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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26150: Historiografia da presença portuguesa em África (452): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Impõe-se, antes demais, uma clarificação quanto a estas leituras que envolvem o médico Damasceno Isaac Costa. Tempos atrás, entrei na Biblioteca da Sociedade de Geografia e pedi à sua bibliotecária que verificasse na secção de Reservados se eu já tinha consultado algum documento envolvendo o nome de Damasceno Isaac Costa. E, de facto, descobri que o filho deste oferecera à Sociedade de Geografia documentação do pai, um conjunto de relatórios, começando por 1884. Fui verificar ao blogue e constatei que do relatório constante referente a 1884 fizera uma leitura um tanto abreviada. Ora, no Boletim Oficial, ano de 1886, inicia-se no mês de abril e prolonga-se até novembro, de forma intermitente, a publicação de extratos, perto do final do ano o médico começa a publicar o relatório de 1885. Tenho para mim que estas peças de Damasceno Isaac Costa, possuía o gosto da escrita, era observador com pendor para a etnografia e etnologia, que descreve minuciosamente localidades, neste caso Geba, é merecedor de uma publicação cultural, de fio a pavio de tudo quanto escreveu, é um cronista de mérito, não conheço nada de melhor referente a este período, há na sua arquitetura da escrita algo que lembra a literatura dos navegantes e viajantes que nos deixaram peças primorosas nos séculos XV, XVI e XVII. Dirijo-me a todos aqueles que têm responsabilidades nos estudos africanos de se encontrar uma forma de publicar Damasceno Isaac Costa, para que em Portugal e na Guiné-Bissau se conheça melhor o olhar clínico deste plumitivo tão arguto e entusiasta.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (10)

Mário Beja Santos

Já se disse ao leitor, e com pesar, que se esperava que o Boletim Official deste ano desse informação quanto à atividade política que iria levar à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio desse ano, nem uma só palavra. A grande surpresa passa pela publicação de um espantoso relatório assinado pelo médico Damasceno Isaac da Costa, aparentemente com referência ao ano de 1884 e que extravasa, do princípio ao fim os problemas de saúde pública. Fala sobre a história da Guiné, da importância do rio Geba, descreve a vila e fortaleza de Bissau, é minucioso a descrever o presídio de Geba, as edificações, não conheço outra exposição sobre o presídio de Geba como esta, veja-se a minucia a que chega o médico:
Próxima à residência do chefe do presídio acha-se situada uma casa térrea com dois compartimentos dos quais um funciona de secretaria do chefado e o outro serve para a arrecadação de géneros, cujas condições higiénicas são as mesmas que as das mencionadas casas.
Se em paragens longínquas se exige dos funcionários do Estado de serviços aturados, é também equitativo que lhes seja proporcionada uma habitação, que possua todos os requisitos exigidos pela lei higiénica. O cargo do chefe do presídio, que quase sempre é exercido por um alferes do Batalhão de Caçadores n.º 1, acumula os cargos de administrador, juiz, comandante militar e de destacamento, delegado fiscal e do correio, subdelegado e às vezes de professor do ensino primário, sendo obrigado no desempenho desses variados cargos a decidir questões de ordinário assaz complicadas. O cargo do juiz de povo, ao qual competiam as mesmas funções que ao de Bissau, foi aqui extinto, sendo o mesmo substituído pelo de regedor, desaparecendo desta forma para sempre os vexames e prepotências que os indivíduos investidos das funções deste cargo exerciam contra todos os habitantes do presídio, sem distinção.

A ambulância do Estado, a única que ali existe, funciona numa casa particular, que além de ser húmida não é ventilada, contribuindo muito a falta destes dois elementos para a deterioração dos medicamentos. Para escrituração, possui a ambulância três livros, destinados, um para o registo das faturas de medicamentos do depósito geral, um para a venda pública e outro para os medicamentos fornecidos às praças. Todos estes livros começaram a ser escriturados em 1880, não possuem nem termo de abertura, nem de encerramento, nem rubrica nas respetivas folhas. Por esses factos, e porque se acham escriturados irregularmente, não tem eles valor algum.

A escola régia de instrução primária funcionou ao princípio num compartimento da casa do negociante Manuel António de Barros, oferecido gratuitamente ao professor da escola, o pároco da freguesia, sendo mais tarde as rendas custeadas pelos habitantes do presídio. Atualmente a escola funciona na secretaria do chefado do presídio.
Durante a regência do pároco da freguesia, a escola foi frequentada por mais de 50 alunos, tendo sido publicamente examinados e aprovados na administração do concelho de Bissau dez alunos, ato este que raríssimas vezes tem tido lugar na Guiné.

Abastecem a povoação muitas fontes; há, porém, uma só água potável e esta mesma está situada fora do presídio, a uma légua de distância. Esta fonte denomina-se Estabeiro, e diz-se que na sua proximidade existe uma mina de ferro.
Para os usos culinários, os habitantes servem-se da água do rio, a qual é doce desde Fá no verão, e de todo o rio desde Bissau até Geba no inverno. É tradição oral, que nas proximidades do presídio existem minas de ouro e que em época em que foi abolida a escravatura foram enterradas dentro da praça e no bairro denominado S. Cruz, 40 arrobas de ouro bruto por um negociante português, que perseguido pela justiça por se entregar ao tráfico da escravatura, se internara nos sertões da Guiné para se pôr a coberto da espada da justiça.

Na povoação não há feira nem açougue, mas de tempos a tempos abate-se uma cabeça de gado vacum, que é dividida em quinhões de 8 libras, que se vendem pelo valor de 480 réis.
Acima de Geba e a dez léguas de distância está situada uma aldeia importante, já pelo seu comércio, já pela sua população, denominada Bafatá. É habitada pelos Fulas e negociantes cristãos.
O comércio interno de Geba consiste em cera, couro, marfim, amêndoa de palma, borracha, ouro e outros produtos, que todos os dias à porfia são comprados e transportados para as praças de Bissau e Bolama.
Geba, pelas suas riquíssimas produções, que lhe proporciona o seu ubérrimo solo, concorre mais que nenhum outro ponto da Guiné, para levar aos grandes centros comerciais da Europa as mesmas produções.
A prosperidade de Geba, dependendo, pois, em grande parte do presídio de Geba, convém por todos os meios elevá-lo à categoria a que tem jus, pela importância comercial e industrial.

Entre Geba e Farim existe fácil comunicação. Distanciado um presídio do outro em uma extensão de 20 léguas o trânsito de 8 é feito por terra, de Geba até o rio Tandegú e as restantes 12 em canoas, pelo rio de Farim até o mesmo rio Tandegú. Existe igualmente entre os dois presídios fácil comunicação por terra percorre-se esse trajeto em 48 horas, atravessando os territórios ocupados pelos Fulas e Biafadas. Para encurtar o trajeto fluvial de 60 léguas, que intermedeia entre Geba e Bissau, transita-se 20 por terra da praça de Geba até Fá, em 3 horas, as restantes 40 pelo rio, de Fá até Bissau, em 24 horas.

O alimento principal dos habitantes de Geba consiste em milho painço, arroz, fundo, baguexe e fruto de miséria. Os Grumetes de Geba, imitando os seus antepassados, amam a poligamia, pois a maioria deles casa-se com 7, 8 e 9 mulheres. Estas mulheres, como as dos Papéis de Bissau, são obrigadas a trabalhar incessantemente, não para sustentar, mas para auxiliar o homem e aumentar os seus haveres. É singular a forma que os Grumetes empregam nos seus casamentos. Quando um Grumete quer casar-se, pede em casamento a filha aos pais ou às mestras, e quando eles aceitam o pedido, o noivo envia-lhes 6 cabazes, contendo 60 garrafas de variadas bebidas alcoólicas, quase sempre ordinárias. Decorrido algum tempo, o noivo designa o dia em que deve ter lugar o casamento. O dia aprazado quase sempre ao obscurecer da noite, apresenta-se o noivo acompanhado de alguns convives nas proximidades da casa da noiva e aí pratica o rapto desta última auxiliado pelos ditos convives, que a conduzem para uma casa. Na ocasião em que tem lugar o rapto, o pai e os irmãos da noiva apresentam-se munidos de espingardas, espadas e cacetes para obstar ao rapto, e as mulheres e os demais parentes lamentam o facto em grandes alaridos e procuram a noiva por toda a parte com velas e archotes.

Os Fulas são destros em manejos bélicos e essa qualidade, tem-lhes feito conquistar extensos territórios, que dantes eram ocupados pelos Mandigas e Biafadas. Tanto o homem como mulheres amam excessivamente as bebidas alcoólicas. As mulheres amam tanto as moedas de prata, que longe de as trazerem ao mercado, guardam-nas em muitas dobras de pano, no fundo das suas caixas, que consistem em uns balaios de cana da Índia. As mulheres vestem panos pretos, que lhes cobrem desde a cintura até aos joelhos; trazem dependuradas nas orelhas argolas de latão ou cobre; em seus cabelos cuidadosamente entrançados trazem suspensos como um grande adorno moedas brasileiras ou francesas de 80, 120, 240, 480 e 900 réis; ainda com o mesmo fim, cingem a testa com missangas de variadas cores, e nas mãos e pés 8 a 10 manilhas de latão, e no pescoço enormes voltas de contas de âmbar.
"Para uma Fula casar-se é condição sine qua non provar pelo menos que já foi mãe três vezes, prova frisante de prodigiosa fecundidade, e por esta razão, à semelhança das raças Papel e Mandinga, a herança pela morte do pai passa aos sobrinhos maternos."

Contrato da Companhia de Cabo Verde e Cacheu pela venda de cento e quarenta e cinco escravos - documento do fundo documental do Conselho Ultramarino pertencente ao Arquivo Histórico Ultramarino.
Um pormenor de Bolama na atualidade, um passeio entre ruínas, fotografia de João Campos Rodrigues publicada no jornal Sol, em 2021, com a devida vénia
Uma fotografia de Bissau, século XIX

(continua)
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Notas do editor

Vd. post anterior de 6 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26121: Historiografia da presença portuguesa em África (450): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (9) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26126: Historiografia da presença portuguesa em África (451): o tecido económico da província em 1951, visto através dos anúncios publicados no suplemento, "dedicado ao Ultramar Português" (218 pp., no total), do "Diário Popular", de 20/10/1961

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
As considerações finais desta obra de referência que é a investigação de Maria Luísa Esteves sobre a questão do Casamansa são verdades com punhos. A França foi extremamente hábil em apoderar-se do Casamansa, as autoridades portuguesas depositavam pouco interesse na região, revelaram-se ingénuas, não cuidavam de enviar para a região administradores hábeis e foi assim, contrariando os interesses das populações, que se foram apoderando do comércio da região. Ao tempo, deram-se outras adversidades, relevo a falta de recursos financeiros, a desvalorização da mancarra e fundamentalmente o cataclismo que foi a guerra do Forreá, guerra sanguinolenta entre fulas-forros e fulas-pretos, desmantelou-se quase completamente a presença de explorações agrícolas no rio grande de Buba, o que também levou o comércio no rio Nuno a ficar valorizado. Outra grande habilidade dos franceses, como destaca Maria Luísa Esteves, foi terem visto aprovada uma convenção que impediu a nossa presença no Futa Djalon, este tornou-se um protetorado francês. Com esta delimitação de fronteiras feitas a réguas e esquadro suscitaram-se conflitos gravíssimos, a potência mais forte ficou sempre na mão de cima. E o resultado sai nas palavras da autora: "A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis." E lembrarmo-nos nós dos alertas sucessivos que Honório Pereira Barreto dirigia ao governador de Cabo Verde e até Lisboa...

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

A convecção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não contemplou os espaços verdadeiramente ocupados pelas diferentes etnias, houve para ali trabalho de régua que irá suscitar uma permanente atmosfera de conflitos que irão exigir missões das comissões luso-francesas e ajustamentos que pareciam ter ficado resolvidos ainda no tempo da monarquia que, pasme-se, se prolongaram até à década de 1930. Evitando uma penosa listagem desses conflitos, dir-se-á que eles ocorreram logo nas fronteiras luso-francesas, tendo diferentes protagonistas e lugares: o régulo de Firdu, no Casamansa, Mussá Moló, súbdito francês, invadiu territórios pertencentes ao distrito de Geba, fez destruições, atacou depois em Farim, será questão que se prolongará por anos; haverá conflitos entre fulas e mandingas e uma oficial francês em terras de Pachisse; um antigo chefe nalu, prisioneiro dos portugueses, depois de libertado fixou-se em território francês, teremos a seguir um contencioso diplomático, o comandante francês de Kandiafará atravessou a fronteira e intimidou populações, veio-se a apurar que foram chefes gentílicos da Guiné portuguesa que chamaram o oficial francês.

Temos uma missão em 1900 que se prendeu com o reconhecimento por parte dos dois países sobre a imprecisa delimitação da colónia, cujas fronteiras continuavam abertas e sujeitas a contingências que punham em perigo o domínio territorial e a respetiva influência política. É neste período que começaram a ser colocados marcos, logo na fronteira sul. Fora nomeado como encarregado da delimitação de certos trechos da fronteira o 2.º tenente da Armada, Oliveira Muzanty. O ponto de partidas das operações foi a ponta Cagete, que se revelou impraticável. Lisboa apoiava a ideia dos legados fazerem concessões recíprocas de território, obviamente que tinham de ser sancionados, ou não, os respetivos comissários. Nova missão reuniu-se em janeiro de 1901, demarcou-se a parte Sul e Sueste da fronteira entre a ponta Cagete e Dandum, os trabalhos foram interrompidos por um surto de febre amarela. Vai ter lugar nova comissão, entre 1902 e 1903. As dificuldades subsistem, basta ler o parecer da Direção-Geral do Ultramar:
“Pôr de parte a convenção de limites de 1886 dando largas concessões e poderes aos comissários não parece prudente mormente quando se sabe que na região leste da província o governo francês pode levantar dificuldades ao traçado da linha indicativa do meridiano limítrofe, visto a população do régulo principal da região ficar na esfera portuguesa; o que a França não podia supor e não verá com bons olhos. Destas circunstâncias não parece conveniente aumentar os poderes dos nossos delegados mesmo quando estão em harmonia com os dados dos comissários franceses.”

Seja como for, lança-se a proposta de trocas de território de igual superfície, no caso de interesses políticos a salvaguardar, ou para obter uma linha natural de fronteira, sempre que haja aprovação pelos respetivos governos. Temos depois uma nova missão em 1904 e 1905, a operação da colocação de marcos e pilares teve sérias dificuldades, haverá hostilidade de algumas populações, o que vai exigir a presença de efetivos militares. Só em janeiro de 1906 é que se deu por aprovada a fronteira norte.

Analisando as vicissitudes destas missões, observa a autora:
“Se atentarmos ao resultado final conseguido, não podemos deixar de considerar que se não foi favorável também não envergonhou os esforços do gabinete de Lisboa, em período politicamente instável, assoberbado por questões internas e jogando forças com uma nação poderosa e cheia de ambições colonialistas. Muito já estava perdido quando o problema se levantou, e milagre se faria se os diplomatas africanistas tivessem conseguido reaver o que há muito fora usurpado.”

Em tempo de considerações finais sobre este dossiê da questão do Casamansa, atenda-se à natureza das observações da autora:
“Os indígenas do Casamansa sempre foram afeiçoados aos portugueses e viam com relutância a presença de outros europeus, não sendo raro pedirem a sua interferência nos seus conflitos com os franceses. O plano gizado pela França englobava também o rio Nuno e era bem vasto. Para o conseguir realizar serviu-se de exploradores que souberam preparar o caminho para os seus compatriotas. Estudavam as regiões, procurando conhecer qual o seu interesse, e, enquanto intrigavam e indispunham os indígenas contra os portugueses, faziam propaganda a favor da sua pátria. Era uma política de aliciamento a que não eram estranhos os negociantes que habilmente sabiam desviar para as zonas que lhes interessavam o comércio sertanejo.
O governo português não soube ou não pôde responder a este repto. E a decadência da Guiné cada vez se acentua mais com a instalação dos franceses em Carabane e em Selho.
Não eram só os negociantes franceses os culpados da estagnação da vida económica nacional e da diminuição das receitas. Outros fatores contribuíram também: desvalorização da mancarra nos mercados europeus, fretes onerosos sobre as mercadorias e falta de recursos financeiros, pois os capitalistas não acreditavam nas possibilidades da colónia.
A abolição da escravatura agravou ainda mais a situação. Portugal ao ajudar os fulas-pretos ao sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os fulas-forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas comerciais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis.
Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região Futa Djalon, os franceses absorveram toda a vida comercial.
As duas Guinés, a francesa e a portuguesa, foram criadas sem terem em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações de fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimentos suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas.”


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa
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Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Era para mim um imperativo regressar a um ensaio de altíssima qualidade sobre uma questão que se tornará crucial para entender os termos em que os representantes portugueses assinaram em Paris a convenção luso-francesa, em 12 de maio de 1886. Maria Luísa Esteves dá conta do rol de adversidades que pesaram na ténue presença portuguesa na Guiné ao longo de séculos, confinada a fortaleza-feitorias, o assalto persistente de franceses, ingleses e holandeses para tomarem posições e quando se chegou à Restauração estávamos reduzidos a uma Senegâmbia portuguesa que em termos de litoral se aproximava às fronteiras de hoje, porque no interior aventuravámo-nos no interior até Geba, e pouco mais. E é muito agradável recordar o trabalho incansável de Honório Pereira Barreto, um dos pais da Guiné-Bissau, lamentavelmente ignorado nos dias de hoje. O último texto será dedicado aos termos da convenção luso-francesa e às sucessivas etapas da delimitação das fronteiras, processo só concluído na década de 1930.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Continuando o histórico sobre a presença portuguesa na região, a autora recorda que ao porto de Bissau afluíam os produtos e os escravos vindos das regiões do rio Geba e de outros pontos. Vai surgir a primeira fortaleza. O governador Veríssimo Carvalho da Costa obteve do régulo de Bissau licença para a construção da fortaleza, iniciou-se em 1687. Para fazer face às despesas da construção, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, no início de 1690, e estabeleceu-se a capitania-mor em Bissau em 1692. Mas o tempo não soprava de feição a favor da Guiné. O governo, ofuscado pelo brilho das riquezas do Brasil, deixava o porto de Bissau à mercê da ambição dos franceses. D. José I imprimiu um novo rumo à política ultramarina, seguiu para a Guiné a nau Nossa Senhora da Estrela e mais três navios, levavam homens e apetrechos para construir uma nova fortaleza. E a exploração da costa da Guiné foi dada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão, com obrigação de acabar as obras da fortaleza.

Em 1783, uma nova empresa vai tomar a responsabilidade do comércio, denomina-se Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde, durou pouco, foi dissolvida em 1786. É neste contexto que a autora recorre a uma caracterização feita por Teixeira da Mota como síntese do sistema económico: “Durante séculos, pontificou a ‘economia de resgate’, com feitorias e fortalezas para a proteger. O sistema de trocas constava em contas, vidros, objetos metálicos, panos e álcool trocados por escravos, marfim e oiro. Havia produtos da Europa ou das ilhas de Cabo Verde e faziam-se trocas com o comércio regional: nozes de cola, ferro e até arroz da Serra Leoa por escravos do Cacheu e do Gâmbia.” Ao findar o século XVIII, Portugal possuía espalhados pela costa da Guiné centros de tráfico negreiro com as suas feitorias-fortaleza.

Mas numa atmosfera de tanta adversidade, evitou-se a formação de mais núcleos e assim os pontos mais importantes eram Cacheu, Bissau, Geba, Ziguinchor e Farim. Este era o panorama da Guiné. E se lhe juntarmos a existência de feitorias inglesas e francesas e o contrabando feito pelos barcos americanos, temos a visão completa desta colónia ao findar o século XVIII, é um quadro de decadência que se irá agravar com a repercussão no Ultramar das lutas fratricidas (que culminarão com o fim do absolutismo miguelista).

Franceses e ingleses procuram expulsar os portugueses da região, recorde-se a ocupação de Bolama pelos ingleses. Nem a França nem a Inglaterra respeitavam os direitos de Portugal à Guiné e apenas consideravam sob a sua autoridade os pontos onde exista força militar. Este quadro sociopolítico-económico fica desenhado com o fim da escravatura.

A autora projeta agora a sua reflexão para a “luta” pela posse do Casamansa. Até 1828, volta a recordar-se, os centros de povoamento sobre domínio português eram pouquíssimos: Bissau, Geba, ilha de Bolama, Cacheu, Fá, Farim, Ziguinchor, Bolor e Bolola (Buba). Os franceses penetraram no rio Casamansa em 1828, procede-se à compra de território ao régulo de Borin, na margem esquerda do Casamansa. Nesse mesmo ano, um negociante francês instala-se na Ilha dos Mosquitos ou de Carabane, na embocadura do Casamansa. A diplomacia portuguesa reage em Paris, protesto inútil, as usurpações irão continuar.

Honório Pereira Barreto distingue-se pela perspicaz e contumaz política de compras do território para Portugal. Em 1836, por via diplomática, chega a informação que os franceses estavam a organizar companhias para irem estabelecer feitorias na Guiné, acima de Ziguinchor, e que tencionavam enviar tropa para fazerem frente a qualquer ação dos portugueses. No ano seguinte, os franceses instalam-se na ponta de Jemberém, e, mais tarde, na aldeia mandinga de Selho. Honório Pereira Barreto protesta junto das autoridades francesas, envia cartas ao governador em Cabo Verde. Aspeto curioso, em 1838, D. Maria II ordena a Honório Pereira Barreto a construção de dois forte, um no mesmo braço do rio onde os franceses em 1828 tinham fundado um estabelecimento, e outro acima de Selho. Era uma medida de grande alcance, mas não vieram os meios financeiros necessários.

No meio de trocas diplomáticas sulfúreas, com as autoridades francesas a fazer ouvidos de mercador, a diplomacia francesa monta uma fantasia: que desde o século XVI está presente no Senegal, que há mais de dois séculos que exerce direitos de posse, comércio e soberania desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Chega-se ao desplante de dizer e escrever que os normandos tinham chegado à Guiné antes dos portugueses. E segue-se um período em que não há correspondência entre Lisboa e Paris. Depois, veio a reação de Lisboa com a enumeração exaustiva das razões históricas da presença portuguesa na chamada Senegâmbia, Paris não responde a estas notas. É neste contexto completamente desfavorável que o Visconde de Santarém enviou, em 1841, uma cópia da sua Memoria sobre a prioridade dos Descubrimentos dos Portugueses na costa d’Africa occidental, acrescentando-lhe alguns capítulos no ano seguinte. O embaixador em Paris, Visconde da Carreira, reforça a argumentação invocada pelo Visconde de Santarém com documentos existentes no Museu Britânico, todos eles elucidativos que monarcas franceses, ingleses e espanhóis aceitavam inequivocamente a soberania portuguesa na região. Os políticos franceses resistem, tergiversem, demoram a responder, Carreira continua na sua luta sem se dar por vencido e continua a enviar notas a expor ao governo francês as razões de Portugal. Não obtém resposta. O ponto curioso da artimanha usada pelos políticos franceses, quando recebiam o embaixador português, era a de assegurar-lhe que o governo de Paris não pretendia a soberania nem a exclusividade do comércio de costa. Por mais argumentos válidos que Lisboa apresentasse, por mais fortes que fossem as suas razões, nada abalava nem desviava o caminho que fora traçado pela ambição da França, que, como a Inglaterra, procurava alargar a sua influência sobre regiões que não lhe pertenciam, nunca atendendo a direitos históricos. Era o começo de uma nova política comercial (imperial) em que predominava o princípio da ocupação efetiva que virá a ser consagrado na conferência de Berlim.

Voltemos a Honório Pereira Barreto. Enquanto se está a dar este combate diplomático, o governador, quase na sombra e sem alarde, procura por meio de convenções com chefes indígenas Banhuns e Felupes, trazer novos territórios para a Coroa, à volta de Ziguinchor. Entre 1844 e 1845, firma em seu nome pessoal e à sua custa doze contratos de compra de terrenos. Em 11 de abril de 1844 foram celebrados contratos entre ele e os naturais de Jagubel e Afinhame.

Mas a este tempo já se vive numa atmosfera de tensões na região do Casamansa, assim vai acontecer em Selho e Jagubel, procuram-se todos os expedientes para impedir o comércio nesta área do Casamansa. A autora descreve ao detalhe a ação deste notável governador, os tratados celebrados com os chefes gentílicos que asseguravam que aos portugueses cabia o exclusivo direito de fazerem estabelecimentos e alfândegas e que a navegação e o comércio estrangeiro ficavam sujeitos à fiscalização portuguesa. De igual modo, é meticulosa a apresentar a ação portuguesa na Guiné, dado conta dos diferentes incidentes graves no Casamansa (o caso da ponta de Adiana, o caso Laglaise, o incidente de M’Bering). E assim, nos vamos encaminhando para os termos da convenção de 12 de maio de 1886, e por último teremos as sucessivas fases para determinar as fronteiras da Guiné.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de outubro de 2024 > lGuiné 61/74 - P26036: Notas de leitura (1734): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26035: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte II e última) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III


Belmiro Tavares

Vamos transcrever, agora, um texto da autoria do nosso médico, Alfredo Barata, onde ele relata as peripécias de duas viagens que ele fez a Farim, em dias consecutivos, para “apanhar” o avião que o levaria a Bissau; dali, seguiria para Lisboa em gozo de merecidas férias.
Apreciemos a sua escrita e o conteúdo!



A MINHA IDA À GUERRA

“Para não ter de dormir numa cama estranha, num ambiente estranho, numa terra estranha, aproveitei o transporte da LDM; resolvi deixar a bagagem em Farim e voltar, rio abaixo, até Binta. A viagem de regresso com os mesmos companheiros foi mais calma. Entardecia. A lancha empurrava as águas paradas, levantando com o seu barulho bandos de pássaros e macacos que, na margem, escolhiam poiso para aquela noite. No dia seguinte, de madrugada, embarquei novamente a caminho de Farim, Bissau e Metrópole. Desta vez ia só, sem o bulício da véspera. O dia começava a amanhecer, cinzento e húmido; mais tarde viria o sol brilhante e quente. Agora pairava uma neblina ténue junto ao tarrafo que escondia os ramos mais altos que, pouco a pouco, se ia desvanecendo com o romper da claridade. No interior do barco, a tripulação tomava o seu café. Em cima, o piloto olhava, atento, o rio pela vigia largamente aberta na cabine blindada, cortando curvas para encurtar caminho.

Encostado à torre da peça desguarnecida, eu passava os olhos pelas margens do rio sempre belo, pensando comigo mesmo: – Aqui é a foz do Caúr, mais adiante Tambato Mandinga. Mas há aqui uma aberta nas árvores das margens… Se não me engano… Que deixa ver as moranças da tabanca… Sim, é ali. (Já lá tínhamos chegado e, com efeito, era ali). De repente, ali mesmo, um clarão reluz, e outro e mais outro.

Antes que me pudesse aperceber do sucedido, caí, não sei se obedecendo ao instintivo "deitar" das instruções de combate, se por ter sentido uma pancada quente e indolor no flanco esquerdo que me puxava para o chão. As ideias de baço, de hemorragia, de esplenectomia passaram no espírito, desapareceram rapidamente; logo verifiquei que tudo não passava de um ferimento muscular parietal.

Entretanto a lancha virara de bordo, a fim de conseguir melhor posição de tiro. O artilheiro subiu ao seu posto de combate e com umas rajadas potentes de calibre de 20 mm "calou" o tiroteio inimigo. Aproveitei para acenar para o local onde deveriam estar os terroristas para que eles, quando fizessem o relatório da "operação", não dissessem que tinham abatido um alferes da tropa de Binta. A lancha voltou ao seu primeiro rumo e continuou, Cacheu acima, a caminho de Farim. Fez-se o balanço da situação. Quando souberam que tinha sido atingido de raspão, os homens da lancha excederam-se em cuidados pondo ao dispor o material de enfermagem de bordo e oferecendo café quente que aceitei com agrado. Estava em jejum e à minha volta percebia um estranho cheiro a carne assada que depois, me apercebi que provinha das minhas feridas. Discutia-se o ataque; uns diziam que tínhamos sido atingidos com uma bazuca, outros, como eu, sustentavam que os rebentamentos ouvidos não passavam de granadas de mão lançadas da margem… para "ronco". Os malandros tinham visto um oficial, a 80 metros, de pé, isolado na cobertura da lancha, feito "pato" com as mãos nos quadris e esperaram que o alvo ficasse no enfiamento de tiro para abrir fogo.

Pouco depois desembarquei em Farim. O "Dakota" já tinha chegado e, quando alcancei o Comando, já o avião se preparava para descolar. Ainda não era dessa vez que ia para Bissau. Teria de esperar mais um dia, talvez dois, e, à noite, dormi numa cama estranha, num ambiente estranho e numa terra estranha”.


********************

Vamos agora narrar uma mão cheia de acontecimentos da sua vida que são – pensamos – dignos de registo e devem ser do conhecimento dos vindouros. Vamos começar, precisamente, pelo mais antigo.

Após o seu nascimento, o senhor seu pai, deslocou-se à Conservatória do Registo Civil para proceder ao registo do seu nascimento. Após ligeira conversa, o funcionário público, ciente do seu papel, informou que ao neófito não podiam ser atribuídos quatro sobrenomes:
- Mas está certo! – respondeu o pai da criança, acrescentando: - O Meu filho chama-se Alfredo Roque e tem apenas três sobrenomes – Gameiro e Martins Barata.

E elaborou-se o registo!

O nosso bom João Semana não seguiu uma das carreiras dos seus pais, aliás como fez o mano mais velho que não descarrilou, seguindo arquitetura.

Graças a Deus! O nosso mui ilustre amigo, Dr. Alfredo Barata, não seguiu a tradição. Assim, a Medicina Portuguesa e a nossa CCaç 675 ganharam um grande médico sempre pronto a dar tudo pelos seus feridos e doentes.

Concluído o curso de medicina já casado e aprovado no COM (Curso de Oficiais Milicianos) em um dos primeiros dias de maio de 1964, apresentou-se, no RI 16, em Évora, sendo logo incorporado na CCaç 675. No dia 8 de maio, muito compenetrado, partiu connosco, no navio Uíge, rumo à Guiné longínqua e… maleitosa.

Em meados de 1965 apareceu, de surpresa, na vila de Farim, uma senhora loira que, muito confusa e perdida, no meio daquele emaranhado de itinerários variados, procurava o caminho mais curto que a conduzisse em segurança, até à aldeia mais badalada da Guiné. Talvez se falasse tanto de Guilege como de Binta mas por motivos bem diversos. Recorreu aos serviços do BCav 490 que, logo, enviaram uma mensagem via rádio a anunciar a presença de tão ilustre senhora, naquela vila. Tratava-se, apenas, da mui dedicada esposa do nosso preclaríssimo amigo, o dr. M. Barata. Como, ali, (em Farim) não havia transportes públicos (e privados também não) uma coluna de viaturas militares, partiu, imediatamente, para trazer, até Binta, a mui digna esposa do nosso conceituado médico.

Podemos afirmar que todos, sem exceção, deram o seu melhor para que aquelas férias (algo forçadas) fossem, minimamente, agradáveis; ficou hospedada, com o marido, num hotel 5 estrelas super e ninguém ousou cobrar-lhes qualquer verba pela luxuosa estada – serviço distinto… à moda da CCaç 675.

Lamentamos! Mas nem sempre foi possível evitar à ilustre veraneante um ou outro momento de certa confusão ou até aflição mas ela não se preocupou porque… o seu marido estava por perto. Era quanto lhe bastava!

O nosso médico gostava de se divertir com certas brincadeiras, mesmo que “picantes” e até com certas traquinices, mas, neste caso, apenas com graduados (oficiais). Que o diga o alferes Tavares! Este oficial sofreu de uma otite bilateral; o nosso bom Galeno tratou dele com lavagens que chegaram a ser bidiárias. Em uma destas lavagens, o dr. Barata usou, propositadamente, água fria. O Tavares sentiu umas tonturas inclementes e o Dr. Barata ria que nem um desalmado. Logo ele pediu desculpa ao seu paciente e continuaram a ser bons amigos, como teria de ser. Ele terá herdado esta veia “cómica” ou brincalhona da senhora, sua mãe.

Ele contou que na primeira vez que levou a namorada (a tal jovem loura) a jantar em casa dos seus pais, a senhora, sua mãe, serviu a sopa a todos mas, no prato da futura nora, colocou uma barata. A jovem candidata a esposa do nosso médico nada disse; pensava como haveria de sair daquela embrulhada. A senhora, mãe do nosso médico, apercebendo-se da enorme confusão que iria naquela cabecinha loira retirou o prato da sua frente e comentou:
- Apenas pretendia averiguar se gostava mesmo de Baratas!

O nosso excelente médico gostava de disputar uma sempre agradável partida de xadrez; acontece que na CCaç 675, apenas o Moura, o primeiro-cabo operador cripto, n.º 2542 (vulgo Cifra) tinha arcaboiço para o enfrentar mas… não dispunha tempos livres para aquele desporto muito especial. Aliás, ele ainda hoje participa em campeonatos de xadrês lá na sua terra natal.

O doutor Barata decidiu” viciar” o Tavares e ensinou-lhe as regras básicas daquele desporto; durante cada jogo, ele corrigia os erros e sugeria a melhor saída. Era um bom ensinador, o dr. Barata! Um belo dia, iniciaram a partida e, pouco depois, precisamente, ao terceiro lance, o Tavares alertou, contente:
- Xeque ao teu rei!
O bom do nosso médico olhou, fixamente, para o tabuleiro e, volvidos uns largos segundos perguntou escandalizado:
- Sabes o que fizeste?
- Dei xeque ao rei! - Respondeu o Tavares, eufórico.
- Não deste um xeque qualquer! Tu deste xeque-mate! Como ocorreu ao terceiro lance, chama-se “xeque Pastor”! Nunca pensei que tal pudesse acontecer-me, principalmente, com um principiante! Isto não pode repetir-se!

O Tavares nunca tinha ouvido falar em “xeque Pastor” mas… ficou entusiasmado. Com certa frequência, brindava-o com este dito:
- Olha que eu dou-te um Xeque Pastor!
Ele respondia:
- Isso nunca mais acontecerá!

Mas foram sempre bons amigos e durante a viagem de regresso, a bordo do já velhinho Uíge, passaram largas horas com o tabuleiro entre eles.

Em 1969, o Tavares pediu ao dr. Barata que o ajudasse a escrever os envelopes para a convocatória da confraternização daquele ano. Como ele tinha uma vida bastante ocupada, sugeriu que o Tavares se deslocasse ao Instituo do Cancro, durante certa noite, porque ele estava lá de serviço. Escritos os envelopes, lá mataram o vício jogando umas partidas de xadrez. Era já alta madrugada quando o Tavares saiu daquele Instituto. Foi, cremos, a última vez que se digladiaram, um de cada lado dum tabuleiro de xadrez. Nesta época, o Tavares já não era o tal principiante; no Colégio Militar havia muitos e bons xadrezistas.

Ainda em Binta, aquando do aparecimento da luz elétrica (finais de setembro de 65) cada um comprou, em Farim, uma ventoinha. Ambos defendiam que a sua soprava mais e melhor que a do outro. Para solucionar o diferendo “inventaram” um anemómetro “made in Binta”: um fio pendurado no teto da sala, com as ventoinhas frente a frente e à mesma distância do fio (medições com régua e esquadro) ligavam-nas, e em simultâneo mas… o diferendo continuava.
Alguém passou rente à janela e, ao aperceber-se daquele aparato, terá comentado:
- Coitados! Até são bons rapazes! Mas… já estão “apanhados do clima”! Se o nosso capitão não prepara para eles uma daquelas duras batidas, lá para as bandas de Sanjalo, aqueles dois ainda vão parar ao HM 241, em Bissau. Acabarão a comissão… antes do tempo!

Apesar de tudo, não chegaram a uma conclusão digna.
Decidiram, então, defender a “honra das ventoinhas” com cortantes espadas mandingas, meio ferrugentas, na mão. Alguns diriam que foi apenas para a fotografia; mas existem mesmo fotografias que comprovam que houve luta renhida mas… inconclusiva; no entanto, esqueceram-se de nomear “padrinhos”! Ficou provado que nenhum deles tinha queda para a luta com espadas… tão ferrugentas.

Um dia, o dr. Barata teve de assistir a um parto difícil; uma jovem africana (etnia mandinga) encontrava-se em sérias dificuldades para dar à luz, pela primeira vez. Dentro da “morança”, o dr. Barata tinha, à sua direita, o fur. mil. enf. Oliveira; à sua esquerda, encontrava-se uma “parteira” nativa, pronta a cortar o cordão umbilical com um ferruginoso facalhão que, só por si, infundia profundo respeito. A certa altura, o Oliveira segredou ao seu chefe:
- A sua “colega” está com ar compenetrado! Mas o seu “bisturi” mete respeito!

Todos terão rezado cada um ao seu Deus para que tudo corresse bem! Mãe e filho salvaram-se! Era o mais importante! Binta precisava de aumentar a população ativa!

O soldado n.º 2227, Henrique Cambalacho (mais conhecido por Sorna perdido e achado… estava a dormir) era um dos nossos guarda-redes. Um dia, ao fazer uma “espantosa” defesa, a bola bateu-lhe com força na cara, ou ele bateu com o pescoço no poste. Foi logo tratado e mandaram-no repousar… não fosse ele o Sorna. Acordou com grandes dificuldades para respirar e gritou por ajuda. Ninguém lhe deu troco, porque se tratava do “Sorna”. Logo, alguém se apercebeu que a cavidade bocal era demasiado pequena para uma tão grande língua. Foi levado, à pressa, para a enfermaria. O dr. Barata mal teve tempo de o submeter a uma traqueotomia… de emergência. Safou-se, à tangente!

O dr. Barata, apoiado por uns tantos voluntários, foi o responsável pelo projeto (não proviesse ele de uma família de arquitetos) e construção de um posto de socorros para os nativos, nossos vizinhos e um parque infantil para a miudagem de Binta. Entretanto, já vinha a preparar um grupo de jovens africanos que sentiam ganas de ser enfermeiros. Quando entendeu que estavam devidamente preparados, autorizou-os a dar “picas”… ao pessoal da tabanca. Inicialmente, eram supervisionados pelos nossos enfermeiros mas, em breve, passaram a trabalhar sozinhos. Sempre que se deparavam com casos mais intrincados… “passavam a bola” à nossa equipa de eficazes enfermeiros.

Há tempos, já acamado, segredou-nos que gostava de voltar à Guiné com a CCaç 675 para reviver aqueles tempos gloriosos, os anos de 1964/66.

Tinha tantas e tão admiráveis qualidades, o nosso médico! Até era saudosista, também!

E por aqui nos quedamos! Temos pressa de “chegar” aos nossos companheiros de todas as horas. Esperamos que ninguém esqueça que a Gloriosa CCaç 675 está acima de tudo e de todos.

Ninguém a esquece, a CCaç 675 merece!

Nota: Acrescentamos aqui as duas “baixas” ocorridas este ano:
- Sold. at. 2328, Joaquim Ferreira Martins, natural de Santo Tirso;
- Sol. eng. Joaquim Nunes Sequeira, natural de Sintra.

Agosto de 2024
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Nota do editor

Vd. post de 10 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26026: Historiografia da presença portuguesa em África (446): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, os primeiros meses de 1884 (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
É notório que o Governador Pedro Ignácio de Gouveia não deixa os seus créditos por mãos alheias, manda publicar os relatórios dos administradores do concelho, parecendo que não temos aqui matéria que o investigador não pode descurar, por exemplo, no Boletim n.º 9, de 1 de março, o administrador de Cacheu fala de Ziguinchor e das suas carências, é preciso um quartel, o alferes que preside ao presídio de Geba lembra que tem 40 soldados, força ridícula para resistir à imensa força dos Fulas; o régulo Dembel considera que os Mandingas são seus escravos; publicam-se, para o que der e vier os contratos celebrados por Honório Pereira Barreto, fundamentalmente sobre a região de Bolor, é clara a preocupação do Governador de querer ver legitimados os contratos anteriormente celebrados, e neste caso aqueles que estão numa área a ser disputada pela França, veremos mais adiante outros tratados de cessão, como os de Jufunco e a convenção feita pelos Felupes de Varela. O que acontece é que o Governador é firme no acatamento à lei, está profundamente atento às sequelas da guerra do Forreá, mas tem falta de meios, humanos e financeiros.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, os primeiros meses de 1884 (5)


Mário Beja Santos

Estamos no último ano da governação de Pedro Ignácio de Gouveia, este distinto oficial da Armada procura estrenuamente gerar progresso e pacificar os permanentes conflitos interétnicos, esforça-se por nomear para postos sensíveis pessoas dedicadas e competentes. Vamos encontrar, infelizmente com pouca frequência relatos que nos permitem ficar com a imagem de uma determinada região, é o caso do relatório da responsabilidade do administrador do concelho de Cacheu publicado no Boletim Official n.º 9, de 1 de março.

Vejamos alguns parágrafos elucidativos:
“Falando das condições especiais sobre a povoação de Cacheu, dirá que está assente em terreno acessível e cercada de charcos e terrenos pantanosos e de uma praia lodosa; todavia, é certo que passa por uma das mais salubres da província. Próximo a ela vegeta uma imensa floresta, formada de diversas árvores frondosas de grandes dimensões, e frutíferas, oferecendo uma perspetiva verdadeiramente aprazível. Durante a quadra pluviosa do ano, formam, no interior e nas proximidades da vila, tantos pântanos acidentais que se torna difícil o trânsito.
Pelo muito que tenho permanecido nesta vila, diligenciei quanto pude para ver se combatia parte dos inconvenientes apontados já mandando abrir regos para dar saída à água, já aterrando as covas e as partes mais baixas e, finalmente, fazer empedrar alguns que faziam parte de passagens mais frequentes. O largo do quartel, era um terreno irregular e, junto a esse edifício, formava-se acidentalmente um grande pântano, o interior do referido quartel tornava-se um receptáculo de humidade. O dito terreno foi desbastado, aterrado o pântano, nivelado e bem batido com malhos próprios para aquele fim. No interior da vila vêem-se alguns entulhos amontoados, e prédios em ruína. As casas são, na maior parte, cobertas com capim, as ruas tortuosas, formando labirintos, não havendo por enquanto possibilidade de as meter em simetria.”


Irá fazer referência ao estado dos edifícios, à saúde pública, ao comércio e finanças e deixará uma palavra sobre Farim e Ziguinchor. O Governo tinha dois edifícios no concelho, uma igreja que carece de ser melhorada; o estado sanitário seria inteiramente bom, se não fosse o sarampo que apareceu nesta vila, procedia-se então à reparação do quartel militar, o comércio decorria satisfatoriamente, verificava-se atraso de pagamentos das coletas em dívida. Refere-se a Farim desta maneira: “Torna-se de absoluta necessidade que neste presídio seja edificado um quartel militar para alojamento da força de guarnição; aludindo a Ziguinchor, previa-se a edificação de um quartel." Assina Sérgio Leitão de Mello.

E logo a seguir vem uma informação do presídio de Geba, é seu chefe o alferes Salomão José Guerreiro, que pede que seja informado o Governador de que foram batidos os mouros em Bigene, tendo os Fulas incendiado a tabanca, e dizendo o seguinte:
“Decerto este acontecimento deve trazer-nos graves consequências, começando já os seus efeitos, pois que hoje de manhã o régulo Dembel mandou um seu emissário ao juiz do povo a fim de que reunisse todos os Mandingas de Bigene que se achavam na praça porque eram seus escravos. Como é meu dever, quero opor-me a um tom bárbaro desígnio, por isso que, seja quem for que se venha abrigar sob a nossa bandeira, ninguém tem sobre ela poderes alguns; porém, a força de que disponho é diminutíssima (40 soldados) para resistir à imensa força dos Fulas; é por isso que eu rogo com instância e o mais depressa possível que seja fornecida a força de que puder por alguns dias dispor o Batalhão de Caçadores n.º 1, vindo com ela o alferes Geraldes, se Sua Excelência, o Governador, o achar conveniente. Sua Excelência, conhecedor como é do caráter traiçoeiro destes negros, não deixa decerto de atender ao que exponho.”

No Boletim Official n.º 10, de 8 de março, o administrador Sérgio Leitão de Mello volta à carga, faz alusão ao relatório do ano anterior, de que aqui se faz referência e diz, ter recebido uma participação do chefe do presídio de Farim.
Reza o seguinte:
“No território de Farim estão negociantes saídos de pontos estrangeiros com fazendas e mercadorias taxadas na pauta aduaneira desta província e pelas posturas municipais deste concelho, circunstância que, além de ser uma fraude, importa que as referidas fazendas são postas à venda por preços que não podem ser competidos pelos negociantes do presídio. Torna-se obrigatório para cada um dos administradores, como autoridades subalternas, o dever de estudar dentro dos limites da sua jurisdição, as medidas profícuas, tendentes a evitar qualquer mal ou contrariedade e comunicar ao chefe superior o seu pensamento. Temos de ponderar a validade da força militar, de grande utilidade para completar a estabilidade, com ela o sossego da província.

Precisamos adotar e pôr em execução outras medidas de superior alcance, tendentes a suplantar a série de inconvenientes que a incúria deixou arreigar. Se a posse e domínio do rio de Casamansa se não decide, precisamos ocupar: ao litoral a ilha que demorou a infeliz povoação de Bolor de tristíssimas recordações, entre os rios de Casamansa e S. Domingos, e na margem esquerda deste, a antiga povoação de Mata de Putama, denominado Fuladu, povoação gentílica, acima de Farim, dez a doze léguas aproximadamente à beira do rio deste nome. Estas ocupações seriam de reconhecida vantagem.”

E tece ainda mais considerações sobre a afluência comercial, o transporte de mercadorias e produtos coloniais, tudo decorrente das ocupações que ele propõe. Como se sabe, estas preocupações vão desaparecer com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a região de Ziguinchor passará a possessão francesa.

O Boletim n.º 15, de 12 de abril, insere a cópia da convenção feita entre o Governador de Cacheu e dependências e os régulos de Bolor, recorde-se que Honório Pereira Barreto faleceu em 1859, mas temos de atender à data desta convenção que é de 1853. Refere-se a data, 18 de fevereiro desse ano, de 1853, quem esteve presente, e chega-se ao texto:
“Os régulos de Bolor, por si e por seus possessores cedem à nação portuguesa o terreno denominado Eguel; os régulos obrigam-se a não ceder, vender ou trocar parte alguma do seu território com outra qualquer nação que não seja a portuguesa; para evitar qualquer abuso, os régulos de Bolor obrigam-se a impedir que sejam enviadas para o interior, quer por terra quer por mar, fazendas em indivíduos que não sejam de Cacheu ou a quem o Governo de Cacheu não der licença expressa; não será tolerada a navegação estrangeira no esteiro que comunica com o Casamansa, o que só é permitido às embarcações de Cacheu ou que vierem com o passe do Governo de Cacheu; o litoral de Bolor é considerado português para todos os efeitos, porém, o Governo português não poderá pôr embaraço ou ónus algum sobre a navegação e comércio dos habitantes de Bolor e dos povos gentios com quem o mesmo Bolor tem relações comerciais; os régulos de Bolor obrigam-se a defender o Governo português de qualquer ataque que lhe for feito; o Governador obriga-se a pagar anualmente a pensão seguinte: 6 barras de ferro, 6 frascos de pólvora e 5 galões (8 frascos de aguardente) que há de ser divida por ambos os régulos; os régulos de Bolor obrigam-se a prestar todo o socorro que for requisitado pelos navios que encalharem na barra; o Governador obriga-se a pagar duas barras de ferro à canoa que levar a Cacheu a notícia de algum naufrágio, e a dar alguma gratificação ao régulo ou régulos que de boa vontade se prestarem aos socorros exigidos."
Seguem-se as assinaturas.

O Boletim seguinte, o 16, com data de 19 de abril, é uma outra cópia alusiva à aquisição da praça de Bolor, tem a data de 8 de janeiro de 1835, é processo que teve na liderança Honório Pereira Barreto, vejamos os traços essenciais:
"O rei de Bolor cede à rainha de Portugal, a si e seus descendentes, para sempre, e sem restrição alguma, todo o território denominado Baluarte, servindo de limite o rio que circunda o dito terreno; todo o navio que negociar no território de Bolor será obrigado a pagar na alfândega portuguesa os direitos das fazendas vendidas, de modo que se pratica em colónias portuguesas; todas as vezes que no território de Bolor se acharem a vender em terra fazendas aos súbditos portugueses não será permitida a qualquer nação estrangeira desembarcar em terra suas fazendas, só assim poderão negociar a bordo da embarcação; nenhum navio português pagará daixa (imposto) no porto de Bolor, mas todo o navio estrangeiro pagará ao rei de Bolor uma barra de ferro, um frasco de pólvora e dois frascos de aguardente; o Governo português pagará todos os anos nos mês de janeiro, ao rei de Bolor, quatro barras de ferro, quatro frascos de pólvora e oito frascos de aguardente; a praça portuguesa defenderá com o seu fôlego o território de Bolor, de qualquer nação inimiga que a queira atacar, e o rei de Bolor também se obriga a ajudar a defender o território português, quando este seja atacado pelo inimigo interno ou externo; o Governo da praça castigará severamente todo e qualquer indivíduo português ou estrangeiro que fizer algum atentado aos habitantes de Bolor; fugindo qualquer pessoa da praça para o chão de Bolor, o rei será obrigado a entregá-la; os habitantes do Ponto do Baluarte não poderão ir a outro território."
Seguem-se as assinaturas.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
A Fortaleza de Cacheu e a estátua mutilada de Honório Pereira Barreto
Imagem antiga de Ziguinchor, já possessão francesa

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 2 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26001: Historiografia da presença portuguesa em África (445): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, últimos meses de 1883 (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25980: Historiografia da presença portuguesa em África (444): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Estamos em 1883, o Governador Pedro Ignácio de Gouveia revela-se um homem de mão cheia, continua o programa de concessões de terreno, o exemplo que aqui se cita vem do chão manjaco, chovem os regulamentos e os regimentos, pretende-se instituir uma biblioteca, o governador tem mão pesada para capitães delituoso, pensa-se no embelezamento e na higiene de Bolama e arredores, o comandante militar de Bissau vai até à ilha de Jeta celebrar tratado com o régulo das Ilhetas, é um documento de grande valor, de que aqui se deixa uma citação, e o alferes Francisco Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba, face ao rapto de umas bajudas em S. Belchior, mete-se ao caminho com civis até ao Indornal, estamos em 1883, vamos vê-lo percorrer a região do Casamansa, passou por terras onde lhe pediram para ele se despir, nunca tinham visto um ser humano de pele branca. É texto que já publicámos no blogue, bem como a sua sequência, um texto não menos notável de Pedro Ignácio de Gouveia para o Ministro da Marinha e do Ultramar.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3)


Mário Beja Santos

1883 revela-se um ano de profusa legislação, como se exemplifica: regulamento das alfândegas da província da Guiné Portuguesa; regimento para as delegações da junta da Fazenda da província da Guiné; regulamente para o serviço marítimo da Guiné Portuguesa; regulamento do Ministério Público nos tribunais militares. O Governador é Pedro Ignácio de Gouveia, logo no Boletim Oficial n.º 1, de 6 de janeiro, chama a atenção a Nota do degredado chegado a esta província em 17 de dezembro de 1882, vindo da província de Cabo Verde no vapor Angola: Lourenço Rodrigues d’Almeida, condenado a trabalhos públicos por toda a vida, por acórdão da Relação de Lisboa por crime de homicídio voluntário. No Boletim seguinte, de 13 de janeiro, chama a atenção o pedido de conceção no rio denominado Mampatas, no território manjaco e o Governador “hei por conveniente, com o voto do Conselho do Governo, conceder 500 hectares de terreno a Ernesto Gourdau em cada um dos pontos seguintes: Pelundo, Babaque, Padim, Tamé, Canhobé, Mata dos Elefantes, Cajegut, Tumatte e Palufe, sendo a última na embocadura do rio dos Brames".

Não menos curiosa é a publicação neste mesmo Boletim Oficial n.º 2 a necessidade de criar uma biblioteca, o texto de Pedro Ignácio de Gouveia é de uma enorme elegância:
“Sendo de reconhecida vantagem e conveniência a instituição de uma biblioteca, para desenvolvimento intelectual de todos, e em que cada um possa compulsar os diferentes autores para aumentar os seus conhecimentos, desenvolvendo a sua instrução.
Sendo certo que a prosperidade, riqueza e bem-estar social é função de estado intelectual dos seus habitantes; e tendo em vista, que na classe civilizada dos habitantes da província, se encontra, em regra, o gérmen da aplicação que apesar dos poucos recursos que alguns dispõe procuram cultivar o espírito nas horas de ócio que as suas ocupações lhes deixam;
Considerando que se pode assim mais facilmente desenvolver o estudo, esse campo vasto onde a inteligência não encontra limites tangíveis, e pelo qual o homem pode crer na sua proficuidade, pela utilidade de que é alvo, e pelos benefícios que a seus concidadãos pode prestar, pelo derramamento de luz que só a cultura intelectual pode dar, etc. etc. Hei por conveniente nomear uma comissão para ver qual a maneira possível de instituir uma biblioteca.”
Nesta composição figurava o vigário-geral da Guiné Marcelino Marques de Barros.

Era visível que o novo Governador vinha disposto a cortar a direito, no despacho n.º 1 emitido no quartel-geral em Bolama, em 13 de janeiro, dava-se a saber que foram considerados presos para conselho de guerra os capitães Pedro Moreira da Fonseca e Boaventura Ribeiro da Fonseca. Falece em Buba na noite de 13 o tenente do batalhão de caçadores n.º 1 José Joaquim Sertório de Almeida, seguia-se uma alocução falando num crime hediondo, o tenente fora assassinado quando rondava as sentinelas postadas na praça de Buba, assassinado por um soldado, caso que enodoava o Exército; fora exonerado o capitão Caetano Filipe de Sousa, que era comandante militar e administrador do concelho de Buba; e quanto à prisão dos dois capitães, dizia-se que não tinham recebido a prisão imposta com respeito e acatamento devido, cantando até depois de recolher ao quarto que lhes servia de prisão, pelo que lhe fora agravada a pena com a proibição de receber visitas, sofreram uma prisão rigorosa de 30 dias.

No Boletim n.º 19, de 12 de maio, nova medida enérgica: “Tendo chegado ao meu conhecimento um ofício do comandante militar de Cacheu em que participa que o chefe do presídio de Farim, Luiz Xavier Monteiro tem praticado actos que podem considerar-se criminosos, a serem verdadeiros; hei por conveniente, em harmonia com o código administrativo suspender do exercício de funções e vencimentos ao mencionado chefe, devendo permanecer em Cacheu sob a vigilância da autoridade local enquanto se procede à sindicância que nesta data lhe é mandada instaurar.”

Passando agora para o Boletim n.º 22, de 2 de junho, vem publicado um interessantíssimo relatório assinado pelo comandante militar de Bissau, Carlos Maria de Souza Ferreira Simões, que foi celebrar um tratado de paz com um régulo das Ilhetas, ilha de Jeta, Adju Pumol. É texto extenso, aqui fica uma passagem:
“Disse finalmente o régulo Adju Pumol que as provas de confiança e consideração que acabava de receber do Governo português enviando aos seus domínios um delegado seu para tratar com ele e com o seu povo, lhe impunha o dever de ser sempre grato e leal aos portugueses e de lhes prestar todo o auxílio de que pode expor sempre que lhe por qualquer forma se ofereça para isso ocasião. Terminado o discurso, convidei o régulo para ir connosco a bordo da canhoneira Guiné, convite que ele aceitou sem hesitação, a despeito de algumas manifestações em contrário que involuntariamente deixaram perceber dois ou três dos seus grandes, e principalmente uma das suas mulheres, que chegou a segurá-lo por um dos braços para o não deixar ir, e à qual ele disse que ia porque tinha confiança nos portugueses e se morresse era apenas uma vida que se perdia. Acompanharam-no um filho mais velho e um dos grandes.

Chegado a bordo, o comandante foi mostrar-lhe o navio, pelo que ele se sentiu muito reconhecido, examinando tudo com muita atenção e fazendo algumas perguntas. Ceou connosco, e quando depois da ceia lhe perguntámos se queria ir para terra ou ficar a bordo, respondeu que preferia ficar a bordo, e ir para terra de madrugada. Dormiu sossegadamente num dos almofadões da câmara do navio.”

No Boletim n.º 81, de 4 de agosto, consta o relatório apresentado pelo chefe do presídio de Geba acerca da sua viagem ao Indornal, há alguns anos publicou-se no blogue este notável documento assinado pelo alferes Francisco Marques Geraldes e qual a informação dada por Pedro Ignácio de Gouveia ao Governo em Lisboa.

Voltando um pouco atrás, e dentro daquele vasto plano de regulamentações de que inicialmente se fez menção, penso que é útil referir que no Boletim n.º 13, de 31 de março, o Governo reconhece a grande vantagem e conveniência para a regularidade e embelezamento da capital da província e de outras terras secundárias, estabelecer-se um plano definitivo de edificações em que se atendam às condições de higiene, ventilação, perspetiva e outras. E assim fora adotado com o voto unânime do Conselho do Governo o plano de edificações e reedificações em Bolama. O seu artigo primeiro anuncia que o Governo mandará imediatamente proceder a um plano geral dos melhoramentos da capital, atendendo neles ao das suas praças, jardins e edificações existentes, e à construção e abertura de novas ruas, praças, jardins e edificações com as condições de higiene, decoração, cómodo alojamento e livre-trânsito do público. Esse plano seria elaborado pela comissão composta do diretor de obras públicas, um vogal proposto pela Câmara Municipal e um vogal da Junta de Saúde Pública. Texto minucioso em que se chega ao cuidado de referir a altura das edificações determinada pela largura das ruas.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
Estabelecimentos portugueses em Buba, no Rio Grande, profundamente afetados pela guerra do Forreá
A canhoneira Guiné, 1879-1883
Igreja católica na Guiné Portuguesa, imagem muito antiga retirada do site da Casa Comum
Bajudas Fulas lavrando a bolanha, imagem antiga retirada do site Casa Comum

(continua)
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Notas de editor

Vd. post de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25954: Historiografia da presença portuguesa em África (442): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1881 até 1882 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25955: Historiografia da Presença Portuguesa em África (443): a história (atribulada) de Bolama, segundo o Padre J.A.V (1938)

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25961: Notas de leitura (1728): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1875 e 1876) (21) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2024:

Querido amigos,
Entre o dia de Natal de 1875 e ao longo de 1876, assistimos a uma realidade, o Governador da Guiné, António José Cabral Vieira, envia pendularmente para a cidade da Praia pequenos relatórios sobre o estado do distrito, segundo ele há bastante animação comercial, os problemas sanitários são poucos, metem a epidemia das bexigas e a varíola. Há permanentes dores de cabeça com o presídio de Farim, há guerras interétnicas, problemas no presídio de Geba, temos um negociante que se suicida numa canoa fazendo-a explodir e matando toda a família. Poder-se-á entender que a situação alimentar não levanta problemas já que por toda a Guiné prevalece um quadro de auto-abastecimento, mesmo quando os médicos de saúde pública falam de doenças jamais questionam as deficiências nutricionais. E recomenda-se vivamente a informação dada por um farmacêutico na Praia, é mensagem publicitária em que ele anuncia o que tem ao seu dispôr na farmácia, é um rol impressionante que talvez mereça a atenção dos estudiosos para se saber mais sobre a Farmacopeia do último quartel do século XIX.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos de 1875 e 1876) (21)


Mário Beja Santos

Entre o final de 1875 e o verão de 1876, ocorre da leitura do Boletim Official de Cabo Verde e da Costa da Guiné duas singularidades de que me permite chamar à atenção do leitor: com regularidade pendular o Governador da Guiné, António José Cabral Vieira, vai enviado ao Governador-Geral pequenos relatórios do estado do distrito, são registos muito úteis para qualquer investigador ter em conta quanto à leitura que o Governo da Guiné fazia dos acontecimentos e assuntos internos; e aparece no Boletim Official em junho uma relação de produtos farmacêuticos que me parece ser um verdadeiro achado, merecia ser enviada para todas as instituições universitárias que se interessem pela Farmacopeia.

No Boletim Official n.º 52, de 25 de dezembro de 1875, é enviado ao Governador Geral a seguinte síntese: “É regular o estado sanitário nos concelhos de Bissau e Bolama, e está quase extinta a epidemia de bexigas no concelho de Cacheu. Continua a colheita de arroz o qual, já em maior escala, vai aparecendo no comércio. Posteriormente ao meu ofício n.º 190, de 12 de novembro, não tive participação alguma oficial sobre o presídio de Farim, constando-me, aliás, extraoficialmente, que não têm continuando as impertinências dos Fulas. Não conta que os gentios tivessem por enquanto atacado o presídio de Geba, nem qualquer outro ponto sujeito ao Governo português. Continuam ainda em poder dos Fulas prisioneiros cristãos a que se refere o meu ofício n.º 186, de 19 de novembro.”

Entrámos no novo ano e no Boletim Official n.º 3, de 15 de janeiro, o Governador da Guiné leva ao conhecimento do Governador Geral que à saída do palhabote Carlota do porto desta vila de Bissau é regular o estado sanitário deste distrito, excetuando no concelho de Cacheu onde ainda reina, mas com pouca intensidade, a varíola, é bastante animado o comércio. Em Farim, segundo as últimas notícias, havia-se recuperado o sossego. Paralisaram, por enquanto, as guerras dos gentios circunvizinhos e com elas as exigências ao presídio, que vai sendo mais respeitado em presença da força que para ali se mandou. Em Geba acha-se ainda estacionada a pendência. A força dos Fulas havia-se retirado para o interior, sem, contudo, haverem dado ao presídio a satisfação completa que lhe é devida, pelos roubos e aprisionamentos ali feitos, existindo ainda em poder deles três pessoas do presídio. No Boletim Official n.º 13, de 25 de março de 1876, publica-se o estado do distrito no mês de fevereiro:
“Concelho de Bolama: regular o estado sanitário e o alimentício, e bastante animado o comercial. No dia 7 deste mês, pelas 7h do dia, apresentaram-se na propriedade denominada Bissau, uma porção de Biafadas de Beduque, que ali, dirigindo-se ao negociante Rufino Pereira Barreto, o aceitaram-se, bem como a um seu caixeiro, aos quais açoitaram barbaramente. Tive, em seguida, notícia deste acontecimento e tomei as providências necessárias, conseguindo obter a prisão do chefe dos criminosos, que se acha entregue ao poder judicial.
Concelho de Cacheu: regular o estado comercial e alimentício. É pouco lisonjeiro o estado sanitário, por isso se desenvolve em Farim com bastante intensidade a epidemia da varíola. Por participação ultimamente recebida consta que no dia 13 do mês findo se suicidara o negociante-chefe do presídio de Farim, Pedro Pereira Barreto. O infeliz havia sido quase reduzido à indigência pelos gentios Mandigas que, atribuindo-lhe ser partidário dos Fulas, lhe roubaram quase tudo que possuía, em resultado de que perdendo o uso da razão, meteu-se numa canoa com toda a sua família, com pretexto de se retirar para Cacheu, e disparando um tiro de revólver sobre uns barris de pólvora que se achavam na mesma canoa, resultou em ato continuo uma grande explosão de que foi vítima ele, sua mulher e dois filhos menores.
Concelho de Bissau: é regular o estado sanitário, comercial e alimentício. Tranquilidade pública em todo o concelho.”
Assina, como tem sido sempre, António José Cabral Vieira.

No Boletim Official n.º 16, de 15 de abril, o Governador escreve: “Largando hoje deste porto de Bissau com destino ao da cidade da Praia o cutter Cabo Verde, cabe-me a honra de participar V.ª Ex.ª que ao presente é satisfatório o estado sanitário nos concelhos de Bissau e Bolama, não acontecendo assim no de Cacheu, onde infelizmente ainda continua a epidemia de varíola. É regular o estado comercial, bem como alimentício em todo o distrito. Continuam as desavenças entre os gentios Fulas, Biafadas e Mandigas, havendo desconfianças que vai breve haver hostilidades entre os dois régulos vizinhos de Antim e Antula.”

Vejamos agora a surpreendente notícia intitulada “Ser velho e teimoso, dom que Deus me deu”:
“O signatário deste tem a honra de participar que lhe chegaram de Lisboa, vindos no vapor D. Pedro, mais medicamentos e que são os seguintes:
Xarope de lacto-fosfato de cal de Dusart, para fazer nascer os dentes às crianças e para todas as mulheres que dão de mamar. Vinho de quina Laroche, para todas as pessoas de constituição fraca, e muito principalmente para senhoras e meninas que sofrem do peito e têm fastio. Ponto alívio, pilulas e xarope do Dr. Radway, para depurar o sangue, como purgativo e para acidentes, até hoje o único medicamento que combate tais moléstias. Licor ferruginoso de Carrier, pilulas de Blancard, xarope de quina ferruginoso, ferro de Quevene e de Girard, pílulas de pepsina ferruginosas, óleos de fígado de bacalhau com ferro, confeitos de lactato de ferro, xarope de rábanos iodado, chocolates de lactato de ferro, carbonato de ferro e de iodoreto de ferro, únicos preparados até hoje descobertos para as senhoras que sofrem por lhe faltar a menstruação e para as escleróticas. Pastilhas de Belmeth, pílulas de óleo calcário, óleo de fígados de bacalhau preparado pelo Dr. Hogg e de Chevrier, xarope de seiva de pinheiro marítimo e grânulos de Vivien, para padecimentos do peito, quando a moléstia tem feito muitos estragos e já estão desenganados. Altos peitorais de carne, de James, racahut dos árabes, revalenta simples e achocolatada, elixir alimentício de Ducro e de pepsina, tapioca, sagú, cevadinha, chocolates de saúde, de salepo e de musgo, para os convalescentes e fracos, xarope de James, dito de nafé, pasta de nafé, de Regnoold e de louro cerejas, para catarros e constipações. Inga da Índia, para dores de cabeça. Pomada do Dr. Queiroz, para moléstia da pele e queimaduras.

Opodeldoc com arnica e simples, para reumatismo, feridas e contusões. Pílulas de Haut, de Haloay, pagaliano, pílulas do Dr. Ganckes, e do Dr. Casenave, citrato de magnésia, como purgantes os mais usados em qualquer tratamento ou sem ele, e em todo o estado. Pérolas de éter e pílulas nevrálgicas, para ataques do coração. Pomadas do Dr. Lebel, chá, solução benzoica e pílulas de escórdio, para hemorroidas internas e externas, Robe de Laffecteur e arrobe depurativo, essência de salsaparrilha de Bristol, para dores venéreas e reumatismo articular. Quina Labarraque, para quem tem febres periódicas e falta de apetite. Injeções de Royer, au matico, de Boyer, de Brou, e vegetal de Chevallier, para gonorreias. Cápsulas de Raquin, de alcatrão, au matico e de alcatrão com cupaiva, para flores brancas e gonorreias. Grânulos antimoniais com bismuto e ferro e só com bismuto, para padecimentos de estômago e azia. Águas cesarina de Hebé e circassiana, para dar a primitiva cor ao cabelo da cabeça e da barba. Águas alcalinas de Vidago, de Vichy, das Pedras Salgadas e de Moura, para padecimentos do estômago e areias na bexiga.

Além dos medicamentos há fundas para quebraduras de um só lado para ambos, urinol de guta-percha para homem que sofra de diabetes, aspiradores pneumáticos de Dienlafoy para extração das urinas e líquidos aquosos, cujo tratamento deverá ser feito por facultativo. E, para todo o desgraçado que for atacado pela terrível moléstia de asma há cigarretas de spica, indianas, antiasmáticas, tubos de Levasseur, papéis de Fruneau e cartão antiasmático de Carrier, máquinas de fazer gelo e fazer café a vapor, tinta para marcar roupa e dita de ouro para escrever.
Também se encarrega de qualquer encomenda vinda de Lisboa ou de França, por pequena comissão, assim como tem na sua farmácia tudo quanto anteriormente tem anunciado.
Praia, 26 de maio de 1876, Francisco Maria Paula Serpa, farmacêutico.”

Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 13 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25940: Notas de leitura (1726): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1874) (20) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 16 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25948: Notas de leitura (1727): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (2) (Mário Beja Santos)