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quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26007: Manuscrito(s) (Luís Graça) (256): Porto Santo, e a África aqui tão perto - Parte I: A "Madeira Pequenina", como lhe chama a minha neta


 Foto nº 1  > ~Cidade de Port0 Santo > "Moldura de Porto Santos" > A praia, deslumbrante, tem um areal de 9 km do Boqueirão de Cima, a nordeste (Ilhéu de Cima) ao Boqueirão de Baixo, a sudoeste (Ilhéu de Baioxo ou da Cal). Nesta imagem, vê-ase metade da praia, com o Ilhéud e Cima, ao fundo.


Foto nº 2 > Vila Baleira (hoje cidade do Porto Santo) > O Cais Velho de Porto Santo, uma relíquia do passado: aqui desembarcavam mercadorias e passageiros. Hoje é apenas uma prancha de saltos, um local de passeio e lazer, prolongamento do Jardim Avenida Infante Dom Henrique  (vd. foto nº 3) (A construção do Cais Velho data de 1929; tem mais de 100 metros de comprimento e oito de largura; hoje é ladeado de candeeiros públicos.)



Foto nº 3 > Vial Baleira > Jardim Avenida Infrante Dom Henrique


Foto nº 4 > A estrada que dá aceso à Quinta das Palmeiras (Minizoo botânico)


Foto nº 5 > Porto Santo > Ponta da Calheta > Miradouro das Flores > Vista da parte sul da ilha (talvez o melhor miradouro da ilha): ao fundo, o atual Porto de Abrigo (e Marina), e o Ilhéu de Cima. Daqui até à Madeira são 75 km (2h15 m de barco)


Foto nº 6 > Porto Santo > Pico de Ana Ferreira > Miradouro da Pedreira > Uma das joias da geologia da ilha: o conjunto das colunas prismáticas que testemunha a atividade vulcânica de que resultou a formação da ilha



Foto nº 7 > Porto Santo > O Ilhéu de Baixo ou da Cal, na ponta da Calheta... e os ceados das juras de amo eterno.


Foto nº 8~> Porto Santo > Deserto da Fonte de Areia > Um microssítio em risco de desaparecer... As areias fossilizadas...ou paleodunas.



Foto nº 9 > Porto Santo Santo >  Ponta da Calheta > Vestígos da ativida vulcânica (1)



Foto nº 10 > Porto Santo > 
Ponta da Calheta > Vestígos da ativida vulcânica (2)



Foto nº 11 > Porto Santo > 
Ponta da Calheta > Vestígos da ativida vulcânica (3)



Foto nº 12 Porto Santo > Vila Baleira > Calçada


Foto nº 13 > Vila Baleira > Parte velha

Região Autónoma da Madeira, Porto Santo > 29 set - 3 out 2024

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Toda a gente já veio a Porto Santo, menos eu. A minha neta chama-lhe a "Madeira Pequenina". Vem cá todos os anos. E adora vir no "Lobo Marinho", o "ferryboat" que faz a ligação do Funchal, a 50 km a sudoeste, 

Decidi (eu e a Alice, mais um casal amigo) a ir cá passar uma semana.  Num hotel com tudo pago e bar aberto...  Nesta altura do ano, é o turismo sénior quem mais ordena,  mais os escandinavos (nomeadamente os dinamarqueses que vêm só para jogar golfo). 

Há 3 anos que eu não me metia num avião. A última vez fiquei "pendurado" num avião da EasyJet, durante quase duas horas, à espera do elevador da MyWay... 

Não tem graça nenhum um gajo andar de muletas num aeroporto. ou, "coitadinho",  empurrado numa cadeirinha de rodas. Conheci um brasileiro, uma guineense e uma angolana até chegar ao elevador da My Way. Fui o último a sentar-me no meu lugar, no avião.

 O aeroporto de Lisboa está recomendável. A 10 minutos do aeroporto, em Alfragide, levanto-me às 6 da manhã para apanhar um táxi às 6h30  e partir às 9h20 para Porto Santo. A TAP agora nem um copo de água nos serve à borla. 

Não levo grandes expetivas. Apenas o portátil, a máquina fotográfica, o bloco de notas, uma esferográfica e um lápis, mais quatro livros. A meio da estadia já fui a quase todos os sítios da ilha, visitáveis.  Deixo aqui as primeiras fotos, numeradas mas com curtas  legendas, esperando que o meu amigo e coeditor Carlos Vinhal se ofereça para as completar... (Ele já cá veio, e a Madeira é a sua segunda terra.)

Há uma calor e humidade que me fez lembrar África. De resto, aqui presente no hotel,  onde praticamente todos os empregados de mesa, restaurante, quartos e animação são estrangeiros, tal como nos navios de cruzeiro italianos: santomenses, guineenses, angolanos, moçambicanos, marroquinos, congoleses,  brasileiros, argentinos, nepaleses, bengalis, chineses,  etc. Vou metendo conversa com todos e procurando saber  as suas pequenas histórias de vida.  Mão de obra sazonal, formandos em hotelaria,  etc., que ajudam a salvar o turismo porto-santense... 

O "patrão" português paga-lhes o salário mínimo, e dá-lhes cama, mesa e roupa louvada, mas põe-nos a trabalhar de sol a sol: fazem os pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares... O turista feliz é o que se empanturra de sol e de comes & bebes... 

No píncaro do verão, a população (5 mil habitantes, numa ilha de 10 km de comprido por 4 de largo) chega a ser oito vezes mais, diz-me o condutor do jipe (exagero: digamos que triplica em agosto, com os veraneantes madeirenses mais os turistas de fora; a elite funchalense tem cá casa de férias; não é fácil encontrar "indígenas".)

Ainda hoje a ilha tem mais capacidade aeroportuária do que hoteleira,além de ser servido por um moderno porto de abrigo que recebe navios de cruzeiro, a par do "ferryboat"  diário, o "Lobo Marinho" (com capacidade de mais de 1,1 mil passageiros e dezenas de viaturas automóveis).

A ilha surpreendeu-me, pela positiva, nalgumas coisas: a riqueza geológica, a diversidade das pessoa que aqui trabalhas humana,  a produção e a gestão da água e da energia, a "purezxa" da paisagem (por quanto tempo ?)...   A praia é de ãguas cristalinas, "3 estrelas, bandeira azul"... Há uma estação de tratamento de águas resíduos  (ETAR)  cuja água é aproveitada para encher as lagoas do campo de golfe e regar, à noite, a relva...

Uma ilha que não tem recursos naturais (para além do mar..,), isto é, terra arável e água doce (fundamentais para a sbrevivência humana), é um "estudo de caso" interessante para se perceber como se pode viver, crescer, amar, trabalhar e ter futuro em muitas partes inóspitas da terra: mas há uma desafio, os jovens (que podem aqui estudar até ao 12º ano) já não querem trabalhar na hotelaria...

Por outro lado, viver numa ilha também é uma desafio para a saúde mental.

(Estupidamente,  eu pensava que a água potável ainda vinha em batelões da Madeira!...E, o mais incrível, é que aqui, nas areias escaldantes, que chegam aos 40 e tal graus,  crescem videiras que dão um vinho generoso de 23 graus que é "superior ao Porto porque é ... santo", dizem os proto-santentes com graça... 

A menina, muçulmana, que  me serve à mesa o vinho tinto (da "metrópole",  da cooperativa de Pegões) é uma lindíssima guineense, de 22 anos, de apelido Baldé Camará, nascida em Cabedu: conversa puxa conversa, vim a saber que era neta do régulo de Canhanima, fuzilado pelo PAIGC, e sobrinha-neta ou bisneta do rei dos Nalus, o Salifo Camará, falecido em Cabedu, em 2011, herói da libertação da pátria ( e que eu conheci pessoalmente em março de 2008).

O parto (trágico, discóito) da Guiné-Bissau está bem presente na história da sua família: pai, fula; mãe, nalu, com antepassados divididos na guerra da independência (que também foi uma "guerra civil")... 

Tentei "partir mantenhas em fula", mas ela já não fala a língua dos avós... Fala impecavelmente o portuguès, estudou na escola de Betel...E a mãe vive em Coimbra desde 2004. Os fulas continuam a ser um povo errante... e a Guiné-Bissau um país adiado. Aos 100 anos,  o Amílcar Cabral  (1924-1973) deve, por certo, estra a dar voltas lá no "panteão nacional" da antiga fortaleza da Amura... a perguntar onde é  que errou...

Todos felizes, apesar de tudo,  por terem trabalho os nossos jovens amigos da CPLP... Aprenderam a viver e a sobreviver num mundo cada mais globalizado. Tiro-lhes o "quico"... Vou jantar: hoje é "noite do mar", mas espero que, como numa outra noite, não ponham um chinês ou nepalês a fazer "paellas"...
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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25890: Historiografia da presença portuguesa em África (438): O anuário turístico da Guiné, 1963-1964 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Assim que vi referência a este anuário turístico da Guiné, com o nº1, o que leva a supor que haveria o início de uma coleção, reportado a 1963-1964, fui a correr ao vendedor, folheei estas 100 páginas ricamente ilustradas com perfis de mulheres e homens, danças e penteados, fotografias de praias, de estátuas de artérias urbanas, não encontrava resposta para uma publicação desta natureza redigida em português, francês e inglês, em 1964, o conflito atingir tais proporções que qualquer um daqueles aliciantes turísticos era inviável. Muito provavelmente aconteceu que o espírito desta coleção nasceu antes da luta armada, seria de profundo mau gosto enviar para as chamadas Casas de Portugal (agências turísticas junto das nossas embaixadas) este anuário. Mas que ele foi distribuído na Guiné, a prova clara é que o exemplar traz uma assinatura, diz Guiné, 1967. Acontecimento editorial insólito, sem margem para dúvida, impensável não dar aqui esta notícia da sua existência.

Um abraço do
Mário



O anuário turístico da Guiné, 1963-1964

Mário Beja Santos

Este anuário turístico é uma verdadeira surpresa, a guerra na Guiné já começou e desenvolve-se e faz-se um livrinho de 100 páginas em português, francês e inglês, oferecendo-se a quem aqui arriba os elementos geográficos mais pertinentes, dados sobre o relevo e hidrografia, clima, população, governo e administração; segue-se o esboço histórico, dados sumários sobre a missionação e a Prefeitura Apostólica da Guiné, como se processa a educação e o ensino, o grau de assistência sanitária, os organismos da assistência social (Lar de Santa Isabel da Santa Casa da Misericórdia da Guiné, o Asilo da Infância Desvalida de Bór com creche e o internato de Bór). Aspeto bem curioso passa pelos dados económicos, a palmeira de azeite estudada pela Brigada de Estudos Agronómicos da Guiné, os viveiros de bananeiro no posto agrícola de Pessubé, onde também foram introduzidas sementes de cacaueiro, refere-se a importância das exportações de amendoim, noticia-se que há um pequeno campo de viveiros de ananás e no tocante à indústria salienta-se a grandiosa obra da SACOR em Bandim; quanto às exportações florestais, destacam-se o poilão, o bissilão, o pau-ferro, a calabaceira, a palmeira, a farroba, as acácias, a tamarindeira e o pau-sangue. Dão-se informações sobre o terceiro plano de fomento e quais as obras de fomento em curso: troço da estrada Bafatá-Nova Lamego, acessos à nova ponte sob o rio Cacheu, remodelação das obras de arte correntes do troço Safim-Buba, etc. No final de 1962 fora inaugurada a nova central telefónica automática de Bissau. Sumaria-se o que está a acontecer na energia elétrica e dedica-se um capítulo às finanças, o Banco Nacional Ultramarino tem a sua filial edição.

Apesar da guerra não há nada como saber que a Guiné tem os seus atrativos turísticos, exalta-se o quadro da natureza, as estradas de bom piso que sulcam o território em todos os sentidos, a vegetação variada, os campos lavrados, os extensos alagadiços de arrozal, o mangue da beira-rio e há as ilhas, um verdadeiro Éden com os seus palmares. Não se esquece a referência ao Macareu, aos rápidos do Saltinho e alicia-se o potencial turista com os seguintes dizeres:
“Ao viajante em breve digressão, mais patente, o pitoresco das casas circulares, primitivas, de estacaria e capim, paus a pique (estacaria e barro) ou da casa retangular, de adobes, mais recente, de influência europeia, umas e outras de cobertura palhiça com ingénuas pinturais murais exteriores, de colorido vermelho nos Felupes, da região fronteiriça do Norte litoral, ornamentações geométricas brancas, de conchas do mar, nos Biafadas; exuberantes e policromas pinturas exteriores e interiores, de vivas colorações, nos Bijagós, tão misteriosos e ensimesmados)".

Dá-se um quadro sobre os costumes, guerreiros ou pacíficos, batuques e cerimónias, vestuário e atitudes, tão dissemelhantes do Felupe ao Balanta, dos Manjacos aos Bijagós, dos Nalus aos Fulas e Mandingas e outros – os muçulmanos solenes, em suas largas e brancas, ou de cor, bordadas ou lisas, vestimentas e babuchas; os exíguos saiotes de ráfia dos ilhéus; a transição indumentária, sobretudo dos Papéis, mais em contacto de permanência com o europeu; o terçado rude e o arado em remo dos agricultores da baixa Guiné; os alfanges e punhais embainhados em couro trabalhado das gentes pastoris e seareiras da zona interior. Tece-se uma exaltação da paisagem humana que completa a paisagem natural e que faz de uma visita à Guiné um prazer turístico. E os aliciantes turísticos são denunciados:
“A Guiné Portuguesa oferece ao turista e visitante o atrativo de caça que, embora não seja tão variada como nos territórios portugueses de Angola e Moçambique, tem muitas espécies como o hipopótamo, a boca-branca, o sim-sim, porco-do-mato, o elefante raro, a onça, a gazela de lala, a garça, o búfalo, o onbi, a galinha-azul, e animais nocivos como leão, leopardo, lince, hiena, cão-do-mato, chacal, cinécefalo, crocodilo, cobras e serpentes, aves de rapina, etc. As reservas de caça existentes: Mata de Cantanhez (na área do posto administrativo de Bedanda, concelho de Catió), Lagoa de Cufada, na circunscrição de Fulacunda e zona abrangendo uma faixa de 5km em volta do parque da praia de Varela".

Há lugares dignos de menção em Bissau, Bafatá, Bolama, Bijagós, S. Domingos e Fulacunda, o visitante tem monumentos para contemplar, com destaque para a fortaleza de S. José de Bissau, mas há monumentos em Bolama, em Bafatá, em Mansabá (ao alferes Figueira, morto nas guerras de pacificação), em Bubaque, monumento a Gomes Baleeiro (descobridor e explorador do arquipélago dos Bijagós), bem como os padrões comemorativos do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, em Bissau, Cacheu e Farim; são recomendadas visitas a várias pontes e põe-se ênfase nas praias (Varela, Tor, no Biombo, Nova Ofir, em Bolama, Bruce, em Bubaque, Tropical, na área do posto de S. João); indicam-se ainda duas piscinas, em Farim e Bafatá, destacam-se as vias de comunicação, os transportes aéreos e os portos; faz-se também menção à emissora provincial da Guiné Portuguesa; à biblioteca do Museu da Guiné, com um acervo de 14 mil volumes, à imprensa existente (Boletim Oficial, O Arauto, O Bolamense, o Boletim Cultural da Guiné e o Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné; não se discura a referência a grupos ou clubes, a casa de espetáculos e a oito hotéis localizados em Bissau, Bolama e Bafatá.

A iniciativa deste anuário turístico foi do Centro de Informação e Turismo da Guiné Portuguesa, pergunta-se, com efeito, quem seria o seu destinatário quando em 1964 a Guiné já sofrera uma poderosa separação de águas, era totalmente impensável estar a propor a quem quer que seja tais aliciantes turísticos. Fica-se com a convicção de que este projeto datava de tempos anteriores a 1963, quando foi editado o anuário seria simplesmente macabro imaginar aliciantes turísticos desde a caça a muitas daquelas viagens por meios rodoviários e até ao desfrute de valiosos recursos naturais como a Lagoa de Cufada.

Daí o enigma (aparentemente irresolúvel) desta edição.


Descoberta da Guiné, tapeçaria de Renato Torres, Fábrica de Tapetes de Portalegre
Vista parcial de um dos jardins do Palácio do Governador
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Nota do editor

Último post da série de 21 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25864: Historiografia da presença portuguesa em África (437): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25282: Manuscrito(s) (Luís Graça) (247): Quando os ventos sopravam em Assuão...

 

Egito > Assuão > Templos de Abu-Simbel > Cortesia de Wikipedia e Panoramio (foto)

 

Quando os ventos sopravam em Assuão era verão

por Luís Graça


Aqui o verão era fértil,
O verão era fútil,
O verão era fértil em coisas fúteis.
Fértil no Vale do Nilo,  fútil em Abu Simbel.

Era no Verão que se comia melancia ao quilo,
E, enquanto amadureciam as tâmaras,
Vendia-se a inultura geral a granel 
Em folhas de falso papiro:

... "Welcome, sejam bem vindos a Assuão!"

Senhores e senhoras do Norte, 
Em agosto resiste-se melhor 
À melancolia do entardecer em África,
Bem como ao medo das câmaras escuras da morte,
Na linha do horizonte, abaixo do Trópico de Câncer.

Em Abu Simbel, o verão era ostentação.
Tu preferias os óstracos
Onde o operário de Deir el-Medina
Falava da sua condição,
De produtor, de artesão,
De construtor de túmulos,
De escultor de esfinges, 
De guardador de segredos,
De malandro e de grevista,
De salteador e de ladrão,
De violador de medos
E de barqueiro Caronte.

Tu sempre achaste que esta estação não rimava com poesia.
Mas tu não eras o Ramsés Segundo
Nem conhecias o caminho irreversível para a imortalidade.

Aqui o verão era fértil em coisas fúteis
Como o escriba acocorado
Perante o espectáculo risível do mundo globalizado.

..."Na terra prometida do pão e do mel,
Tenham cuidado, meus senhores, com os vegetais,
Bebam águas minerais, encapsuladas, 
Levem dimicina e ultralevure
Por causa dos desarranjos intestinais
E das sete pragas do Egito!

... "E o vírus do Nilo, senhor barqueiro  ? É mortal ?"

... "Descanse, my lady, que o barco tem escolta policial."


Na Ilha Elefantina nâo havia manicure,
Havia apenas pessoas  inúteis
Que adoravam subir aos píncaros do verão.
De camelo.

... "Sobretudo não tome uísque com gelo",

Podia ler-se numa tabuleta à beira do lago Nasser.

... "Meus senhores, estamos em África, be careful"

Aqui o verão era, por excelência, o paraíso 
Com o ocre como pano de fundo.
E sob os carris de ferro das dunas
O barco, bêbedo, do poeta Rimbaud.
O verão era uma casa de adobe e uma esteira no chão
E os altos muros do deserto
Estrangulando o fio de água da vida.

... "Ah, o nascer e o pôr do sol, 
Não esquecer de pagar tributo ao deus-sol".

Porque o verão no Egipto era a rosa do mundo.
O misticismo. A demência. 
Os calores 
De Santa Teresa d’Ávila em trabalho de múltiplos orgasmos.
No Vale dos Reis. E das Rainhas. E dos Nobres.

... "Esqueçam, por favor, a mastabas dos pobres!

... "Ah! Não vêm nos roteiros turísticos ?

... "I'm sorry"!

O verão era o sexo distendido.
O músculo relaxado. A alma em carne viva.
A praia. O creme Nívea. O postal ilustrado.
O repelente para os mosquitos,
A alegre promiscuidade dos cinco sentidos.
O carrossel do Cairo em três dimensões.
O teu gin tónico com limão.
A carne em decomposição. O desastre humanitário.
Mais, ao fundo do mapa,  a Núbia, o Sudão.
Os dóceis núbios. As volúpteis núbias.
A mutilação genital feminina das futa-fulas da Guiné.
A tragédia de Darfur.
Tudo trivialidades.

... E ainda a louca montanha russa. O bazar.
A dança do ventre dançada por travestis, canastrões.
A mesquita de alabastro.
O mítico mar vermelho.
A Sagrada Família. Jesus, Maria e José.
O burrinho puxando a nora.
A felicidade a preço de saldo.
O exotismo com molho de bechamel.
O oásis no deserto. 
Todos os estereótipos do mundo.

... "E, por favor, tirem uma fotografia digital,
Da varanda do hotel Marriott."


Bem gostarias de apresentar uma reclamação,
Por escrito, ao senhor vizir:

... "Eu estive em Abu Simbel
E experimentei as dificuldades da comunicação humana."


O verão era o Vale do Nilo, 
Um gigantesco falo que penetrava, fundo,
A terra árida e seca da Mãe África.
Gretada, a terra, a carne.

... "White women, carne branca.
I Egiptian man, fertility man.
Portugal ? Good, Luís Figo!"


Do alto da mesquita de Najaf,
Mais acima no mapa do corpo humano,
Dizia o guia, o teu guia:

... "Alá é Grande!,,,
Mas o meu o coração sangra de dor
Pelos meus irmãos, xiitas, sunitas, ismaelitas.


Do alto das pirâmides de Sacara
Havia um imã que te notificava
Por carta registada com aviso de recepção:

... "Que a vida eterna te chama
E exige a mortificação, a mumificação!"


Recebeste por fi
m notícias de Lisboa
Onde a fertilidade da futilidade
Era então um problema de saúde pública.
Um osso duro de roer.
Tão duro como o granito de Assuão
Donde soprava o vento que modelava o  rosto das esfinges.

De Lisboa ao Cairo erguia-se o templo do futuro
Com paragem técnica em Luxor
Para consultar os arquitectos da eternidade.
A antiga Tebas, a cidade das cem portas,
Era  já um pequeno burgo.
E o teu guia, egípcio, brasileiro, muçulmano,
Dizia que tinha o coração a sangrar.
Marcos chorava pelos seus irmãos
De Najaf, no Iraque,
E confidenciava-te:

... "Eu nunca poderia trabalhar
Para os meus inimigos e vizinhos de Israel.
Por muito dinheiro que me pagassem."

Marcos não tinha preço.
Incorruptivel como o corpo dos faraós.
E recusava-se a atravessar o Mar Vermelho. 

... "Não matarás!,  sentenciava Moisés".

Que tivessem  santa paciência.
Os pobres. Os diabos. Os pobres diabos.
Os santos. Os turistas. Os contribuintes.
Os camponeses. Os escribas. Os escravos,
Os guias turísticos. Os romancistas policiais.
Os arqueólogos. Os caçadores de tesouros.
As esposas dos ricos homens de negócios das arábias.
Os sacerdotes do templo de Kom-Omb
Que eram carecas.

... "E sobretudo os pobres,
Porque deles ainda há de ser o reino da terra!"


Pobre planeta, sem rei nem roque.
E com tantos súbditos e tão poucos sábios.

... "E não se esqueçam de pôr a escrita em dia.
Pesem a alma. Meçam as bolsas.
Leiam o Livro dos Mortos
Ou A Morte no Nilo,
Que o barco vai zarpar!"...

E o Habibo, de mão estendida:

... "Um oiro, um euro, amigo.
Para o Habibo.
E para o camelo do Habibo,
Que tem sede e fome.
Óscar, de seu nome."


E o Estado que já não garantia ser mais Estado no futuro,
E muito menos o Estado-Providência.
E pagar o leitinho às criancinhas.
E o funeral aos velhinhos.
E a baixa por doença ou acidente 
Aos construtores, descartáveis,  de piràmides,
E nem sequer já a múmia ao faraó.

..."Deixem isso às madraças
E à caridade em tempo de Ramadão".


Restava-te a Alta Autoridade do Nilo
Que regulava os influxos e os defluxos dos deuses.
E a exploração do trabalho infantil
Nas escolas-fábricas de tapeçarias em Memphis.

Na verdade, o verão era apenas uma estação.
De comboio.
Do comboio de via estreita
Que ia do nascer ao morrer,
Duna acima duna abaixo.
E quem dizia estação dizia cais. 
De chegar. De apodrecer.
Como esta falua do Nilo à beira Tejo
Que era o rio que passava à tua porta antes de ser desviado
Para ir regar as palmeiras do Éden.

Sexta-feira, treze.
De Agosto. De azar,
Quer quisessem ou não, a indústria do lazer
Iria ser o principal foco de infecção
Naquele pico de verão.

... "Tenham cuidado com o cão
E com a maldição
Do Faraó Tutankamon."


Morrera a indústria dos metais pesados,
Como acabara por decreto o tráfico de escravos
Que alimentava o Novo e o Velho Mundo.
Pois que vivesse, agora, a indústria do lazer.
Leve. Ecológica. 

... "De terceira vaga.
Com homologação. Com certificação.
Com acreditação. Com exemplos de boas práticas.
Com análises de custo/benefício."


Graças ao lóbi da qualidade
O mundo iria bem melhor sem escravos nem metais pesados.

... "Que a vida era dura,
E o que a gente faz para ganhá-la", dizia o Marcos.

Como o búfalo que pastava nas margens do Nilo.
Como qualquer búfalo domesticado
Depois de trabalhar o dia inteiro
Para o seu suserano,
O camponês egípcio.
Que por sua vez alimentava o Faraó 
E as suas esposas e concubinas,
O seu exército, a sua polícia núbia e os seus esbirros,
E a legião de escribas acocorados
Que tinham o monopólio da escrita. E do saber.
Ah!, sem esquecer os engenheiros da barragem de Assuão.

Na época, as partes pudendas, a zona púbica,
A coisa pia, do Portugal contemporâneo,
Iria ser matéria de alto relevo na televisão.
Dizia o Eça, o escriba ainda de pé,
Em missão de reportagem na inauguração do Canal do Suez.

... "Já não tens rei, ó portuguès,
Nem o tique aristocrático do beija-mão.
Nem o Conde de Burnay.
Nem faraó. Nem deuses. Agora é que é,
A república é quem mais ordena.
Senão popular, pelo menos populista.
A coisa pia mais fino no Portugal pequenino
Mas demo...crático."


Imaginavas.
Sem imagem nem voz.
Porque estavas em férias num cruzeiro do Nilo,
A observar o elegante voo da garça real.

... "Onde estará o pelicano ?
E a cegonha preta ? E a abetarda ? E o jagudi da Guiné ?
E os filhos ilegítimos do povo ?"


No barco não apanhavas a RTP, felizmente de todos nós.
Nem sabias se o Porto perdera na supertaça
E o Obikwelo ganhara a medalha de prata dos 100 metros
Nas Olimpíadas de Atenas.

... "Turco, grego, tunisino ?
Espanhol, italiano, palestino ?"...

... "Ah!, não, ah!, sim, português !

... "Ah!, Portugal, Luís Figo! Compra, amigo."

... "Quanto, quanto ? Dez nove oito sete seis cinco...
Quatro três dois, um!"

... "É só um oiro, um euro, amigo.
Que o Habibo tem fome e sede mais o camelo."


Maria do Patrocínio, tua avó materna.
Lembrar-te-ás dela,  a 'ti Patxina ?!
Patxina, de alcunha, 
Por economia de letras do alfabeto.
Morrera cega,
Sem hieroglifos gravados na estela,
'Ti Patxina, apalpando os netos, o  cabelo,  a cara.
E não a mumificaram
Nem muito menos a operaram às cataratas
Que no seu tempo
As obras de misericórdia
Eram sete espirituais e sete corporais.
Como no Egipto dos faraós.
Como as sete pragas do Egipto.
Como naquela triste aldeia núbia
Que era uma espécie de reserva dos últimos núbios
Com crocodilos de plástico
E pretos garanhões de olhos verdes.
E onde havia uma velhota,
Cega como a  ti' Patxina,
Que vendia bugigangas pró turista.

De Assuão a Luxor, tu gostarias de ter escrito
Um poema sobre os teus estados de alma.
Tão contraditórios que se anulavam.
A verdade é que encontraste aqui
Um povo afável.

... "Mas que te  adiantava o pedigree, ó Habibo,
E os cinco milénios de civilização.
E Ramsés Segundo e Nefertiti,
E o templo de Edfu,
 E a barragem de Assuão,
E o museu do Cairo...
Se nada mudara, pobre de ti,
Na tua condição de burro carrejão ?"

Soprava o vento dessecante.
Estavas em Assuão.
Nos píncaros do verão.
E nem sequer havia um gin tónico, refrescante.


Egipto, em cruzeiro pelo Nilo, 22-28 de agosto de 2004. 
Revisto em 16 de março de 2024.

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25260: Manuscrito(s) (Luís Graça) (246): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 3. Da medicina mágico-religiosa do templo de Epidauro aos atuais médicos de família

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24596: Notas de leitura (1610): "A Guiné-Bissau Hoje", por Patrick Erouart; Éditions du Jaguar, Paris, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Folheiam-se estes guias turísticos da década de 1980 e temos uma Guiné próximo e longínqua, há apelos ao investimento, a indicação de rotas para o lazer a partir de Paris, Banjul ou Dacar, nem uma palavra sobre Lisboa mesmo falando dos voos da TAP. As fotografias de Michel Renaudeau são estonteantes, mostrando um povo a dançar, a trabalhar ou a estudar, um património edificado que já caiu de podre ou que precisa de obras urgentes. Propõe-se programas de caça e de pesca, mostram-se os meandros do Geba, do Cacheu e do Mansoa, há muitíssima informação sobre os Bijagós. Encena-se uma Guiné que procura uma via de prosperidade, tanto agrícola como piscícola, adicionam-se observações referentes à luta pela independência e de vez em quando salta um disparate ou uma incongruência, coisas provavelmente reminiscentes de uma época de heróis lendários que acabam por ser tratados paradoxalmente quando se diz que o golpe de 14 de novembro de 1980 autonomizou a Guiné da opressão cabo-verdiana. Coisas da vida. Estes livros são uma relíquia, deviam constar das bibliotecas portuguesas e guineenses, estas imagens são por vezes testemunhos grandiloquentes de um povo que ultrapassou todos os limites da paciência mas que continua a aguardar com serenidade uma via consistente para o progresso.

Um abraço do
Mário



A Guiné-Bissau hoje, por Patrick Erouart, estávamos em 1988

Mário Beja Santos

Na década de 1980 o Banco Nacional da Guiné-Bissau promoveu e patrocinou um conjunto de publicações de apelo atrativo ao investimento e ao turismo no país. Recorreu a roteiristas com obra feita e a fotógrafos eméritos, caso de Michel Renaudeau. Em 1988 surgiu este livro "A Guiné-Bissau Hoje", das Éditions du Jaguar, Paris, numa versão aparentada com o português, dando-nos um panorama histórico, socioeconómico e cultural, um quadro das cidades e notas práticas para quem pretendesse viajar. Vale a pena seguir cuidadosamente o texto, o país que se descreve está um tanto distante do país de hoje. E as imagens são francamente deslumbrantes.

Temos a localização, superfície, relevo, clima e assim chegamos ao Sahel e à seca, esta é uma verdadeira bomba retardadora: “O Sahel avança e rói. O clima destas regiões, de tipo sudanês, goza apenas de uma pluviosidade inferior a 1250 a 2000 mm por ano. Mas já há vários anos que a disparidade das chuvas inquieta gravemente as populações cujas condições de vida estão intimamente ligadas à água. Entre a independência, em 1974, e 1978, durante cerca de cinco anos, a chuva não caiu em quantidade suficiente para a renovação das culturas: treze anos de independência, metade dos quais sob a seca!”.

Mas logo se alerta que se caminha para uma destruição total da cobertura vegetal. Carateriza-se a sociedade multiétnica, descreve-se a história pré-colonial, desde o reinado do Mansa no Império do Mali até à chegada dos invasores fulas que puseram termos aos reinos mandingas. Dá-se uma breve nota sobre a economia e sociedade no tempo dos Mansa e entramos na colonização, situada predominantemente no litoral dos chamados Rios da Guiné e de Cabo Verde. Daqui passa-se para a alvorada do nacionalismo e o início da guerra da independência. Seguramente por dispor de informação pouco credível ou mesmo falsificada, o PAIGC aparece colado aos acontecimentos de 13 de agosto de 1959, entramos propriamente numa luta armada que envolveu diplomacia de uma vida específica no interior das matas.

E assim se chega à independência e cita-se Mário de Andrade, um importante dirigente político angolano que viveu muito de perto as lutas do PAIGC:
“A nossa luta armada de libertação inscrevia-se como uma das mais avançadas, no quadro geral da luta dos povos oprimidos contra o colonialismo e o imperialismo. Eis a razão da ferocidade dos colonialistas portugueses que se quis abater sobre o arquiteto do nosso edifício, o estratega dos nossos sucessos militares, o diplomata das nossas iniciativas no plano internacional. Tentar por todos os meios intercetar a caminhada da nossa luta e, sobretudo, impedir o triunfo do seu exemplo, em função dos interesses económicos em jogo em Angola e Moçambique, tal foi a principal motivação que orientou a execução dos planos sinistros do governo colonialista português”.

Argumentação apropriada para tentar encobrir a clivagem que todos pretendiam iludir e que levou ao assassinato de Cabral, um complô onde estiveram exclusivamente militantes do PAIGC.

Em 1980 a Guiné muda de rumo, há o golpe de Estado contra Luís Cabral e escreve-se taxativamente no livro que este golpe marcou o desejo de autonomia dos bissau-guineenses em relação aos cabo-verdianos, até então presentes nas engrenagens do Estado. Fala-se nas riquezas naturais, no programa de estabilização, numa nova estratégia para a agricultura, dá-se conta do fabrico do óleo de palma e de um conjunto de fábricas que pareciam caminhar bem e, como é sabido, tudo caiu na água: o complexo agroindustrial do Cumeré, a fábrica de montagem Citroën, a fábrica de oxigénio e de acetileno, a fábrica de farinha e de óleo de peixe de Cacheu e a fábrica de cerâmica de Bafatá. E alude-se às boas perspetivas turísticas, conta-se com Varela e Bubaque. Faz-se menção do sistema educativo e do que se pretende com a política de saúde. A cultura envolve cantares, dançarinos, estatuária, a chegada do cinema. Aqui e acolá pintalga-se o texto com curiosidades, uma delas é uma forma coloquial de relação em que se diz com muita regularidade “Não há problema!”, o mesmo é dizer que tudo se vai resolver.

Temos depois uma digressão pelas cidades, fala-se num certame que decorria em Bafatá, a Feiragril, a 87 desfilava, russa, chinesa e norte-americana. Há uma palavra elogiosa para a panaria, as lojas comerciais icónicas e até os bons tascos de petiscos como a Casa Santos na estrada de Santa Luzia. Sugere-se ao turista interessado uma visita aos bairros de Belém, Sintra, Alto-Crim, Cupelon, Santa Luzia. Estaria em curso a ideia de pôr de pé o Museu Nacional, trabalhava mesmo em Bissau Ahmed Dawelbeit, um historiador natural do Sudão, era o responsável pelo projeto, havia mesmo uma comissão de instalação do museu e dá-se a seguinte informação: Até à independência, existia um centro museográfico cujas coleções foram dispersas, perdidas, traficadas ou revendidas nos países limítrofes e a colecionadores privados. Hoje restam apenas 219 peças, das quais muitas em péssimo estado. A digressão passa por Bissorã, Buba, Cacheu, Canchungo, Catió, Farim, Xitole. Exibem-se lindíssimas fotografias de arquitetura colonial portuguesa, diz-se que as autoridades entendem conservar este património cultural. Aspetos etnográficos e etnológicos são aqui e acolá detalhados, caso do casamento dos Bijagós, aliás a digressão dos Bijagós merece cuidadosas referências, era (e é) a grande atração turística de quem vem diretamente de avião até Bubaque e não põe os pés no continente. No entanto, há referências a eventos como o Carnaval de Bissau, vemos uma imagem do grande hotel e do então complexo hoteleiro do 24 de setembro, tudo também desaparecido e, como se disse, aproveita-se qualquer oportunidade para adicionar uma nota de caráter etnológico, antropológico ou etnográfico, é o caso de um texto bem elaborado sobre a criação do mundo segundo os Bijagós.

Vêem-se todas estas fotografias, há aquelas que nos são muito próximas, como as atividades laborais, o Bissau Velho, os preparativos do penteado das mulheres, o trabalho árduo dos regos e os camalhões dos arrozais usando como instrumento de trabalho uma espécie de remo encurvado que dispõe a terra barrenta em montículos prontos a ser semeados; e há aquelas descrições de que a política de saúde é um êxito, de que a cidade de Bolama está a ser recuperada, de que há voos de Aeroflot, da TAP, pelas Nouvelles Frontières, cruzeiros de pesca organizados pela Africa Tour. E recomenda-se ao leitor uma pequena bibliografia que vai desde volumes sobre a luta armada até a um livro de Michel Renaudeau sobre a Guiné-Bissau. Tanto quanto se sabe, estas publicações desapareceram quando desapareceu o Banco Nacional da Guiné-Bissau que lhes deu origem.

Atividade laboral em Bubaque, tratar do coconote

Uma expressiva fotografia de Michel Renaudeau
Imagem vigorosa da preparação do campo para a cultura orizícola
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24587: Notas de leitura (1609): "A Guerra e a Literatura", por Rui de Azevedo Teixeira; Vega, 2001 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24527: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (4.ª estadia, 2023): crónicas de Rui Chamusco / ASTIL (excertos). Parte VII: 26, 28, 29 de abril, 1, 2, 3, 4 ,5, 10, 16 de maio de 2023... “Cada criança que nasce é sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade”...


Timor Leste > Dili  > Palácio do Governo _ 2023 > Foto do Jornal Tornado, "on line" (Jornal global para a lusofonia), 23 de junho de 2023 (com a devida vénia) 


1. Continuamos a publicar alguns excertos das crónicas que o nosso amigo Rui Chamusco (76 anos, professor de educação musical reformado, do Agrupamento de Escolas de Ribamar, Lourinhã, natural de Malcata, concelho de Sabugal, cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste) nos mandou, na sequência da sua 4.ª viagem àquele país lusófono (março-maio de 2023).

Esteve lá já 4 vezes, em 2016, 2018, 2019 e agora em 2023, no àmbito da construção, organização e funcionamemento da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau, ;Manati, município de Liquiçá. Desta vez, juntou-se a ele um casal da Lourinhá, ela, professora de educação especial, já com uns bons anos passados em Macau, e ele, contabilista, reformado.

O Rui Chamusco, o "abô" Rui, é juntamente com a família luso-timorense Sobral um dos grandes pilares deste projeto de solidariedade com o povo timorense. É um exemplo inspirador, de amor à lusofonia e de solidariedade para com o povo de Timor Leste, que merece ser conhecido pelos mossos leitores. Além disso, há aspetos da história, da geografia e da cultura timorenses que nos são totalmente desconhecidos.

Para os leitores que se queiram associar a este projeto, aqui fica a conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (4ª estadia, 2023):
crónicas de Rui Chamusco
/ ASTIL (excertos) (*)

Parte VII -26, 28,  29 de abril, 1, 2, 3, 4 ,5, 10, 16 de maio de 2023 



26.04.2023, quarta feira - "Em cada esquina um amigo / Em cada rosto igualdade"...


Ainda em rescaldo do 25 de Abril, hoje tivemos o privilégio de ir receber ao aeroporto Nicolau Lobato os nossos amigos e vizinhos da Lourinhã - o casal João e Maria João Picão. 

Foi uma alegria partilhar beijos e abraços, depois da longa viagem que os trouxe até cá, até este país irmão que alguns temos a sorte de conhecer, mas que muitos outros assim o desejariam também. 

A colega Maria João é educadora com larga experiência no ramo, e sempre manifestou a vontade de visitar a Escola São Francisco de Assis, em Boebau/ Manati e de aí trabalhar alguns dias com as crianças e as cuidadoras do pré-escolar. Para a semana lá iremos nós cumprir a missão. E, como o homem não deve separar o que Deus uniu, vai marido, vai mulher e vamos todos a caminho da montanha.

Para surpresa minha tive conhecimento através deste casal que, a residir na Praia da Areia Branca, na Lourinhã, está o Dr. Pedro Serrano. Quando ouvi o seu nome estranhei e perguntei: “Pedro Serrano? Do Porto? Filho do Dr. Joaquim Serrano?!...

” Sim!” responderam de imediato. Então não é que nos anos 65-70, sendo eu estudante de Teologia no Seminário dos Capuchinhos no Amial (Porto), dei aulas de guitarra ao Pedro, agora sr. doutor, que então era estudante de medicina. Ou seja tão perto um do outro, ambos a residir na Lourinhã, e tão longe, pois nunca mais nos vimos nem tivemos noticias um do outro. Vai ser bonito, quando eu chegar à Lourinhã e bater à sua porta! Obrigado , amigos Picão. (...)


Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2023 > "Só eu sei por quê. Mas esta despedida da escola, dos lugares, das crianças e das gentes de Boebau custou-me muito. Que seja o que Deus quiser."


Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2023 > Transporte coletivo, uma "anguna"


Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2023 > A "pickup" da AstilMB (Associação de Amigos Solidários com Timor Leste de Manati / Boebau).

Fotos (e legenda): © Rui Chamusco (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




28.04.2023, sexta feira  - Solitário ou Solidário?

Quem puder entender que entenda. Assim vai a administração pública neste país. Assim vai a segunda língua oficial em Timor Leste.

É pela quarta vez que temos de vir a Balide, ao edifício da Administração Pública / Serviço de Registos de Veículos Motorizados, a fim de fazermos o registo de propriedade da pick-up em nome da AstilMB (Associação de Amigos Solidários com Timor Leste de Manati / Boebau). 

Muito tempo, muito suor no corpo, muita falta de paciência que nos espera. Mas tem de ser, e “o que tem de ser tem muita força". O que vale é resiliência e a competência do Eustáquio.

E, quando pensávamos que o dossiê já estava quase todo bem, eis que o Eustáquio vem até mim e pergunta: “Tiu, é Associação de Amigos Solidários ou Solitários?” “Solidários” respondi. “Então aqui está escrito Solitário”. 

Ficai danado quando confirmei o que me dizia. Praguejei, chamei nomes e não sei quantas coisas mais. Então se no preenchimento dos nossos papéis estava “Solidários” porque é que “inteligências superiores” escreveram “Solitários”, que é precisamente o contrário. 

Incompetência? Não percebem o português? E vai daí, mais voltas, mais papéis e uma vontade enorme de dar um murro na mesa em sinal de protesto.

Ainda relacionado com este acontecimento, deu para ver os esquemas utlizados para resolver estes assuntos, depressa e bem. Como em todo o lado, quem tiver “cunhas” e conhecimentos, depressa resolve o problema. Há serviços tolerados, mas que têm de ser pagos, com distribuição da importância estabelecida pelos diferentes intervenientes. Todos comem do mesmo. Alguns destes “brokers” (não sei se é nome da marca da camisola ou se é mesmo o nome técnico por que são identificados) são conhecidos e movimentam-se à vontade no átrio de espera, passam de guichê (loket) em guichê  dando andamento ao dossiê, enquanto o proprietário do veículo espera calmamente num sítio qualquer combinado ou até é feito por telemóvel.

Nós, embora pudéssemos pagar a importância que eles levam, não quisemos alinhar neste esquema mafioso e, portanto, não nos podemos queixar dos tormentos por que passamos.


29.04.2023, sábad0 - Companhia Picão & nós

Foi um dia bem passado. Em boa companhia, João e Maria João Picão e nós (Eustáquio, Adobe e eu), visitamos os sítios mais icónicos de Dili: Lahane, cemitério de Santa Cruz, Escola Portuguesa Ruy Cinatti, Catedral, canto do Artesanato, mercado e largo de Tassi Tolo, monumento a João Paulo II (que maravilhosa paisagem sobre o mar!...), Timor Plaza, igreja de Motael, monumento aos jovens resistentes, Páteo, Bairro Pité, Ailok Laran. 

Outros locais interessantes já tínhamos visitado em dias anteriores: Cristo Rei, Praia da Areia Branca. Houve tempo para tudo, até para dar uns passinhos de dança ao toque do acordeão e do violino. E como o “loro mono” (pôr do sol) já se foi, lá fomos nós também levar estes amigos à casa onde pernoitam, em Bidau. (.
 

01.05.2023, segunda feira  - Semana especial

Começa hoje a semana esperada, em que a educadora Maria João, o seu esposo João Picão, o Eustáquio e eu prometemos passar em Boebau, promovendo atividades e ensinamentos na ESFA - Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem”. 

Como sempre, as viagens de ida e volta para Boebau causam-nos sempre alguma ansiedade devido às dificuldades do caminho e às peripécias por que teremos de passar. E lá vamos nós “cheios de pica”, desta vez também de Picão (família Picão). 

Em Ai Pelu fizemos uma pequena paragem a fim de recebermos as ofertas que a professora Cristina nos entregou para a ESFA, pois, devido ao atraso com que chegámos, já não lhe foi possível ir connosco até Boebau. Obrigado, professora, pelas bolas e pelo saco de arroz que nos entregou!

Chegámos, sem incidências de percurso, ao princípio da tarde e, como os alunos ainda estavam de férias, foi ocasião de mostrar em pormenor aos nossos amigos vindos de Portugal a Escola e a Casa dos professores onde ficamos alojados. Ainda que com condições mínimas, este espaço permite-nos alguma privacidade e descanso.

E, perante os condicionamentos a que o casal Picão fica sujeito (por exemplo: 2 colchões individuais terem de dormir 3 pessoas), o João Picão sai-se com esta: “O melhor é juntar os dois colchões e dormir por turnos”. Ora toma lá esta!... Coitado, não teve outro remédio que dormir agarradinho á esposa, saindo de vez em quando do leito conjugal para bater com o costeado no chão, ou então roçado à parede. “Ó Costa! A vida costa!”


01.05.2023, segunda feira  - Lagartos, Teques, Toquês, aves e outros répteis

Se já o colchão era tão exíguo, agora são as bichezas cá do sítio que assustam os visitantes. Podem entrar onde quiserem porque todas as casas timorenses têm aberturas suficientes que lhes permitem a entrada. Sobretudo os Teques (osgas) que são presença constante em qualquer espaço. Depois de se taparem alguns buracos, não restava outra alternativa a de não ser fechar os olhos e deixar-se dormir, talvez com sonhos mirabolantes que incluam estas novas experiências.

Mesmo em frente da casa, está uma manga, uma árvore de uns três metros de altura, que serve de poleiro para galos e galinhas da vizinhança. É impressionante os voos rasgados de baixo para cima, ao pôr do sol, e do alto para baixo, ao nascer do sol. É de notar também a hierarquia que respeitam. Primeiro os maiores (galos e galinhas) e depois por ordem decrescente, os mais pequenos. Todos em voo rasgado. Depois cantam, fazem a alvorada, até que aparece alguém com uma mão cheia de milho para onde correm apressados. Logos que os galináceos desarvoram do sítio, chega a reboada das aves mais pequeninas, na sua maioria pardais ou outra espécie qualquer.


02.05.2023, terça feira - Escola, hino da escola 
e fortes emoções

De manhazinha, toca a levantar. Às oito horas estamos a caminho da escola, e quando chegamos (8.15h) já as crianças povoavam o átrio da mesma. Muitas saudações, muitos beija-mão, muitos sorrisos. 

Uma grande alegria de rever estes rostos de crianças e adultos, que já fazem parte da minha vida. O carinho que manifestam sobretudo ao abô Rui emociona-me, e às vezes até me faz chorar. (Sim, porque os homens também choram.) 

Depois da entrada organizada, onde cada criança nos saúda (Bom dia professor! Bom dia, professora!), cantámos o hino da escola. Um momento indescritível devido ao entusiasmo com que estas crianças cantam. E eu também vi a Maria João com a lágrima no canto do olho. (Sim, porque as mulheres também choram.)

Quem não estava nada à espera era o João, que foi mandado chamar, a fim de impor o tais de boas vindas às visitas. Creio que ele também se emocionou. Foi o que eu senti no abraço que nos demos.

Foi uma manhã repleta de coisas boas, em que educadores e educandos participaram de alma e coração.

De tarde, fomos visitar a família do Bô Zé e a família do senhor Francisco, pois tinha o donativo dos padrinhos para lhe entregar. Um momento único que muito nos interpelou, pela simplicidade e generosidade com que nos receberam e partilharam o espaço da sua humilde habitação. Que São Francisco olhe também por este Francisco de Boebau!


02.05.2023, terça feira  - O inesperado acontece


Já noite, sentados à soleira da porta, aparece a família Francisco (o próprio, a esposa e o filho Joel) que trazia ao colo um bonito galo, talvez o rei da capoeira, e que eu pensava que seria para vender, com certeza para a luta de galos que por Timor é habitual.

Surpresa! Afinal este galo não é para vender, não. É para oferecerem ao abô Rui, por que lhe estão muito gratos pelo que tem feito por eles. Fiquei sem palavras. E ainda que eu me escusasse a recebê-lo, argumentando que não era necessário, que eu não o podia levar para Portugal, etc, etc... não houve outra alternativa que aceitá-lo e trazê-lo para Ailok Laran, para a casa do Eustáquio, que é onde ele vai ficar, mas com um pedido meu: “por favor não matem este galo. Deixem-no cantar até morrer”. Tenho a certeza de que irão respeitar a minha vontade.

Mas o galinheiro foi crescendo, através de novas ofertas do Cesáreo, do Bô Zé, do Sr. Manuel (antigo comandante de guerrilheiros no tempo da invasão indonésia). Ou seja, quem quer galinhas,  venha até Boebau, e faça por merecê-las.


03.05.2023, quarta feira - Vida dura,  a da montanha!...

Hoje aconteceu aos outros. A angunan do Silvestre, que vai e vem todos os dias transportando pessoas com os seus bens e haveres, de Manati até Liquiçá, estava a tardar em chegar. Com alguma preocupação, tentamos saber o que se passava, pois nunca mais chegava. A Adelina que estava nesta viagem de ida e volta ficou de nos fazer algumas compras, e esperávamos por ela a todo o instante. Por isso pedimos ao Nico, seu marido, que a contatasse. 

Foi então que ela explicou: “ a angunan não pode passar, devido a obras no caminho. Teve de ficar do lado de lá, e nós vamos todos a pé”. Mais de uma hora, de noite, com o peso das compras aos ombros ou na mão. Alguns ainda fomos ao seu encontro, mas já pouco caminho fizemos. Pela luz das pilhas de gente a falar, pdressa nos demos conta que estavam muito perto, quase a chegar. É assim a vida nas montanhas. De repente, surge algo de imprevisto e toca a desenrascar nem que seja fazer o caminho a pé.


04.05.2023, quinta feira  - Instrumento da paz: 
encontro com os desavindos

Ouvi dizer da rivalidade existente, em Boebau, de dois dos meus primeiros amigos, que até são familiares, e que por incompreensão um do outro, até já se ameaçam violentamente (aqui em Timor a arma mais utilizada é a catana). 

Não conforme com esta atitude de vingança mútua, pedi ao Eustáquio que os avisasse de que eu queria ter um encontro com eles. A minha dúvida era se eles aceitariam esse encontro.

À hora marcada, na Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem”, aí estava eu, o Eustáquio e os dois desavindos. Como o katuas do grupo pedi a palavra para lhes dizer o motivo desta reunião, apelando à nossa amizade, ao espírito de Paz e Bem de Francisco de Assis, padroeiro da nossa escola, à necessidade de nos perdoarmos uns aos outros nem que seja 70 vezes 7, à concórdia e à união. 

Por sua vez o Eustáquio, pessoa que eles muito estimam e consideram, também lhes falou ao coração. As minhas palavras finais foram:” A decisão é vossa. Mas, eu ficarei muito triste se tiver de partir para Portugal sabendo que vós continuais em guerra. Pelo contrário, ficarei muito, muito contente se perdoarem um ao outro e fizerem as pazes”. 

Dada a palavra a cada um, ambos manifestaram, até com emoção e com lágrimas, que estavam dispostos a perdoar. E agradeceram ao abô Rui ter proporcionado este encontro, pois já há muito tempo que o desejavam, mas ninguém os ajudava a encontrar e perdoar.

Abraçaram-se, perdoaram e até parece que ficaram mais aliviados. Esperemos que este acordo de paz seja duradoiro, e que São Francisco lhes sirva de exemplo e proteção. Quanto a mim, estou feliz por ser, à semelhança de Francisco de Assis, um instrumento de paz.


04.05.2023, quinta feira  - “Cada criança que nasce é sinal...”

“Cada criança que nasce é sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade”.

Talvez o habitante mais novo de Boebau. Nasceu a noite passada. Os pais, dois jovens que moram mesmo à nossa beira, foram pais pela primeira vez. Agora são quatro, porque vivem em casa da avó paterna.

E, como a criança apresentava bastante fraqueza devido à mãe não produzir o leite suficiente para o amamentar, foi convocada a família com relevo para o irmão mais velho, a fim de fazerem o ritual prescrito para esta situações. A crença desta gente faz-nos pensar e repensar. Acredita quem quiser…

À família, aos pais e à criança, que Deus os proteja. Que o menino cresça em estatura, sabedoria e graça. Parabéns Zé, esposa e menino!


05.05.2023, sexta feira  - Meninas que leem tão bem!

A Adelina, que trabalha na ESFA e ajuda na preparação da liturgia na igreja (capela), transbordava alegria e alguma vaidade ao contar-nos o que as pessoas diziam das meninas Titânia,  alunas da nossa escola, depois de lerem as leituras na missa do domingo passado. 

“Quem são aquelas meninas que leem tão bem?” Pois, estas meninas frequentam o 4º ano do ensino primário da Escola São Francisco de Assis em Boebau. Até nós nos envaidecemos com estes elogios. O que quer dizer que, apesar das dificuldades que a nossa escola enfrenta, nomeadamente com contratação de professores credenciados, o nível de ensino tem-se distinguido pelas boas prestações que alunos e professores têm demonstrado. 

Por vezes, a boa vontade e a dedicação ao trabalho valem mais que canudos e diplomas. Parabéns, meninas e “professores” ! Continuem a fazer o melhor que souberem. O nosso apoio nunca lhes irá faltar...


05.05.2023, sexta feira - Um “adeus” sentido

Só eu sei por quê. Mas esta despedida da escola, dos lugares, das crianças e das gentes de Boebau custou-me muito. Que seja o que Deus quiser.

À hora combinada lá estamos nós de partida, rumo a Dili. Talvez a viagem menos penosa das que fizemos de Boebau/Liquiçá, percorrendo outros caminhos. Mas, como diz o ditado, “todos os caminhos vão dar a Roma”. Por isso a chegada ao destino processou-se dentro da normalidade.

Obrigado, Maria João e João Picão,  pela vossa disponibilidade e generosidade. É dando que se recebe, e penso que depois de tudo o que destes a esta gente também vos sentireis “de alma cheia” com esta experiência radical. “Adeus! Adeus! Adeus, Maria João”, cantavam as crianças, com música do Avé de Fátima. Inesquecível!...


10.05.2023, quarta feira - Em digressão

Merecido ou não, resolvemos dar uma volta turística por Timor-Leste. A comitiva destes dias (Eustáquio, Maria João, João Picão e eu) partiu de Dili rumo a a Baucau, Los Palos, Tutuala e Com, à procura das paisagens e das pessoas maravilhosas deste país. 

Se não fora as estradas com péssimo piso que tivemos de percorrer, diríamos que este passeio teria sido o máximo. Mas, feitos os descontos desta carência, podemos dizer que valeu bem a pena. Foram três dias maravilhosos. 

Então a estadia em Com, roçou a imagem do paraíso na terra. Que beleza de mar, que esplendor do sol poente e do sol nascente, que delicadeza destas gentes! Mais a mais, Com é terra que viu nascer Kon Santana, um dos heróis da resistência que sucedeu a Xanana Gusmão após a sua prisão pelas forças indonésias. 

Com foi também o palco principal para observar o fenómeno natural do eclipse solar que ocorreu no passado mês de abril. Observadores de todo o mundo (até dois portugueses) instalaram-se aqui para contemplar esta maravilha. Não estranho nada a atitude contemplativa de Francisco de Assis ante o Irmão Sol e o cântico que compôs chamando irmãs a todas as criaturas.

Depois foi o caminho do regresso, percorrendo as estradas (?) que nos conduziram a Dili.


16.05.2023, terça feira - Alvorada ou Desgarrada?

Ao ouvir todos os dias, logo de manhãzinha, o canto dos galos fico a pensar no termo correto: Alvorada ou Desgarrada?

Ainda que o seu canto pareça ser uma repetição, cada vez que os ouço cantar encontro nuances em cada resposta que me encantam e me dão vontade de entrar também no desafio. Então o meu Xico, que posso observar bem perto, enche bem o peito de ar, estica-se todo e bota lá de dentro um vozearão que o faz campeão, solista principal, desta alvorada matinal. À hora certa, aí está ele a desafiar. Já tentei responder-lhe, mas ele vence sempre, é mais forte do que eu, canta bem melhor do que qualquer um. “O nosso galo é bom cantor”, diz a canção. Foi feito para cantar. Por isso já deixei expresso o meu desejo, a minha ordem que, enquanto ele assim cantar não o podem vender e muito menos matar. Pois “quem canta, o seu mal espanta”.

“...ó do qui ri qui - có ró có - cá rá cá / Festa como a nossa no mundo não há!”

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos / subtítulos: LG)

(Continua)
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