segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24596: Notas de leitura (1610): "A Guiné-Bissau Hoje", por Patrick Erouart; Éditions du Jaguar, Paris, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Folheiam-se estes guias turísticos da década de 1980 e temos uma Guiné próximo e longínqua, há apelos ao investimento, a indicação de rotas para o lazer a partir de Paris, Banjul ou Dacar, nem uma palavra sobre Lisboa mesmo falando dos voos da TAP. As fotografias de Michel Renaudeau são estonteantes, mostrando um povo a dançar, a trabalhar ou a estudar, um património edificado que já caiu de podre ou que precisa de obras urgentes. Propõe-se programas de caça e de pesca, mostram-se os meandros do Geba, do Cacheu e do Mansoa, há muitíssima informação sobre os Bijagós. Encena-se uma Guiné que procura uma via de prosperidade, tanto agrícola como piscícola, adicionam-se observações referentes à luta pela independência e de vez em quando salta um disparate ou uma incongruência, coisas provavelmente reminiscentes de uma época de heróis lendários que acabam por ser tratados paradoxalmente quando se diz que o golpe de 14 de novembro de 1980 autonomizou a Guiné da opressão cabo-verdiana. Coisas da vida. Estes livros são uma relíquia, deviam constar das bibliotecas portuguesas e guineenses, estas imagens são por vezes testemunhos grandiloquentes de um povo que ultrapassou todos os limites da paciência mas que continua a aguardar com serenidade uma via consistente para o progresso.

Um abraço do
Mário



A Guiné-Bissau hoje, por Patrick Erouart, estávamos em 1988

Mário Beja Santos

Na década de 1980 o Banco Nacional da Guiné-Bissau promoveu e patrocinou um conjunto de publicações de apelo atrativo ao investimento e ao turismo no país. Recorreu a roteiristas com obra feita e a fotógrafos eméritos, caso de Michel Renaudeau. Em 1988 surgiu este livro "A Guiné-Bissau Hoje", das Éditions du Jaguar, Paris, numa versão aparentada com o português, dando-nos um panorama histórico, socioeconómico e cultural, um quadro das cidades e notas práticas para quem pretendesse viajar. Vale a pena seguir cuidadosamente o texto, o país que se descreve está um tanto distante do país de hoje. E as imagens são francamente deslumbrantes.

Temos a localização, superfície, relevo, clima e assim chegamos ao Sahel e à seca, esta é uma verdadeira bomba retardadora: “O Sahel avança e rói. O clima destas regiões, de tipo sudanês, goza apenas de uma pluviosidade inferior a 1250 a 2000 mm por ano. Mas já há vários anos que a disparidade das chuvas inquieta gravemente as populações cujas condições de vida estão intimamente ligadas à água. Entre a independência, em 1974, e 1978, durante cerca de cinco anos, a chuva não caiu em quantidade suficiente para a renovação das culturas: treze anos de independência, metade dos quais sob a seca!”.

Mas logo se alerta que se caminha para uma destruição total da cobertura vegetal. Carateriza-se a sociedade multiétnica, descreve-se a história pré-colonial, desde o reinado do Mansa no Império do Mali até à chegada dos invasores fulas que puseram termos aos reinos mandingas. Dá-se uma breve nota sobre a economia e sociedade no tempo dos Mansa e entramos na colonização, situada predominantemente no litoral dos chamados Rios da Guiné e de Cabo Verde. Daqui passa-se para a alvorada do nacionalismo e o início da guerra da independência. Seguramente por dispor de informação pouco credível ou mesmo falsificada, o PAIGC aparece colado aos acontecimentos de 13 de agosto de 1959, entramos propriamente numa luta armada que envolveu diplomacia de uma vida específica no interior das matas.

E assim se chega à independência e cita-se Mário de Andrade, um importante dirigente político angolano que viveu muito de perto as lutas do PAIGC:
“A nossa luta armada de libertação inscrevia-se como uma das mais avançadas, no quadro geral da luta dos povos oprimidos contra o colonialismo e o imperialismo. Eis a razão da ferocidade dos colonialistas portugueses que se quis abater sobre o arquiteto do nosso edifício, o estratega dos nossos sucessos militares, o diplomata das nossas iniciativas no plano internacional. Tentar por todos os meios intercetar a caminhada da nossa luta e, sobretudo, impedir o triunfo do seu exemplo, em função dos interesses económicos em jogo em Angola e Moçambique, tal foi a principal motivação que orientou a execução dos planos sinistros do governo colonialista português”.

Argumentação apropriada para tentar encobrir a clivagem que todos pretendiam iludir e que levou ao assassinato de Cabral, um complô onde estiveram exclusivamente militantes do PAIGC.

Em 1980 a Guiné muda de rumo, há o golpe de Estado contra Luís Cabral e escreve-se taxativamente no livro que este golpe marcou o desejo de autonomia dos bissau-guineenses em relação aos cabo-verdianos, até então presentes nas engrenagens do Estado. Fala-se nas riquezas naturais, no programa de estabilização, numa nova estratégia para a agricultura, dá-se conta do fabrico do óleo de palma e de um conjunto de fábricas que pareciam caminhar bem e, como é sabido, tudo caiu na água: o complexo agroindustrial do Cumeré, a fábrica de montagem Citroën, a fábrica de oxigénio e de acetileno, a fábrica de farinha e de óleo de peixe de Cacheu e a fábrica de cerâmica de Bafatá. E alude-se às boas perspetivas turísticas, conta-se com Varela e Bubaque. Faz-se menção do sistema educativo e do que se pretende com a política de saúde. A cultura envolve cantares, dançarinos, estatuária, a chegada do cinema. Aqui e acolá pintalga-se o texto com curiosidades, uma delas é uma forma coloquial de relação em que se diz com muita regularidade “Não há problema!”, o mesmo é dizer que tudo se vai resolver.

Temos depois uma digressão pelas cidades, fala-se num certame que decorria em Bafatá, a Feiragril, a 87 desfilava, russa, chinesa e norte-americana. Há uma palavra elogiosa para a panaria, as lojas comerciais icónicas e até os bons tascos de petiscos como a Casa Santos na estrada de Santa Luzia. Sugere-se ao turista interessado uma visita aos bairros de Belém, Sintra, Alto-Crim, Cupelon, Santa Luzia. Estaria em curso a ideia de pôr de pé o Museu Nacional, trabalhava mesmo em Bissau Ahmed Dawelbeit, um historiador natural do Sudão, era o responsável pelo projeto, havia mesmo uma comissão de instalação do museu e dá-se a seguinte informação: Até à independência, existia um centro museográfico cujas coleções foram dispersas, perdidas, traficadas ou revendidas nos países limítrofes e a colecionadores privados. Hoje restam apenas 219 peças, das quais muitas em péssimo estado. A digressão passa por Bissorã, Buba, Cacheu, Canchungo, Catió, Farim, Xitole. Exibem-se lindíssimas fotografias de arquitetura colonial portuguesa, diz-se que as autoridades entendem conservar este património cultural. Aspetos etnográficos e etnológicos são aqui e acolá detalhados, caso do casamento dos Bijagós, aliás a digressão dos Bijagós merece cuidadosas referências, era (e é) a grande atração turística de quem vem diretamente de avião até Bubaque e não põe os pés no continente. No entanto, há referências a eventos como o Carnaval de Bissau, vemos uma imagem do grande hotel e do então complexo hoteleiro do 24 de setembro, tudo também desaparecido e, como se disse, aproveita-se qualquer oportunidade para adicionar uma nota de caráter etnológico, antropológico ou etnográfico, é o caso de um texto bem elaborado sobre a criação do mundo segundo os Bijagós.

Vêem-se todas estas fotografias, há aquelas que nos são muito próximas, como as atividades laborais, o Bissau Velho, os preparativos do penteado das mulheres, o trabalho árduo dos regos e os camalhões dos arrozais usando como instrumento de trabalho uma espécie de remo encurvado que dispõe a terra barrenta em montículos prontos a ser semeados; e há aquelas descrições de que a política de saúde é um êxito, de que a cidade de Bolama está a ser recuperada, de que há voos de Aeroflot, da TAP, pelas Nouvelles Frontières, cruzeiros de pesca organizados pela Africa Tour. E recomenda-se ao leitor uma pequena bibliografia que vai desde volumes sobre a luta armada até a um livro de Michel Renaudeau sobre a Guiné-Bissau. Tanto quanto se sabe, estas publicações desapareceram quando desapareceu o Banco Nacional da Guiné-Bissau que lhes deu origem.

Atividade laboral em Bubaque, tratar do coconote

Uma expressiva fotografia de Michel Renaudeau
Imagem vigorosa da preparação do campo para a cultura orizícola
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24587: Notas de leitura (1609): "A Guerra e a Literatura", por Rui de Azevedo Teixeira; Vega, 2001 (Mário Beja Santos)

4 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Chamo a vossa atenção para a última foto. No Xime, o Malan Djai Quité (que será feito dele?) também usava esta técnica. Trabalhava sozinho com o Sol a pino. Não percebo muito disto,mas não me restam dúvidas de que se trata de técnicas neolíticas... algo curioso, digo eu.
Mas o estado miserável do palácio de Bolama deixa qualquer visitante surpreendido pela negativa. Será que é uma construção a demolir por ser do tempo da escravatura como é moda, agora?
Desculpem mas é a opinião de um estrangeiro...

Um Ab,
António J. P. Costa

Valdemar Silva disse...

Provavelmente, as ruínas com melhores materiais de construção continuaram de pé.
Temos observado que na Guiné não tem havido aproveitamento, antes deixado ao abandono, do património edificado, como aconteceu em Cabo Verde, no edificado chamado 'do tempo colonial'.
Na Guiné os portugueses, e depois com os últimos anos devido à guerra, deixaram pouco património edificado, que em Bissau tem sido utilizado com obras de manutenção e no Gabu o Edifício da Governo Regional, sendo este, julgo, o maior edifício colonial fora de Bissau assim recuperado.

O que por lá ficou chamam-lhes ruínas coloniais/do tempo dos portugueses por terem passado apenas cinquenta anos, por cá até à pouco tempo era tudo do tempo dos mouros, fossem romanas ou castrejas.

Agora, 500 anos com os portugueses na Guiné apenas com duas fortalezas edificadas a de Forte de Cacheu inic. séc. XVII e a de Fortaleza de Bissau inic. séc. XVIII, nem deu para haver ruínas e as pedras aproveitadas noutras construções.

O nosso caro amigo Cherno Baldé, julgo estar ligado a assuntos do património, poderá nos explicar como está a ser resolvido, se assim se pode dizer, a questão do chamados núcleos histórico colonial de Bissau, Bafatá e outros, como aconteceu em Cabo Verde.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

O que a Guiné se pode queixar especificamente da colonização portuguesa é que Portugal ao contrário da França, não lhe deixou minas de ouro.

Toda a francofonia em volta, tem explorações auríferas â séculos, pequenas ou grandes, e a Guiné nem ao menos um diamante.

Culpa de Portugal? Os guineenses creio que não pensam isso.

Por alguma razão sobraram aquelas tiras coloniais para Portugal, as sondagens não acusavam ouro.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sobre o milenar aradao balanta, vd. nota de leitura do Beja Santos:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2012/01/guine-6374-p9334-notas-de-leitura-321.html