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sexta-feira, 12 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25737: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte II: 15 minutos, de ferro e fogo, no K3, em meados de 1963


Foto nº  5


Foto nº 6


Foto nº 6A

Foto nº 6B


Foto nº 7

Guiné > s/l > s/d > O alf mil art José Álvaro Carvalho  (1º trimestre de 1963/meados de 1965) > Nestas fotos do seu álbum ainda não conseguimos identificá-lo: talvez possa ser o militar que se vê na foto nº 6B, em segundo plano, de pefil, de óculos.




Angola > Ponte do rio Cuanza (em contrução, desenhada pelo eng. Edgar Cardoso) > c. 1971 > O José Álvaro Almeida de Carvalho, diretor do departamento de trabalhos externos da empresa L. Dargent Lda. Aqui ainda no início da montagem do tabuleiro da ponte...Viveu 5 anos em Angola (até depois do 25 de Abril de 1974).

Fotos: © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O José Álvaro Carvalho, 85 anos, natural de Reguengo Grande, Lourinhã, entrou recentemente para o nosso blogue. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*). 

Não dispondo da sua caderneta militar (diz que nunca a teve), o Zé Álvaro (como eu o trato, afetuosamente), não sabe exatamente em que data chegou ao CTIG, para render um alferes de uma companhia de intervenção, sediada em Bissau. Aponta para a primavera de 1963, escassos depois da guerra ter "oficialmente" começado, na "narrativa" do PAIGC,  com o ataque  a Tite, na região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963.

Já estava há 26 meses na tropa. E deve ter cumprido mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o segundo semestre de 1965. Passou por Bissau, Olossato e Catió, aqui já a comandanr um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo).


O alf mil Maurício Saraiva,
nascido em Sá da Bandeira,
quando ainda frequentava
 o curso de comandos,
em Luanda, em 1963.
Foto de Virgínio Briote
(2015)
No CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico do fado, "Carvalhinho" (*) . O Mário Dias, o Manuel Luís Lomba, o Virgínio Briote são (ou ainda são) do seu tempo e rconhecem-no.  O Armor Pires Mota (ex-alf mil, CCAV 488/BCAV 490, Bissau, Ilha do Como, Jumbebem, 1963/65) também era do seu tempo (ligeiramente mais novo: jul 63/ ago 65). Era também amigo do então alferes  'comando' Maurício Saraiva, que será depois visita da sua casa, em Lisboa (foto à direita, em q963, quando frequentava, em Angola, o curso de comandos).De acordo com as as suas memórias de guerra, ao oitavo mês de Guiné, o Carvalho (ou "Carvalhinho") ainda estava no Olossato. E no excerto que passamos a reproduzir. preparava-se para fazer uma golpe de mão ao K .  
Por sua conta e risco, tanto quanto dá para perceber. (K, leia-se K3 / Saliquinhedim: 
Saliquinhedim ao Km 3 da estrada Farim-Mansabá, será ocupado mais tarde, no último trimestre de 1965, pela  CCaç 1421).

Na versão, digital, que nos facultou, em formato pdf,  das suas memórias de guerra, os topónimos da Giné aparecem só com as iniciais (como é o caso  de O, 
de Olossato). Não há nomes de militares.  Nem datas.  Esclarecimentos  e informações  complementares têm sido obtidas através das  nossas conversas na Praia da Areia Branca (onde reside atualmente).

Pelas nossas contas (e apenas com base dos livros da CECA), essa companhia para a qual ele terá ido, inicialmente, em rendição individual,  pode ter sido a CCAÇ 273 (mo
bilizada pelo BII 17, Angra do Heroísmo): esteve no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses.)  

Sabe-se que a CCAÇ 273 teve um pelotão destacado no Olossato, por períodos variáveis, em 1963. Era comandada pelo cap inf Jerónimo Roseiro Botelho Gaspar.

Mas voltemos às memórias do Olossato, destacamento que ele vai reforçar,  dois meses depois de estar em Bissau, a fazer segurança a Bissalanca (de 3 em 3 dias) e patrulhamentos nos arredores.  

De acordo com o poste anterior, ele  tinha saído em coluna auto,  para uma missão na região do Cacheu, de que foi desviado, para o Olossato, ao chegar a Mansoa, por ordem do QG (**): 

(...) "O pelotão para aí destacado, não conseguia não só defender o povoado, como até impedir que o inimigo, encurralando-o de metralhadoras apontadas a cada porta do edifício do quartel, um antigo celeiro de amendoim rodeado de arame farpado a distância conveniente, se passeasse impunemente na aldeia, entrando nos dois estabelecimentos comerciais existentes, abastecendo-se do que bem entendia, em troca de requisições supostamente válidas, após ganha a guerra e exercendo junto da população civil branca ou africana as mais variadas formas de propaganda e intimidação.

"Após confirmar por rádio para o QG as ordens que acabara de receber, desviou a marcha no sentido da povoação de 
O[lossato] , entrando na região onde a guerrilha tinha começado a atuar recentemente e era constituída por um polígono com cerca de 120 kms de comprimento na sua maior dimensão e oitenta na outra , cuja principal estrada, que o atravessava em diagonal, estava obstruída por árvores derrubadas assim como todos os pontões e pequenas pontes já destruídas que atravessavam as linhas de água, que eram muitas em todo o território por ser este a foz dum rio importante, que se dividia por grandes e pequenos canais que se ligavam e entrelaçavam entre si." (...)

Portanto, quando chegou ao Olossato, com o seu pelotão, a "guerra subversiva" tinha começado na região do Oio. Estava-se já na época das chuvas. (E na sua terra, Lourinhã, estava-se em plena época balnear.) É uma narrativa, quase telegráfica, incisiva, "pura e dura", que me faz lembrar as crónicas do "Tarrafo",  o livro de 1965, do Armor Pires Mota, que também andou por aqueles lados (sector de Farim), além de ter estado na Ilha do Como (Op Tridente).



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil) > Pormenor: localização de Saliquinhedim / K3, entre o Olossato e Farim. (Não confundir com o verdadeiro Olossato, que fica a sudoeste de Farim, e que está localizado na carta de Binta.)



Guiné > Carta da Província (1961) (Escal: 1/500 mil) > Posição relativa do Olossato, em pleno coração da região do Oio... Do Olossato a K3 / Saliquinhedim eram c. 20 km por estrada. (A o
cupação de Saliquinhedim ao Km 3 da estrada Farim-Mansabá foi feitta pela  CCaç 1421 no final do ano de 1965.)

Infografias:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) 

Parte II:   15 minutos, de ferro e fogo, no K3, em meados de 1963



Durante as sestas, depois do almoço , o sono era calmo e repousado. Mas agora era noite e não conseguia dormir.

− Eles aí estão,  meu Alferes!!!

Choviam tiros por todo o lado. As metralhadoras dos postos principais matraqueavam o mais que podiam à medida que aumentavam os pec-bum dos disparos contrários.

Pegou numa granada de mão e, curvado, correu para o posto mais próximo.

 
Deixem-nos vir!!!

As metralhadoras calaram-se. As palmeiras suavam humidade, indiferentes aos homens e aos ruídos da noite.

Ouviam-se rebentamentos ao longe.

  Estão a estoirar com os acessos!!!

Tinham medo que alguma ajuda fosse pedida, mas não corriam esse risco. À noite o teto de nuvens era tão baixo que o rádio só emitia ruídos.

Chamou o furriel mais próximo.

 
− Não quero mais tiros! Deixem-nos chegar à vedação e depois acendam as luzes exteriores e abram fogo de novo. Por cada tiro quero um homem ferido ou morto! Se se vão embora sem "levar na tromba",  amanhã estão cá de novo!

No dia seguinte:

− Encontrámos alguns rastos de sangue.

− Quantos?

− Quatro.

− Já não foi mau.

O sol a pique aquecia a humidade excessiva, para que as plantas vivessem prósperas, numa inundação de verdura que era preciso destruir diariamente, à volta do celeiro de amendoim, único edifício do aquartelamento.

Durante o dia, a carne dos homens ficava mole. Ainda bem que só havia ataques à noite.

Era a hora do rancho. Os quinze homens do pelotão desfalcado, os nove da secção que o reforçava e os quatro condutores juntaram-se à volta das panelas fumegantes na cozinha de campanha instalada ao fundo do edifício, para receberem a sua ração e irem em seguida para a mesa de refeições, num compartimento separado por divisórias de esteira com 2 metros de altura como todos os outros que formavam as instalações do pelotão.

O impedido aproximou-se:

−  Meu Alferes, o jantar está pronto.

Trazia-lhe a amostra: sopa de feijão, batatas com bacalhau, bolachas, café instantâneo e vinho.

Provou e disse:

 Está bom.

Sentado com os três furriéis à volta duma mesa de caixotes, aguardava em silêncio que o impedido lhe trouxesse a refeição, a pensar que o tempo nunca mais passava. 

Tinha tido 26 meses de serviço militar na metrópole e já estava em África havia oito meses.

O operador rádio trouxe-lhe uma mensagem cifrada do pelotão do alferes que comandava uma guarnição a Norte, a guarnição de B
 [Bigene],  que havia pouco tempo ali tinha estado a contar-lhe do almoço com o comandante da lancha patrulha do rio C[acheu]

Tinha-lhe dito que esse comandante era uma óptima pessoa, uma vez que,  mesmo sem o conhecer, tinha atracado a lancha no cais e convidara-o para um excelente almoço. 

Não lhe apeteceu dizer que aquele almoço se destinava a ele, conforme tinha sido previamente combinado mas não tivera oportunidade de informar o comandante da lancha do desvio que lhe fora imposto e da alteração das instruções do quartel-general.

Na referida mensagem indicava-se em pormenor todo o percurso dos guerrilheiros treinados num campo junto à fronteira do S
 [enegal]. que passavam na região Norte, atravessavam no rio junto à povoação de
K[3],  onde recebiam apoio logístico e seguiam depois por um trilho a corta-mato até à estrada que passava a alguns km do seu aquartelamento, entrando depois na zona que o inimigo pretendia dominar, lutando por ocupar e controlar um território que lhe parecia estrategicamente propício.

Depois do café disse aos furriéis :

− Vamos arrasar o 
K[3].

− Fica a 30 kms.

 Por isso não nos esperam.

Levantou-se da mesa e foi fumar um cigarro sentado do lado de fora do edifício. Não havia vento. O calor continuava a encharcar-lhe o corpo. Tinha anoitecido. As estrelas mal se descortinavam por entre a humidade do ar. Devia ser aí que habitavam as coisas certas e decentes. Dentro em pouco viria mais uma das repentinas trovoadas da época, a descarregar água por todo o lado, a inundar tudo.

Já deitado, pensava que com alguma sorte a operação correria bem. O 
K[3] era a passagem obrigatória dos abastecimentos e dos homens do inimigo, treinados junto à fronteira, que diariamente reforçavam os efectivos da região. Ali se devia esconder todo o apoio necessário à travessia do rio: canoas e barcos de borracha,  como dizia a mensagem cifrada. Nas palhotas da aldeia próxima, ouvia-se o choro de crianças assustadas.

***

Eram 4 horas da manhã. O sargento de ronda que o antecedia, foi acordá-lo:

− Meu alferes, está na hora.

Levantou-se cheio de sono, e acendeu um cigarro que apagou depois de saborear algumas fumaças com força. Deu a volta a todos os postos e parou por fim no último.

− Tudo bem?!

 
− Tudo bem, meu alferes.

Para lá do arame farpado pouco se via além do reflexo das poças de água onde centenas de rãs coaxavam no silêncio da noite. Sentou-se ao lado da sentinela a sacudir os mosquitos que lhe mordiam o corpo por cima do fato de combate.

Já no seu compartimento, estendeu-se na cama à espera do café.

Pensava nas praias da sua terra, naquela altura cheias de gente e sol e paz. Deu-lhe vontade de rir o facto da vida poder ser tão diferente.

O rádio, em escuta, fazia a zoada do costume. Ouviu o ruído dos homens a acordar e foi até à cozinha.

 Quer provar o café,  meu alferes?

 Não, obrigado.

Depois de comer chamou os 4 furriéis ao seu compartimento. Apontou um deles e disse:

 Você entra comigo no centro da aldeia.

Apontando outro disse:

 Você fica no aquartelamento.

Apontando os dois restantes disse:

 
− Vocês entram à direita e à esquerda. 100 balas a cada homem, quatro granadas de mão, uma ração de combate. Levantar às zero horas, partida à uma. Caras sujas com rolha queimada.

Apontou no mapa e disse:

 Seguimos por aqui a corta-mato durante cerca de 20 kms até onde se situa a estrada que conduz ao 
K[3].. Nesta altura estamos a 2 kms do objectivo. Seguimos a pé. Os carros estacionam escondidos. Os motoristas aguardam no máximo 8 horas pelo nosso regresso. Se não regressarmos ao fim desse tempo, voltam para o aquartelamento pela estrada. Se forem descobertos ou tiverem suspeitas disso regressam também de imediato. Se mandar retirar e dispersar, o local de reunião será sempre junto do estacionamento das viaturas mesmo depois destas terem partido. O ataque não pode demorar mais do que 15 minutos. Ao fim desse tempo retiramos à minha ordem. Se houver algum tiro prévio que nos denuncie, abandonamos o objetivo, dispersamos e retiramos para o ponto de reunião sem atacar. Vamos entrar de Este para Oeste,  destruindo tudo o que for útil ao apoio do inimigo.

Apontou um furriel e continuou :

 − O Furriel J, da 1ª secção que entra pela esquerda, vai passar no rio e com granadas de mão o seu pessoal, destrói todas as canoas assim como qualquer outro tipo de embarcação. A segunda secção dá-lhe apoio. Hoje à tarde quem não estiver de serviço deita-se e procura dormir. Podem retirar-se.   [...]

 Na madrugada seguinte, á saída da povoação  [do Olossato],  entraram no mato. As viaturas, ligadas entre si por correntes, roncavam no trilho enlameado estreito demais para elas. A vegetação rompia as capotas. Os homens seguiam em silêncio. O domínio do medo torcia-lhes as caras pintadas. De quando em quando era necessário que os guias indígenas procurassem melhores trilhos explorando o caminho mais à frente. e, em cada uma destas paragens, os soldados saltavam e escondiam-se no mato. Os motores ferviam. 

Ao fim de 3 horas, encontraram a estrada que levava a K[3]. Esconderam as viaturas e dentro em pouco os gritos da floresta tornaram-se normais. Caminhavam curvados, a um e outro lado da estrada em fila indiana, em silêncio. Parecia participarem num jogo de segredos fora do tempo, em que jogavam a vida.

A humidade diluía o suor, tornando-lhes o corpo peganhento, as roupas pesadas, repulsivas, a cara negra com riscas brancas. Pousavam os pés no chão com todo o cuidado, e investigavam com os olhos, reflexos e sombras. Sabiam bem o que os podia denunciar. 

Há mais de 1 ano que andavam metidos naquelas andanças. Agora davam mais importância  vida, porque a morte, na guerra é sempre uma derrota.

 [Ele, o alf Carvalho], seguia à frente com os guias. Em cada curva do caminho levava dois homens e avançava algumas dezenas de metros. Só depois o resto do pelotão avançava.

A terra exalava humidade e calor. Os mosquitos não os largavam há muito. Zumbido enlouquecedor,  ávido de sangue quente.

Perto da aldeia, abandonaram a estrada e redobraram as cautelas. O céu, com rasgos de luz menos escura, anunciava os sons da manhã.

Progrediam agora a dois e dois, de abrigo em abrigo. A alguns metros das primeiras cubatas, sentada no chão e encostada a um tronco velho, a primeira sentinela dormitava. Foi engolida em silêncio pelas facas de dois soldados.

Alguns cães ladraram. Farejavam sarilho. Rebentou a primeira granada. Daí em diante foram sombras vertiginosas, respirações de morte, ferro e fogo, gritos, ferro e fogo, confusão, instantes infernais, ferro e fogo, palavrões, guinchos, ferro e fogo, gemidos, correrias, aflições, ferro e fogo, e cubatas a arder reflectidas na água mole e suja do rio e tiros, tiros e explosões.

Veio depois o silêncio da retirada dispersa e rápida, corrida louca para o ponto de encontro junto das viaturas, com tiros ocasionais a persegui-los. Contou os homens já com os motores em marcha. Estavam todos. Regressaram.

***

Levantou-se. Tomou o pequeno almoço e foi passear pela povoação.

 
− Bum dia, noss' alfero.

As poucas casas dispostas dos dois lados da estrada faziam-lhe lembrar a aldeia onde tinha nascido.

O inimigo lutava o mais que podia para arranjar simpatizantes e para isso não molestava a população civil,  branca ou negra. Só em ultimo caso empregava a força.

Homens e mulheres faziam a sua vida de todos os dias como se nada houvesse, mas,  por de trás dos olhos de cada um, lá estava o terror, a duvida, a ansiedade, a insegurança da hora seguinte. Os nervos tensos à espera do mínimo sinal para fugir, recolher ao abrigo possível.

Depois da sesta da tarde, verificou a situação de todas as medidas defensivas instaladas. Esperava uma represália. Passou o resto da tarde a estudar a forma de melhorar as defesas existentes e implementar métodos de ataque em situação de fogo como sair do aquartelamento através de trincheiras etc.

A noite adivinhava-se pesada, escura, trovejante, desagradável. São estas noites que escondem medos e vergonhas, disfarces e desumanidades. Mas não são noites de guerra, porque a falta de claridade dificulta os movimentos.

Pensava em tudo isto depois de dar ordem de prevenção, e se encostar solitário junto ao abrigo duma sentinela.

Estava tudo a postos para mais um jogo de morte.

O pequeno Unimog blindado com chapas de bidão endireitadas, tinha a traseira encostada à porta principal do celeiro de amendoim que servia de aquartelamento. 

Junto a esta porta, o piso do edifício era sobrelevado em relação ao chão cerca de 1,2 metros, a fim de permitir o carregamento fácil dos camions de transporte que em tempo aí se abasteciam.

A corda amarrada ao “cavalo” de arame farpado que na vedação servia de porta, estava estendida no terreiro e entrava no interior do edifício de modo a que daqui, puxando-a,  se desobstruísse a entrada e o Unimog pudesse sair.

As metralhadoras das duas portas foram abastecidas com mais caixas de munições. Os dois morteiros, um atrás e outro à frente,  entrincheirados também.

Fora enviado para ali porque o destacamento anterior tinha sido várias vezes encurralado no aquartelamento com fogo cruzado inimigo que,  após enfiar uma metralhadora a cada porta, se passeava no povoado abastecendo-se nos estabelecimentos existentes, a troco de improvisadas requisições supostamente válidas, alardeando o seu poder e exibindo a sua melhor propaganda.

Tinha esperança de que com o seu pelotão isso nunca acontecesse.

Todas as máquinas de guerra do destacamento luziam limpas e oleadas, possivelmente satisfeitas por poderem vomitar fogo tão frequentemente. Tinham-nas feito para isso.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos, parênteses retos: LG)
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de  
26 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 6/74 - P25217: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte V: Angola 'versus' Guiné


Gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011)


1. Há documentos que devem merecer a nossa atenção e ser divulgados neste blogue de antigos combatentes da Guiné... É o caso do depoimento do gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011), o último governador e com-chefe da Guiné, antes do 25 de Abril, prestado em 1997, no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida. 

O sítio original na Net foi descontinuado. Só há pouco tempo o conseguimos recuperar através do Arquivo.pt.  Devido à sua entensão,  será reproduzido,  com negritos nossos (e itálicos), em duas parte (com a devida vénia, ao ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa). 

A primeira parte é dedicada a Angola, onde o general Bettencourt Rodrigues foi o "herói da região militar leste" (1971-1973). A segunda, à Guiné.

Os entrevistadores, já falecidos, Manuel Lucena, cientista político (1938-2015)  e Luís Salgado de Matos, sociólogo (1946-2021), foram dois brilhantes investigadores do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este documento também está disponível no Arquivo de História Social do ICS. Faz parte do espólio de Manuel Lucena.

Estudos Gerais da Arrábida > 
A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA

Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) 


Manuel de Lucena

Antes da eclosão da guerra Angola - e baseando-me no depoimento que concedeu a José Freire Antunes  (2) - sei que estagiou em unidades norte-americanas e esteve integrado na Divisão SHAPE. Quer falar-nos um pouco dessa experiência? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em 1952, depois de ter feito o curso de Estado Maior no Instituto de Altos Estudos Militares, o então Chefe de Estado Maior, general Barros Rodrigues, destacou-me para tirar o curso de Comando e de Estado Maior nos EUA (Kansas). Seguidamente, estagiei na 1ª Divisão de Infantaria norte-americana instalada no campo de Graffenworhr, na Alemanha Ocidental. 

Passado algum tempo, constituiu-se a Divisão SHAPE, que actuou em numerosos exercícios e manobras, dentro e fora do país, Nessa unidade, fui adjunto da 3* Repartição do Quartel General durante o período de manobras de 1953 e anos seguintes. 

Quando regressei a Portugal, estive durante algum tempo colocado em Santa Margarida, onde se começaram a aplicar os modelos e técnicas americanas ao Exército português: foi em Santa Margarida que nasceu o moderno Exército portuguesa. 

Foi talvez em 1958 que começámos a ter a percepção de que algo iria acontecer em África, fundamentalmente devido ao exemplo da guerra da Argélia e às primeiras independências na África negra. 

Por essa  altura tomaram-se certas providências tendo em vista a adaptação do Exército ao tipo de inimigo que poderia ter de vir a enfrentar. 

Enviaram-se alguns oficiais para a Argélia (Hernes de Oliveira, Almiro Canelhas, Franco Pinheiro, entre outros), a fim de se familiarizarem com os métodos de luta anti-guerrilha; mudaram-se os planos de instrução; no Instituto de Altos Estudos Militares, na Academia Militar e nas Escolas Práticas começou leccionar-se a teoria da «guerra subversiva»; em Lamego, foi criado o Centro de Instrução de Operações Especiais, especialmente vocacionado para a luta antissubversiva 

Em 1960 - o ano da independência do Congo belga -, o coronel Almeida Fernandes, então ministro do Exército, mandou uma missão do curso de Estado-Maior a Angola. Fiz parte dessa missão - era então professor no curso Estado Maior - tendo levado comigo os alunos da parte complementar do curso, Percorremos toda a fronteira Norte de Angola em duas station wagons sem que tivéssemos dado conta de algo de anormal. Angola parecia estar perfeitamente pacificada. 

Quando a grande bronca rebenta, - os massacres da UPA de 14 de Março -, eu estava lá em missão, juntamente com os generais Beleza Ferraz e Câmara, respectivamente CEMGFA e CEME. Em Buco-Zau (Cabinda), onde nos encontrávamos, chamaram-nos de urgência para a Luanda. Depois daqueles dois responsáveis terem regressado a Lisboa, na companhia do ministro do Ultramar, Vasco Lopes Alves, ainda lá fiquei uns dias. 

Manuel de Lucena: 

Qual era o propósito dessa última missão? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Tratava-se de uma simples missão de rotina, tanto quanto me recordo. Simplesmente, calhou estarmos lá aquando da eclosão da guerrilha. Depois dessa ocasião, voltei repetidas vezes a Angola, uma delas com o então major Pedro Cardoso, adjunto do Secretário-Geral da Defesa Nacional, por ocasião do cerco a Carmona. 

Em Novembro de 1961 teve lugar um acontecimento dramático: o desastre do Chitado, onde pereceu o general Silva Freire, então comandante da região militar de Angola. Pouco tempo depois, o general Holbeche Fino, designado para suceder a Silva Freire, telefona-me dizendo que gostaria de me levar para Angola como seu chefe de gabinete. 

À minha maneira, respondi-lhe que tinha dois patrões; o general Gomes de Araújo e o general Câmara Pina; se ele se entendesse com eles, muito bem, iria para Angola, Comigo foi sempre assim: basta apresentarem-me a guia de marcha e eu vou para qualquer lado. 

Luís Salgado de Matos: 

Quando em Março de 1961 rebenta a «bernarda» em Angola, o dr. Salazar não quis falar com as pessoas que lá estavam?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Pela minha parte, só falei com o Costa Gomes e o Almeida Fernandes. 

Luís Salgado de Matos: 

Não é no regresso daquela visita que os generais Beleza Ferraz e Câmara Pina classificam os incidentes em Angola como um simples caso de polícia e depois são muito criticados? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, admitia-se que o general Beleza Ferraz talvez não tivesse medido bem a gravidade da situação; e daí essas declarações menos felizes. 

Luís Salgado de Matos: 

Ainda em relação a esse ano de 1961, como viu o golpe do general Botelho Moniz? 

General Bettencourt Rodrigues: 

O general Botelho Moniz era um homem muito complicado, muito fechado sobre si mesmo. Quem não segue as regras no Exército, acaba sempre por «dar gato»

Ainda hoje não sei bem o que foi a «Abrilada». Que eles queriam derrubar o dr. Salazar e o almirante Américo Tomás é um facto - e o Craveiro Lopes até já tinha a mala feita para se instalar em Belém. Agora o que sucederia depois do golpe, isso permaneceu sempre um mistério para mim. 

Manuel de Lucena: 

Como é que o sr. general sentiu o ambiente das Forças Armadas em Angola, em 1961? Nos escalões que contavam, é evidente. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Apesar de uma certa surpresa perante a proporção que as coisas assumiram em Março de 1961, já havia um certo planeamento por parte dos responsáveis militares. O general Silva Freire, um estratega brilhante, tinha alinhavado algumas ideias para enfrentar um possível foco de subversão. 

Infelizmente, no desastre do Chitado faleceram também dois chefes de Repartição do Quartel General. Escaparam, valha-nos isso, o hoje coronel Moreira Rebelo, da 1ª Repartição, e o hoje general Salazar Braga, da 2ª Repartição. 

Em finais de 1961 tínhamos para resolver: a reconstituição Quartel General, as comunicações, a logística e a montagem do sistema de quadrícula. Ou seja, praticamente o essencial. 

O sistema de quadrícula, de inspiração francesa, surgiu-nos como o mais adequado, até porque os massacres tinham eclodido em regiões onde não existiam guarnições militares, deixando os fazendeiros num grande isolamento. 

Luís Salgado de Matos: 

O general Silva Freire era um oficial da escola francesa? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, mas era sem dúvida o nosso melhor general, um dos mais brilhantes estrategas da sua geração. Ele teve a inteligência de perceber que era através da quadrícula que poderíamos contactar com as populações, trazê-las para o nosso lado. 

Repare: a guerra dita subversiva é um conflito assimétrico; uma disputa entre dois adversários desiguais em termos de organização, recursos e implantação no terreno. 

O sistema da quadrícula adaptou-sese bem às características da guerra subversiva. Era a quadrícula que integrava o médico que fornecia os cuidados de saúde básicos, o cabo que dava a instrução primária aos indígenas, o soldado que conhecia bem os musseques, a sanzala, enfim, a tropa que ia fazendo o  «trabalhinho». 

Quando se queria bater com força, então chamavam-se as forças de intervenção. Foram ambas indispensáveis e complementares uma da outra. 

Luís Salgado de Matos: 

Diz-se que a quadrícula deixou de combater em 1965. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não tenho essa ideia. Sinceramente. Quando voltei a Angola em 1971 (a minha missão com o general Holbeche Fino terminou em 1964), para chefiar a Zona Militar Leste, combatia-se com determinação. Tanto assim que ainda nesse ano voltou a ser possível circular à vontade nessa região.

 Manuel de Lucena: 

Entre 1961 e 1964, a ideia era cooperar e pacificar, por um lado, e bater quando necessário, por outro? 

General Bettencourt Rodrigues: 

A ideia do apaziguamento era primordial. Era a razão de ser da nossa guerra. Nunca se perseguiu uma estratégia de aniquilamento do inimigo. O nosso lema era «a conquista pelas mentes». 

Luís Salgado de Matos: 

Voltando um pouco atrás. O general Beleza Ferraz tinha ou não razão quando dizia que a situação em Angola se pacificava num ápice? Porque em 1962 as coisas estavam aparentemente controladas... 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não é tanto assim. Aquela gente era determinada, batia-se bem, tinha armamento, apoios internacionais. 

Manuel de Lucena: 

A guerrilha era então vista como um inimigo a longo prazo?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Era impossível liquidá-la de uma só vez. Repare: qual é a finalidade da guerra subversiva? Substituir uma autoridade por outra, naquele caso, portugueses por angolanos. 

Nesse aspecto, a subversão falhou: foi o 25 de Abril que nos derrubou. 

Como a finalidade era aquela, não podia haver soluções de compromisso. Como é que se faz um cessar-fogo no âmbito de uma guerra subversiva? Nunca ninguém mo soube explicar até hoje. 

Utilizando uma imagem conhecida: uma mulher está grávida ou não; não pode estar apenas um bocadinho grávida…

Manuel de Lucena: 

O que o sr. general pretende dizer é que na guerra subversiva o compromisso é sempre o prelúdio da derrota de um dos lados. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Eu vou mais longe: qualquer compromisso equivale sempre a uma derrota incondicional

À guerrilha nunca interessam partilhas territoriais, soluções intermédias. É a vitória total ou nada. 

Manuel de Lucena: 

E em relação ao compromisso, quando é que se percebe que um dos lados se está a precipitar no abismo? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Veja esta hipótese: o general Spínola chegava a um entendimento com o Amílcar Cabral e conseguia chamá-lo para o Governo, oferecendo-lhe o cargo de secretário-geral ou coisa que o valha. Neste caso, quem vencia era o general Spínola porque o Governo, a autoridade, mantinha-se portuguesa. 

Luís Salgado de Matos: 

A esse respeito tenho uma espécie de teoria sentimental sobre a descolonização portuguesa. Ganhámos a guerra militarmente - com a possível excepção Guiné - mas o pais decidiu que se retirava, que não valia a pena continuar em África. 

Manuel de Lucena: 

Depois do trabalho com o general Holbeche Fino, entre 1961 e 1964, e até voltar a Angola, por onde andou o sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Estive três anos em Londres como adido militar e depois fui ministro do Exército, já com o professor Marcelo Caetano. Em 1971 fui então nomeado Comandante da Zona Militar Leste.

 Manuel de Lucena: 

Como surgiu essa sua última nomeação? 

General Bettencourt Rodrigues: Creio que foi o general Costa Gomes, meu grande amigo, que me propôs. 

Luís Salgado de Matos: 

Com quem tinha grandes afinidades tácticas, segundo julgo saber… 

General Bettencourt Rodrigues: 

Direi que partilhávamos de uma certa unidade de vistas. Em 1970-71 a situação em Angola apresentava sinais de deterioração. A subversão alastrou do Norte até ao Leste, à Lunda, ao Mochico e, o que era verdadeiramente preocupante, começara a ameaçar Nova Lisboa, o centro nevrálgico de Angola. 

Nessa altura, o general Costa Gomes decidiu remodelar o dispositivo e criar a Zona Militar Leste, que abrangia os distritos do Bié, Lunda, Mochico e Cuando Cubango. Essa sua iniciativa coincidiu com uma viagem do general Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa a Angola. 

Em conversa, o general Costa Gomes sugeriu o meu nome para a chefia do novo comando, tendo obtido a anuência do ministro. 

Manuel de Lucena: 

Entretanto, falou também com o professor Marcelo Caetano? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Exactamente. De resto, eu sempre estive muito à vontade com o professor Marcelo. Tinha sido seu ministro, conhecíamo-nos bem... Ele até dizia que eu usava uma linguagem muito pitoresca... 

Luís Salgado de Matos: 

O professor Marcelo alguma vez se confessou consigo sobre os contados secretos com o PAIGC? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não acredite nisso... Eu não duvido que o Villas-Boas tenha ido a Londres, mas foi só ver o que é que os tipos queriam, mais nada. Havia um toque do Foreign Office e não se podia dizer que não. 

Manuel de Lucena: 

Quando falou com o professor Marcelo antes de ir para o Leste,  havia mais alguma coisa na manga, ou era apenas uma conversa normal entre o Presidente do Conselho e um antigo ministro que ia desempenhar uma importante missão militar? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Prefiro essa segunda hipótese. Para ser sincero, a conversa foi até relativamente inócua. Discutimos a delicadeza da situação militar, particularmente dramática à volta de Nova Lisboa; falámos das acções que se poderiam desenvolver junto das populações. 

Este último desiderato era, não me canso de sublinhá-lo, muito importante para nós. Nisso, o dr. Salazar e o prof. Marcelo não eram muito diferentes. 

Nas três frentes em que estivemos envolvidos, não arrasámos nada, não recorremos a bombardeamentos maciços, não seguimos uma política de terra queimada

É claro que, numa situação de conflito, há sempre uns tipos desequilibrados que podem praticar abusos. 

Luís Salgado de Matos: 

Na Argélia o uso da tortura em uma directiva explícita do Estado-Maior. O comando de pára-quedistas de Argel estava especificamente treinado para aterrorizar. 

Manuel de Lucena: 

Bem, a esse respeito há até quem fale de uma excessiva brandura por parte da tropa portuguesa. Quer comentar,  sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

É claro que quando era preciso bater, nós batíamos. No entanto, é sempre muito difícil dosear essas coisas... 

Mas fomos sempre formados para não cometer excessos. 

Manuel de Lucena: 

Sobre a sua acção no Leste, pode dizer-nos alguma coisa sobre os seus acordos com Jonas Savimbi? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Relativamente a esse assunto, entendo que não devo falar, uma vez que a pessoa em questão ainda está viva e politicamente activa. 

No entanto, esclareço que após o 25 de Abril nunca tive nada a ver nem com a UNITA, nem com o MPLA. 

Manuel de Lucena: 

O brigadeiro Passos Ramos, que nos prestou dois depoimentos em 1995 e 1996, levantou um pouco a ponta do véu sobre esses acordos. Disse-nos, nomeadamente, que houve um entendimento entre o Exército português e a UNITA com vista à formação de um santuário, que, naturalmente, funcionava contra o MPLA. 

Disse-nos também que a UNITA não era um movimento fantoche: estava bem implantada, cobrava impostos aos madeireiros, controlava áreas muito vastas - em suma, dava-nos trabalho. 

General Bettencourt Rodrigues: 

A única coisa que posso dizer é que o general Costa Gomes estava dentro desse entendimento, tal como o professor Marcelo Caetano. O que não equivale a atribuir-lhes a paternidade da ideia. 

Luís Salgado de Matos: 

O fim do 'modus vivendi' com Savimbi ficou a dever-se à inabilidade do seu sucessor? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em certa medida. A guerra subversiva é uma guerra - como direi? - suja, pouco ortodoxa. 

Se sigo com demasiada intransigência os meus princípios - e essa foi a opção meu sucessor - não estou a jogar pelas regras do jogo. 

Luís Salgado de Matos: 

Mas essa inflexão face à UNITA terá tido o assentimento do ministro, não?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Mas note que o Leste de Angola é um sítio remoto. Naquele conflito gozávamos de uma grande margem de autonomia. 

Manuel de Lucena: 

Quando estive exilado, falei uma vez com um homem do MPLA, um mestiço, Castro Lopo, que se confessou muito impressionado com as dificuldades que o movimento então experimentava na Frente Leste. Dificuldades sobretudo ao nível dos abastecimentos - vinha tudo de muito longe, da Zâmbia, por exemplo, forçando-os a longas caminhadas…

 General Bettencourt Rodrigues: 

Precisamente. Por outro lado, eram essas as vantagens dos terroristas na Guiné. Mas o Governo Zâmbia não regateava apoios à subversão. À semelhança, aliás, de alguns lobbys norte-americanos, como o American Comitte for Africa

Quem tocava no Caminho de Ferro de Benguela era a UNITA, o que não convinha nada à Zâmbia, um país de hinterland com acesso ao mar bloqueado. Isso dava-nos um grande trunfo sobre o Kaunda. É por isso que chamei à guerra subversiva uma guerra suja: cada um dos lados combatia com manhas e artimanhas. 

Manuel de Lucena: 

Nesse sentido, o acordo com a UNITA revestía-se de um carácter eminentemente prático; quanto muito implicaria uma integração de quadros dirigentes daquele movimento na administração portuguesa. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, é mais ou menos isso. 

Luís Salgado de Matos: 

Passando agora para a Guiné (...)

(Continua em próximo poste)

__________

Notas dos entrevistadores:

1 José Manuel Bettencourt Rodrigues (n. 1918): Oficial de Infantaria. Ministro do Exército (1968-70). Comandante da Zona Militar Leste de Angola (1971-73). Sucedeu a Spínola como governador da Guiné (1973-74). 

(2) José Freire Antunes, A Guerra de África, 1° vo1. Lisboa; Círculo de Leitores, 1996. 

(Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, para efeitos de publicação neste blogue: LG)

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Nota do editor:

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25134: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte II: A carestia do arroz em fins de 1973, e a intervenção do Governo, regulando o mercado e fixando o preço que passa de 5$50 para 7$00/kg

Gen de três estrelas, Bethencourt Rodrigues 

(Funchal, 1918 - Lisboa, 2011) (*)




Excerto de uma relação de artigos de víveres existentes à data de 17/6/1974 na CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1972/74), destaque para o caso do arroz, que tem dois preços: um, seguramente importado, a 14$50/Kg, e outro de produção local, a 87$00/Kg. (**)

Fonte: cortesia de José Saúde (2016). [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Uma "batata quente" que estalou nas mãos do novo Governador-geral e Com-chefe da Guiné, o Gen Bettencourt Rodrigues, foi a carestia de vida, provocada pelo aumento da generalidade dos bens essenciais para o abastecimento tanto da tropa como da população civil, na sequência do choque petrolífero e da crise económica de finais de 1973. Teve  consequências na economia, no aumento dos preços, na inflação que disparou, no aumemto das despesas  militares e da administração civil, nas acrescidas dificuldades de  transporte de tropas e material, no fornecimento de combustíveis, enfim, na logística, na alimentação e no moral da tropa, na ação psicossocial, etc. 1974 foi o "anus horribilis" de Marcello Caetano mas também o do governador-geral e com-chefe da Guiné.


Sobre a crise petrolífera de 1973, recorde-se que foi desencadeada por um protesto dos países árabes, com destaque para a Arábia Saudita, pelo apoio prestado pelos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur (de 6 a 23 de outubro de 1973), um conflito particularmente sangrento com milhares de baixas de um lado e do outro.

Como represália, os países árabes organizados na OPEP (criada em 1960 pela Arábia Saudita, Kuwait, Irão, Iraque e Venezuela) o preço do petróleo aumemntou em mais de 400%. Em março de 1974, os preços nominais tinham subido de 3 para 12 dólares por barril (a preços atuais, de 14 para 58).

O Canadá, o Japão, a Holanda, o Reino Unido e os Estados Unidos foram os principais alvos do embargo inicial que se estendeu depois a Portugal, a Rodésia e a África do Sul.  Os efeitos económicos e financeiros, a nível internacional, fizeram-se sentir de imediato. Por exemplo, em Portugal, o litro de gasolina super passa de 7,5 escudos para 11 escudos (o equivalente, a preços atuais, a 2,32 €). Esta crise, de 1973, ficou conhecida como o "primeiro choque petrolífero". Outro se seguiu em 1979. (Fonte: Wikipédia > Crise petrolífera de 1973).

No caso de Portugal, tiveram tremendas consequências económicas, financeiras e político-militares, que já não cabe aqui analisar, mas que vão desembocar, indiretamente, no golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 e no fim da guerra colonial, numa altura em que a situação militar, no terreno (incluindo na Guiné) estava longe de ser desfavorável para o exército português.(**)

Anos depois, em 1977, o gen Bettencourt Rodrigues reduz esta crise apenas ao aumento do preço de arroz (que o Governo teve de contingentar e tabelar, passando de 5$50 para 7$00/Kg)... Limita-se a re4conhecer que a medida foi "impopular"... Claro que o general nunca foi ao mato ver os preços que se praticavam nas lojas dos Fernando Rendeiro e dos Jamil Heneni,,, nem nunca deve ter falado  com os vagomestres das subunidades. Seis meses depois, em junho de 1974 havia arroz, na CCS do batalhão de Nova Lamego a 14$50 / Kg...

Vejamos então como Bettencourt Rodrigues via o "problema do arroz" no tempo em que era o "homem grande de Bissau":

(...) "Problema que afetava toda a população da Guiné, era o do abastecimento de arroz base, primeira da sua alimentação.

"Reduzida a produção local a cerca de 50% das necessidades, por aumento do consumo e diminuição da produção, como consequência da guerra e dum certo afastamento do trabalho na terra por parte da população, em especial da mais jovem, desde fins de 71,  princípios de 72, a importação passou a encontrar dificuldades crescentes,  por forças da escassez de cereais dos mercados mundiais e da elevação de preços  quer do produto,  quer dos transportes.

"Assim, em fins de 1973 houve  necessidade de contingentar a distribuição e de elevar o preço tabeladom  de 5$50 para 7$00 escudos,  suportando, embora o Governo um encargo não inferior a 2$50 / kg.

"Estas medidas não foram naturalmente recebidas com grande pela população, apesar do arroz ser vendido nos territórios vizinhos a preços muito superiores ao praticado na Guiné (Senegal, 14$00, e República da Guiné. 22 a 26$00) e de ter havido um aumento do preço de aquisição ao produtor local de cerca de 25%.

"Para atenuar uma situação de abastecimento com tendência para se agravar, dada a progressiva retração do mercado mundial, independentemente de custos, várias ações foram empreendidas, como a diversificação da dieta alimentar tradicional, para o que se recorreu à importação de milho e feijão, a recuperação de bolanhas e uma intensificação do esforço para aumento da produção, pelo apoio à cooperativização dos agricultores, distribuição de sementes de arroz seleccionadas e de adubso e apoio técnico dos Serviços Provinciais de Agricultura, além do aumento dos preços de aquisição ao produtor." (...)

Fonte: excertos de Gen. Bethencourt Rodrigues, "Guiné", in Joaquim da Luz Cunha et al. "África: a vitória traída" (Lisboa, Editorial Intervenção, 1977), pp. 111/112.

 

2. Comentário de Cherno Baldé ao poste P25130 (*):

(...) Ainda antes do 25A74, o tal arroz de abastecimento do mercado local chegou, mas por algum motivo ligado a sua qualidade, a população dos centros urbanos que já estavam dependentes do arroz importado, deram-lhe o nome de "arroz Bettencourt",  talvez em forma de protesto pela qualidade inferior relativamente ao que estavam habituados durante o consulado do gen Spínola.

Este deve ser o primeiro sinal das mudanças ocasionadas pela partida do gen Spínola e o fim não anunciado da sua política "por uma Guiné melhor".

De salientar que, na altura, a dieta das populações do interior, especialmente do Leste, Norte e Nordeste, era a base do milho e folhas de vegetais (milheto, milho Brasil, cavalo, sorgo, entre outros) e um pouco do arroz de sequeiro e o produzido nas bolanhas. 

Hoje em dia o milho quase que desapareceu da dieta alimentar dos guineenses devido as más influências dos centros urbanos iniciadas na época do gen Spínola, pela facilidade de aquisição do arroz importado com a expansão da produção e venda do caju, transformado no principal produto de exportação e, também, pela diminuição global da produção do milho, devido a influência das mudanças climáticas que afectam, sobremaneira, as regiões dos trópicos. (...).

 
3 de fevereiro de 2024 às 10:24

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Notas do editor:


(***) Vd. poste de 16 de março de  2022 > Guiné 61/74 - P23083: Recortes de imprensa (121): Debate sobre a Guiné-Bissau na Assembleia Geral da ONU em plena crise petrolífera (Diário de Lisboa, 23 de outubro de 1973)

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25051: Por onde andam os nossos fotógrafos? (16): António Murta, ex-alf mil inf MA, 2ª C/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) - Parte I: Em 16 de março de 1973 estávamos irremediavelmente a partir no N/M Uíge...



Foto nº 1

Lisboa  > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 16 de março de 1973, meio da tarde >  Partida do Batalhão de Caçadores 4513 no navio Uíge rumo à Guiné.

(....) Estava repleto o navio e os militares alcandoravam-se nos locais mais improváveis, para além de escadórios e da amurada, na ânsia de serem vistos pela multidão de familiares que acenavam do cais. Era uma cena já de todos conhecida, militares e famílias, que ao longo dos anos a viram – e temeram – pela televisão e pelos jornais. 

"No que me toca, e depois de ter perdido de vista o meu pai no cais, apoderou-se de mim uma fria indiferença. Estava ali a começar uma odisseia, uma aventura no desconhecido, mas que haveria de ter um fim, que só podia ser o regresso. Recordo estas sensações porque as preparei antes e me agarrei a elas no momento crucial. 

"Apesar disso, foi no instante em que o bojo do navio se desencostou lentamente do cais, que tive o momento mais penoso e cruel. Não tinha pensado nesse detalhe tão significativo: o brevíssimo instante da separação. Estava quebrado, definitivamente, o fiozinho que ainda me ligava a casa, aos familiares, ao meu país e a uma esperança tola de que, até ao último instante, acontecesse algo de extraordinário, um cataclismo, uma morte bombástica, sei lá..., morreu o Amílcar Cabral e não aconteceu nada, mas podia morrer o Marcelo, cair a Ponte Salazar e o barco ficar ali encalhado!... Nada. Não aconteceu nada. 

"Afinal, estávamos irremediavelmente a partir. E não tinham partido milhares de outros antes de mim? (...) (Poste P14373 (***).

Foto nº 2 

Guiné > Região de Quínara > Nhala > 2ª C/BCAÇ 45143 (Aldeia Formosa, Buba e Nhala, 1973/74) > 1973 > O alf mil inf MA António Murta: "um estado d'alma"



Foto nº 3

Guiné > Região de Quínara > Nhala > 2ª C/BCAÇ 45143 (Aldeia Formosa, Buba e Nhala, 1973/74) > Pós-25 de Abril de 1974  > O alf mil inf MA António Murta, em primeiro plano, sentado no capô da Berliet MG-20-79.

Foto nº 4

Guiné > Região de Quínara >  Nhala (a nordeste de Buba) > 1974 > Agosto de 1974 > Os "Unidos de Mampatá", a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74), em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala (2ª C/BCAÇ 4513)... À esquerda, assinalado por um quadrado amarelo, o nosso António Carvallho, o "Toni", mais conhecido por "Carvalho de Mampatá".  O nosso fotógrafo, o António Murta,  estava lá.

Um cartão de boas festas 2014/2015 original, criação do António Murta

Fotos (e legendas): © António Murta  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuamos à procura dos nossos fotógrafos (*)


A fotografia é um dos recursos mais valiosos do nosso espólio. Não sabemos ao certo quantas imagens já publicámos no nosso blogue em vinte anos (desde 2004). Uma estimativa por baixo aponta para mais de 100 mil. Já publicámos mais de 25 mil postes, o que daria uma média de 4 fotos ou imagens  por poste. 

Fotógrafos (ou donos de álbuns fotográficos com grande interesse documental) são seguramente muitas dezenas. Alguns de nós tornaram-se até fotógrafos com talento, no CTIG ou até depois, na peluda. A maioria não tinham tirado fotografias. Comprou uma máquina em Bissau (em geral, de "made in Japan", e mais baratas do que na metrópole), e levou-a para o mato. (**)

As suas fotos  têm suscitado a curiosidade de cineastas, jornalistas, investigadores, etc., que de tempos a tempos recorrem ao nosso blogue para cedência de imagens. Temos uma política sobre esse assunto; cópia digital das fotos é cedida, para efeitos não-comerciais,  mediante acordo tanto dos edtores como dos titulares dos créditos fotográficos. Julgamos que, enquanto antigos combatentes, temos esse dever de serviço público. Mas também exigimos que respeitem a propriedade intelectual e não façam uso indevido do material cedido.

A mítica Olympus Trip 35, de que se terão
vendido10 milhões de unidades entre 1967
e 1984... Ideal para se tirar fotos em férias
(daí o nomedo modelo, "trip"),  
despreocupadamente
2. Hoje começamos a recuperar e a selecionar algumas das melhores fotos do António Murta, de seu nome completo António Manuel Murta Cavaleiro, ex-alf mil indf  MA,  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74). 

Nasceu em Cantanhede, em 8 de janeiro de 1951, vive atualmente na Figueira da Foz. Está reformado há mais de 10 anos. Passou a integrar a Tabanca Grande em 12 de novembro de 2014.(***) 

Tem 105 referências no nosso blogue, sendo autor de uma notável série, "Caderno de Memórias de António Murta"...  de que se publicaram pelo menos 42 postes (****)

Não nos conhecemos pessoalmente mas já temos falado ao telefone (ainda ontem, data do seu aniversário). Não sei o que fazia profissionalmente, constato que tem um grande talento para o desenho (veja-se o cartão de boas fesats que nos mandou no final do ano de 2014) (vd. imagem acima) (*****).

Exigente consigo e com os outros, escreveu sobre a sua atividade de fotógrafo amador:

(...) "As minhas fotografias, no geral, não têm grande qualidade: quando fui para a Guiné nem máquina tinha. Usei uma emprestada por uma amiga, mas demasiado básica e pouco fiável. Nas primeiras férias comprei uma Olympus compacta e passei a fazer, quase sempre, slides. Digitalizados com um scâner normal, são uma triste amostra dos originais. Com muito deles optei por fotografar a projecção em suportes variáveis, com os inconvenientes que também isso acarreta." (...) (***)

(Continua)
_____________



(****) Vd.postes de:

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973


(*****) Vd. poste de 18 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14044: Sob o poilão sagrado e fraterno da nossa Tabanca Grande: boas festas 2014/15 (4): Cartão original de António Murta