Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta 1973. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 1973. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 10 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26903: Efemérides (458): foi há 52 anos, o 10 de junho de 1973, Dia de Portugal, o último sob o regime do Estado Novo ("Diário de Lisboa", 11 de junho de 1973)


Dia de Portugal, 10 de junho de 1973, o leitor que adivinhe! Foto de primeira página, sem título de caixa alta, apenas com a seguinte legenda;



Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06817.167.26386 | Título: Diário de Lisboa | Número: 18126 | Ano: 53 | Data: Segunda, 11 de Junho de 1973 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Observações: Inclui supl. "Exclusivo" | Fundo: DRR - Documentos Ruella RamosTipo Documental: Imprensa  (Com a devida vénia...)


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
 


1. O jornal, o "Diário de Lisboa", que não se publicava em dias feriados, reproduz na página 14 (e não 12, como vem indicado na notícia de primeira página) o discurso do então Chefe de Estado, Almirante Américo Tomás (Lisboa, 1894-Cascais, 1987).  Seria o último 10 de junho, Dia de Portugal,  realizado na vigência do regime do Estado Novo.  (O jornalista não podia adivinhar que era o último, mas hoje sabemos; o leitor habitual também náo precisava de título para saber do que tratava.)

Na primeira página, ao canto direito,  publica-se apenas a foto que reproduzimos acima: o chefe do Governo a entregar uma condecoração a título póstumo (a uma mulher, carregada de luto, uma viúva de um militar morto em combate,  deduz-se). A imagem, escolhida foi esta, sempre pungente,  e não  outra (por exemplo, a dos "Torre e Espada" desse ano).  E não era por acaso, tendo em conta a orientação do jornal, "conotado com a oposição democrática".

A notícia das cerimónias (que o jornal não podia deixar de dar...) é remetida para a página 14...

Ficamos a saber que nesse  10 de Junho de 1973 foram distribuídas, em Lisboa e outras cidades,  mais de 4 centenas e meia de condecorações a militares dos 3 ramos das Forças Armadas, que se destacaram nos TO de África:

  • em Lisboa, 89 militares;
  • no Porto, 86; 
  • em Coimbra, 34;
  •  em Santarém, 46; 
  • em Évora, 4; 
  • no Funchal, 7; 
  • em Ponta Delgada, 6; 
  • em Luanda, 8 (além de  três civis africanos);
  • e, em Lourenço Marques, 59. 

Um major de cavalaria  dois capitães de infantaria e um alferes receberam em Lisboa a mais alta condecoração, oficial da Ordem Militar da Torre Espada com palma. (O jornal não diz os nomes,  mas sabemos que foram o maj cav J. Almeida Bruno, os cap inf F. Lobato de Faria e A.J. Ribeiro da Fonseca e o alf  pqdt A. Casal Martins.)

Condecorado com Medalha de Ouro de Valor Militar com Palma foi o  gen J. M. Bettencourt Rodrigues, que, ainda provavelmente sem o saber, seria o próximo com-chefe e governador da Guiné, substituindo o gen António Spínola (que cessaria funções em 6 de agosto de 1973).


Duas companhias do navio-escola brasileiro "Custódio de Melo" associaram-se ao desfile final. em que participaram mais de três mil elementos dos três ramos das Forças Armadas Portuguesas, das corporações e dos estabelecimentos militares (pág, 14). (O Brasil, recorde-se, ainda vivia sob ditadura militar, 1964-1985).

Do discurso do almirante Américo Tomás, o último presidente da República do Estado Novo,  publicado na edição do "Diário de Lisboa", de 11 de junho de 1973, reproduzem-se alguns excertos... 

Doze anos depois do início da guerra em África, parece haver preocupação,  por parte do então chefe de Estado,  com a coesão, a solidez e o moral das Forças Armadas, numa altura em que havia já sinais de pré-rotura do gen Spínola com o regime (ou  com a ala mais radical do regime) e quando o manuscrito do livro  "Portugal e o Futuro" estava já na forja, mas ainda em segredo e sem título. (Seria concluído, nesse verão, nas célebres termas do Luso onde Spínola passava sempre uma temporada.)

Pergunta-se: será que esta mensagem do então presidente da República chegou a todos os seus destinatários, e sobretudo aos que defendiam a bandeira de Portugal nos "até por vezes inconfortáveis quartéis do mato africano" (sic) ? E, se sim, terá sido bem acolhida e compreendida ?

Pessoalmente não me lembro do meu Dia de Portugal no TO da Guiné, nem em 1969 (em Contuboel) nem em 1970 (em Bambadinca ou algures no mato). 


(...)





domingo, 8 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26899: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) Parte VIII: quando cheguei a São Vicente, de férias, em outubro de 1973, fiquei encabulado, não sabia praticamemte nada sobre a proclamação unilateral da independência pelo PAIGC


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1969 : Festa de Carnaval no Grémio... O Carlos Filipe Gonçalves é o nº 5...A maior parte do grupo está identificado: 1=Cajuca Feijó; 2=Herberto Martins; 3=Lena Melo; 4= Nini Tristão; 6= Ana Paula Ribeiro Freire; 7=Vanda Mesquitela Fonseca; 8=Fatu Grais; 9= Vicente Chantre; 10= Luís Guimarães Santos; 11= Zinha Pinto; 12= Ana Isabel Chantre Ramos; 13= Teté Bonucci Pias; 14=Filinto Martins. Fonte: Facebook do Carlos Filipe Gonçalves. Foto de Luisa Vidigal (20 de julho de 2017)

Em data anterior, encontrei a mesma foto, com pequenas alterações de legendagem, da autoria do Carlos Filipe Gonçaves: 28 de fevereiro de 2011. Legenda: Conjuntp West-Side, Carnaval 1969 no Grémio, MIndelo, SV, CV". 15=Henrique Sousa ("Nandim"); 16= Juliana; 17= Flintão; 4?Magui Curado... Os músicos do Conjunto West Side são: 1, 2, 5, 15.

Curiosamente, há um comentário sob a forma de pergunta,em crioulo,  que não deixa de ser pertinente: "Esse era naquel tempe que Greme era de "Gente Bronque"? (Traduzindo: Isso era naquele tempo em que o Grémio era da "gente branca",  ou seja elitista, crioula e colonial ) (Elisa Andrade, uma mindelense que vive em Paris).

Deve tratar-se do Grémio Recreativo Mindelense...

Segundo o assistente de IA da Gemini / Google, "o Grémio Recreativo Mindelense tem uma história muito significativa no Mindelo, São Vicente, e é uma entidade distinta, embora por vezes se possa confundir a sua história com a do Clube Sportivo Mindelense (que é o famoso clube de futebol).

É crucial clarificar que existe o Clube Sportivo Mindelense (CS Mindelense), fundado em 8 de outubro de 1919, que é um dos clubes de futebol mais antigos e mais vitoriosos de Cabo Verde e da África Ocidental. É este o clube conhecido pelos seus inúmeros títulos regionais e nacionais e pela sua grande massa adepta.

No entanto, as pesquisas indicam claramente a existência de um Grémio Recreativo de Mindelo, que parece ser uma entidade separada e com um foco mais amplo que o desporto.

Aqui estão os pontos principais sobre a história do Grémio Recreativo de Mindelo:

  1. Natureza e Finalidade: ao contrário dos clubes desportivos que se focam principalmente no futebol, o Grémio Recreativo de Mindelo era uma associação de caráter social e recreativo;  p seu objetivo era proporcionar um espaço de convívio, lazer e entretenimento para os seus membros.

  2. Exclusividade e Elite: era considerado um "bastião da presença colonial" e um local de encontro da alta sociedade mindelense, da elite local;  a admissão de membros era rigidamente controlada;  era frequentado por "gente brónke" (termo que, em Cabo Verde, não se referia necessariamente à cor da pele, mas à posição social e económica da elite, por vezes associada a uma certa "portugalidade").

  3. Localização e Importância: a sede do Grémio Recreativo de Mindelo localizava-se em frente à Praça Nova ( hoje, Praça Amílcar Cabral, no centro histórico do Mindelo), o que demonstra a sua centralidade e importância na vida social da cidade; era um local onde os membros se reuniam para conversar e se divertir.

  4. Papel Cultural e Político (Rádio Barlavento):

    • Um dos aspetos mais marcantes da história do Grémio Recreativo de Mindelo é a sua propriedade sobre a Rádio Barlavento.; esta rádio, instalada nas instalações do Grémio, era um veículo de comunicação crucial para a elite mindelense e teve um papel ativo de oposição à independência imediata de Cabo Verde e à unidade com a Guiné-Bissau ( e , portanto, ao PAIGC).
    • A sua importância foi tal que, em 9 de dezembro de 1974, às vésperas da independência, a Rádio Barlavento foi tomada por um comando do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC); este evento simbólico marcou a transição de poder e a queda do que era visto como o "establishment colonial"; a Rádio Barlavento deu depois lugar à Rádio Voz de São Vicente e, mais tarde, à Rádio Nacional de Cabo Verde (RNCV).
  5. Atividades Recreativas e Culturais:

    • O Grémio era palco de bailes, serenatas e outras atividades sociais; artistas locais atuavam nas suas instalações;  por exemplo, há relatos de músicos como Faia Torres (Rafael Augusto Torres) a tocar com o seu grupo no Grémio Recreativo do Mindelo nos anos 60.
    • Este espaço permitia o convívio e a manutenção de certas tradições culturais e sociais da elite mindelense.

Em resumo, o Grémio Recreativo de Mindelo não era um clube desportivo como o CS Mindelense, mas sim uma importante associação social e recreativa da elite mindelense, que teve um papel cultural relevante e uma significativa implicação política no período pré-independência de Cabo Verde, nomeadamente através da Rádio Barlavento. O seu declínio e a tomada da rádio marcaram o fim de uma era para esta associação."



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1969 > O Conjunto West Side no histórico Cinema Eden Park... O Calu, o nosso Carlos Filipe, é o terceiro, a contar da esquerda, de óculos: tocava percussão.


1. Continuação da publicação da série do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves (*),disponíveis na sua pãgina do Facebook e na nossa página da Tabanca Grande:

Mais uns extratos de "Recordações de um Furriel Miliciano na Guiné 1973/74": são mesmo «pequeníssimos» como indicam a numerosas reticências entre aspas. Isso porque deixo para a edição do livro muitas descrições pormenorizadas e documentadas. Aliás, já estou quase no final da publicação destes extratos das minhas memórias. 



O "senhor rádio", o Carlos Filipe Gonçalves (Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook):

(i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde;

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74;


(iii) ficou em Bissau até 1975;


(iv) músico, radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia;


(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;


(vi) tem 26 referências no nosso blogue.(*)


Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo)

Parte VIII: quando cheguei a São Vicente, de férias, em outubro de 1973, fiquei encabulado,  não sabia praticamemte nada sobre a proclamação unilateral da independência pelo PAIGC


Naqueles anos de 1973 e inícios de 74, Bissau é uma cidade cheia de festas e bailes, apesar da guerra, no entanto, muito poucos da tropa portuguesa têm acesso a esses convívios privados! 

Geralmente são festas de gente com estudos, quadros, funcionários guineenses e cabo-verdianos que trabalham na administração pública (alfandega, banco, casas comerciais, empresas, etc.). 


Muitos oficiais e sargentos, frequentam a única e famosa boîte de Bissau, o “Chez Toi” com música ao vivo e «brancas» vindas da metrópole… que fazem striptease e outras coisas… para fazer a malta esquecer a guerra…, minimizar o ambiente de horror… (…) 

Os soldados divertem-se em jantaradas e cervejadas nos restaurantes e bares que pululam pela cidade, conversam depois da bica nos cafés, deambulam depois pelas ruas… ou, vão ao famoso bairro infestado pela prostituição que é o Cupelon. 

Aqui, surgem rixas e pancadaria frequente, há tiros, e… de vez em quando, depois de uma discussão qualquer… alguém lança uma granada…. Bum! Salve-se quem puder! 

Porque, em Bissau todo o mundo anda armado, para além disso, muitos militares estão psicologicamente afectados, são os marados, os apanhados pelo clima, ou pelo cacimbo, não estão no seu perfeito juízo! Logo, provocam zaragatas por tudo e por nada, têm reacções violentas, praticam actos irreflectidos. (…)

Como disse antes, eu estava cada mais integrado na sociedade guineense, de modo que nas horas de folga e de lazer, pouco a pouco, fui deixando de ter contactos assíduos com os militares brancos. Os meus colegas de quarto atiram-me então indirectas, criticando a minha integração: “Sortudo! Andando com pretas e mulatas e não ligas à malta!” 

Quando eu chegava altas horas da noite à camarata, não faltavam comentários: “Na borga toda a noite e agora chateias o sono de cada um!” 

E continuei a ser o alvo das provocações do Gabarolas (#), sempre que podia, ele atirava-me diretas «provocatórias» sob a capa de informações as mais diversas. Foi assim que passei a saber muita coisa sobre o desenrolar da guerra e sobre muitos ataques e operações que decorriam no mato naquela altura. 

Foi através de diálogos do tipo (com o Gabarolas) que eu soube que tinha havido no início de maio uma contra-ofensiva da tropa portuguesa, depois de um ataque do PAIGC à localidade de Guidage. (…)

Em Bissau, naquele mês de junho de 1973 falava-se muito sobre Guidaje, (…) Só em meados de julho soubemos de um grande ataque no Sul em Guileje, (…) (##)

No quartel em Bissau, desde finais de maio que a ofensiva do PAIGC era tema recorrente nas conversas, mas, a maioria de nós, não imaginávamos a amplitude (…). Nem podíamos imaginar que os acontecimentos daquele mês de «Maio sangrento», ditariam o final da guerra! 

Anos depois, os ex-militares que lá estiveram, referem maio de 1973 como o «Inferno dos Três G» ou seja: Guidaje, Guileje, Gadamael! A partir de Junho de 1973 a guerra tomou um novo rumo, a cada dia, um novo desenvolvimento, cada vez mais acontecimentos sangrentos… mas, em Bissau a vida continua como se nada tivesse acontecido. (…)~

Pouco dias antes do final de julho (de 1973) por volta das 11 horas, na CHEFINT, ouvimos o roncar de um helicóptero, o ruído aproxima-se e está cada vez mais forte, vimos então o aparelho a descer, levantando muita poeira, aterra na parada do BINT. Estamos todos nas janelas a observar…. Abre-se a porta do helicóptero… logo depois sai o general Spínola, como sempre fardado de camuflado… fui logo avisar o tenente-coronel, nosso chefe, que saiu a correr... 

No rés do chão o comandante do BINT saiu logo,  foi cumprimentar o general Spínola, chegam, entretanto, outros oficiais, conversam todos uns vinte minutos… Spínola volta a entrar no helicóptero e vai-se embora. 

O alferes, que era sempre, o mais bem informado, comentou que Spínola estava a despedir-se, pois ia de férias para a metrópole durante o mês de Agosto. A grande verdade é que em inícios de Setembro, Spínola não voltou, chegou depois a notícia da nomeação de um novo governador e comandante-chefe. (…)

No final do mês de setembro de 1973 aconteceu no mato a proclamação da República da Guiné-Bissau, mas confesso, não foi um assunto badalado entre a tropa. Logo depois, início de outubro, fui de férias a S. Vicente. 

Aqui, na minha cidade do Mindelo, mal cheguei fui logo confrontado com essa notícia! Primeiro pelo meu pai que me acolheu no aeroporto, depois pelo resto da família. Fiquei encabulado, pois não sabia pormenores sobre esse assunto! Porque, esta notícia, nem foi comentada no meu círculo na repartição, nem com colegas na messe. 

Aqui no Mindelo, perguntavam insistentemente pela Guerra na Guiné e diziam: as coisas estão feias! Ah! Isso eu sabia, mas não podia dizer uma palavra sobre os acontecimentos em Guileje ou Guidage! Sabia que a Pide estava omnipresente… qualquer deslize, estaria tramado! O jornal Arquipélago que o meu pai comprava, abordou várias vezes a notícia da Independência da Guiné-Bissau, claro, dizia-se/insistia-se que «era um acto de fantasia». 

Mas… eu sabia, que uma grande parte do território da Guiné, não tinha tropa portuguesa! É que quando eu entrava no gabinete do tenente-coronel, ele ia rapidamente fechar a cortina que cobria o grande mapa que lá havia, no qual se indicava com alfinetes de diversas cores, onde estavam os batalhões e respectivas companhias, pelotões disso e daquilo, etc. 

Mas, tarde de mais… não dava para esconder… eu, via sempre, duas grandes áreas, onde não havia nenhum alfinete, uma zona ali a norte de Mansoa, que venho a saber mais tarde era a “Zona Libertada de Morés”, a outra estendia-se a Leste e para o Sul! Era um buracão sem nada…. Nenhum quartel! 

Meu pai insistia nas perguntas, mas eu, não abria a boca, nem com ele, nem com amigos e malta conhecida… porque eu sabia, a Pide estava sempre por perto…

___________

Notas do autor:

(#) O Gabarolas era um "camarada" militar, que me acompanhou desde quando estive em Leiria, na especialidade. Gozava comigo, provocava-me com tiradas políticas, enfim, passei muito mal com este «camarada» que só depois do 25 de Abril vim a saber que era da PIDE! (…)

(##) A batalha de Guileje foi em meados de maio de 1973

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, edição e legendagem das fotos: LG)

______________

Nota do editor:

Último poste da série  > de 4 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26880: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26880: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros




"Diário Notícias  de 31/3/1973  


A notícia da queda do Fiat G-91, nº 5419, pilotado pelo ten cor pilav Almeida Brito, comandante do Grupo Operacional 1201, da BA 12, em Bissalanca, abatido por um míssil Strela, foi dada, surpreendentemente, pelo "Diário de Notícias", em caixa alta. (Não consta, por exemplo, do "Diário de Lisboa".)

Imagem: Cortesia do blogue do Victor Barata > Especialistas da BA12, Guiné 65/74 > Terça-feira, 31 de Julho de 2007 > Ten Cor Pilav Almeida Brito: Única vitíma mortal do Strela, por Arnaldo Sousa

O Comandante Almeida Brito tinha nascido em 1933 e concluído em 1953 o curso de aeronáutica militar na Escola do Exército (antecessora da Academia Militar). O seu desaparecimento (o corpo nunca chegriara a ser encontrado) causou profunda consternação na BA12 e em Bissau, onde era um militar muito conceituado e muito querido entre os seus subordinadas e amigos.


Guiné Bissau > c. 1973 > Cortejo fúnebre para embarque de urnas


Guiné > Bissau > c. 1973 > instalações da UDIB onde havia um cinema cujo salão era utilizado para o Congresso do Povo. (O início da construção da nova sede da UDIB - União Desportiva e Internacional de Bissau data de fevereiro de 1969; a primeira pedra foi lançada pelo então brigadeiro António Spínola.)



1. Continuação da publicação da série do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves (*)

Recordações da Guiné de um Furriel Miliciano. 

No extracto de hoje, o primeiro de grandes acontecimentos que a partir de agora iriam marcar o fim da guerra na Guiné… Hoje, sabemos, que foi assim… mas, no final de março de 1973, vivíamos normalmente o dia a dia no QG em Santa Luzia, eu, completava o meu primeiro mês de Comissão, ainda era um «periquito», ou seja, na gíria militar eu era um «novato» que ainda estava a adaptar-se ao ambiente de guerra e ao clima, como descrevi no post anterior. 

Passados 51 anos, para além da descrição «naïf» de como um jovem de 23 anos viveu os acontecimentos, descrevo o ambiente de guerra que se vivia. Apresento também uma visão do outro lado (afinal sou jornalista), procuro, pois, dar aos nossos filhos e netos uma visão clara dos acontecimentos. 






Carlos Filipe Gonçalves (Kalu Nhô Roque, como consta na sua página no facebook):

 (i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; 

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; 

(iii) ficou em Bissau até 1975; 

(iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia; 

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;

 (vi) tem 25 referências no nosso blogue.(*)



Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) 

 Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros



Pouco depois da minha chegada a Bissau, a grande notícia foi o derrube de aviões Fiat ! A notícia não foi dada na rádio, mas circulava entre os militares. Dizia-se que um avião não voltou de uma missão, foi outro à procura para ver o que aconteceu, também foi abatido. 

Os "turras", diziam os meu camaradas militares, têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros. Na conversa sobre este este assunto na repartição o alferes explicou: o novo míssil procura uma fonte de calor e corre atrás! 

Foi assim que fiquei a saber que os helicópteros tinham uma turbina, para os impelir para a frente e que a grande hélice horizontal apenas servia para os manter no ar. 

Os helicópteros voam agora baixinho a rasar a copa das árvores e não podem deslocar-se a todos sítios! Anos mais tarde depois da guerra, vim a saber que se tratava de mísseis antiaéreos Strela, de fabrico soviético. 

Manuel Amante explicou que, depois da entrada desta nova arma do PAIGC, “passou-se a utilizar muito mais o transporte terrestre e marítimo, eu sei disso, porque o meu pai tinha barcos nessa altura, que faziam o transporte de coisas… principalmente para Xime e Bambadinca. (…) A navegação no rio fazia-se, com alguma precaução principalmente de noite porque havia sempre ataques em Mato Cão. Aliás um dos navios de transporte do meu pai, foi atacado nessa altura a uns 20 minutos antes de chegar a Xime.” 

Manecas Santos, comandante do PAIGC, em entrevista à rádio DW,  comentou anos mais tarde esta situação: 

“Em 1973, eu era o chefe de um grupo que foi treinado na União Soviética para manusear armas antiaéreas eficientes: foguetes. (…) A partir do momento que nós começámos a usar estas armas antiaéreas, o exército colonial português ficou completamente na defensiva.(…).”  (##)

Depois da minha chegada a Bissau, aprendi com os veteranos a distinguir o som dos bombardeamentos/flagelações lá longe e se ouvia perfeitamente em Bissau. Aconteceu numa noite, estava eu no Café Império ao lado da Praça de mesmo nome (atualmente Praça dos Heróis Nacionais); depois de se ouvir bombardeamentos ao longe, disse-me um amigo, militar mais experiente: 

“Quando se ouve «Buuum" depois de uma breve pausa, «Buuum» um pouco mais longe, são obuses da tropa, ou canhão dos «turras». Quando se ouve simplesmente «Buuum» e não há retorno, são mísseis dos «turras».” 

Os veteranos colocavam a palma da mão no ouvido para orientar e diziam: 

“Daquele lado é Bula… ou, Binar? Deste lado, é muito perto só pode ser Tite… Cumeré?”

Quando os helicópteros passavam insistentemente, já se sabia, houve feridos em combate, estão a decorrer evacuações. 


Guiné > Bissau > 1974 > Café Império, já na antiga Praça do Império, ao cimo da Av da República, do lado direito de quem subia...


Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



Sentado no Café Império em dias de folga, fui algumas vezes surpreendido pela passagem de cortejos militares fúnebres, a caminho do cais para o embarque de restos mortais para a metrópole. À frente, ia um jipe com soldados de luvas brancas, todos perfilados, atrás os camiões com as urnas, tudo em silêncio, devagar…. Então, levantávamos e ficávamos em sentido, aqueles que estavam fardados faziam continência.

Um dia, a propósito do ataque a uma localidade qualquer, o Demba contou a sua história. Antes, de vir para a ChefInt trabalhava numa enfermaria algures mato, num quartel como ajudante de enfermeiro. Teve azar, quando uma granada atingiu a enfermaria, explodiu um garrafão de álcool, o líquido incandescente atingiu-o! Com queimaduras graves, foi evacuado para Bissau, depois evacuado para o Hospital Militar em Lisboa. Esteve meses em coma! Felizmente – dizia – muitas pessoas lhe deram pedaços de pele que lhe foram sendo enxertados. E apontava para a cara: 

“Estão a ver! Tenho pele de muitos brancos… e também de pretos! Deram pele e me ajudaram! Passei mais de dois anos no hospital em Lisboa. Graças a Alá, sobrevivi!” 

Arregaçou as mangas para vermos os braços todos queimados, abriu a camisa e mostrou o peito, onde se viam manchas brancas entre a pele preta e múltiplas cicatrizes.

Fiquei impressionado, mas não comentei. Percebi, agora,  porque tinha a cara desfeita! Começava a ter contacto com os horrores da guerra.

Naquele mês de Abril de 1973, houve uma reunião da Assembleia Legislativa , foi acontecimento badalado na rádio. Aqui, chama-se Congresso do Povo, reúne deputados locais, chefes tribais e régulos de diferentes etnias.

 As sessões decorriam no salão do cinema da UDIB , um clube desportivo com belíssimas instalações sociais na avenida principal da cidade. Claudino tinha um radiozinho que ele colocava sobre a mesa, ouvíamos baixinho a ERG que fazia as reportagens em direto, ou transmitia discursos, uns em crioulo, outros em línguas das etnias, mas para mim, era tudo igual ao litro… não entendia nada.

Pouco depois, foi a morte de um líder muçulmano em Nova Lamego, Gabú para os locais. Spínola ordenou um funeral com pompa e circunstância. Demba andava entusiasmado e quando os discursos eram em «fula»,  ele comentava nessa língua com o Issa e com o Claudino. No dia do funeral do tal imã, o Demba não compareceu no serviço. Dias depois, quando regressou, contou o que se tinha passado nas exéquias, falou do discurso de Spínola etc. etc. 

________________

Notas do autor:


(#) Um primeiro avião Fiat foi abatido em 25 de Março de 1973 por um míssil. O segundo avião do mesmo tipo foi abatido em 28 de Março de 1973 também por um míssil. Foram abatidos mais aviões deste tipo em 1 de Setembro de 1973, 4 de Outubro de 1973 e 31 de Janeiro de 1974.

Fonte: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné > 21 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1867: Força Aérea Portuguesa: Seis Fiat G.91 abatidos pelo PAIGC entre 1968 e 1974 (Arnaldo Sousa)

(##) Manuel Santos, "Manecas", nascido em S. Vicente, Cabo Verde, 1943. Estudante de Engenharia em Lisboa, aderiu ao PAIGC em 1964. Foi ministro em vários Governos na Guiné-Bissau.

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

terça-feira, 27 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26853: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte V: aqui sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...

 

Foto nº 1 _ Paragem no autocarro dos "Transportes Urbanos Militares" na Amura


Foto nº 2 > Restaurante Pelicano



Foto nº 3 > Ronda (Café e Pensão)


(Cortesia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


O Carlos Filipe Gonçalves, Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook):

 (i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; 

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; 

(iii) ficou em Bissau até 1975; 

(iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia; 

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;

 (vi) tem 23 referências no nosso blogue.(*)


Mais extractos de "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné 1973/74". Fotos relacionadas com o Texto: Paragem do autocarro na Amura (nº1). Restaurantes Pelicano Nº 2) e Ronda (nº 3).

Voltamos a chamar atenção para a ausência de notas de rodapé, essenciais para situar o leitor com informação adicional. Isso é devido à não aceitação pela formatação no Facebook.


Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (*)


Parte V: em Bissau, sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...


Logo depois da minha chegada a Bissau nas primeiras semanas fui.... à  descoberta de Bissau, tenho encontros imprevistos...
.
O recém-chegado de Lisboa à Guiné sofre um choque térmico, que provoca suores, estamos sempre melados! No final de um dia de trabalho anseia-se por mais um banho; no meu caso, já vou no terceiro depois dos de manhã cedo e do meio-dia! E haverá mais um, antes de dormir. 

Perfumado e bem vestido «à civil», passo pela messe para o jantar, depois é rumar a Bissau, para uma bica num café qualquer, conversar, distender…

Na rotina que se vai instalar, jantar fora tem muitas opções de restaurantes: perto do QG na estrada de S. Luzia está o “Santos” com bons vinhos, bifes e mariscada… O camarão e ostra são baratíssimos! 

Há,  em Bissau, restaurantes afamados como “Solar do 10” ou “Pelicano” com uma esplanada frente ao porto de Pidjiguiti, beneficia do ar fresco que vem do rio Geba. Aliás, opções não faltam! O convívio no restaurante permite a fuga do ambiente do quartel e dos pratos «beras» que constituem o menu do jantar: normalmente peixe frito com arroz, de tempos a tempos, pastéis de bacalhau, que a malta chama ironicamente «pastéis de batalhau» por conter mais batata que bacalhau. 

É bom dizer, na situação de “comissão de serviço” em que as pessoas são enviadas obrigatoriamente para as PU (províncias ultramarinas) há uma permanente contestação e resistência a tudo e mais alguma coisa. Mandam-se bocas por tudo e por nada, o pensamento está centrado em passar os dias, chegar ao fim da comissão e o regresso a casa.

Apanhar o autocarro dos “Transportes Urbanos Militares” para Bissau, logo depois do jantar, passou a ser um hábito de todos os dias. O autocarro vai sempre cheio, muitas vezes temos que esperar pela volta, para se encontrar um lugar na próxima viagem. Há várias paragens… Eu, e quase toda a malta, descemos na Amura, um imponente forte, velho de séculos onde está instalado o Comando Chefe. Trata-se de um ponto central, há um pequeno largo e comércio à volta.

 Quando se desce do autocarro, depara-se logo em frente com uma loja de roupas e artigos de luxo, em cuja montra, marca presença um imponente poster, publicidade de relógios «Citizen» no qual se vê o musculado Charles Bronson, um actor de cinema, muito afamado na época. Esta zona é o «down town», conhecida entre os locais, por “Bissau Velho”, onde há muitas lojas e um comércio florescente.

Aqui se encontram o afamado Café Bento, uma esplanada ladeando a avenida principal, e o restaurante Pelicano em frente ao Geba. Estão todos cheios de gente e muito movimento. Se não encontrávamos um lugar ali perto no Bento, eu os meus camaradas militares, deambulávamos pela cidade, às vezes, passávamos pelo Café Ronda a meio da longa avenida principal; subindo mais, um pouco, chegávamos ao Café Império, ali ao lado na praça do mesmo nome. Em frente via-se o Palácio do Governador, no meio da praça está um monumento, um obelisco, se não me engano, evoca o dia da raça, ou será os descobrimentos?

Associação Comercial,
Industrial e Agrícola de Bissau
.

Fonte: Cortesia do Blogue  Luís Graça &
Camaradas da Guiné
Naqueles primeiros dias da minha chegada, estávamos sentados no Café Império, quando ouvimos música e vimos uma movimentação de pessoas num prédio imponente em frente. Fomos ver! Descobrimos que havia uma festa. Era no prédio da Associação Comercial que contava com luxuosas instalações. 

Atrevidamente entramos, subimos, ao primeiro andar, deparamos com um grande salão que está todo enfeitado com balões e serpentinas… há poucas pessoas a dançar, nem nos ligam. Descubro então que se trata de um baile de Carnaval! É que a minha chegada a Bissau, naquele início do mês de Março, coincidiu com o Carnaval e eu nem sabia! 

Naquele ano, a Terça Feira Gorda caiu no dia 6 de março (de 1973). Nesta festa, toca-se música de gira-discos/aparelhagem, ouço Luís Morais e Bana, ambos cabo-verdianos, música angolana… 

Esta festa de Carnaval neste edifício, relembra-me logo o “Grémio”,  um clube social na minha longínqua cidade do Mindelo. Relembro Cabo Verde…, mas, sinto-me em casa, em Bissau!

Nos dias seguintes, faço a habitual ronda por Bissau ao fim do dia. Ainda não se completou uma semana desde a minha chegada, quando ao sair do autocarro, ouço uma voz a chamar: "Kalú! Kalú!"... Volto e dou de caras com o Espim, um amigo que conheço de Cabo Verde. Abraços, risadas, uma agradável surpresa. Ele pergunta logo: “Por aqui? Quando chegaste?” Respondo: “Estou cá na tropa, cheguei semana passada!” Ele explica logo: “Estou cá, desde há cerca de dois meses! Passei num concurso e vim trabalhar no BNU. Somos quatro, todos de Cabo Verde!” 

Abandonei logo os meus camaradas militares, acompanho o Espim, sentamo-nos logo ali em frente na pequena esplanada “Zé da Amura”. Espim é meu velho colega dos tempos do liceu em S. Vicente, tem esta alcunha «espinho» porque é muito alto e magro. Fez logo questão de me mostrar que já consegue dizer umas coisas no crioulo da Guiné, mas logo retomamos a conversa no nosso crioulo de S. Vicente. 

Ele leva-me depois ali ao lado, à casa de pessoas conhecidas com quem ele já se familiarizou, sou apresentado, há muita conversa, descubro então mais dois colegas dos tempos do liceu, um deles, militar (Adriano Almeida) já em final da comissão, também trabalha no quartel-general, o outro (Manuel Rosa), filho de cabo-verdianos nascido na Guiné, mas esteve a estudar em Mindelo, fora meu colega no liceu, está prestes a ser incorporado, deverá ir para o Centro de Instrução Militar em Bolama.

 Abraços, evocações de velhas recordações, muita conversa… não resisto em dizer ao leitor mais uma vez: sinto-me em casa!

A partir de então, a cada dia que passa, vou conhecendo mais gente de Cabo-Verde e encontro familiares: duas tias, um primo da minha mãe e seus filhos, etc. etc. Natural, pois, há ligações familiares antigas com a Guiné, a minha mãe contava que a avó paterna dela, era da Guiné… até encontro laços familiares no quartel! 

Certo dia, sou abordado pelo comandante do BINT (Batalhão de Intendência) que susto! Afinal era só para perguntar: "O nosso furriel de onde é?" Respondo: "de S. Vicente de Cabo Verde".  E aí, o nosso major me diz que fez uma comissão em S. Vicente (em Cabo Verde), é casado com uma cabo-verdiana e dá-me pormenores… Vi logo que a esposa era a filha de um familiar meu, do ramo dos Lopes da Silva! Dou-lhe o nome e o nosso major, fica espantado! Eu conhecia muito bem o pai da esposa , que era compadre do meu padrasto! Mas, hierarquia «oblige» o tratamento continuou, o da praxe: ele lá, eu cá, continência, bom dia/boa tarde, meu major!

Venho depois a saber, muitas repartições e serviços da administração pública de Bissau, têm cabo-verdianos, no BNU são quase todos cabo-verdianos! Verifico mais tarde, há muitos cabo-verdianos, instalados desde muitos e muitos anos na Guiné! Passo a ser convidado para festas, almoços com familiares, pouco a pouco vou-me inserindo na sociedade guineense.

 Começo então a tomar contacto com a organização social na Guiné. Como em Cabo Verde, em Bissau fala-se o crioulo nas conversas familiares e informais, o português é uma língua formal, de relações oficiais e de respeito. E há as línguas das etnias, há programas na rádio em crioulo e nessas línguas depois das 7 da noite ; não entendo nada do que dizem. As etnias residem e agrupam-se por bairros…. Entre os da mesma etnia, fala-se na sua língua, com outros fala-se em crioulo. Com o tempo irei aprender a distinguir vagamente as sonoridades de algumas línguas… 

Teresa Schwarz [escritora, viúva do peota e cantor José Carlos Schwarz], que viveu desde os inícios dos anos 1970 em Bissau tem a mesma percepção, explica: 

“A pequena burguesia (de Bissau) era constituída por famílias originárias de Cabo Verde e de Portugal. Os guineenses vivendo na «praça» eram poucos. Esses últimos vinham (à cidade), trabalhavam e retornavam à tarde às periferias (tabancas que rodeiam Bissau). Os lazeres eram piqueniques, festas, bailes onde a música cabo-verdiana primava.”

Pelos cabo-verdianos na tropa no mato, recebo notícias do que por lá se passa.

Nos próximos meses, vou encontrar mais cabo-verdianos, são militares que estão no mato, mas que volta e meia estão de folga em Bissau, ou então a caminho de férias em Cabo Verde. É então, o momento de convívio, comezainas de camarões, ostras… e beber umas cervejadas para espantar o calor. Locais de convívio não faltam em Bissau. Nas conversas, alguns falam da situação no mato, outros nem por isso. 

O CT é um velho amigo desde a escola primária, era meu vizinho em S. Vicente, estava colocado em Galomaro. Ele conta-me que os ataques dos «turras» eram quase sempre à hora do almoço ou do jantar e comentou: “Não imaginas como isso nos afecta psicologicamente! Quando soam os primeiros tiros de canhão sem recuo ou mísseis, vamos todos para o abrigo. Muitas vezes ficamos sem almoçar ou jantar!” 

Diz-me depois a rir: “Olha, eles até descobriram o meu nome!” Perguntei: "Quem?" Ele responde: “Os turras! Olha, há dias, atacaram à hora do almoço e depois foram-se embora! Quando voltávamos do abrigo, vimos um papel pregado no arame farpado que circunda o quartel. No papel, estava escrito: o meu nome e a frase «Cathorr de dôs pé»! Tradução: cão de duas patas! (uma alusão ao colaboracionismo com a tropa). 

Claro que os colegas portugueses não entenderam nada, pois não sabem a minha alcunha e a frase estava em crioulo!” Já o JL nunca conta nada, fala pouco. Quando nos encontramos, gosta é de pedir uma garrafinha pequena de whisky, daquelas para meter nos bolsos, que têm à volta de 250 ml… Derrama o conteúdo num copo cheio de gelo e vai bebendo calado…

 Outro, amigo militar que estava no mato, era o JC, também um velho amigo de infância e do liceu em S. Vicente. Ele era das “operações especiais”, logo estava sempre à pega. Lamentava-se das operações difíceis no Cantanhez, Cacine e outros locais no Sul… Dizia, aquilo era o «Catanhezname»! Uma referência ao Vietname. Mas, ele era sempre muito vago, não descia aos pormenores e eu não insistia. 

O ZC era fuzileiro, outro velho amigo de infância e dos tempos do liceu. Quando vinha a Bissau, era aquela confraternização, mas ele também era parco nas informações, apenas dizia: “Eh pá! Na última missão foi porrada e mais porrada! Felizmente estou vivo!” Certa vez percebi vagamente que teria sido uma operação no Norte… em Guidage como veremos mais à frente.

(...)

(Revisão / fixação de texto, parènetses retos, links, título, negritos: LG)
__________________

Nota do editor:

domingo, 25 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26843: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte IV: Na Repartição de Autos Víveres, tenho de assinar o ponto todos os dias, trabalha-se das 8h00 às 12h30, e das 15h00 às 18h30, sábado e domingo de manhã... "Estamos em guerra, até em Bissau", dizem-me!...

Fotoo nº 1 > Exemplar de aparelho de rádio que era oferecido à população no âmbito das políticas "Por uma Guiné Melhor». Estava sintonizado para o PIFAS,,,




Foto nº 2 > O "Pifas", a popular mascote do Programa das Forças Armadas

(Cortesia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)
 


1. Mais alguns extratos das "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné -1973/1974" (*)
 





O Carlos Filipe Gonçalves, Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook): (i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; (ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; (iii) ficou em Bissau até 1975; (iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia; (v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790; (vi) tem 2 dezenas de referências no nosso blogue.(*)
 

(...) "Convém alertar neste ponto, que todas as citações, indicações na gíria militar e documentação referida nos textos (já publicados e a publicar) beneficiam de uma 'Nota de Rodapé' explicativa, mas, infelizmente a formatação de textos no Facebook não aceita essa modalidade gráfica. 

"Os textos integrais e respetivas notas estarão disponíveis numa eventual edição do livro em papel, o que dará aos leitores uma outra perspetiva das descrições e personagens. 

"Continuação, pois, das minhas impressões, no primeiro dia da minha apresentação na Chefia dos Serviços de Intendência (Chefint),  situada no Batalhão da Intendência (Bint), no perímetro de Santa Luzia, onde estão o QG e outras infra estruturas." (...)




Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (*)

Parte IV:   Na Repartição de Autos Víveres, tenho de assinar o ponto todos os dias, trabalha-se das 8h00 às 12h30, e das 15h00 às 18h30, sábado e domingo de manhã... "Estamos em guerra, até em Bissau", dizem-me!...



Ainda na Repartição de Autos Víveres (…),  fico a saber que tenho de assinar o ponto todos os dias à entrada e saída e que os horários de trabalho nos períodos da manhã (das 8h00 às 12h30) e à tarde (das 15h00 às 18h30) contam com mais uma hora do que o normal na metrópole... 

Sábados, trabalha-se de manhã, folga-se à tarde… Logo me dizem que também se trabalha aos domingos de manhã entre as 10 e o meio-dia. Folga? Só no domingo à tarde. 

Penso com os meus botões: isso é de arrebentar uma pessoa! Vendo o espanto na minha cara, explicam: 

“Temos de estar sempre operacionais, porque estamos em guerra! Bissau é também uma zona operacional!”

Pouco depois é hora de saída, vamos ao almoço na messe, onde há muita conversa e movimentação. Entra-se no refeitório, escolhe-se um lugar vago e sentamo-nos à mesa, já lá estão os pratos e talheres, a comida, o vinho, uma garrafa de água e um «balde de gelo», verifico depois que é «fundamental»! Os veteranos enchem os copos com o gelo para refrescar o vinho! 

O calor é intenso, sempre acima dos 33 graus de dia, à noite a temperatura desce um pouco, mas não se nota. Devido ao calor e humidade, ando sempre encharcado em suor, pois acabo de chegar, vindo do frio da metrópole. 

Tenho sempre sede e quanto mais bebo… mais sede tenho! Os ventiladores no teto não criam nenhum efeito de frescura, só roncam e movimentam o ar quente. Mas, a ventoínha é um utensílio que ninguém dispensa, por isso, também comprei uma no bar da messe, que tem quase tudo o que se precisa a preços módicos… 

Nos quartos, todos têm um ventilador que colocam na parede por cima da cabeceira da cama, explicam os veteranos é para evitar a projeção do ar diretamente no corpo… porque já houve paralisias de braços devido à incidência direta do ar do ventilador, noite inteira!

Chama-me atenção e vai marcar a minha rotina de todos os dias a difusão das emissões da rádio na esplanada da messe. Ouve-se o PIFAS, Programa das Forças Armadas,  que antecede o jornal da tarde às 13 horas em direto da Emissora Nacional em Lisboa. O PIFAS é um programa do Comando-Chefe, dizem-me, produzido pelo Departamento APSIC (Acção Psicológica).

“Na Guiné existe apenas uma emissora de rádio, prolongamento da Emissora Nacional. É divertida, tem anúncios locais, passa discos pedidos, ação psicológica, etc.” recorda o ex-militar António Graça de Abreu. 

A partir das 11 da manhã, começava o PIFAS, um programa de altíssima qualidade com muita animação e informação, transmite muita música Pop, os últimos sucessos em Portugal e na Europa! 

A malta em Bissau escutava nas repartições; eu, como ainda não tinha rádio, só ouvia depois do meio-dia, na esplanada da messe. Os discos pedidos eram o prato forte, mas havia também falatório sobre os mais diversos assuntos, notícias do mundo da música, cinema, etc. Recebia, muitas cartas, todas de militares espalhados pelo mato, em lugares com nomes esquisitos. 

Este programa de rádio tinha um boneco que o personificava/simbolizava (hoje diz-se marketing/ merchandising) sob a forma de um repórter, fardado de camuflado e microfone em punho, chamado Pifas! Era distribuído como prémio de concursos e a ouvintes com envio assíduo de cartas, ou por simples cortesia.

Depois do noticiário das 13:00 da Emissora Nacional, em direto de Lisboa, toda a malta recolhe para a sesta. No pavilhão metálico onde estou alojado, o calor é insuportável, impossível tirar uma soneca. 

Nesta altura, toda a instalação de Santa Luzia, é invadida, pelas lavadeiras! Batem à porta, para fazer a entrega da roupa lavada e tomar a roupa suja, há muita conversa, discussões sobre tal peça que desapareceu, ou não está bem lavada… enfim! 

Pouco depois estamos todos a caminho das repartições, verifico que há outras centenas de civis também a caminho, eles trabalham nas diferentes repartições e serviços deste complexo militar onde fui colocado. Homens e mulheres, civis guineenses, trabalham como datilógrafos, arquivistas, escriturários, etc. Espalham-se pelas salas juntamente com os militares. 

Compreendo agora a tal falta de pessoal militar, que o tenente-coronel apontou quando me apresentei; imagino também que é uma forma de se dar trabalho às pessoas. Soube depois que a utilização de civis na tropa é uma consequência da política «Por Guiné Melhor» lançada pelo general Spínola, que consiste em trazer bem-estar às populações, dar emprego, acesso aos serviços de saúde, acesso a toda a espécie de benefícios…

A rádio tem um papel importante e integra-se nas acções desenvolvidas nesta política, como recorda o ex-militar Miguel Pessoa: “uma das acções desenvolvidas era a sensibilização da população através da distribuição de rádios (recetores).” E chama então atenção para o seguinte pormenor: 

“O mais curioso daquele rádio (o recetor distribuído) é que o sintonizador rotativo estava naquele caso particular (não posso garantir que fosse em todos) colado na frequência do Pifas, o que impedia a sintonia do aparelho noutras emissões menos favoráveis às nossas cores...” 

Mas, rapidamente esse «bloqueamento» era desfeito e sintonizavam outras rádios como a «Maria Turra»,  nome pelo qual é conhecida entre a tropa portuguesa a Rádio Libertação do PAIGC. 

Um outro militar diz: 

“Lembro-me bem desses rádios que foram distribuídos a elementos da população do Dulombi e que eles se passeavam com os ditos (rádios) aos domingos, pela área do quartel.” 

Convém notar que na época, o «regime colonial» procurava impedir por todos os meios que a população e a tropa ouvissem a «propaganda» da Rádio Libertação do PAIGC.


(Revisão / fixação de texto: LG)

______________