus, se os tivesse, que partissem a abóboda do Céu. Não, Moisés, não tenho filhos à maneira dos homens, mas são meus filhos todos os seres que Eu criei”.

(continua)

Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24847: Notas de leitura (1633): “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, por Elidérico Viegas; Arandis Editora, Outubro de 2023 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24494: Notas de leitura (1599): A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se retomam as teses do historiador Carlos Lopes quanto à necessidade de ter sempre em conta, quando se estuda a história da Guiné-Bissau e a definição das fronteiras de 1886 o que era o Kaabu do século XIII ao século XVIII, como não se pode iludir a historicidade e os dados vitais do Kaabunké, a despeito das divisões criadas pelas potências coloniais. O Kaabú, herdeiro do Império Mali, desintegrou-se no século XIX mas a sua herança é um dado permanente que ultrapassa as fronteiras criadas por fatores exógenos, daí as manifestações independentistas no Casamansa, tentativas de golpes de Estado, circulação de produtos agrícolas em toda a região, resistências camponesas ao pagamento de impostos, as importantes correntes migratórias e a explosão cultural com origem na cultura Kaabunké. Como diz o historiador, há que encontrar uma fórmula para que nesta região de África se consiga integrar os espaços em harmonia com a sua história.

Um abraço do
Mário



A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes

Mário Beja Santos

Numa pesquisa recente na revista Soronda, n.º 10, de julho de 1990, na revista Lusotopie, n.º 1-2, L’Harmattan, 1994, encontrei dois importantes artigos de Carlos Lopes, o primeiro referente ao Kaabú do século XIII ao século XVIII e quais as suas relações de poder, o segundo alusivo aos limites históricos de uma fronteira territorial – o que aproxima ou demarca a Guiné Portuguesa da Guiné-Bissau.

Para Carlos Lopes é indubitável que o estudo da estrutura do estado da Guiné-Bissau leva a constatar que existe um cruzamento de várias conceções de poder: uma tradicional, da qual os Malinké ou Mandingas seriam talvez a principal raiz, uma outra ligada ao desenvolvimento de certos aspetos sociopolíticos durante a luta de libertação nacional, e ainda uma outra que obedece ao modelo clássico exógeno de Estado. Portanto o estudo de relações entre o poder antigo e o moderno. A estrutura do Estado Malinké situa-se na Gâmbia, no Casamansa e na Guiné-Bissau atuais, contribuíram de uma forma decisiva para que se possa fazer um estudo pormenorizado do que foram as estruturas políticas Kaabunké. Este espraiava-se entre a Gâmbia, o Casamansa, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo. Os navegadores dos séculos XV e XVI registaram esta região do Norte da Gâmbia e os cursos de água que ofereceram boas condições para a navegação, até aparecerem os obstáculos do Futa-Djalon. Era um território onde o eixo económico andava à volta da orizicultura de mangal, havia uma pequena indústria de extração do sal; o ouro de Bambuk também desempenhou um papel importante no desenvolvimento da região. Os rápidos existentes nos rios Gâmbia e Corubal garantiam fronteiras naturais que protegiam as rotas comerciais.

Observa o autor:
“Muitos historiadores consideram, no entanto, que esta região constituía uma espécie de beco sem saída do mundo Malinké, pois ela era apenas o ponto ocidental mais extremo do Império do Mali. Quando, no século XVII, o Mali desaparece completamente da cena, o Kaabú encontra-se no seu apogeu. A influência Malinké torna-se também cultural, e o grande processo de malinkização vai ser uma das grandes originalidades do Kaabú. Os viajantes que visitaram a região descrevem uma forte dominação Malinké, sem, no entanto, muitas vezes fazerem referência ao centro político deste poder – o Kaabú era o provável herdeiro da riqueza comercial que estava na origem do poder maliano”. E um tanto à semelhança do seu trabalho para tese de doutoramento, Carlos Lopes enumera a decadência do Kaabú no século XIX, a estrutura social existente no Kaabunké, as razões da decadência. Assim chegamos a um argumento muito caro a Carlos Lopes, a herança política Kaabunké, uma conceção original da relação espaço e poder.

E escreve:
“É possível constatar que as estruturas atuais dos estados atrás citados (Gâmbia, Senegal, Guiné Conacri e Guiné-Bissau) continuam impregnadas das inter-relações construídas pelo Kaabú ou (a partir do século XIX) em oposição à existência deste. Embora a ideologia da construção nacional na Guiné-Bissau seja sobretudo obra dos crioulos, isso não devia impedir o estabelecimento de certas alianças étnicas em função da história antiga dos povos da região. A memória contemporânea esquece-se que os sistemas políticos tradicionais outorgavam pouca importância ao controlo territorial centralizado. No sistema de gestão do Kaabú a regra de ouro era a descentralização. A territorialidade ganha uma dimensão política com a reestruturação do espaço imposta pelas novas formas de troca introduzidas pelos europeus, nos fins do século XVIII. É nesse momento que o Kaabú perde o seu controlo político, mas a sua influência histórica não será apagada facilmente”.

No que toca aos limites históricos da fronteira territorial, o historiador lembra que defende uma hipótese que não é muito popular: a de que a existência das delimitações territoriais atuais tem contribuído para historicidades cruzadas entre o que é hoje a Guiné-Bissau, Casamansa e Gâmbia. Neste seu trabalho, o autor argumenta que o território da Guiné-Bissau é uma realidade ainda mais artificial do que a Guiné Portuguesa. Existem fundamentalmente duas formas de ler a realidade guineense: uma privilegia a componente exógena baseada na presença e historiografia europeias, outra concentra-se na historiografia endógena, obviamente que esta colide com a anterior. Quanto à tese exógena, tem a ver com a presença europeia cinco séculos num território chamado Rios da Guiné, presença europeia de Portugal, França, Inglaterra e Holanda, isolados ou associados do comércio transatlântico. Logo os navegadores portugueses fizeram distinções na região entre o norte da Gâmbia e os chamados rios do Sul.

O modelo exógeno leva os líderes africanos a pugnarem por uma conjugação de progresso, modernidade e desenvolvimento de acordo com o modelo ocidental. Foi o tratado luso-francês de 1886 que dividiu o espaço Kaabunké e procurou uma identidade para a Guiné Portuguesa. O Movimento de Libertação Nacional jamais utilizou argumentos de extensão territorial, só reivindicava a unidade política com as ilhas de Cabo Verde que obviamente nada têm a ver com o espaço Kaabunké. A defesa que a direção do PAIGC fazia baseava-se numa historicidade limitada a referências coloniais, enfatizando que os dois territórios foram geridos por uma mesma administração cuja sede se encontrava na ilha de Santiago. Ora, jamais existiu em terra firme continental um qualquer controlo territorial português. “A base ideológica justificou a construção teórica do movimento nacionalista, tal como todos os exemplos africanos deste tipo, era uma base que não podia ser articulada à existência de uma nação. A nação, tal como concebida pelo movimento nacionalista, não só se baseava no território de 1886 mas também nas estruturas que o justificam”. Tal tese assentava no credo propugnado pelo modelo ocidental e dava muito jeito às elites crioulas oriundas de Cabo Verde e da Guiné.

Passando para a tese endógena, esta é naturalmente inovadora mas muito polémica. “Trata-se de demonstrar a necessidade de perceber os fenómenos sociopolíticos da Guiné-Bissau e da região onde está inserida, a partir de uma historicidade endógena, que minimiza a relação com o exterior. É possível constatar aquilo que a tradição oral Mandinga tem vindo a martelar desde sempre: que do século XII até meados do século XIX, o território entre os rios Gâmbia e Nuno foi dominado por estruturas políticas Mandingas, primeiro criadas, depois herdeiros dos Estados do Alto Níger, nomeadamente do Império do Mali”.

O autor dá como provado que os povos desta região resistem à estruturação do seu espaço e às atuais fronteiras que o dividem, e dá exemplos que vão desde a manifestação independentista no Casamansa, aos golpes de Estado, ao recurso das línguas francas da região, à tensão militar constante nas fronteiras, às correntes migratórias, à explosão cultural, nomeadamente musical com origem na cultura Kaabunké – exemplos que demonstram que os Estados e os seus espaços estruturados não estão a ser respeitados. Segundo o autor, cabe aos intelectuais africanos o papel de conceber os argumentos que permitirão uma solução para estas irracionalidades, de modo a existir em África a integração de espaços em harmonia com a sua história. Reconheça-se como é bastante interessante esta argumentação de Carlos Lopes de o endógeno ser muito mais forte e permanente que o exógeno.

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Mapa da sociedade Mandinga, 1906
O korá
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24484: Notas de leitura (1598): "Memórias Duma Vivência em Ambiente de Guerra", por José Inácio Sobrinho; Edição de Autor, 2019 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24172: Notas de leitura (1567): "Guinéus", por Alexandre Barbosa, um dos últimos grandes títulos da literatura colonial (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Alexandre Barbosa terá sido administrador colonial ou representante de alguma grande empresa, conheceu bem o Sul, deixou-nos páginas expressivas de literatura colonial, estava atento a um islamismo que cultivava (como continua a cultivar) práticas animistas, exalta a natureza pródiga, deixa-nos um glossário onde nos fala da baguiche (planta comestível) do bentém (estrado feito de troncos ou bambus e que serve de ponto de reunião), da bicuda (peixe abundante nos rios de água salgada), do bindé (arado gentílico usado por Balantas), do bushel (medida que era então vulgar na Guiné, nome decorrente dos contatos com comerciantes ingleses, hoje substituído pelo termo alqueire), do cibe, do falar mantenhas, do fritambá (pequeno antílope), do guarda-de-corpo, da má-fé, da proroca ou macaréu, do terçado e do trabalho cansado. Histórias de êxito mas também tragédias, tudo redigido num português bem cuidado e quase vernacular, destacando o indígena que obteve por conta própria de muito trabalho a cidadania portuguesa. Páginas para reter no último ciclo da literatura colonial guineense.

Um abraço do
Mário



Guinéus, por Alexandre Barbosa, um dos últimos grandes títulos da literatura colonial

Mário Beja Santos

Alexandre Barbosa, que viveu décadas na Guiné, publicou em 1962 os contos, narrativas e crónicas que anteriormente dera à estampa no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, bem como também em Ecos da Guiné e no Bolamense. Não é a primeira vez que se fala do trabalho de alguém que prometia para breve um romance intitulado "Feitoria", tanto quanto se sabe jamais publicado. Alexandre Barbosa, na esteira de Fausto Duarte, gostava de um português castigado, com recurso ao castiço, deixou diversas estampas acerca da espiritualidade de diferentes etnias, terá conhecido com profundidade a região Sul, mas não deixará de destacar uma festa rija de Felupes. Gosta de palavras sonoras, tem um entusiasmo muito especial quando fala das danças, como exemplificou: 

“No terreiro os corpos movimentam-se em dança estranha. Há passos sinistros de corpos arqueados, bamboleantes, desengonçados, como que a desarticularem-se; cabeças que ora descaem ora são bruscamente atiradas para trás; braços pendentes, em oscilação amortecida, e pernas que se requebram ao jeito de pedestrianistas que vão acabar exaustos”

Tudo se avoluma em sonoridades, é o empolgamento dos tantãs e depois o silêncio, a multidão exausta descansa, pelo adiante a farra continuará, celebra-se o estímulo dos êxitos agrícolas, há para ali um comerciante português, o senhor Antunes, alguém que não fez fortuna e que já não está bem de saúde. E quem esteve na farra volta a descansar, no novo dia haverá mais regabofe.

Haverá páginas de tristeza, como aquele acidente em que se destrava uma arma e uma criança inocente é brutalmente atingida, o pai, conhecido caçador, desata a correr a caminho da missão à espera de um milagre, dá-se bem com o Dr. Ferrer da doença do sono, acompanha-o muitas vezes nas artes venatórias; corrida dramática pela estrada fora, a criança ao colo a pingar como torneira gotejante. É um autor que não mascara o fascínio que tem pela natureza, socorre-se de um português antigo, profundamente telúrico, para cantar a chegada de um novo arrozal, houvera medidas de bom-senso para que o povo se organizasse e fizesse uma barragem, os Balantas lançaram-se ao trabalho, a terra fértil germinou:

“Agora cabia ao sol esterilizar o raizame e aberta que estava a quadra pluviosa competia à chuva a saturação e dessalga das leivas em poisio, enquanto arrastava do mato a lixeirada vegetal, o adubo para a futura e grande bolanha. Corridos uns dois anos, na época própria, seria a lavra definitiva: valas abertas, camalhões levantados, pequenos ouriques compostos, estes a servirem de passadiço e traçado a marcar propriedades. Era chegada a vez da transplantação da gramínea, criada em alfobres, tabuleiros verdejantes resguardados pelo arvoredo, obstáculo à ventania e ao sol forte que cresta quando no auge. Então, em toda a interminável planura, havia de desenvolver-se o arrozal, vasto relvado a esconder a água estagnada que as purgas da barragem consentissem”.

Alexandre Barbosa fala-nos dos lutadores Felupes, as imagens falam por si, usam-se técnicas antigas que lembram a luta greco-romana:

“O mancebo Felupe sente pela luta uma paixão irresistível. A natureza dotou esta singular e sedentária raça guineense com apreciáveis dotes físicos, força notável e agilidade espantosa. Os prélios são disputados quase por via de regra, entre os elementos das povoações vizinhas e da mesma raça. O bombolon – telégrafo gentílico – anuncia o programa e, em complemento, as virtudes plásticas e aguerridas dos contendores. De todos os caminhos que riscam o mato surgem homens e mulheres, jovens e velhos, achegando-se ao terreno da competição. Forma-se o círculo mano a vedar a arena e até os felupezitos já sentem na guelra o sangue presente, acomodam-se nas pernas dos adultos. Os lutadores entram no terreno. Há principiantes desejosos de medir forças; há desforras de compromissos e há, principalmente, certos despiques a arrumar entre rivais que aspiram a mesma graça feminina. As claques incitam os lutadores e estes, inebriados pelos incitamentos, rondam o círculo em passadas ritmadas e coleantes até que fixam inexoravelmente o adversário... Está lançado o repto! Então reptador e desafiado lançam-se em volteios, aproximando-se lentamente com modos de serpente magnetizadora e num repente os braços atrelam-se vigorosamente e as cabeças unem-se rígidas como uma só peça, no estudo subtil de golpes de antecipação ou de contra-ataque ao flanco desprotegido. É o início da luta aberta entre rígidas e educadas contexturas musculares impondo violentos golpes ofensivos ou paradas firmes, corpos em rebuliço entre nuvens de poeira”.
Tudo terminará quando um deles bater com as costas no chão.

Diversos autores têm tecido hossanas sobre caçadas e caçadores, não há povoação na Guiné que não disponha de um ou mais caçadores, é desporto, é bravura e é meio de subsistência, este caçador tem jus a uma posição de prestígio, reconhecem-lhe as façanhas no mato, o sangue-frio e a mestria na pontaria. Não esquecer que estes relatos terão sido redigidos na década de 1950, daí falar-se do uso generalizado da Longa, espingarda de carregar pela boca, de acabamento grosseiro, fabricada parcialmente pelos melhores ferreiros da tribo. O caçador tem ao seu dispor uma infinidade de armadilhas, pode servir-se das queimadas, no mínimo interessa-lhe em abater pequenos antílopes, mas anseia por abater gazela ou javali, o sim-sim, o boca-branca e o búfalo, o maior sonho é prostrar o hipopótamo. Abater o leopardo é também uma ambição, até porque a pele é cobiçada.

Descreve a morte e as pompas fúnebres de Sampa, um importante Mancanha da ilha de Bolama, tinha 22 mulheres e 180 vacas; 3 foram abatidas para dar dignidade ao choro. Noutro apontamento, Alexandre Barbosa exalta os pescadores Bijagós, exímios a remar as suas canoas, no caso concreto fala-nos de ilhéus Canhabaques que viajam de ilha em ilha para comerciar.

Inevitavelmente, temos a história de um indígena que fez tropa em Bolama, Abu Camará, destacou-se na instrução, no manejo das armas ligeiras, nos rudimentos cívicos e militares, patenteou qualidades de assimilação. Foi dado como exemplo, frequentou a Escola de Cabos, ganhou amizades, quando o seu destacamento percorre Bolama ele vai na escolta de honra da bandeira, sempre garboso.

Teremos também páginas sobre músicos Mandingas e Fulas, fala-se obrigatoriamente do corá, mas também da viola e nhanhéru (violino) e também dos tambores. Há um pequeno agricultor, Sajá Camará, que irá percorrer a estrada do êxito, um lavrador Beafada que soube triunfar no Forreá, partiu com a mulher e filho, criou morança e lavrou os terrenos. Foi bem-sucedido.

“O administrador vindo de Fulacunda e o chefe de posto de S. João nas suas visitas periódicas à Ponta de Sajá encontram o lavrador com a família e os trabalhadores Balantas nos mandiocais ou arrozais, ora limpando mais terreno ou a plantar mais pomares”

Passaram os anos, a Ponta de Sajá é hoje uma propriedade agrícola a sério, o filho de Sajá frequentou a escola primária das missões católicas, a sua formação coexiste sem tensões com o Corão. Sajá Camará, que tinha estatuto de indígena, é hoje cidadão português. As últimas páginas da coletânea de Alexandre Barbosa são dedicadas ao rio Corubal, a obra finda com um glossário de expressões de uso local e falares crioulos. Sem dúvida, textos significativos do último período da literatura colonial guineense.
Dança Felupe
Pescador Bijagó
Dançarino Bijagó
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Notado editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)