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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Belíssimma vista aérea da tabanca de Samba Juli, sendo visível o perimetro de arame farpado, as valas e os abrigos individuais > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos nharros da CCAÇ 12... Neste episódio, passado m Dezembro de 1969, Beja Santos refere a sua ida a Samba Juli, fazer um transporte de doentes, com o seu Pel Caç Nat 52, agora destacado em Bambadinca e morrendo de saudades de Missirá ... A lealdade dos fulas(ou a sua aliança política com os tugas contra o PAIGC) era paga com estes e outros serviços... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Capa (deteriorada) do livro de Georges Simenon, Maigret em Nova Iorque. Lisboa: Livros do Brasdil., s/d. (Colecção Vampiro, 111). Capa de Cândido Costa Pinto. "Luís, foi assim que ficou o Maigret quando cai em Ponta Varela. Cheira ainda a água da bolanha" (BS)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

Texto enviado, em 18 de Novembro de 2007, pelo nosso camarada e amigo Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Luis, aqui te entrego mais um texto, não sei porquê fora da medida habitual. Não te esqueças que já te enviei as ilustrações do Tennessee Williams, o livro do Simenon segue hoje pelo correio. Dou-te a notícia cheio de alegria: telefonou-me ontem o escritor Mário de Carvalho a dizer que aceita, na sessão de lançamento de Na Terrra dos Soncó apresentar o livro, com o general Lemos Pires. Tenho uma profunda admiração pela obra dele, sinto que ele está a crescer e se aproxima do Saramago e Lobo Antunes. Espero não fazer pausa até ao Natal, para depois fazer uma semana de férias. Recebe um abraço do Mário

2. Operalção Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVIII > OPERAÇÃO PUNHAL RESISTENTE
por Beja Santos

(i) Bambadinca, entreposto de encontros e desagravos


Já se passou um mês, Bambadinca entranhou-se finalmente na minha vida desde o cais até às tabancas próximas, desço com a toda a naturalidade até à povoação, vou palrando com militares e civis, estonteio-me com os cheiros do mercado, no cais olho ao fundo, com pudor, os palmares de Finete, subo a rampa para o quartel a conversar com Queta Baldé, Serifo Candé e Tunca Sanhá, vamos ver o estado das munições, convoco o pelotão para a revisão das armas, quero ver os carregadores dos apontadores de dilagrama, as granadas de bazuca e de morteiro.

Nisto, aproxima-se de mim o milícia Gibrilo Embaló, de Missirá, já tinha saudades deste excelente soldado, sempre amável e de uma compostura inexcedível. Olhando para o chão, pede-me para vir para o pelotão, conversamos sobre tal impossibilidade, se ele quer ser caçador nativo terá que se inscrever e depois fazer a recruta em Bolama, estou pronto a fazer uma declaração que refira as suas qualidades. Queta Baldé aproveita para lhe dizer que no seu tempo (isto é, 1966) a recruta e a especialidade eram 8 meses a fio, agora é menos, em seu entender isso é mau, reflecte-se na preparação das tropas...

Há quem esteja a ouvir a conversa e manifeste discordância, é malta da CCAÇ 12, Serifo manda calar os meninos, pergunta-lhes se eles já estiveram debaixo de fogo em Porto Gole, Enxalé, Bissá, se já subiram a Madina, se fizeram a estrada Xime-Ponta do Inglês, se entraram no Buruntoni, se sabem o que é uma emboscada de duas horas ou ver Missirá em chamas, a contar as balas, se sabem o que é ir todos os dias a Mato de Cão, depois a gritaria sobe de tom, insultam-se, vejo punhos ameaçadores, olhares chamejantes, é o momento exacto em que partimos para ver o estado das munições, eles ainda não sabem mas ao anoitecer partiremos para Fá Mandinga, daqui andaremos às voltas entre Fá de Baixo, Santa Helena e Mero, o pretexto é um recenseamento das populações, a verdade é que apareceu um grupo armado em Bricama, teme-se que tenham atravessado o Geba, um informador avançou mesmo que é gente que terá vindo através de Bucol, da base de Sinchã Jobel.

As munições estão em ordem, com uma secção ainda vamos buscar doentes a Samba Juli, chegou depois a hora do almoço. As refeições na messe, já constatei, podem ser litigiosas. O tenente Gilde apanhou dez dias de prisão por ter gritado com o major Sampaio, recordando-lhe que já se servira três vezes de leitão, havia oficiais que ainda não tinham comido, era o meu caso, que ouvi toda esta discussão aos berros na porta de vaivém, o tenente Gilde saiu aos palavrões, o major Sampaio perseguiu-o a gritar, comi o mais rapidamente que foi possível, agoniado por estas guerras da comida.

Sim, ao fim de um mês, quase esqueci os petromaxes de Missirá, o bingo a feijões na messe, as rondas de madrugada, tenho muitas saudades das conversas com o Lânsana, o gralhar das crianças, recordo agora o Natal passado, que vivemos tão intensamente. Pelo meio, o Moreira e o Abel, os meus camaradas de quarto, são muito tolerantes com os meus gostos musicais. O Moreira, no entanto, logo me advertiu:
-Pá, aquela gaja que canta em italiano e parece que está a morrer, ainda podes ouvir um bocadinho alto, não sei o que ela canta mas é bonito. Mas aquela outra gaja que está mais de vinte minutos aos berros e que consegue cantar mais alto que a música, por favor, ouve-a quando estiveres aqui sozinho.

O Moreira, afinal, gostava de La Bohème, de Puccini, e detestava o final da Salomé, de Strauss, cantada pela Inge Borkh. Até o correio aqui tem outro sabor. Recebo notícias do Fodé Dahaba, parece que a distância aumentou. O filho de Quebá Soncó, Mamadu, bateu-me à porta, dá-me um beijinho, deixa-me uma carta e foge. Afinal, pede-me material escolar e quer ir comigo a Bafatá para eu lhe comprar livros de aventuras.

Oiço a voz alta do nosso médico no corredor, o nortenho Vidal Saraiva anda furioso, vai ser ouvido nos termos do art.º 130º do RDM, foi encontrado pela polícia militar uma noite em Bissau sem a boina na cabeça, arrisca uns dias de prisão, anda apavorado, desinibe-se com este vozeirão, é assim que ele afasta os maus presságios.

Saio em direcção à secretaria, tenho o Braima Mané à minha espera. Os médicos de Bissau conseguiram pôr o seu braço direito a mexer, mas de resto tudo lhe corre mal. Veio pedir-me cinco escudos para comprar arroz, está todo sujo do barro dos adobes, pois anda a fazer uma morança no Bambadincazinho, não quer viver em Finete onde o seu irmão mais velho lhe engravidou a mulher e depois escorraçou-o da tabanca.

Na secretaria tenho alguns autos à minha espera, afago a minha caneta Montblanc, que me chegou ontem pelo correio, oferta da minha Mãe quando eu fiz o 5º ano, deixei-a em Lisboa, a que ardeu em Missirá era uma Parker 21. Aliás, toda a correspondência que passei a enviar já tem a marca da tinta Quick, a Bic é sempre um último recurso. Chega o correio, recebo um aerograma do Chico Henriques da Silva, que está agora no Olossato, passa semanas isolado num destacamento chamado Ponta Maquê, parece-me, abro um sobrescrito e sai de lá a revista O Tempo e o Modo, é um número dedicado a António Sérgio e vejo que há um artigo assinado pelo José Medeiros Ferreira (2), o Pina escreve a dizer que tem o dedo engessado e em breve regressa...

Alguém entra na sala e dá a notícia que o Pimbas, o primeiro comandante do BCAÇ 2852, já regressou a Lisboa, com o atestado de inapto... É nisto que entra de repelão o Gomes da messe, pede para me falar em particular, como sou o gerente venho imediatamente, pode haver alguma falta, afinal o motivo é outro, a queixa dos faxinas que nos limpam os quartos deixa-me embaraçado: o Cherno entrou com um balde e vassoura, vinha pronto a lavar-me o quarto, não aceitou que sejam outros a fazer a limpeza, houve discussão:
-Talvez seja melhor o meu alferes convencer esse tipo que diz que é seu guarda-costas a não voltar a aparecer aqui, ele tinha um olhar furioso, o que mais nos impressionou foi aquela quantidade de granadas de morteiro que ele trazia à volta do pescoço e na cintura, diz que é assim que anda consigo. Se aquilo rebentasse, estávamos feitos.

É assim que vivo em Bambadinca, penso que é normal na minha idade adaptar-me a isto tudo, onde eu estou a quebrar, a sentir diferenças brutais, é nas insónias, quando de manhã me levanto, depois de ouvir os camaradas a dormir bem, toda a luz do dia me magoa e me recorda o corpo moído, sem vontade de afrontar as idas à picada.

(ii) Em Fá Mandinga, o território do Jorge Cabral

Eu tinha as notas de uma ida a Fá Mandinga, nas vésperas de partir para a operação Punhal Resistente, que se realizou um pouco antes do Natal. Segundo o Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, ter-nos-emos conhecido em Julho, na tasca do Zé Maria (3). O 63, nessa altura, fazia de pau para toda a obra em Bambadinca, o que é hoje o nosso destino.

O Jorge Cabral recebeu-me há pouco tempo na Universidade Lusófona, onde conversámos sobre este patrulhamento a Mero e Santa Helena. Quando lhe perguntei se ele se lembrava de um ataque de abelhas que apanhámos na operação Lua Nova, perto do rio Bissari, ele confirmou tudo com o seu sorriso maroto e manhoso. E lembrava-se perfeitamente do nosso mano-a-mano a partir de Fá Mandinga, ele descendo a bolanha até ficar em frente à aldeia do Cuor, eu patrulhando Santa Helena, Fá de Baixo e depois Mero, numa tentativa de enxotar os intrusos de Madina em direcção ao Geba estreito, onde seriam apanhados pelo 63 ou no caso de atravessarem a nado terem do outro lado à espera o Alves Correia, de Missirá [Pel Caç Nat 54]. Ajudou-me a reconstituir o quartel de Fá Mandinga, de que guardo uma imagem difusa, não tendo esquecido, no entanto, a boa qualidade das instalações, que eu sempre associara a um quartel destinado a uma companhia e que precedera, de facto, a construção do quartel de Bambadinca.

Quando se entrava em Fá, tinha-se a noção de que houvera ali um centro agrícola experimental, lojas coloniais, talvez um presídio. O Cabral tudo confirmou, Fá tivera importância noutros tempos (tal como Geba, era a ponta avançada da presença colonial, até ao séc. XIX), havia uma zona de instalações antigas que estavam vedadas à tropa (tinha mesmo um guarda civil do Governo da Província), possuía excelentes instalações para a tropa ficar acantonada (4) , o quartel tinha valas e não havia abrigos, toda aquela região do Joladu era calma, sabia-se da cambança da gente de Madina, em Bissaque havia muitas tensões, os patrulhamentos eram completamente infrutíferos, os apoios das populações aos rebeldes eram uma realidade, só que nós não sabíamos os códigos de entendimento.

O que fizemos foi mais um patrulhamento pelas bolanhas e uma acção psico entre Mero, Santa Helena e Fá Mandinga. Era pelo bombolom que a gente de Madina chegava ao Joladu, mas nós naquele tempo nada sabíamos. E foi assim que passámos a tarde, a noite e a madrugada, entre as lamas e os mosquitos das férteis bolanhas da região de Fá, ouvindo sempre dizer que gente do mato nunca vinha à região... regressámos ao amanhecer a Bambadinca, informei os soldados que fossem dormir bem pois, a meio desta tarde iríamos partir durante dois ou três dias.

(iii) As andanças infernais da Punhal Resistente

Chegado ao quartel, fui logo falar com o major Sampaio para saber mais detalhes da batida prevista paras a região do Buruntoni, a partir do Xime. Segundo o oficial de operações, haveria dois destacamentos, um com gente de Mansambo [, CART 2404,], outro com o 52 e a gente do Xime [, CART 2520].
-Esteja descansado, os guias são muito bons. Estarei amanhã sobre vós, procurarei acompanhar as vossas rotas, vocês vão cercar o Buruntoni por terra firme, escolhi a tropa mais experimentada que disponho.

No regresso, escrevi à Cristina:

“Saí do Xime de madrugada com mais três pelotões, fugimos sempre da estrada Xime-Ponta do Inglês, junto a Ponta Varela atravessámos a estrada em direcção Gundaguê Beafada, a ideia era ao princípio da manhã juntarmo-nos com as tropas do capitão Neves em Gundaguê Futa-Fula, e daí avançarmos para o Baio e depois o Buruntoni. Ao meio dia, o guia diz que já não sabe o caminho, os soldados da região avisam-me que estamos a avançar para a Ponta do Inglês, a avioneta não nos dá indicações. Do Buruntoni os rebeldes desataram a fazer fogo de morteiro, aperceberam-se da insistência da avioneta sobre aquela área que eles controlam completamente. Pelas 5h da tarde, o guia confessa-se perdido, justificando que o capim alto alterou todas as referências.

"Se na operação de Mansambo estava um frio de esfarelar os ossos, alí era uma humidade asfixiante. Sem saber como, acampámos a 200 metros das tropas do capitão Neves, pelo meio dia do dia seguinte chamámos outra vez a avioneta, não tínhamos apoio da carta, começavam a chegar as insolações, a tropa exausta por andar às voltas, fugindo dos itinerários que se suspeitavam minados.

"A meio da tarde a avioneta deu ordens de retirada, isto debaixo do fogo do Buruntoni. Ao anoitecer partimos do Xime para Bambadinca, sempre a picar a estrada até Almedalai. No dia seguinte, já em cima do Natal, coube-nos emboscada, escolta e reforço.

"A 24, de manhã, o pelotão dividido em três secções andou pela ponte de Udunduma, Nhabijões, Madina Bonco e Galomaro, a levar e a trazer pessoas e coisas, eu fiquei nas ferroadas burocráticas dos processos por ferimentos em combate. À tarde, começou a nossa semana na Ponto de Udunduma”.


Em conversas recentes com o Pires e o Queta, pedi-lhes que me ajudassem a recordar pormenores daquela malfadada Punhal Resistente. O Pires foi sintético:
-Partimos a meio da tarde para o Xime, picámos tudo até ao quartel, naquele tempo, nada estava alcatroado. Fez-me muita confusão o fogo de obus, ao anoitecer e até sairmos para a operação. Recordo-me que andámos sem parar, desviámo-nos para junto do Corubal, ouvíamos os barcos no Geba, andámos na bolanha aos tombos, ao amanhecer houve discussão entre vários soldados e o guia, caminhámos à esquerda e à direita, a água dos cantis desapareceu rapidamente. Ou os guias não gostaram dos itinerários de aproximação e tudo fizeram para se afastar deles ou desconheciam o terreno, o capim estava muito crescido. O que interessa é que foi mais uma operação inútil, a juntar a tantas outras. Ficava-se sempre com a ideia de que inimigo era verdadeiramente inacessível.

Com Queta, natural da região, as memórias ainda estão em ebulição:
-Adulai Djaló, o Campino, ameaçou matar o guia que era de Madina, frente a Taibatá, de nome Samba. Estou certo que era um homem leal e não lhe deram as indicações mais certas. No meio da discussão, durante a manhã do primeiro dia, quando já estávamos perdidos, ele disse-me que procurava o trilho de Gundaguê Futa-Fula em direcção ao Buruntoni, mas que sabia que os sentinelas iriam certamente ver-nos na extensa bolanha à volta do Baio e do Buruntoni. Era o acampamento melhor situado naquela região do Corubal, todas as aproximações são difíceis, foi aqui que se instalou o PAIGC e logo começou a luta armada, a barraca deles ficava no mato fechado entre bolanhas. Ainda agora lembro a morte de Mário Adulai Camará, um dos nossos bazuqueiros, em 1967, nunca percebi por que é que não lhe deram uma condecoração, combateu mais de meia hora lançando fogo da bolanha para dentro da mata, nós não podíamos andar mais, tal o fogo dos morteiros 82. Aquela operação foi uma grande canseira, nosso alfero, nós não gostávamos daquelas correrias dentro da mata, era pena nunca perguntarem às pessoas da região, como eu, quais os sítios possíveis para se chegar lá. Quando atacámos Belel, em Março do ano seguinte, nosso alfero escolheu a pessoa certa, Cibo Indjai, ele escolheu o trilho possível, entrámos na barraca de Belel quando eles estavam a descansar ao almoço. Foi pena os oficiais brancos não quererem falar connosco antes das operações. Nós éramos fiéis à bandeira portuguesa, nunca pensavam em nós como gente interessada em acabar rapidamente com a guerra.


(iv) A semana Tennessee Williams

Não resisto a contar a história de um livro Maigret em Nova York, de Georges Simenon. Levava sempre no camuflado um ou dois livros revestidos em plásticos, para aguentarem as águas da bolanha e as chuvadas. Levei para o Xime o n.º 111 da colecção Vampiro, uma leitura emocionante, Maigret já está reformado em Meung-sur-Loire é procurado pelo um jovem, Jean Maura, que lhe pede que vá a Nova Iorque ver que perigos corre o pai, ideia que é corroborada pelo notário da família.

Maigret viaja num paquete transatlântico, o jovem Jean Maura desaparece à chegada, o encontro com o pai, Little John, e o seu secretário é acidentado mas Maigret continua a investigar com auxílio de colegas norte-americanos e detectives recrutados. São deambulações mirabolantes, há recordações de artistas que se lembram de uma dupla de dois irmãos, em que um deles era Little John. Há momentos fulgurantes, mas nada tem a força com um telefonema que Maigret faz a Joseph Daumale, de Nova Iorque para Bourboule, é um interrogatório a cinco mil quilómetros de distância como nunca mais lerei nas obras de Simenon. Vou devorando aos bocados, todas as pausas disponíveis são boas para ler. Nas bolanhas de Ponta Varela entrei dentro de água até à barriga, quando saí o meu livro policial deformara-se. Gostei tanto dele, no entanto, que resolvi guardá-lo até hoje, uma homenagem às leituras emocionantes, em tempos tão difíceis.

Mas as leituras da semana centraram-se em Tennessee Williams. Primeiro, li um Eléctrico Chamado Desejo, premiado com o Pulitzer. Vira a peça no teatro de São Luís, no dia dos meus anos, em 1966, na companhia do Carlos Sampaio, Eduardo Canto e Castro e José Nogueira Ramos. Mariana Rey Monteiro desempenhara Blanche DuBois, que no cinema dera a Vivien Leigh um Óscar. É um drama que nos fala da desambientação, da repressão sexual, da doença mental, as múltiplas mentiras a que por vezes nos entregamos na construção dos nossos sonhos. Blanche, que tem poses de aristocrata, vai viver para casa de Stella, a sua irmã, casada com o musculado e abrutado Stanley Kowalski. Numa atmosfera de permanente tensão, Blanche procura transmitir aos outros a ideia de um mundo refinado de onde provém, que se vem a descobrir ser fruto de uma imaginação delirante. Blanche é um caso único de mulher a caminho da meia idade que arquitecta situações amorosas, acantonada numa juventude inexistente. De ficção em ficção, Blanche irá ser internada, e a casa dos Kowalski voltará à normalidade.

A noite de Iguana que vi no filme de John Huston, com Ava Gardner, Richard Burton, Deborah Kerr e Sue Lyon nos principais protagonistas, é um outro drama de sexo reprimido, solteironas em fúria, um padre em sofrimento perseguido por uma adolescente, uma viúva sempre em festa, um avô poeta que vai recitar o seu mais belo poema e morre ao pé da sua neta tão amada. A iguana, um animal perseguido e acorrentado que o reverendo Shannon liberta naquela noite de todas as libertações, é o símbolo da verdade que se solta, da vida que é possível ser vivida. Gosto cada vez mais de Tennessee Williams e dos seus personagens em afrontamento, em que nada fica como dantes.

Aproxima-se o Natal, vivo o dissabor de não poder fazer uma festa, não tem sentido particularizar o evento no ambiente de um grande quartel. Entrego-me à pira das recordações, procuro compor uma exaltação ao Deus menino. E a 24 de Dezembro, já na noite escura, um pouco antes da nossa consoada na messe de Bambadinca os enfeites verbais conjugaram-se, todo o marulhar de saudações e saudades afluiu numa prosa poética. Afinal, o meu coração estava lá e cá, continuava a combater e, julgava eu, estava pronto a recomeçar uma vida onde se apagava a guerra da Guiné.
_____________

Notas dos editores:

(1) Vd. o último poste desta série:

25 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

(2) Vd. poste de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(3) Vd. poste de 18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)

(4) Vd. poste de 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1786: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (47): Finete já está a arder ? Ou o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969


T/T Uíge > CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) > Três oficiais milicianos, da esquerda para a direita: Ismael Augusto (manutenção), o David Payne (medicina) e o Fernando Calado (transmissões). Todos eles estavam em Bambadinca, na noite em que o aquartelamento foi atacado em força pelo PAIGC, como represália pela Op Lança Afiada (1). Bambadinca voltara a ser atacada, a 14 de Junho de 1969. O Calado e o Augusto são os organizadores do encontro, deste ano, do pessoal de Bambadinca (1968/71). O Payne, infelizmente, já morreu. (LG)

Foto: © Fernando Calado (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) > O Alf Mil de Transmissões, de braço ao peito, junto à parede, crivadas de estilhaços de granada de canhão sem recuo, das instalações do comando, messe e dormitórios de oficiais e sargentos, na sequência do ataque de 28 de Maio de 1969. Esta era a parte exterior dos quartos dos oficiais, mais exposta, uma vez que o ataque partiu do lado da pista de aviação. O Fernando traz o braço ao peito, não por se ter ferido no ataque mas sim por o ter partido antes, num desafio de... futebol.

Foto: © Fernando Calado (2007). Direitos reservados.



47ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Texto enviado a 3 de Maio de 2007. Subtítulos do editor do blogue.


Caro Luís, muito obrigado por teres impulsionado este segundo encontro [, em Pombal, no dia 28 de Abril de 2007,] onde revi camaradas inesquecíveis como o Humberto ou conheci outros como o Mexia Alves, um pouco a história da minha vida no Cuor.

O texto que te envio hoje centra-se no ataque a Bambadinca, em 28 de Maio [de 1969]. Tens aí a fotografia do Calado de braço ao peito a mostrar os estilhaços de uma morteirada junto às habitações dos oficiais. Eu próprio escrevi um aerograma à Cristina em cima do acontecimento, que tens plena liberdade para usar. Não me recordo de outras imagens deste evento e, como sabes, as marcas passaram depressa. Quando a CCAÇ 12 chegou, já se tinha feito a cosmética. E o segundo ataque deixou ainda menos marcas. Seguem igualmente pelo correio os dois livros referidos. Um grande abraço do Mário.


Finete está a arder?
por Beja Santos


Hoje, 27 de Maio [de 1969], levanto-me estonteado e bem derreado pela emboscada feita há poucas horas em Sinchã Corubal. Tenho uma secção de pelotão de milícias em Finete, onde vão trabalhar no levantamento de um novo abrigo e na construção do balneário. Vamos, pois, levar um dia ameno, entregue aos afazeres domésticos até que o Teixeira nos comunique a hora de partida para Mato de Cão.


Antecipando a vingança da gente de Madina


O que aconteceu ontem em Sinchã Corubal (2) não me sai da cabeça mas procuro prevenir a reacção da gente de Madina: Será que desta vez irei ser emboscado entre Canturé e Gambaná? Em Mato de Cão é impossível, é um planalto de onde se avista todo o palmeiral de Chicri, qualquer aproximação é facilmente detectada de dia. A não ser que eles ensaiem uma emboscada nocturna, embora seja difícil saber qual o itinerário que vamos usar, faça sol ou chuva andamos sempre por caminhos diferentes para evitar as mais amargas surpresas. E momentos há em que duvido da capacidade de beligerância da gente de Madina.

Converso com os furriéis, hoje é melhor dar condições para haver aulas para os soldados e crianças, vistoriar as munições e o abastecimento de víveres, fazer uma capinação lá para os lados de Sansão, olhar com mais cuidado a contabilidade, já que as folhas de pagamento têm que ser enviadas urgentemente para Bambadinca.

Enquanto ganhamos balanço para as actividades no interior de Missirá, o Casanova recorda-nos que o mês que finda [, Maio de 1969,] foi marcado por emboscadas a colunas em todo o sector, flagelações brutais a tabancas em autodefesa como Amedalai, Moricanhe e Taibatá.
- Se digo isto, é só para lembrar que andamos numa permanente correria e o nosso inimigo não nos vai fazer excepção, vamos ser atacados em breve. Proponho que conversemos sobre medidas mais rigorosas de segurança. - Aceito a sugestão e o tema fica para ser apreciado sem papas na língua ao almoço.

A hora do expediente ou a burocracia da guerra

Com o Pires, aprecio o expediente corrente: as queixas do Setúbal quanto às velas do radiador do burrinho [, o Unimog 411,] a necessidade de fazer uma coluna com a nova vaga de doentes cheios de malária e até um soldado milícia com elefantíase, o abate de vários cantis que desapareceram nos últimos patrulhamentos; depois procedemos ao apuramento das contas e concordei com as folhas de pagamentos dos milícias de Missirá e Finete; ainda com o Pires tratei do novo mapa das férias, o aquartelamento de Missirá obrigou todos a um esforço medonho, há que reintroduzir a escala de férias ainda que moderadamente dado o número significativo de baixas por doença.


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > Furriel Mil Pires > "O Pires era um algarvio discreto, sóbrio na comunicação e de uma lealdade a toda a prova. Por vezes zanguei-me com ele, por falta de sugestões ou iniciativas. Concentrei demasiados poderes e cometi asneiras e fui imprevidente. Quando o Casanova começou a desmoronar-se psicologicamente, não dei por nada, por pura insensibilidade. Julgo que devia ter empenhado mais o Pires que era meticuloso e tinha um excelente trato com a tropa africana. Ao fundo, vê-se o último abrigo a ser arranjado, que era o dele. Ele queixava-se que lhe tinha deixado a segurança para o fim. Não foi bem assim, já que a carapaça tinha duas camadas de cimento recheadas de três folhas de bidão. Quando abandonarmos Missirá em Novembro este abrigo já não existirá´".



Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > Fonte de Cancumba, a noroeste de Missirá.

"Sem a água da fonte de Cancumba a vida em Missirá era impossível. Todos os dias, no mínimo duas vezes, uma secção ia buscar bidões, jerricãs e garrafões. Na véspera de eu chegar a Missirá (3 de Agosto de 1968) veio gente de Madina deixar propaganda e avisos sinistros. Até fins de Outubro de 69, registei por seis vezes a presença do inimigo, aqui. Nunca envenenaram a água. Montávamos segurança para as mulheres lavarem a roupa e abastecerem-se. Era ali que elas tomavam banho com as crianças, recusaram sempre o balneário de Missirá.

"O grande tormento era quando o Unimog 404 ou o burrinho, o 411, estavam avariados. Então, meia Missirá arrastava os bidões ida e volta, operação penosa só compensada pelo banho frio, muitas vezes a cheirar a petróleo. O Furriel Pires tirou a fotografia para celebrar a cabeça rapada".



Fotos e legendas: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Pires, de quem são as chapas, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.

Ao fim da manhã, concluído este expediente, e aguardando que Umaru Baldé anuncie que o almoço esteja pronto, olho para o correio recebido e por responder, e guardo energia para correspondência tão dispersa: recebi um amável aerograma do Cláudio Neto, que foi meu furriel na CCAÇ 2402, que me descreve a vida dura que levaram depois de estar em Có e que termina assim: "Não o esqueço nem ao Medeiros Ferreira" (3).

Começo um aerograma para a Cristina, lançando uma trivialidade: "O capim começa a aproximar-se do arame farpado, anoitece muito depressa com um céu funesto, pela noite fora a parada azula-se com o rugido das borrascas. " Será que o cansaço já me rouba a inspiração, estou condenado a escrever estas frases sem nexo? No fundo, ando à volta de uma questão principal que é responder à Cristina se vamos ou não casar por procuração, ainda há uma remota esperança do meu recurso ser aceite e a punição dos dois dias de prisão eliminada, e então poderia ir a Lisboa e casarmos. Esta dúvida vai manter-se até Agosto, altura em que conhecerei que a punição se manterá ainda com redacção diferente, o que vai mudar toda a minha argumentação. Vejo a sombra de Umaru à porta do meu abrigo, oiço-lhe os seus passos que esmagam o saibro. É com alívio que suspendo estas cogitações, esta dor em aerogramas onde nada posso prever para o meu futuro, para o nosso futuro.

Ao almoço, antes de dar a palavra aos três furriéis e aos cabos presentes (o Alcino, o Barbosa, o Teixeira e o Raposo) anuncio que o Raposo vai partir e que Bissau informou que o seu substituto, António da Silva Queiroz, vai chegar em breve. Aproveito para agradecer ao Raposo toda a ajuda que me deu na intendência dos víveres e anuncio que ele será substituído pelo Alcino. Olho-o quando faço este anúncio e sinto a muita amizade que se vai consolidando entre nós.

Recordo o dia, há meses atrás, quando o conheci junto à Capela de Bambadinca, ele tremia como varas verdes, seguramente que o tinham praxado, dizendo-lhe que ia para o pior dos infernos, às ordens de um chefe alucinado. O Alcino é um camponês que reclama sopas adubadas, tem saudades do vinho forte da sua região, tem saudades do seu terrunho, está desamparado de afectos, é frugal no contacto humano, é uma criatura inocente que sofre com a nossa linguagem de caserna, um palavreado indisponível para os seus valores telúricos. Naquele momento ainda não sei o papel determinante que ele vai ter um dia para o encadeado destas recordações, quando, de um só jacto, eu lhe dedicar uma carta, escrita com a maior das intranquilidades e com o meu pedido público de desculpas por nunca mais ter sabido dele, depois de ele passar a sinistrado de guerra.

As preocupações do Casanova são sentidas por todos: vivemos a um ritmo alucinante, com colunas à fonte de Cancumba, desmatamos e descapinamos por vezes em situações de risco, vamos diariamente a Mato de Cão, com as chuvas a precariedade dos abastecimentos obriga-nos a caminhar e a patinhar até Bambadinca, há as emboscadas nocturnas, a segurança ao Sintex, o que ainda resta das obras de Missirá, as idas a Finete, e o mais que se sabe. A correr de um lado para o outro, esqueçemo-nos que o inimigo vigia, recolhe informações e um dia explorará fraquezas, multiplicamos as actividades e o número de efectivos baixa.

Fico mandatado para falar com o Comandante [do BCACAÇ 2852, sito em Bambadinbca,] sobre a necessidade de recebermos mais efectivos, as duas secções de milícias de Missirá devem voltar, há que propor apoios da CCS, gente dos morteiros, sapadores, apontadores de metrelhadora, praças. Precisamos de ajuda, é esta a mensagem que recebo dos presentes. E nos presentes está o Adão que é soldado-maqueiro e alinha em tudo: nos patrulhamentos, nas colunas e nos reforços.
- Já agora, meu alferes, lembre-se de mim, não me quero ir embora, mas fazia jeito mais dois maqueiros, com a vida que levo nem tenho tempo para estar em Finete.

Findo o almoço, recomeçámos as nossas tarefas, fui com uma secção reforçada até à ponte de Sansão. Regressei ao anoitecer, jantei e na parada revistei o armamento dos vinte homens que me iam acompanhar na emboscada nocturna. Esta exigência das emboscadas nocturnas era uma novidade do nosso major de operações: fosse em que condições fosse, era determinado a todos os destacamentos que tivessem uma emboscada montada para dissuadir o inimigo, desde o anoitecer até horas que tornassem as flagelações praticamente impossíveis. Com a usura das nossas actividades, estava decidido que quem ia a Mato de Cão não emboscava. O quebra-cabeças era prever os cenários de ataques a Missirá e como é que nós podíamos reentrar no quartel sem ficar debaixo de dois fogos...

Naquela noite quem se meteu até à cintura numa bolanha entre Missirá e Cancumba até às 11:30 da noite fui eu e um contigente de caçadores nativos e milícias. Findo este tempo, que não dá para dormir no tépido da água porca e barrenta, sempre afugentando a mosquitada a zunir furiosa porque não pode atravessar a rede mosquiteira, e debaixo da tensão que é estar com os olhos concentrados nas diferentes sombras que nos cercam e nos ruídos próprios das florestas, regressámos com o corpo moído e a vontade de mergulhar no duche frio do costume.


Em socorro de Finete...


Era precisamente meia noite e vinte e cinco quando começámos a ouvir roncos em catadupa dos obuses, uma sinfonia de armas pesadas, rockets e morteiros, a terra tremia bem perto de nós, o negrume da noite deu lugar a riscos desses pequenos cometas que são as balas tracejantes a esvoaçar no éter. Ainda a limpar-me , subo ao abrigo onde Ussumane Baldé assiste deslumbrado ao foguetório e sinto o coração contricto quando lhe pergunto:
- Ussumane, é Finete que está a ser atacada? - A resposta é me dada pelo seu olhar súplice:
- Ah, meu alfero, eles vão partir Finete todinha!.

Os minutos passam e não vejo chegar resposta do fogo de Finete.
- Que é que leva aqueles gajos a demorarem tanto tempo a reagir? - A multidão cresce na parada, não há militar e civil que não esteja esgazeado a ver este ataque assustador, quer pelo porte, quer pela falta de reacção.

De vez em quando há fogachos em direcção contrária, mas quem domina nesta cantilena de morte são as armas pesadas e os sons que conheçemos ao armamento do PAIGC. O meu olhar mareja-se de lágrimas incontidas, de tudo me recrimino por não ter pensado que o PAIGC ia rapidamente embalar uma resposta à nossa aparição em Sinchã Corubal. O fogo atroador prossegue, todos lastimam a destruição de uma Finete e há quem já vaticine que está reduzida a escombros.

Pela última vez, no alto daquele abrigo que abre para Sansão e que numa grande angular permite ver tudo o que é floresta de 14 quilómetrs até Finete, vejo e olho e começo a sentir no ar a nuvem espessa de um fogo que devasta quem vive para aqueles lados do Geba. É então que grito que vou partir com os voluntários que se oferecerem , em auxílio de Finete. Para quem falou de prudência à hora do almoço, é exactamente o oposto o que se está a viver no frenesim na parada de Missirá: O Setúbal já faz roncar o Unimog 404 para onde vão saltar cerca de 20 voluntários armados até aos dentes.

No meio daquele desatino, ainda consigo seleccionar dois bazuqueiros, três apontadores de dilagrama e levo o morteiro 60. Sento-me ao lado do Setúbal e determino:
-Daqui até à entrada de Canturé podes ir a 100 à hora. Depois páras, iremos todos a pé os últimos 4 quilómetros.

A corrida desenfreada é digna de um filme: aos tombos dentro da caixa do Unimog, os meus soldados examinam as cartucheiras, as cavilhas das granadas, a posição em riste das metralhadoras; gritamos como num manicómio acerca de cuidados que sabemos que não iremos cumprir, zelos impossíveis de respeitar, apelo à serenidade que ninguém controla. E minutos depois, muitos minutos depois, o Unimog pára arfante onde começa a longa recta de Canturé, muito antes da curva que se orienta para Gambaná e daqui para Mato de Cão.

O Setúbal vai sozinho na viatura e de faróis apagados. Graças a uma nesga de lua, dez homens de cada lado flanqueiam a picada.O ar está empestado pela pólvora. Caminhamos à espera do pior. A prudência vai aparecer a dois quilómetros de Finete, onde o mato é denso e os poilões escondem o luar. De tanto gritar durante a viagem, como se estivéssemos a incutir coragem uns aos outros, damos agora com o silêncio sepulcral que nos envolve. Que raio de Finete é esta que não tem cubatas a arder, nem se ouvem tiros isolados, nem gritos dos agonizantes?

Com alívio, em marcha lenta, passamos os pontos onde era possível o inimigo estar emboscado. E do alto do alcantilado, que é essa inclinação abrupta que descemos e subimos para chegar ou partir de Finete, assobia-se aos sentinelas que respondem com entusiasmo. Aguarda-nos um quadro surreal: somos recebidos com entusiasmo, abraços, tudo quanto é sinal de boas vindas. Vejo Bacari Soncó avançar em passo lesto e abraçar-me. É a medo e com a voz embargada que lhe pergunto:
-Irmão, temos muitos mortos? - Um olhar coruscante precede o atónito da resposta:
- Mortos, mortos de quê?. Mortos só se for em Bambadinca, ali é que há manga de canseira!- Atónito estou eu:
-Bambadinca, então foi Bambadinca que foi atacada?



Os pormenores do ataque a Bambadinca, em carta enviada à Cristina

E o Unimog marcha aos tropeções pela bolanha de Finete. Quando chegamos à margem do Geba, o canoeiro Mufali vem buscar-nos. O rio está na vazante, entramos na canoa com lama até à cintura. Na outra margem aguarda-nos o Machado e as suas Daimlers. Enquanto subimos a rampa para o quartel, dá-me os pormenores do ataque.

Em aerograma à Cristina, no rescaldo da manhã seguinte:

Os rebeldes vieram pela pista de aviação e cemitério, atacaram o quartel frente à porta de armas, perto da tabanca fula, onde o Almeida (Pel Caç Nat 63) tem a sua tropa, as morteiradas caíram perto da central eléctrica, residência de oficiais e sargentos. Todos, que nunca tinham sonhado em tal arrojo, encheram-se de pânico, e vieram para a parada onde desataram a fazer fogo desnorteado, e só não houve feridos e mortos por milagre.

O Capitão Neves foi para o morteiro enquanto a tropa do Almeida repelia os rebeldes que avançavam para a residência dos oficiais. Depois retiraram e entretanto o pesado morteiro de Bambadinca começou a reagir. Há muitos quartos esburacados e tectos desfeitos. Só há um ferido ligeiro: o apontador de morteiro do Almeida que ficara em Finete enquanto eu estava numa emboscada, ainda ontem. Esta é a resposta à grande operação do Corubal, de há dois meses atrás. Este o ajuste de contas....


A recordação mais impressiva dessa madrugada era a mulher do Tenente Pinheiro à porta do abrigo, enquanto as crianças dormitavam lá dentro. Ao amanhecer, verificámos a extensão dos danos, mas o meu lugar já não era ali. Ainda aproveitei para fazer compras de víveres, trazer algumas camas e fardamento.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 > Antigas instalações dos oficiais (à direita) e dos sargentos (à esquerda). A messe de sargentos ao fundo, do lado esquerdo; a dos oficiais, à direita (a cozinha era comum). Eram excelentes instalações hoteleiras, para a época e por comparações com outros outros aquartelamentos. A regra geral era a bunkerização (por ex., Mansambo). Em 28 de Maio de 1969, quando o pessoal metropolitano da futura CCAÇ 12 estava a chegar à Guiné, Bambadinca sofreu um grande ataque do PAIGC. Quando lá passámos uns dias depois, a 2 de Junho, eram ainda visíveis os impactes das granadas de morteiro (por ex., num dos quartos dos sargentos, à esquerda) e a estupefacção do pessoal... Recordo-me de ter trocado impressões com um conterrâneo meu, o 1º cabo de transmissões Agnelo Pereira Ferreira, natural da Zambujeira Lourinhã, e que pertencia à CCS do BCAÇ 2852... Dois meses antes, havia sido executada a grande Operação Lança Afiada (1) , destinada a varrer toda a margem direita do Corubal, e desalojar o PAIGC do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole... A resposta, em força, não se vê esperar... Uma das questões controversas, já aqui debatidas, foi o papel do tenente-coronel Pimentel Bastos durante o ataque... Hoje sabemos que ele estava lá... Essa informação foi-me confirmada recentemente por dois alferes milicianos da CCS do BCAÇ 2852, o Ferando Calado (transmissões) e o Ismael Augusto (manutenção)... A anedota que no meu tempo se contava sobre o Pimbas é isso mesmo: uma mera anedota de caserna (4).

Bambadinca revisitada... Soubemos depois que, a seguir à independência, fora palco de trágicos acontecimentos: desvario revolucionário, ajustes de contas, julgamentos populares e execução sumária, por fuzilamento, de régulos fulas (o tenente Mamadu, por exemplo), além de combatentes que estiveram integrados nas NT (CCAÇ 12, incluída) (LG)...

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.




Leitura: uma obra-prima de Simenon, O Comboio de Veneza

Regressei a Finete e daqui a Missirá a cogitar sobre as minhas fraquezas e as de Bambadinca. Pressentia que estavam mudanças no ar, o inimigo mais forte e indiferente aos aldeamentos em autodefesa. O inimigo sabia o que queria, tinha sempre a seu favor o conhecimento da mata e o factor da imprevisibilidade. Nós só podíamos esperá-lo e destruí-lo perto do nosso terreno, retirando-lhe a facilidade dos abastecimentos. Vou saber em Junho, Julho e Agosto que o inimigo vai ter o desplante de lançar morteiradas e fogo breve e retirar. Uma vez vou perder a cabeça e persegui-los pela noite escura, mas cedo compreenderei que é um acto demencial.

Em Missirá aguarda-me a notícia que nessa madrugada parto para Mato de Cão. Em breve vou fazer 24 anos. É aqui que me estou a fazer um homem, há dez meses atrás era impensável supor que a vida do Comandante de Missirá e Finete fosse a do meu atribulado quotidiano. Não gosto nem desgosto, limito-me a agradecer a Deus a coragem que Ele me oferece.

Durante este tempo, li dois livrinhos (mas que grandes livros!) que falam de comboios. Primeiro, O Comboio de Veneza, por Georges Simenon. Justino Calmar está em férias no Lido de Veneza, com a mulher e filhos. Num dia quente de Agosto, tem que regressar a Paris e toma o comboio que o leva até Lausana e daqui à Cidade Luz. Na carruagem, é interpelado por um passageiro que viria de Belgrado ou do Trieste. Inúmeras perguntas, e Justino sem saber porquê responde a tudo. Em dado momento o passageiro pede-lhe para em Lausana ir buscar uma mala que está num cacifo na gare, tomar um taxi e entregar a mala numa residência perto da estação. Ele tem tempo, aceita a incumbência.

É aqui que começa a mudança da sua vida. Quando chega à morada, encontra uma mulher estrangulada. Sem saber como reagir, regressa ao comboio e daqui parte para Paris. Em casa descobre que a mala tem uma fortuna em dinheiro francês, americano e inglês. Espera um contacto que não chega. A mala muda de cinco em cinco dias de cacifo e de estação. Aos poucos, começa a gastar o dinheiro, inventa que está a ganhar nas apostas dos cavalos. A mulher e os amigos sentem que há diferenças desde o regresso de Veneza. Depois uma secretária, que nutre por ele uma secreta paixão, declara-se. Entrámos na recta final da tragédia: apanhado a fazer sexo pelo patrão no escritório, suicida-se.



Estátua do escritor belga Georges Simenon (1903-1989), na sua cidade natal, Luik.Fonte: Wikipedia, De vrije encyclopedie (Imagem do domínio público / This image has been released under the 'GNU Free Documentation License' ).

Vinte anos antes da sua morte, Simenon tinha, em Missirá, um jovem apaixonado leitor, de nome Mário Beja Santos, que está prestes a fazer 24 anos, e que é alferes miliciano do exército colonial português... (LG).


É uma obra-prima em que Simenon joga habilmente com as recordações de Justino, dando-nos o retrato de um homem comum que age como nós, sem deter as motivações e as consequências. As explicações essenciais não existem: Terá havido crime? Há relação entre aquela mala e a mulher estrangulada em Lausana? O que aconteceu ao homem que lhe entregou a mala e desapareceu? Temos aqui a tragédia do homem comum, a continuidade da linha de vida que não se controla, uma tragédia em que o ser hesitante é ultrapassado por todos os acontecimentos e então desiste.



Salão Lisboa (Foto: Mário Novaes, 1949). Arquivo Municipal de Lisboa, AFML - A12538. Ficava na Rua da Mouraria. Da autoria de José António Pedroso, foi construído em 1916. Era popularmente conhecido como o Cinema Piolho. Foi o primeiro edifício da cidade a ser desenhado e construído como sala de cinema ou animatógrafo... Ainda estávamos na época de ouro do cinema mudo... (LG)


O desconhecido do Norte Expresso é o primeiro livro que leio de Patricia Highsmith. Tenho sorte com a iniciação. Guy Haines vai reencontrar-se com Miriam para tratar do divórcio. É um arquitecto de 29 anos cujo talento começa a ser reconhecido. Guy pretende casar com Anne. No comboio é abordado por Bruno que lhe faz uma proposta macabra: Guy mata o seu pai e ele matará Miriam. Guy rejeita a proposta mas a fatalidade já está em movimento naquela carruagem do Norte Expresso. Enquanto leio, ocorre-me subitamente o portentoso filme de Alfred Hitchcock a que alude a capa deste livro da Colecção Vampiro. No meu abrigo, de vez em quando páro para olhar o beijo do par amoroso e lembro-me vezes sem conta dos cinemas que frequentei na minha adolescência e onde eram habituais os panos pintados e os cartazes.

... e recordações de Lisboa e dos seus cinemas


Lembrei-me do Cine Oriente, o Salão Lisboa, o Chant Éclair, o Cine Bélgica, o Rex (primeiro Lis), o Royal, o Pathé, o Alvalade, o Max... Sessões de dois filmes, um de aventuras ou acção ou de guerra, outro sentimental, comédia ou até musical. Lembrei-me da religiosidade de ir ao cinema , a combinação com os amigos, ia-se com a melhor roupa como para a igreja. O cinema era a suprema alegria das imagens reconfortantes com que nos identificávamos com os bons e os maus. Onde terei visto este filme de Hitchcock? Terá sido num cineclube, num ciclo alusivo a este mestre do suspense? Não sei e estou muito cansado. Vou repousar um pouco, tenho depois o ritual de ida a Mato de Cão. E aguardam-me muitas surpresas em Junho.

___________

Notas de L.G.:

(1) Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março de 1969), vd. os seguintes posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal


(...) "Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros...

"Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé [, alcunha por que era conhecido o Spínola,] deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS... Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné...

"A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...

"Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava libertada... Eu faria o mesmo, na minha terra...

"Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico: Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros. LG" (...).


(2) Vd, último post da série > 20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1770: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (46): Encontros de morte em Sinchã Corubal, com a gente de Madina

(3) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(4) Sobre o tenente Pimentel Bastos, primeiro comandante do BCAÇ 2852 (substituído a meio da comissão pelo tenente-coronel Pamplona Real), vd. os seguintes posts:


1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã

Capa do mundialmente famoso livrinho de Saint-Exupéry, Antoine Marie Roger de Saint-Exupéry (Lyon, 1900- Mar mediterrâneo, 1944). Ilustrações do autor. 4ª edição. Editorial Aster, Lisboa, s/d.

Le Petit Prince, no original, em francês, foi publicado em 1943, nos Estados Unidos. É considerado o livro francês mais divulgado de todos os tempos e, a seguir à Bíblia, a obra mais traduzida em todo o mundo. Beja Santos considera-o, ainda hoje, umn dos dos seus livros de cabeceira.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Texto enviado em 18 de Janeiro de 2007. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.


O prisioneiro de Quebá Jilã
por Beja Santos

A 31 de Janeiro [de 1969], à noite, chegou a mensagem de Açor dirigido a Alce: "Apresente-se urgentemente este". Açor, neste caso, é o Comandante de Bambadinca, o incontornável Pimbas (2).

É evidente que a visita de Spínola e Felgas já chegara ao conhecimento de Pimbas, a convocatória não surpreendia, Bafatá (3) aproveitava qualquer pretexto para pressionar Bambadinca/Pimbas , exigindo-lhe energia e vigilância de e para todos os aquartelamentos.

A paternal admoestação do Pimbas, em Bambadinca

O Pimbas dava-se mal com este papel de reitor e vigilante implacável, ele próprio estava a ser enredado nas suas limitações de que começará a cair desamparadamente depois da Operação Lança Afiada (3) e do ataque a Bambadinca de 28 de Maio, de que sairá definitivamente exautorado.

Junto o útil ao agradável, e a 1 de Fevereiro apresento-me muito cedo na sede do Comando. O Pimbas recebeu-me com a afabilidade do costume, levou-me para o seu gabinete, não sem antes ter dito ao Bala, o lendário ordenança, que não queria ser incomodado na próxima meia hora.
- Menino, hoje é um dia terrível para mim, pois vai começar a evacuação de Madina do Boé e tenho que ser áspero contigo. Tu não sabes o que eu ouvi do Felgas. Para ele, tu não passas de uma desilusão, combates destemidamente mas tens o quartel como uma choldra. Ele até cafre te chamou. Vai voltar em breve para ver as alterações na segurança e na repartição entre o que é quartel e população. Peço-te que tenhas tudo limpo, exige à população que escove e se liberte da porcaria, se não ele dá-te mesmo uma porrada. Nesta altura, é mesmo o que nos faltava, eu sou repreendido por tudo e por nada, vê lá se não desiludes e me apoias.


É um cafre, diz o Hélio Felgas

Entendi relembrar ao Pimbas o que ele vira e a diferença abismal daquilo que eu recebera. Diariamente, trinta homens faziam 25 a 50 Km para ir a Mato de Cão, a prioridade das prioridades. As obras, a manutenção, a logística eram devoradoras da outra disponibilidade. As fieiras de arame farpado estavam renovadas, e eram três, ao contrário de duas a cair que encontrei; o plano de segurança, gizado pelo Reis para minar o que era exequível minar num espaço onde viviam várias dezenas de crianças, estava em execução; de duas viaturas permanentemente empanadas, havia melhorias; Finete ia conhecendo melhoramentos, tinha um abrigo novo e valas que podiam dar protecção à população civil no caso de uma flagelação; houvera reparações, funcionava a escola em Missirá, graças ao Payne assistia-se semanalmente a população doente; e o plano dos abrigos também estava em marcha, como o próprio Comandante Chefe constatara.

O que acima de tudo me estava a magoar era esta insidiosa incriminação de sujeira e bandalheira cafre. Era ímpossível, além de indesejável e imoral, meter a população num gueto. Tinham sido dadas intruções rigorosas aos responsáveis civis para haver mais cuidado no arrumo das alfaias e na limpeza doméstica, mas havia que atender que há valores culturais que não se mudam por ordem de serviço. E pus o meu lugar à disposição, se me considerava incompetente havia muita guerra para fazer , não queria ser estorvo para ninguém.

É de imaginar que esta conversa não levava a ponto nenhum, a não ser o Pimbas insistir na limpeza das cubatas e numa segurança revigorada para Missirá... mesmo sem se explicitar se se falava de armamento, da pesquisa de cartuchos na parada ou outras diligências afins.



As ameaças do Mamadu Jaquité

Findo o encontro, fui fazer o relatório ao Major das operações. A novidade da última semana de Janeiro foram documentos de propaganda que o PAIGC deixara numa bolsa de plástico na fonte de Cancumba e um papel garatujado que o Benjamim me ajudou a decifrar:
- Tu não passas de um alferes de merda. Andas a chatear um povo que quer ser livre. Tu vais morrer ou eu ter vergonha de viver na minha Pátria. Se quiseres desertar , tu vens cultivar a bolanha de Madina. O meu nome é Mamadu Jaquité.

O Benjamim, finda a leitura, esboçou um sorriso alargado e perguntou-me:
- E agora, o que o meu alferes vai fazer? Olhe que isto é uma ameaça.

Mais disse ao Major Viriato Pires da Silva que nessa semana acordámos todos pelas três da manhã com um estrondo monumental vindo da estrada de Morucunda, a 2 Km de Missirá. O Reis aceitara a minha sugestão de armadilhar o trilho que, tínhamos detectado, era usado por gente de Madina. Com o estrondo saímos dos abrigos e das cubatas e ouvimos um morteiro a funcionar, seguindo-se algumas rajadas espúrias e depois o silêncio. Não restava dúvidas: uma coluna do PAIGC caíra numa armadilha e estava a reagir.

Na manhã seguinte viera para Mato de Cão e o Casanova fora fazer o reconhecimento, com todas as cautelas possíveis. O que me descreveu à noite era de que havia uma imensa fossa com pastas de sangue, a picada pisada em várias direcções, certamente que a gente de Madina improvisara macas e suposera, no meio do caos, tratar-se de uma emboscada.

Informei o Major de operações que ia em breve visitar o último ponto do Cuor onde eu considerava ser possível patrulhar com um pequeno contigente: Quebá Jilã, para saber se era habitado, quais as redes de circulação até Madina, a escassos 8 Km. Ele deu-me a entender que estava em preparativos uma grande operação a Madina/Belel e que tal reconhecimento era bastante útil.

E do trabalho das armas passei para as coisas da construção civil e da mesa. Depois, cumpriu-se o jogo de futebol com o recém-chegado pelotão de caçadores nativos nº 54. Para além da sova monumental que levámos, recordo que em determinado momento parámos todos para ver o céu escurecido por aviões de diferente porte que avançavam para Leste, com ruído ensurdecedor. Começara a evacuação de Madina Boé e ali vinham bombas, canhões, tropa aerotransportada, munições várias, o conforto e o alívio de quem ia ajudar a evacuar Madina do Boé.

Como eu não sei ler as linhas do destino, não podia antever que a vida dos soldados de Missirá tinha o seu futuro selado aos acontecimentos trágicos que iriam ensombrar a companhia de Galomaro [, a CCAÇ 2405]. Terei essa resposta a descoberto no dia em que aparecemos esfarrapados em Bambadinca, lá para o fim de Março.

Cambámos o Geba com chapa ondulada, cimentos, pregos, rebites mas também com barricas com pé de porco, conservas de feijão verde, leite achocolatado, cerveja, detergentes e outros imperativos domésticos. Fiquei essa noite em Finete, não sem ter enviado uma mensagem ao Casanova para no dia seguinte escolher trinta homens que saíriam connosco na madrugada seguinte, para o patrulhamento de Quebá Jilã. Informei-o que levaria gente de Finete para suprir faltas, na eventualidade de haver uma ida a Mato de Cão. A haver, ele seria o Comandante e Bacari Soncó ficaria a substituir-me com o Furriel Pires.


O azar do Aruma Sambu, 18 anos, agricultor, mansoanque, apanhado em cima de um palmeira

Nessa noite, pedindo o maior sigilo a Bacari Soncó e Fodé Dahaba, expliquei-lhes o que pretendia saber na região de Quebá Jilã. Bacari foi categórico:
-Sabemos que Quebá Jilã tem população civil e faz a ligação com a base de Banir, já no Oio. É melhor levarmos de Finete uma secção de tropa muito bem preparada. É atacar e fugir, não se pode fazer mais.

Em Missirá, no dia seguinte, conversei com o Casanova e, separadamente, com Malã e Quebá Soncó. Tratava-se de um patrulhamento, e eu apostava numa progressão muito rápida a partir das 2 da manhã entre Missirá, o Rio de Biassa, até ao interior do Cuor, a aproximadamente 4 Km de Quebá Jilã. A partir das 8/9 da manhã, eu ficaria nas mãos do picador e dos conhecimentos de Cibo Indjai e Queta Baldé, que já tinham percorrido a região. Conversando com o Queta, ele rememorou os factos:
-Levámos um morteiro 60, uma bazuca, quatro apontadores dilagrama, rádio e várias metralhadoras ligeiras.

Chegámos ao pé de Quebá Jilã ia o sol no alto. Cibo e eu propusemos ao Quebá avançar dentro de uma floresta e contornar, bem protegidos, uma clareira que eu sabia chegar a Quebá Jilã. O Quebá escolheu sempre bem caminho fora de velhas picadas, entrámos na floresta e ao longe comecei a ouvir vozes de gente que cantava. De repente, tínhamos um grande campo de milho e mandioca e ao fundo palmeiras. É a olhar para as palmeiras que o Cibo avista alguém a apanhar vinho de palma.

Combinou-se então que um grupo ia a correr para aquela árvore e a coluna avançaria a protegê-los. Assim aconteceu. Estava um jovem de cerca de 18 anos em cima de uma palmeira que quando nos viu tentou atirar-se e fugir. Foi logo preso e, quando ele se preparava para gritar, alguém teve que lhe dar um tabefe. A sua expressão era de terror, usava uma tanga o que deu para ver como o seu corpo vibrava, supondo o horror da morte. Decidimos então trazer o preso para dentro da floresta e interrogá-lo. Quando abordei o Queta Baldé sobre este episódio, ele foi categórico:
-Eu lembro tudo. Chamava-se Aruma Sambu e era mansoanque. Uam conversou com ele em mansoanque. Ali perto do palmeiral estava um grupo de população civil a trabalhar protegido por tropa de Belel, com RPG 2 e morteiros. Foi nessa altura que o alferes decidiu retirar imediatamente com o preso para Missirá, onde chegámos ao fim da tarde. Ele ficou no armazém de géneros e depois do jantar o alferes voltou a interrogá-lo sobre Quebá Jilã. Não foi fácil obter informações. Ele disse viver perto do Banir e não conhecer Madina. Mas lá foi confirmando que havia um bigrupo em Madina e que as vias de abastecimento estavam presentemente a mudar devido à pressão de Missirá. Estava a chegar menos gente de Mero e havia medo nos Nhabijões. A tropa falava em atacar Missirá. Mas ele procurava dizer sempre que não tinha nada a ver com a tropa, era agricultor. E na manhã seguinte, levámo-lo a Bambadinca.


A arte da contra-informação nos mercados de Bambadinca

Assim fora. Nessa noite, tomei a decisão de criar uma corrente de contra-informação que submeti ao critério do Domingos e do Benjamim. A ideia era espalhar pelos mercados de Bambadinca a notícia que um prisioneiro informara as nossas tropas sobre quem ajudava Madina/Belel e quais os caminhos mais utilizados. O Domingos e o Benjamim aprovaram a ideia, escolheram-se intoxicadores para espalhar a atoarda em várias línguas, com relevo para o Balanta, Beafada, Mandinha e Fula. Escrevi uma carta para o Comandante, relatando-lhe sumariamente os acontecimentos e pedindo à sala de operações que tivesse em conta todos os depoimentos de Aruma Sambu, ligando-os às exigências da operação.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Destacamento de Mato Cão > 1973 > Pel Caç Nat 52 > O famoso SDintex com que o Beja Santos (e depois os seus sucessores, aqui na foto o Mexia Alves) fazia a travessia do Rio Geba (4).
Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados
As idas a Mato de Cão vão ser um sorvedouro de energias nos próximos dias. Eu irei a Bafatá, por imposição, ouvir a admoestação do Felgas. Este mês de Fevereiro incluirá as operações Anda Cá e Fado Hilário com dolorosas lembranças e o espectro das abelhas. Vão-se viver os últimos tempos da velha Missirá que vai ficar carbonizada. A grande surpresa reserva para o fim: neste mês de Fevereiro vamos provar a delícia de viajar num Sintex a partir do porto de Bambadinca pelos meandros estreitos do Geba até Gã Joaquim. Os nossos abastecimentos vão ficar transfigurados, se bem que exigindo dura provas no patrulhamento da margem esquerda do Geba, sobretudo entre Boa Esperança, Gã Gémeos e Gã Joaquim.


O Princepezinho, minha leitura de cabeceira

Está decidido que depois da Fado Hilário partirei para Bissau a 1 de Março. As dores no joelho são insuportáveis, sempre que vou a Mato de Cão tenho que estar 1 hora com saco de gelo com a perna hirta. Aproveito para ler e continuo cheio de sorte, dentro deste ciclo de obras magistrais. Desta feita, trata-se de De víbora na mão, por Hervé Bazin, numa tradução de Maria Judith de Carvalho e Urbano Tavares Rodrigues.

Filho muito amado por uma mãe inesquecível, entro a medo nesta história de ódio gélido e recíproco entre um filho e uma mãe. Bazin faz um relato violento, viperinamente violento, de uma família de aristocracia rural decadente onde a mãe, Paule Rezeau, domina tudo e todos. Os Reazeau têm o seu nome ligado à história da França, casam com duques, marqueses, condes e barões. Paule Pluvignec era neta de um banqueiro e filha de um senador. Quando se torna Rezeau traz um dote de 300 mil francos-ouro. Educa os filhos com máxima dureza, manipula sentimentos, neutraliza o marido, mantém os filhos andrajosos e mal alimentados, em regime de internato severo. Os filhos vingam-se, procurando tripodear os planos maléficos da agressiva Sra Rezeau. É um combate sem tréguas que se alimenta de ódio, uma arquitectura literária sublime em que o verbo prodigioso acompanha a decomposição dos valores e sentimentos. O livro é ácido e vai desembocar em posições extremadas de uma mãe que odeia e vive a maquinar o sofrimento dos filhos e estes a crescer como serpentes. Ainda hoje quando pergunto a alguém o que pensa deste relato familiar catastrófico, oiço sempre dizer, entre suspiros e interjecções: "É a obra prima absoluta!".

Leio e volto a reler, incansavelmente, O Principezinho, certamente o testamento poético e humano de Saint-Exupéry. Nesta idade, ainda não sei que este bravo homem vive permanentemente à procura de superar os limites, e que vai morrer, um ano depois de ter escrito O Principezinho, sob os céus da França.

É um monólogo de um escritor ao espelho, sob o disfarce de um piloto que no meio do Saará é obrigado a uma paragem forçada que leva a conversas inocentes com uma aparição de um jovem que veio de um asteróide. Fala-se de embodeiros, ovelhas, muitas flores, pássaros, de outros asteróides, de histórias de encantar, de viagens fabulosas pelo espaço. Até ao dia em que a visita do Principezinho termina como se chegasse o momento de só regressar ao sofrimento humano na paisagem do mundo. O Principezinho é uma estrela quente que nos afugenta os sonhos maus no mundo em guerra. E na minha guerra, no fim do mundo, entre o Cuor e o Oio, cercado pelo Geba, por obrigações inevitáveis, se alguém dissesse ter dúvidas que o livro é melhor companhia eu passava-lhe para a mão a ternura de O Principezinho.

É com os sonhos de O Principezinho que a seguir vou ouvir as admoestações do Coronel Felgas, viajar no Sintex e apanhar dois dias de prisão simples. Ora escutem lá.

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts relativos ao ano de 1969:

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas

25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel

(2) Vd. post de 3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1399: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (27): Sinopse: os meus primeiros 150 dias

(3) Badtá era sede do Agrupamento 2957, que abarcava toda a Zona Leste, sendo constituído por cinco sectores. O de Bambadinca era o L1. Este agrupamento, comandado pelo Coronel Hélio Felgas, deu origem mais tarde ao CAOP 2.

Sobre a figura deste oficial superior, que se reformou como brigadeiro, há vários posts no nosso blogue:

24 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIX: O Hélio Felgas do nosso tempo (A. Marques Lopes)

23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos

25 de Novembro de 20065 > Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIII: Antologia (29): depoimento de Hélio Felgas (3): os ataques aos acampamentos do IN

9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas


(4) Vd. post de 25 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1115: O Destacamento do Mato Cão, no tempo em que comandei o Pel Caç Nat 52 (1972/73) (Joaquim Mexia Alves)

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral, datada de 16 de Agosto de 2006:


Amigo Luis,

Conheci mal o Pimbas, conheci mal o Corte-Real, conheci mal o Magalhães Filipe, e ainda bem...

Parece que eram todos bons homens, ex-professores, que ao fim de trinta anos de carreira, haviam descoberto não ter vocação militar...

É necessário distinguir, entre a tropa miliciana, civís militarizados à força, e investidos em funções para as quais não estavam preparados, e os profissionais, designadamente os Oficiais Superiores.

Comandar um Batalhão exigia possuir qualidades de liderança, determinação e coragem, que a não existirem, deviam ter impedido a Promoção. Sabemos todos, e alguns pelas piores razões, que assim não sucedeu.

Talvez quem me conheceu e conhece, me possa considerar preconceituoso, dada a minha postura 200% paisana e anti-militar, mas sei que muitos viram, sentiram e sofreram, as prepotentes arrogâncias, os ocos autoritarismos e as criminosas incompetências.
Felizmente que consegui passar a comissão afastado da hierarquia, a qual imbuída de um espírito de casta, não compreendeu muitas vezes, que já não estava numa qualquer Unidade da Metrópole, mas sim em África e na Guerra. Aliás, tendo sido convidado em Julho de 1970 para ir para Bolama, dar instrução, recusei, precisamente por não querer integrar-me num Quartel "normal"...

Reitero o que já escrevi, sobre os quatro Comandantes de Batalhão de Bambadinca, meus contemporâneos - apenas o Polidoro me mereceu consideração, embora desconheça se gostava de ópera ou se alguma vez foi professor...

Continuação de Boas Férias, Amigo
... e desculpa lá, mas mesmo velho ou talvez por isso, não posso branquear a Verdade (a minha).

Grande, Grande Abraço
para ti, Camarada!

Jorge

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)

Foto: © Paulo Raposo (2006)

Mensagem do Paulo Raposo, datada de 31 de Julho de 2006:

Meu caro Luís Graça:

O meu cripto está de férias, foi para águas para o Cartaxo. É coisa para estar sempre com uma cadela. Não sei como o fígado dele aguenta.

És capaz de re-enviar este rádio em claro ao baixinho do Beja Santos ?

Olá, rapaz:

Leio com gosto os teus escritos, escreves muito bem e com muita amizade para com todos, o que me agrada muitissimo. Bem Hajas.

Depois de sair de Mafra fui para o extinto BC 8 em Elvas, como comandantes estavam o Pimbas e a Alzira (1).

De lá seguimos para Abrantes para formar o Batalhão [de Caçadores] 2852 e depois Guiné (2).

Só tenho boas recordações deles. Ainda serão vivos ? Bem espero. O Pimbas nasceu para ser professor, nunca um militar. Na casa comercial que era do meu Pai, na Rua da Prata, Casa dos Pneus, cruzei-me com ele. Falámos, estava ele na altura no tribunal, em Santa Clara.

O Payne, ao que ouvi dizer, já morreu. O Trigo de Sousa, outro médico que esteve comnosco na Guiné e também era do foro psico, está neste momento no mesmo ramo em Évora nos canaviais.
[Alferes] Augusto e Calado: Recordo-me bem deles. Qual era a especialidade de um e outro?

E tu, rapaz, como estás? Eu estou velho e pesado. 4 filhos, 5 netos. Minha filha casou na semana passada com os seus 22 anos. Estava tão feliz. Já estou na idade de repetir a mesma história montes de vezes.

The best is yet to come.

Um quebra-costelas para ti do

Paulo Lage Raposo
Caçanho da 2405

______________

Notas de L.G.


(1) Vd. posts de:

12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

(...) "A largada foi terrível. O barco a afastar-se do cais é muito doloroso para nós, com as carpideiras que para lá eram enviadas, para nos desmoralizarem ainda mais.

"Depois do navio largar e passar S. Julião da Barra, fomos para o bar à espera que nos chamassem para o almoço.

"O Major Branco, que comandava interinamente o nosso Batalhão [o BCAÇ 2852], uma vez que o nosso Comandante, Ten. Cor. Pimentel Bastos, já tinha seguido de avião, perguntou ao nosso Capitão:- Embarcaram todos os rapazes?O Capitão respondeu de imediato:- Sim, sim, meu Comandante.

"Ele sabia lá!" (...)

(2) Vd. post de 1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
Sobre o primeiro comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, vd ainda os seguintes posts da minha autoria:
Também o Jorge Cabral escreveu recentemente um apontamento sobre este controverso militar:

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

Amigo Luís,

Mesmo a partir para férias, não quero deixar de voltar a saudar a entrada do Beja Santos no nosso blogue. Através da memória dele, lembro lugares e pessoas.

Claro que o Missirá do Beja Santos foi diferente do meu, e quanto à descrição que faz do Pimbas, nada confere com o que recordo.

Cheguei a Bambadinca no rescaldo do ataque, pelo que já não provei os rissóis da Exma. Sra. D. Maria Alzira, nem conheci a mulher do Tenente Pinheiro. Bambadinca constituía na altura, Junho de 69, um quartel aterrorizado, com medo de novo ataque e à espera das porradas

Aí me mantive, até à chegada da CCaç.12, como única força operacional. Saía todos os dias (Xime, Amedalai, Ponta Coli, Ponte do Rio Undunduma, Mato Cão, etc.), pelo que talvez não tivesse tido oportunidade de avaliar os atributos do Comandante, cuja imagem que guardo, é extremamente negativa – apático, desnorteado, um zombi. Estarei a ser injusto?

Aliás porque depois desse curto período em Bambadinca, vivi sempre em Destacamento, nunca cheguei a conhecer bem os camaradas ali colocados. Visitava o Batalhão sempre à pressa, e raramente almocei na messe…

Os meus Amigos grandes habitaram Fá e Missirá, e comigo partilharam tristezas e alegrias, mas também alguma loucura, necessária para nos sentirmos vivos…(1).

Também não privei assiduamente com o Beja Santos. Se calhar é agora que o estou a conhecer…e mesmo a tentar compreender.

Com um Abraço,
Jorge
____

(1) Do louvor que me concederam, o tal que eu ia frustrando com o Jagudi de Barcelos, consta o seguinte: “É de realçar a sua valiosa acção durante a permanência do Pelotão de Caçadores Nativos nº 63, em destacamentos isolados, onde demonstrou de forma inequívoca as suas qualidades de inteligência, chefia e inexcedível sentido de amizade mútua e de boa camaradagem”.

PS - Duas notas, uma sobre os acontecimentos de 28 de Maio de 1969 e outra sobre o Mato Cão:

(i) Tenho quase a certeza que não era o padre Poím que estava de cuecas a conversar com a mulher do Tenente. Pois, ainda em Janeiro de 1971, me visitou em Missirá… Sei que abandonou a vida eclesiástica e é enfermeiro nos Açores.

(ii) O Destacamento do Mato Cão foi inaugurado pelo Pel Caç Nat 63, já após a minha saída (em meados de 1971).

terça-feira, 1 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca.

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3).

A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole. De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19). Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá.

O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).

A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).

Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).

Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006)


Texto de Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, com a inútil especialidade de armas pesadas de infantaria, pião das nicas ou pau para toda a obra da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)(1)


- Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo! – esta terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante (2), de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca…

Eu não estava lá, não posso testemunhar para a história, nem muitos menos confirmar ou infirmar os detalhes… Não estava lá nem sou voyeurista… Mas esta foi a expressão que ouvi, alguns dias depois, da boca de soldados e milicianos de Bambadinca.

Havia um sentimento misto e contraditório, de alívio, de regozijo e de révanche, nesta expressão dos militares de Bambadinca que faziam do Pimbas e do seu amigo o bode expiatório do grande susto, do cagaço monummental, que todos apanharam nessa noite sem jamais o admitirem… É na desgraça que se vê a relação de amor-ódio dos povos pelos seus líderes, dos subordinados pelos seus chefes…

A história repetia-se, grotesca, desta vez num dos mais belos cenários da Guiné, que era o quartel de Bambadinca, inscrutado num pequeno planalto defronte de uma magnífica bolanha, e com o Geba a seus pés, tortuoso, pérfido, assassino, como uma surucucu… 

A expressão que eu ouvi na caserna – ó Pimbas, não tenhas medo! -, era para todos efeitos reveladora do baixo moral em que as NT se encontrava na Guiné, mau grau o efeito do fenómeno Spínola e do seu populismo…

Para uma grande parte dos militares, do contingente geral, e até e para muitos dos meus camaradas milicianos, ele era uma espécie de anjo justiceiro que vinha, de heli, castigar os maus (os incompetentes oficiais superiores que estavam à frente dos nossos batalhões) e encorajar o Zé Soldado, lídimo representante do bom povo português… Em breve, o BCAÇ 2852 seria decapitado pelo raio fulminante da justiça spinolista, para gaúdio da populaça…

Chovia torrencialmente nessa noite de 28 de Maio de 1969 – por ironia, uma efeméride, sempre grata aos homens do regime, embora o 28 de Maio de 1926, que instaurara Ditadura Militar, e abrira o caminho ao Estado Novo, já nada dissesse ao comum dos meus camaradas de armas, de camuflado novinho em folha, a caminho de Contuboel que ninguém sabia onde ficava…Uma efeméride que –anoteu eu – também foi comemorada, à sua maneira, pelos homens do PAIGC…

Umas horas antes tínhamos nós atravessado o Trópico de Câncer, a caminho da Guiné, a caminho de Bissau, Bambadinca, Bafatá e Contuboel…
- Fomos todos apanhados as calças na mão! – contou-me, ainda em alvoroço, um conterrâneo meu, 1º cabo telegrafista de infantaria – se não me engano - , mostrando-me um monte de cápsulas de granada de canhão sem recuo com inscrições em russo e em chinês.
- Podíamos ter morrido todos! – concluiu, hiperbólico, o meu amigo Agnelo Ferreira por cujas mãos havia passado, três meses antes, a terrível lista negra dos mortos do Che-Che, no Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereiro de 1969…

Depois da Lança Afiada, toda a gente dormia de cu para o ar: a Browning, junto à pista de aviação, não tinha munições; não havia segurança próxima nem valas de comunicação entre os abrigos; faziam-se quartos de sentinela sem arma; e até os básicos eram escalados como aquele maluco das cozinhas que costumava ver elefantes a pastar ao fundo da pista…
- Os gajos vieram em peso (talvez mais de duzentos!) retribuir-nos a visita que tínhamos feito ao Fiofioli… Por sorte, não houve mortos!

Ainda deu tempo para espreitar um dos quartos dos furriéis, e ver o céu estrelado: o forro tinha sido atingido por uma morteirada; a granada explodiu em cima de uma das camas; por sorte, o tuga que a ocupava, tinha-se posto a milhas, dois minutos antes...
- Por sorte não houve mortos… - comentava eu, em voz alta, para o furriel que ia a meu lado, quando a coluna retomou a marcha, agora em estrada asfaltada, em direcção à próxima paragem, em Bafatá, a capital da zona leste…
- O meu conterrâneo é capaz de ter razão: afinal nesta guerra só morre quem tem de morrer… - ironizava eu.
- Fala a voz do reviralho – interveio o Noronha que seguia à frente, ao lado do condutor – Mas olha lá, ó Camarada Sov, tu com essas ideias derrotistas e dissolventes aqui não vais longe – proferiu o Alferes, em tom de velada ameaça…
- Só espero que a sorte esteja do meu lado…
- Fia-te na Virgem e não corras!... O problema nem é esse: nesta guerra morre-se mais por erros nossos do que por mérito do inimigo… São as estatísticas que o dizem – acrescentou o Ranger, que se meteu na conversa.
- Pelo muito pouco que já vi, não me atreveria a subestimara assim tanto o adversário que temos pela frente – respondi eu.
- Deixa-te de tretas. Os turras não passam de uns cães rafeiros, que ladram mas não mordem… E os cães quando mordem, também se abatem…
- Fico a saber que não gostas de cães…
- Nem muito menos de barrotes queimados – finalizou o Noronha, já agastado com o rumo da
conversa… Por ironia do destino, iria ter que aprender a lidar, durante vinte e meses, com os barrotes queimados que lhe calharam em sorte...

Demagógico e racista, o Noronha aproveitou para contar a última que tinha ouvido, no QG, em Santa Luzia:
- Sabes como é que Deus fez o preto ?... Ao sétimo dia, depois de completada a obra da criação, Deus foi descansar mas, por esquecimento, deixou ao sol o barro com que tinha feito Adão… Quando acordou, e como já não tinha mais nada que fazer, entreteve-se a fazer bonecos, à imagem e semelhança do homem mas, para haver confusões, pintou-os de preto e mandou-os para a floresta onde já estavam os macacos…
- Grande cabrão! – não pude deixar de rosnar, para mim mesmo, ao ouvir o alarve do Noronha por quem, desde Santa Margarida, eu não podia nutrir qualquer simpatia…

E foi assim, aos solavancos, sentados costas contra costas no dorso de um mastodonte, que a nossa conversa prosseguiu, aqui e ali mais azeda, não tanto pelas diferenças de idiossincrasia, como sobretudo pela tensão e pelo cansaço da viagem, até chegarmos a Contuboel, à hora em que o sol raiava de vermelho a savana arbustiva e os bandos se macacos-cães, na orla da floresta, se organizavam para proteger os filhotes das ciladas do leopardo…

Fonte: (Pre)texto: Na Guiné, longe do Vietname (inédito) (Os nomes o pessoal da CCAÇ 12, meus companheiros de viagem, são fictícios.... As restantes personagens são verdadeiras: o Pimbas e o Agnelo, por exemplo).

Luís Graça (1981-2005)

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Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
1 de Agostod e 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané

(2) O 2º comandante, na altura, era o major Manuel Domingues Duarte Bispo, transferido para o Q.G., substituído pelo major Herberto Alfredo do Amaral Sampaio.