Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1997)
Fotos: cortesia de RTP Arquivos e Imprensa Nacional
1. Temos, por tradição, publicar nesta altura um "conto de Natal"... Já lá vão duas dúzias de contos (*). Mas, este ano, não sei por que carga de água (não é por falta dela...), ninguém se lembrou mandar nada, nem uma miniconto de Natal. Que falta cá nos faz, o "alfero Cabral"!... Ele teria tapado o buraco, remetendo-nos um contozinho, passado cá ou lá, no território da Guiné do nosso tempo...
Tive, portanto, de ir meter a foice em seara alheia para manter a tradição ou pelo menos tentar salvar a honra do convenento ou, pelo menos, as aparências... Não interessam agora as razões, a verdade é que eu podia ter espicaçado a criatividade e a sobretudo a vontade dos nossos escritores natalícios.
Mas a semana foi má, com o editor-mor, também de molho, na cama, a largar suores frios com uma virose ou gripe daquelas das antigas que matam os velhos e vergam os novos...
E confesso, aqui, um paradoxo: nunca até hoje ninguém se lembrara de nos mandar o conto "Natal", de Miguel Torga, que hoje vamos publicar. Até como "prenda de Natal", ou com o simples pedido de divulgação do melhor que se faz "para lá do Marão", que a malta às vezes até é briosa na defesa das coisas do seu "chão", não +e Francisco, não é Zé Manel ?!...
Estou-me a referir, obviamente, aos muitos transmontanos e durienses que se sentam aqui connosco à sombra do poilão da Tabanca Grande, alguns dos quais com créditos firmados nas letras (poesia, ficção, memórias, reportagem): estou-me a lembrar, assim de repente (e seguramente correndo o risco de esquecer de outros), dos nomes dos nossos queridos Alberto Branquinho, Fernando Gouveia, Franscisco Baptista, Paulo Salgado, Zé Manuel da Régua, etc. Mas ainda podíamos alargar o leque aos vizinhos minhotos e aos de Entre Douro e Minho, como o Manuel Luís Lomba, o José Teixeira, o António Carvalho, o Joaquim Costa, o Mário Leitão, o Luís Jales de Oliveira, a Rosa Serra, o Abílio Machado, o Zé Ferreira da Silva, e por aí fora... Tudo gente, portanto, nortenha dos quatro costados, portugueses de grei e de lei...
A explicação pode ser simples: afinal o conto ("Natal", de Miguel Torga) é "muito conhecido" (será assim tanto ? foi no passado, ainda o é hoje ?)... E depois há o problema dos "direitos de autor"... O autor morreu em 1995, e a sua obra só cai no domínio público lá para o ano de 2065, quando todos nós já estivermos na quinta das tabuletas....
Mas vamos ao que interessa, para encurtar explicações: tenho andado, nestes últimos tempos, a ler e a reler alguns dos nossos melhores contistas da língua portuguesa, do Miguel Torga ao José Correia de Araújo, passando pelo cabo-verdiano Germano Almeida. Não me levem a mal que destaque, aqui e hoje, o conto "Natal", de Miguel Torga.
Não entro, propositadamemte, em demasiados promenores de análise literária ao texto que acabariam logo por afastar leitores ou por inibir o prazer da descoberta ou da releitura do conto. Dieri só que +e uma curta história (c. 125 linhas, 5 páginas) de um pobre diabo, na véspera de Natal, que tenta no limite das suas forças e dos 75 anos, chegar, à hora da consoada, à sua terra, Lourosa, algures na mítica "Montanha" ou "Reino Maravilhoso"...
O "Garrinchas", nome da personagem do conto, de resto a única de carne e osso, é mais uma figura esculpida na pedra, um sem-abrigo, um "pobre-de-pedir", como se dizia no meu tempo, como dizia a minha mãe ou a senhora professora primária, apontando para o "Livro de Leitura da Terceira Classe: havia os pobres (que éramos todos nós) e os mais pobres dos pobres, os pobres-de-pedir, que andavam a mendigar, "pedir esmola", de porta em porta, "a mão estendida à caridade".
Vinham em bandos, em geral, à sexta.feira, e às vezes de longe, de fora do concelho... Tal o como o "Garrinchas" que sabia, por experiência própria, que os santos da casa não faz4m milagres , entenda-se, não abrem facilmente os cordões à bolsa, são mais forretas.
Portanto, o leitor é confrontado com um problema social muito grave que se arrastava, há mais de dois séculos, desde as invasões napoleónicas, e se prolonga para lá do fim da Monarquia, a I República e o Estado Novo, até aos anos 60/70, o da indigência social (no campo e na cidade).
Sempre houve em Portugal (e na Europa) bandos e bandos de gente a mendigar, "a estender a mão à caridade",,,. Mas este "Garrinchas" é um solitário, perdido nos confins da Terra Fria ou da Terra Quente, não se sabe ao certo, de Trás-Os-Montes, imaginamos nós.
A magia deste conto (uma pequena obra-prima como quase todos os outros que o autor publicou, e que eu adoro ler e reler) está na importância que o "sagrado" assume, de repente, no final do conto... o "sagrado" está sempre subrepticiamente presente na escrita de Torga, ele que não era crente, era profundamente espiritual (uma "animista", diríamos nós na Guiné), em comunhão com a terra, os outros e os demais seres vivos.
Que ele, lá no Olimpo dos escritores e artistas, onde finalmente descansa das agruras da vida terrena (e não foram poucas!), nos perdoe este atropelo ao direito de autor, mas ele saberia compreender e aceitar, se fosse vivo e nos lesse, que é tudo por uma boa causa.
Por favor, caro leitor, saboreia esta prosa, devagar, de preferência, lê-a à lareira (ou luz da vela), logo à noite, entre o vinho fino (também pode ser uma aguardente DOC da Lourinhã ou um bagaço de Candoz ou um medronho do montado da serra algarvia) e a aletria (ou o arrroz doce)...
Lê-o, por favor, em voz alta, para os mais novos (e os menos novos que ainda que não tenham desistido de aprender e de sonhar...). E depois, escreve-nos, a dizer se valeu a pena a experiência. Bom Natal e Melhor Ano Novo de 2023. LG
Natal
por Miguel Torga (1905-1995)
Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa (#), pior. Ninguém dá nada.
– Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras!
Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam… Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que só dando ao canelo (#) por muito largo conseguia viver.
E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa… E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo (#), permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam.
O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar.
Aflito, batia-lhe na taipa (#) do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer?
Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo… Areias, queriam dizer. Importava-se lá. E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido!
O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa… Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama! Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes. Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura. Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida…
Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha. Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel. Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
– Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho (#). Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
– É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
Miguel Torga
In: Miguel Torga - Novos Contos da Montanha, 15ª ed. Coimbra, edição de autor, Gráfica de Coimbra Lda, 1991, pp. 121-126 (1ª ed., 1944).
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Lourosa e os demais topónimos /Carvais, Feitais, Loivos..) são fíctícios. Mas ficam na "Montanha", no "Reino Maravilhoso"...
Como explica o próprio criador: (...) "– Para cá do Marão, mandam os que cá estão!…
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
– Entre!
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.
Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição." (...)
(#) Canelo: canela da perna.
(#) Forno do povo: padaria coletiva nas aldeias de Trás-os-Montes, gerida pelas comunidade, onde toda a gente cozia o seu pão. Havia um sistema de trabalho rotativo. Funcionava também como albergaria para estrangeiros e pedintes de passagem pela aldeia. Estava permanentemente aquecido. Era uma instituições do "comunitarismo primitivo" de que Rio de Onor e Vilarinho das Furnas foram até aos anos 50 os exemplos mais perfeitos.
Imagem à acima, à esquerda: antigo formo do povo de Tourém, Gerés. Cortesia de GR 50 Peneda-Gerês > Forno do Povo, Tourém, Montaleger
(#) Taipa: parede de tabique
(#) Em Trás-os Montes, arcanho quer dizer traste, móvel, utensílio ou objecto considerado velho ou de pouco valor._____________________
... E depois, caro leitor, de teres lido o conto, aponta, na tua agenda, uma visita, na próxima primavera de 2023, à Casa-Museu Miguel Torga e ao Espaço Miguel Torga (desenhado por Eduardo Souto Moura), em São Martinho de Anta, Sabrosa, recentemente inaugurados há menos de um ano... E não te esqueças que a terra não é só do Torga, é também de uma nossas heroínas, a enfermeira paraquedista Giselda Pessoa (Antunes, apelido de solteira)... E depois vê o vídeo Casa Museu Miguel Torga, 27' 25'').