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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26849: Notas de leitura (1801): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
É extensíssima a bibliografia que António Duarte Silva incorpora neste seu primeiro volume, quando o escreveu não era propriamente um recém-chegado ao mundo da investigação, possuía também tarimba universitária, fora assistente do ISCTE e da Faculdade de Direito de Lisboa, assistente da Escola de Direito e assessor científico da Faculdade de Direito de Bissau, possuía escritos sobre Direito Constitucional, Direito Colonial e Descolonização. 

Estruturado de uma forma singular, este seu primeiro livro faz desenvolver uma narrativa que se prende com o gérmen nacionalista até à fundação do PAIGC, como Amílcar Cabral foi o dínamo da estratégia, da formação, da abertura à comunidade internacional para a sensibilizar quanto às razões que assistiam às lutas do PAIGC, sempre entremeando o direito, a política e a luta militar, esta obra de referência levar-nos-á até ao contexto que foi reconhecida a Guiné-Bissau e a sua admissão nas Nações Unidas. O autor estava assim a preparar a maturação de uma tese sobre o pensamento e a ação de Cabral que agora está traduzida numa nova obra de referência e que se intitula Amílcar Cabral e o FIm do Império.

Um abraço do
Mário



A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (1)

Mário Beja Santos

António Duarte Silva [na foto à direita] é indiscutivelmente o investigador com mais créditos no estudo no pensamento e ação de Amílcar Cabral, no direito e política, abrangendo o seu centro de investigação, a independência da Guiné-Bissau e o processo jurídico-político da descolonização da Guiné-Bissau, toda a sua obra maneja com alta perícia estes domínios. 

O seu primeiro livro é exatamente o que vamos analisar, A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Afrontamento, 1997, um trabalho de longo fôlego, assente em quatro partes: 

  • colonialismo e nacionalismo na Guiné; 
  • o ato inédito no direito internacional da declaração unilateral de independência; 
  • como se processou a descolonização portuguesa; 
  • e, igualmente, como teve lugar a formação do Estado.

Como é obrigatório, o autor apresenta a pequena parcela da Costa da Guiné explorada pelos portugueses a partir do século XV, como se foi modelando, à escala universal, o sentimento de mudança (de colonização para descolonização), assistiu-se à quebra das amarras das potências coloniais e dos povos tutelados; como se deu o despertar do nacionalismo em terras da Guiné, apareceu o Partido Socialista da Guiné, que pouco fez e pouco durou, irrompe a figura de Amílcar Cabral, a importância dos contactos que ele estabeleceu em Lisboa com outros estudantes africanos de colónias portuguesas, a sua presença como engenheiro na Guiné, onde, um ano depois de ele ter regressado a Lisboa, se tentou se criar um Movimento para a Independência Nacional da Guiné (MING), que Rafael Barbosa, que será figura fundamental do PAIGC até 1962, comentará que não passou de um campo de experiência.

Tudo irá mudar em 1959, mas no ano anterior um conjunto de nacionalistas decidiu formar um Movimento de Libertação da Guiné. A 3 de agosto de 1959, dão-se os trágicos acontecimentos do Pidjiquiti, haverá mortos de número indeterminado, tem lugar a 19 de setembro de 1959 uma reunião em Bissau, em que está presente Amílcar Cabral, em que se tomam importante decisões: deslocar a ação para o campo, mobilizando os camponeses, preparar-se para a luta armada e transferir parte da direção para o exterior. 

Ainda hoje não está historicamente aclarado a formação do PAI, dada como ocorrida em 1956. Entretanto, tem lugar a formação pelos movimentos nacionalistas da criação de organizações unitárias contra o colonialismo português, o autor dá-nos o quadro de toda esta construção, e assim chegamos à Conferência de Túnis em que em declaração pública Cabral fala da motivação da luta de libertação nacional; estamos em 1960, o líder do PAIGC passa a viver em Conacri, Rafael Barbosa é o condutor da mobilização de jovens guineenses que são encaminhados para a República da Guiné; em janeiro de 1961 partem dez militantes do PAIGC com destino à Academia Militar de Nanquim, China, irão tornar-se os principais comandantes de guerrilha, caso de Osvaldo Vieira, João Bernardo Vieira, Constantino Teixeira, Domingos Ramos ou Francisco Mendes.

Nos primeiros dias de outubro de 1960, o ainda PAI realizará em Dacar uma reunião de dirigentes, é nesse evento que foi adotada definitivamente a sigla PAIGC, aprovados os programas dos partidos, que tinham sido elaborados por Cabral, escolhida a bandeira do PAIGC, também por sugestão de Cabral; enviada uma vez mais ao Governo português a proposta de abertura de negociações, e a não haver deferência por parte do Estado português, teria início a luta armada. 

O quadro ideológico em que se irá mover Cabral irá diferir do proposto por outros intelectuais, líderes políticos ou líderes revolucionários. Embora sensível a paradigmas internacionais, Cabral irá cimentar o seu pensamento, no dizer de Mário de Andrade, pela convergência quanto à identidade cultural, ao nacionalismo, à identidade nacional, à guerra popular de longa duração, a uma nova ordem social, à natureza e ao controlo do futuro Estado independente.

Desde muito cedo que o líder do PAIGC busca apoios nesta altura fundamentalmente em África, URSS e países não alinhados. No início, Moscovo temia que o PAIGC estivesse dominado por tendências para os chineses. Conacri gera facilidades e dá ajuda concreta. 1962 é o ano em que Rafael Barbosa é preso na Guiné, é desmantelada a organização do PAIGC em Bissau e desencadeada a sublevação nas regiões do Sul. 

A luta armada propriamente dita inicia-se em janeiro do ano seguinte. O Ministro da Defesa, general Gomes de Araújo, numa entrevista a um jornal em julho de 1963 refere a preponderância do PAIGC no Sul, dizendo que tinham penetrado numa zona correspondente a 15% da superfície da província. 

Em meados desse ano, a guerra atingiu as florestas do Oio, tudo se vai complicar na zona Centro-Norte, é uma comoção demográfica impressionante com populações fugidas, tabancas abandonadas e destruídas, a vida administrativa e a atividade comercial profundamente afetadas.

 Nesta fase da luta, o PAIGC ainda tem um concorrente, a FLING, irá diluir-se a partir de 1965. O autor explica como Cabral procurou defender a sigla da unidade Guiné-Cabo Verde.

O período de 1964 a 1968 corresponde à unificação do poder civil e militar, Arnaldo Schulz é simultaneamente Governador e Comandante-Chefe, vai seguir e intensificar uma manobra de disposição de destacamentos e povoações em autodefesa, foi uma tentativa de agrupar a população que não quis expressamente ficar na órbita da guerrilha, se bem que no decurso de toda a guerra tenha vindo a avultar a problemática do duplo controlo. 

Neste período, consolida-se a posição do PAIGC no Sul, na região do Morés, os grupos do PAIGC atuavam praticamente no Sul abaixo do Geba e a Oeste do Corubal; Schulz e os seus comandos militares pronunciavam-se a favor do recurso às tropas de elite, ao reforço do poder aéreo e naval, foi favorável à africanização da guerra constituindo pelotões de caçadores nativos e pelotões de milícias, mais tarde companhias de caçadores , os efetivos militares metropolitanos foram crescendo, isto enquanto o PAIGC ia ganhando uma certa superioridade no armamento, na capacidade de flagelação, minagem das estradas e de muitos trilhos, obtendo um certo êxito na paralisação da atividade económica em certas regiões.

Nos cinco anos do Governo seguinte, tendo à testa Spínola, este pretendeu alterar significativamente a estratégia portuguesa, despachou para a metrópole um bom punhado de quantos militares, remodelou o dispositivo fazendo retirar a presença portuguesa sobretudo em áreas do Sul e na região Leste, no Boé. 

Pretendeu desde a primeira hora que se fizesse um esforço de contra penetração nas zonas fronteiriças, numa extensa ação psicológica fez lançar empreendimentos a que se deu o nome de reordenamentos populacionais, abriu caminho para os chamados Congressos do Povo, uma hábil forma de auscultação e uma simulação de democracia direta, iremos ver proximamente em que contexto dominante se foi montando uma estratégia conducente que levasse à independência, as iniciativas de Spínola para se chegar a um entendimento de autodeterminação, como se chegou à operação de declarar unilateralmente a independência e o apoio internacional imediato ao que se passou algures no leste da Guiné em 24 de setembro de 1973.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 26 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26847: Notas de leitura (1800): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 131pp.) - Parte I: A história do navio-hospital da frota bacalhoeira (Luís Graça)

domingo, 12 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25511: Timor - Leste. passado e presente (1): terra "abençoada por Deus" e "castigada pelo Diabo em figura de gente" no século passado, os japoneses (1942-1945) e os indonésios e as suas milícias (1975-1999)


1. Os portugueses sabem ainda pouco da história (passada e recente) de Timor-Leste (*). Mas têm, pelo menos,  a ideia de que a luta pela sua independência (do domínio indonésio, 1975-1999) foi marcada pelo genocídio do povo timorense (estimado em 1/3 da população, que seria então da ordem dos 750 mil habitantes).

Na página do AMRT – Arquivo & Museu da Resistência Timorense, há uma base de dados sobre os Combatentes da Libertação Nacional (n=58070), dos quais 13916 foram considerados  "mártires" e os restantes  (44154) "não mártires", identificados todos por nome, foto (os não mártires), município da naturalidade, anos  de dedicação à luta na resistência, e condecoração.

Também sabemos pouco, nós, os portugueses,  sobre a invasão e  ocupação da ilha quer por tropas aliadas (australianas e holandesas) em 17 de dezembro de 1941 quer depois por tropas japonesas, logo a seguir,  em retaliação, dois meses depois, em 20 de fevereiro de 1942.  

 Havia no território um pequena comunidadade portuguesa (escassas três centenas de pessoas),  a maior parte funcionários públicos, civis e militares, e pessoal religioso das missões católicas. 

Os pais e a irmã mais nova do José Afonso ("Zeca" Afonso), cantor e compositor (1929-1987),  acabaram num 'campo de concentração'  improvisado, em Liquiçá,  durante os restantes três anos (1942-1945), tal como os restantes portugueses (uns ficaram em Liquiçá, outros em Maubara).   O pai era magistrado em Dili nessa altura, vindo de Moçambique em 1939, depois de passar por Angola. 

Essa história dramática da família do "Zeca" Afonso (a estudar em Coimbra, durante o período da II Guerra Mundial, juntamente com o irmão mais velho) bem como da população  timorense  (c. 400 mil), todos apanhados de surpresa pelos acontecimentos, está contada no documentário "Rosas de Ermera", de Luís Filipe Rocha (Portugal, 2017) que passou na RTP1 em 2018. 

Terão morrido 90 portugueses e mais de 40 mil timorenses (de Timor Leste) durante a invasão e ocupação japonesas.

Para saber mais, leia-se  também o artigo de Jorge Silva Rocha, da Comissão de História Militar, sobre Prisioneiros em Timor na II Guerra Mundial" : Rocha, J. S. (2019). Prisioneiros portugueses em Timor durante a segunda guerra mundial. In Pedro Aires Oliveira (Ed.), Prisioneiros de guerras: Experiências de cativeiro no século XX. (pp. 217-239). Lisboa: Tinta da China .

É ainda escassa a investigação historiográfica sobre este período da história timorense, até por falta de fontes arquivísticas. As principais fontes ainda são memorialísticas. De qualquer modo, Timor Leste foi o único território portuguêsultramarino,  ou sob administração  portuguesa,  que foi invadido e ocupado por forças estrangeiras  durante a II Guerra Mundial, não obstante a neutralidade de Portugal.




Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 05768.032.08295 | Título: Diário de Lisboa | Número: 6853 | Ano: 21 | Data: Sexta, 19 de Dezembro de 1941 | Directores: Director: Joaquim Manso | Edição: 2ª edição | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: IMPRENSA (Com a devida vénia...)

Citação:
(1941), "Diário de Lisboa", nº 6853, Ano 21, Sexta, 19 de Dezembro de 1941, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_25120 (2024-5-12)




Fonte: Casa Comum | Fundação Mário Soares |Pasta: 05768.032.08354 |Título: Diário de Lisboa | Número: 6912 |Ano: 21 | Data: Sexta, 20 de Fevereiro de 1942 | Directores: Director: Joaquim Manso |  Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: IMPRENSA| (Com a devida vénia...)

Citação:
(1942), "Diário de Lisboa", nº 6912, Ano 21, Sexta, 20 de Fevereiro de 1942, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_26731 (2024-5-12)

 

Timor Leste > Dili  > Palácio do Governo  > 2023 > Foto do Jornal Tornado, "on line" (Jornal global para a lusofonia), 23 de junho de 2023 (com a devida vénia) 

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Temos agora, na Tabanca Grande, duas vozes que falam de Timor e, de algum modo, em nome dos timorenses, o nosso mais recente grão-tabanqueiro, nº 886, Rui Chamusco (fundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste) e o João Crisóstomo, líder do LAMETA (Movimento Luso-Americano para a Autodeterminação de Timor Leste)... Com eles dois temos aprendido algo mais sobre Timor-Leste e os timorenses, por quem os portugueses têm mostrado, nas últimas décadas, um especial carinho, amizade e e solidariedade.


2. Timor Leste > História (Excertos)
 
Timor Português 

A porção ocidental da ilha de Timor, com capital em Kupang, pertence hoje à República da Indonésia. A porção oriental, com capital em Díli, pertencia a Portugal desde o século XVI. Quando os primeiros mercadores e missionários portugueses aportaram na ilha de Timor em 1515, encontraram populações organizadas em pequenos estados, reunidos em duas confederações: Servião e Belos, que praticavam religiões animistas. O islamismo, cuja religião predomina na Indonésia atual, não tinha chegado a Timor, e nem o mesmo o budismo que, sobretudo no séc.VIII, imprimiu a sua marca em Java.

No 3º quartel do século XVI chegaram a Timor os primeiros frades dominicanos portugueses, através dos quais se vai desenvolvendo uma progressiva influência religiosa, ao mesmo tempo que se vai estabelecendo a dominação portuguesa. A evolução cultural processou-se em sentido oposto ao que se verificou nas atuais ilhas indonésias de Java, Sumatra e nas costas de Kalimantan e de Sulawesi, onde o islamismo se estendeu cada vez mais.

Em 1651, os holandeses conquistaram Kupang, no extremo oeste da ilha de Timor, e começam a penetrar até a metade de seu território. 

Em 1859, um tratado firmado entre Portugal e Holanda fixa a fronteira entre o Timor Português (atual Timor-Leste) e o Timor Holandês (Timor Ocidental). Em 1945 a Indonésia obteve sua independência, passando o Timor Ocidental a fazer parte de seu território.

Timor na Segunda Guerra Mundial

Durante a Segunda Guerra Mundial, as forças Aliadas (australianos e holandeses), reconhecendo a posição estratégica de Timor, estabeleceram posições no território tendo-se envolvido em duros confrontos com as forças japonesas. Algumas dezenas de milhar de timorenses deram a vida lutando ao lado dos Aliados. 

Em 1945, a Administração Portuguesa foi restaurada em Timor-Leste.

Direito à Autodeterminação

Entre 1945 e junho de 1974, o governo indonésio, em obediência ao Direito Internacional, afirma na ONU e fora dela que não tinha quaisquer reivindicações territoriais sobre Timor Oriental (Leste). 

Ao abrigo da resolução 1514 (XV) de 14 de Dezembro de 1960, Timor-Leste foi considerado pelas Nações Unidas como um Território Não-Autónomo, sob administração portuguesa. 

Desde 1962 até 1973, a Assembleia Geral da ONU aprovou sucessivas resoluções, afirmando o direito à autodeterminação do Timor-Leste, tal como das restantes colónias portuguesas de então. Em Portugal o regime de Salazar (e, depois, de Marcelo Caetano), recusou-se a reconhecer esse direito, afirmando que Timor Oriental era uma província tão portuguesa como qualquer outra de Portugal Continental.

Revolução em Portugal

A Revolução de 25 de Abril de 1974, que restaurou a democracia em Portugal, consagrou o respeito pelo direito à autodeterminação das colónias portuguesas. Visando promover o exercício desse direito, foi criada em Díli a 13 de maio daquele ano a Comissão para a Autodeterminação de Timor. 

O Governo Português autorizou, então, a criação de partidos políticos, surgindo assim três organizações partidárias em Timor Leste: 

  • a UDT (União Democrática Timorense), que preconizava "a integração de Timor numa comunidade de língua portuguesa"; 
  • a ASDT (Associação Social-Democrata Timorense) depois transformada em FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente) , defendia o direito à independência; 
  • e a APODETI (Associação Popular Democrática Timorense), propunha a "integração com autonomia na comunidade Indonésia".

Descolonização de Timor

Em 1975, com a dissolução do império colonial português, aumentaram os movimentos de libertação locais. Em maio de 1975, um projecto das autoridades de Lisboa foi apresentado aos principais partidos Timorenses e, depois de ouvi-los, publicou-se em 11 de julho a lei que previa a nomeação de um Alto Comissário português, e, em outubro do mesmo ano, a eleição de uma Assembleia Popular para definir o seu estatuto político. O diploma previa um período de transição de cerca de três anos.

Desde janeiro de 1975, já estava em marcha um programa local de progressiva descolonização, através de uma Reforma Administrativa, a qual levou à realização de eleições para a administração regional do Conselho de Lautém. 

Os resultados da primeira consulta popular puseram em evidência o reduzido apoio da APODETI, tornando-se óbvio que, por processos democráticos, os Timorenses nunca aceitariam a integração no país vizinho. Muito antes dessas eleições regionais era claro, para qualquer observador independente que visitasse o território, que a esmagadora maioria dos Timorenses recusava totalmente a integração na Indonésia. As diferenças culturais eram uma das principais razões de fundo desta recusa.

Proclamação da Independência

Em 28 de Novembro de 1975 dá-se a Proclamação unilateral da Independência de Timor-Leste pela FRETILIN e pelo primeiro Presidente da República, Xavier do Amaral, assumindo o cargo de Primeiro-Ministro Nicolau Lobato, que viria a ser o primeiro líder da Resistência Armada. Com a proclamação da Independência tem também início a guerra civil.

A Indonésia, a pretexto de proteger os seus cidadãos em território Timorense, invade a parte Leste da ilha e rebaptiza o território de Timor Timur, tornando-a sua 27ª província. Recebeu o apoio tácito do governo norte-americano que via a Fretilin como uma organização de orientação marxista.

Resistência Timorense

Após a ocupação do território pela Indonésia a Resistência Timorense consolida-se progressivamente, inicialmente sob a liderança da FRETILIN. 

Para apoiar as FALINTIL (Forças Armadas de Libertação de Timor-Leste), criadas em 20 de Agosto de 1975, organiza-se a Frente Clandestina ao nível interno, e a Frente Diplomática, ao nível externo. 

Posteriormente, sob a liderança de Xanana Gusmão é implementada a política de Unidade Nacional, unificando os esforços de todos os sectores políticos Timorenses e avançando com a despartidarização das estruturas da Resistência, transformando o CRRN (Conselho Revolucionário de Resistência Nacional) em CNRM (Conselho Nacional de Resistência Maubere), mais tarde transformado em CNRT (Conselho Nacional de Resistência Timorense), que viria a liderar o processo até à independência de Timor-Leste, já sob os auspícios das Nações Unidas. (Para mais informações sobre a Resistência Timorense, consultar o Website do AMRT – Arquivo & Museu da Resistência Timorense.

Aproximadamente 1/3 da população do país, mais de 250 mil pessoas, morreram na guerra

O uso do português foi proibido, e do tétum foi desencorajado pelo Governo pró-indonésio, que realizou violenta censura à imprensa e restringiu o acesso de observadores internacionais ao território até a queda de Suharto em 1998.

Consulta Popular – Sim à Independência

Em 1996 José Ramos-Horta e o bispo de Díli, D. Ximenes Belo receberam o Nobel da Paz pela defesa dos direitos humanos e da independência de Timor-Leste. 

Em 1998, com a queda de Suharto, após o fim do "milagre económico indonésio", B.J.Habibie assumiu a presidência desse país, tendo acabado por concordar com a realização de um referendo onde a população votaria "sim" se quisesse a integração na Indonésia com autonomia, e "não" se preferisse a independência. 

O referendo foi realizado em 30/08/1999 e, com mais de 90% de participação no referendo e 78,5% de votos, o Povo Timorense rejeitou a autonomia proposta pela Indonésia, escolhendo, assim, a independência formal.

Apesar disso, milícias pró-Indonésia continuaram a actuar no território, atacando inclusive a sede da UNAMET (os observadores das Nações Unidas) e provocando a saída do Bispo D. Ximenes Belo para a Austrália, e o asilo de Kay Rala Xanana Gusmão na embaixada inglesa em Jacarta. Os assassinatos, promovidos por milícias anti-independência, armadas por membros do exército indonésio descontentes com o resultado do referendo, continuaram.

Solidariedade Internacional

As imagens despertaram protestos em vários países do mundo junto às embaixadas da Indonésia, norte-americanas e britânicas, e também junto às Nações Unidas, exigindo a rápida intervenção para cessar os assassinatos. 

Em Portugal nunca se viram tantas manifestações populares de norte a sul do país desde o 25 de Abril de 1974. 

Pela primeira vez também a Internet foi utilizada em massa na divulgação de campanhas pró Timor e a favor da rápida intervenção da ONU.

Intervenção das Nações Unidas

Finalmente a 18 de Setembro de 1999 partiu um contingente de "capacetes azuis" das Nações Unidas, uma força militar internacional composta inicialmente de 2500 homens, depois aumentados para 8 mil, incluindo australianos, britânicos, franceses, italianos, malaios, norte-americanos, canadianos e outros, além de brasileiros e argentinos. 

A missão da força de paz, chefiada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello, era a de desarmar os milicianos e auxiliar no processo de transição e na reconstrução do país.
Restauração da Independência

Em Portugal e em vários outros países organizaram-se campanhas para arrecadar donativos, víveres e livros. Aos poucos a situação foi sendo controlada, com o progressivo desarmamento das milícias e o início da reconstrução de moradias, escolas e do resto da infra-estrutura. 

Xanana Gusmão retornou ao país, assim como outros Timorenses no exílio, inclusive muitos com formação universitária. Foram realizadas eleições para a Assembleia Constituinte que elaborou a actual Constituição de Timor-Leste, que passou a vigorar no dia 20 de maio de 2002, quando foi devolvida a soberania ao país passando este dia a ser assinalado como Dia da Restauração da Independência.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24392: Notas de leitura (1590): Uma obra fundamental por quem se interessa por estudos africanos: "Atlas Histórico de África, da Pré-História aos Nossos Dias", Direcção de François-Xavier Fauvelle e Isabelle Surun; Guerra e Paz Editores, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Este Atlas Histórico de África para além de ser graficamente irrepreensível apresenta-se como uma ferramenta útil para quem pretenda apurar mais conhecimentos sobre as civilizações do continente africano com base numa matriz cronológica de valor científico. É verdade que há para ali um olhar muito gaulês, passa-se como cão por vinha vindimada sobre a presença portuguesa, e é ainda mais notório o não haver uma referência às explorações portuguesas do século XIX. Mas paciência, o todo é que conta e a informação é pertinente, da Pré-História aos nossos dias. Quem estuda a África não se pode alhear da importância deste Atlas.

Um abraço do
Mário


Uma obra fundamental por quem se interessa por estudos africanos:
Atlas Histórico de África, da Pré-História aos Nossos Dias


Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição muito cuidada, graficamente irrepreensível, este Atlas Histórico de África, com direção dos especialistas François-Xavier Fauvelle e Isabelle Surun, Guerra e Paz Editores, 2020, documento apaixonante para os estudiosos de África. Este continente imenso com 2400 línguas faladas aparece muito bem enquadrado em cinco grandes períodos: a África antiga (desde a Pré-História até ao século XV; a África na era moderna (do século XV ao século XVIII), podemos ver os seus grandes reinos e alvorada da presença europeia; a África soberana (século XIX), que irá decorrer após a abolição do tráfico atlântico de escravos e as reconversões económicas africanas; a África sob o domínio colonial, um continente partilhado que irá resistir à presença colonial até à completa descolonização; a África das independências, com a sua teia de contradições e refluxos, a sua enormidade de desafios que aguardam resposta. O tratamento destas matérias é facilitado pela exibição de cem mapas mostram claramente este continente esteve sempre longe de se fechar sobre si próprio, é parte integrante da história da Humanidade.

Na sua diversidade, sabemos hoje não se pode estudar a hominização desconhecendo que ela começou em África, à luz dos conhecimentos atuais, o continente possui um rico mapa de arte rupestre, participou nas dinâmicas do comércio mediterrânico, na Idade Média foram-se robustecendo as suas relações com o mundo islâmico, as suas regiões litorais abriram-se a uma economia atlântica cujo elemento principal era o comércio negreiro. Uma Idade Média onde avultou o Império do Mali, onde foi influente a sociedade suaíli que resultou da cultura bantu e do mundo islâmico.

Mas não nos precipitemos, o leitor interessado é logo atraído pelos berços da Humanidade, pelos testemunhos da arqueologia e da linguística, e logo somos confrontados com a complexidade linguística da Etiópia, temos depois a arte rupestre, prossegue a investigação com África aberta para o Mediterrâneo, ficamos a saber que houve um sistema complexo de escrita, como se escreve: “Grandes zonas de África conheceram e utilizaram sistemas de escrita desde épocas muito antigas que tiveram início primeiro no mundo mediterrânico. Tal como o líbico-berbere, derivado da escrita fenícia, que serviu para gravar tanto inscrições líbicas antigas no Magrebe como o alfabeto tifinague, ainda usado pelos Tuaregues. A escrita etíope mostrou uma extraordinária inventividade, ao acrescentar declinações vocálicas a um alfabeto constituído inicialmente apenas por consoantes, adaptando-o assim a outras línguas e a outras pronúncias. De igual modo o meroítico, utilizado no Sudão, foi adaptado a partir do sistema egípcio para transcrever uma língua que ainda não sabemos decifrar completamente”.

A África do Norte faz parte das primeiras conquistas do Islão, estabeleceram-se rotas comerciais que infletiram em todas as direções até ao centro de África. Refere-se a Núbia e depois o Império do Mali e a Etiópia medieval. Assim chegamos à civilização suaíli, cujo território se estendia da Somália a Moçambique passando pelo Quénia, pela Tanzânia, pelas Comores e pelo Norte de Madagáscar. Estamos chegados à África na era moderna, emergem novos poderes: o Congo e o Monomotapa, na África Central e Austral, o Daomé e Axante, ao longo do Golfo da Guiné, o Songai, entre outros, foi um tempo de enormes recomposições políticas, que vários autores primorosamente sintetizam. E temos o primeiro entreposto europeu fortificado no espaço tropical, S. Jorge da Mina ou Elmina, como temos a Etiópia repartida em duas grandes religiões, o importante reino do Congo que manterá relações com Portugal e o Papado.

Apresenta-se o tráfico negreiro colonial e assim chegamos à África soberana do século XIX, dar-se-á a abolição desse tráfico e reconvertem-se as economias africanas, é o tempo do amendoim, das gomas, do óleo de palma, há senhores da guerra por toda a parte, descreve-se o reino de Madagáscar, o califado de Sokoto, que foi o maior Estado de África no século XIX, estendia-se do Norte da Nigéria aos Camarões. Mostra-se a África do tempo dos exploradores e regista-se o domínio colonial, desde as corridas às colónias à definição de fronteiras, bem como a problemática das formas de povoamento. A I Guerra Mundial, para além das várias batalhas que tiveram lugar no coração do continente africano, levaram muitos soldados a combater na Europa, nomeadamente em França e na Frente Oriental. O resultado não foi despiciendo: a Alemanha perdeu as suas principais colónias, a Grã-Bretanha e a França consolidaram as suas posições, a Bélgica e Portugal não saíram maltratadas. O africano pôde ver a fragilidade do homem branco, era menos invencível do que fazia supor, houve muitas promessas não cumpridas, começaram a germinar os movimentos independentistas.

Retornando ao século XIX, o Atlas dá-nos o quadro das missões cristãs no período colonial, temos depois a evolução das cidades coloniais, segue-se o fenómeno das revoltas anticoloniais e a emergência dos nacionalismos, daí decorre o período do império colonial tardio, que culmina com a descolonização portuguesa e as grandes transformações na África Austral. Nos anos 1960 à atualidade é um capítulo bem elaborado sobre o tempo das independências, as desilusões, a emergência do pan-africanismo, o que representou o fim da Guerra Fria em África, elencam-se as políticas sanitárias, os contrastes de desenvolvimento, realça-se o papel dos investimentos chineses nas infraestruturas, nos têxteis e madeiras exóticas. “Frequentemente financiados pelo endividamento, por vezes têm como garantia as receitas extrativas futuras. Por seu lado, os empregos assim criados e as expropriações ligadas à constituição de grandes domínios rurais alimentam o êxodo rural. Abidjã, Cairo, Joanesburgo, Lagos, Adis-Abeba transformam-se em polos urbanos e regionais dominantes no plano económico, político e cultural. A África em desenvolvimento é também uma África de desigualdades espaciais".

O fim da Guerra Fria saldou-se numa encenação democrática, tudo parecia caminhar para o multipartidarismo e a democracia parlamentar, mas o Estado autoritário e neopatrimonial dá provas de uma grande capacidade de duração, veja-se os casos do Gabão, da Guiné Equatorial, dos Camarões, do Congo-Brazzaville e do Chade. Seja como for, as mobilizações de cidadãos tornaram-se uma realidade, o que não impede que antigos opositores que chegam ao poder reproduzam o sistema que combateram, perpetuando, nomeadamente, o desequilíbrio presidencialista das constituições. Este importante Atlas História de África trata ainda o Apartheid na África Austral, os conflitos e sua resolução na África Central e Oriental e as migrações internas e externas na África. Conclui enfatizando que a África estava e está aberta ao mundo exterior, por essas janelas é bem provável que os quadros de violência, da pobreza, da corrupção e do autoritarismo possam conhecer modificações do quadro da globalização.

Obra do maior interesse, insista-se.

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24381: Notas de leitura (1589): N’Krumah, o líder da unidade africana, o denunciante das tramas do neocolonialismo (Mário Beja Santos)

sábado, 3 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23840: Notas de leitura (1527): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte VI: 25 de Abril ? 25 de Novembro ? E descolonização ? Acho que consigo compreender tudo no caso português. Isto parece uma gabarolice, mas não é. A mim, não há nenhum acontecimento que me cause perplexidade" (VPV)




Excerto da edição do "Diário de Lisboa", de 10 de setembro de 1974, com a notícia do reconhecimento (formal), pelo Governo Provisório Português, da indepemndência da Guiné-Bissau. Era presidente da República o general Spínola, aqui, na foto, no Palácio de Belém, com a delegação da Guiné-Bissau, chefiada pelo major Pedro Pires, e constituída pelo comissário para as Relações Exteriores, Vitor Saúde, e o comandante da Frente Leste Serafam Malém (?), e quem foi acompanhada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soarea.


Fonte:Casa Comum | Instituição:Fundação Mário Soares | Pasta: 06820.170.26872 | Título: Diário de Lisboa | Número: 18558 | Ano: 54 | Data: Terça, 10 de Setembro de 1974 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos 

(1974), "Diário de Lisboa", nº 18558, Ano 54, Terça, 10 de Setembro de 1974, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_4792 (2022-12-2) (Com a devida vénia...)


1.  Chegamos ao  fim das nossas noats de leitura (*) do livro de João Céu e Silva . "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.).

Mais do que uma biografia lietrária de Vasco Pulido Valente (VPV) (1941-2020), trata-se  de uma longa (e apaixoante)  viagem pela história de Portugal, desde o início das invasões francesas e saída da corte para o Brasil em 1807 até à atualidade. O jornalista e escritor João Céu e Silva, com formação em história, realizou uma 
centena de horas de entrevistas gravadas, com VPV, ao longo de quase dois anos.

O livro acaba por ser também uma espécie de "testamento" do entervistado, um dos maiores (e mais polémicos) cronistas do seu tempo, e também um conceituado historiador, especialziado na nossa história dos últimos dois séculos.

Deste livro, achámos que podia interedsar aos nossos leitores tudo o que dizia respeito, direta ou indiretamemente,  à guerra colonial e às forças armadas, incluindo o 25 de Abril,o 25 de Novembro, Spínola, o MFA e a descolonização.

Para finbalizar, deixamos aqui,  com a devida vénia (ao autor e à editora(, mais uns tantos excertos : (i) o 25 de Abril, visto por VPV como um "pronunciamento militar"; (ii) o 25 de Abtril e a "técnica do golpe de Estado"; (iii) o "mistério" do 25 de Novembro que não teve "mistério nenhum"; e, por fim, (iv) a descolonização e a "culpabilização" do Mário Soares.

Seleção, revisão, fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue, bem como notas complementares dentro de parêntes retos: LG) (**).


(i)  25 de Abril: pronunciamento militar

P- Refere que a revolução de Abril foi romântica e fraudulenta. Portugal nunca muda ?

R- É fraudulenta porque foi uma revolução inventada, pós-facto- Os capitães queriam sair de África e deram a volta. Não fizeram uma revolução, foi um pronunciamento, e depois, quando chegaram ao poder, precisavam de uma ideologia. 

Só após terem feito o pronunciamento é que perceberam a gravidade e o alcance do que tinham feito, e necessitavam de eliminar a sociedade portuguesa tradicional para não sofrerem nenhuma espécie de represálias. E eliminaram. 

Atrás disto veio um movimento de opinião a que se atribuiu essa eliminação da sociedade tradicional, que foi, aliás, bastante artificial, e feita pelo governo e não pelas massas. As nacionalizações não foram impostas pelas massas, a reforma agrária não foi de acordo com as massas, a revolução foi decretada e a reforma agrária foi realizada em atos militares e na maior parte dos casos sob proteção dos militares. E pelo PCP também. Sim, pelo PCP, pelos militantes do PCP, que eram muito poucos,, e pelos militares. Os militantes do PCP não teriam chegad.

E atrás disso um movimento romântico indefinido, que exortava as maravilhas do socialismo real,  o governo do povo ou o poder popular,  e, como não fazia sentido nenhum, acabou por cair” (pág. 42).


(ii) 25 de Abril: a técnica do golpe de Estado


(…) Um golpe militar não tem destino e este tem de ser procurado na vida civil, na Igreja, na maçonaria ou, no caso do 25 de Abril, no Partido Comunista Português ou no Partido Socialista. 

Os militares diziam “não queremos continuar com a guerra colonial (…) queremos dar autodeterminação aos nossos pretos (…) porque os nossos são diferentes dos pretos dos outros, são nossos amigos”. 

Dava-se a liberdade aos “nossos pretos” e depois, para onde se vai ? “Nós somos uma malta porreira, somos camaradas” – tratavam-se assim – “e isto aqui é uma igualdade do caraças. Rastejámos todos  pelo chão na recruta, pendurámo-nos todos em argolas e temos todos de andar  com farda”. 

A única coisa que os militares podiam fazer a seguir ao 25 de Abril era buscar qualquer coisa fora da instituição, uns foram buscar o PCP, outros o PS. (…) 

Quanto a Otelo, foi buscar coisas ao anarcossindicalismo, que ele nem percebeu o que era e chamou de poder popular

Ou seja, os militares não tem destino em si próprios; podem organizar muito bem uma operação como o 25 de Abril, mas basta seguir a cartilha. (…) (pp. 96/97).


(iii) 25 de novembro de 1975: 

não houve mistério nenhum

 

P . Temos o 25 de novembro de 1975. Continua a ser um dos grandres mistérios ?

R – Não acho que seja um grande mistério. O que aconteceu é que havia unidades  no Exército português que estavam contra o PCP, e aquele rumo da revolução, entre elas a dos Paraquedistas , a dos Comandos e algumas pessoas que tinham feito outro trajeto político. 

Entre essas, os que tinham sido contra os mercenários, que se tinham passado para o Estado-Maior de Spínola e ficado com um certo prestígio no movimento dos capitães,, porque tinham sido os primeiros a protestar: era o caso  de Eanes e, nos Comandos, o Jaime Neves. 

Foi simples e encontraram-se e fizeram o golpe do 25 de Novembro. O Eanes dirigiu e o Jaime Neves executou. Todos os seus colegas diziam que eles eram brilhantes operacionais (…), daí não me não tenha surpreendido que tivessem ganho. Não houve mistério nenhum nisso, até porque contaram com o apoio do Soares e tinham o respaldo político do PS (pág. 194) (…)

(…) Foi um golpe em que os operacionais do Copcon e do PCP não participaram. E o que aconteceu foi que o Eanes fomou conta do Exército e teve de imediato todo o seu apoio. Tinha sido um golpe um pouco contrarrevolucionário, um clássico. Eanes pôs todas as unidades fora de Lisboa, suspendeu uma quantidade de oficiais  duvidosos e ao fim de oito dias tinha o Exército na mão. A história terminou (pág. 197).

(…) Acho que consigo compreender tudo no caso português. Isto parece uma gabarolice, mas não é.  A mim, não há nenhum acontecimento que me cause perplexidade (pág.  210)

(iv) Descolonização: 

por favor não culpem o Mário Soares 


(...) Um disparate que tantas vezes foi explicado à população [o quererem culpar o Mário Soares pela descolonização].

Quando o Dr. Mário Soares chegou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, já o coronel Fabião estava aos abraços ao PAIGC e o Otelo aos abraços à FRELIMO. Não havia negociação possível.

Quem fez a descolonização não foi o Dr. Mário Soares, mas o MFA. Ele não queria fazer aquela descolonização, e foi assim porque o Exército português se desfez em quarenta e oito horas em Angola, Moçambique e Guiné. Neste último caso, fomos mesmo ao encontro das tropas inimigas e confraternizámos poucos dias após o 25 de Abril. Como aconteceu no Norte de Moçambique e quase imediatamente me Angola (pp. 282/283).

(…) Lembro-me do abraço de Soares a Samora Machel, horrível! E Como aconteceu ? A comitiva entrou na sala de reuniões, Otelo olhou para o Machel e disse: “Ah grande Machel, deixe-me dar-lhe um abraço”, e Soares, que estava a chefiar a delegação, ficou sem saber o que iria fazer. Depois de Machel ter dado um abraço a Otelo, veio ter com Soares de braços abertos, “Meu caro Mário”, e deu-lhe um abraço. Isto só deveria ter acontecido com Moçambique independente” (p. 191).

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

29 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23828: Notas de leitura (1525): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte V: VPV: "O grande significado do livro, de Spínola, Portugal e o Futuro, era vir a público dizer que a guerra estava perdida"...

27 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23820: Notas de leitura (1523): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte IV “Devo à Providência a graça de ser pobre” (Salazar, Braga, 1936)

24 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23811: Notas de leitura (1521): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte III: Salazar, Caetano e as Forças Armadas... (Considerar os capitães milicianos como "voluntários" e "mercenários", raia o insulto, não?!..)

18 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...

17 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I . As colónias não valiam o preço...

Último poste da série:

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23460: Nota de leitura (1468): “A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial”, por Fátima da Cruz Rodrigues, na revista Ler História, n.º 65 de 2013 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Afinal, a historiografia contemporânea não virou as costas aos temas das guerras que travámos em África, este trabalho de Fátima da Cruz Rodrigues comprova que há investigação e não se recusam os temas mais delicados, no caso vertente a desmobilização dos combatentes africanos. Dir-me-ão que não há nada de novo debaixo do sol, mas reconheça-se que é um compêndio de factos e dados sem obliterações ou ambiguidades. No tocante à Guiné, é sabido que houve a tentativa de dar opção às tropas especiais para virem para Portugal, e não se iludiram os riscos de eles permanecerem na Guiné logo a seguir à independência. A generalidade teimou em receber salários até dezembro de 1974. Não se pode iludir que se entrou em luta política em Portugal e que a descolonização na Guiné constituiu um facto de importância menor, havia a descolonização em Moçambique e em Angola a fazer. As autoridades guineenses não respeitaram os Acordos de Argel, é do domínio público. Algo devia ter acontecido, depois de novembro de 1984, e sobretudo quando Nino Vieira mostrou as valas onde estavam os fuzilados, para reinstalar uma política de "paz e perdão", o que não veio a acontecer, e tomaram-se então iniciativas de organizações, como a Associação dos Comandos, que foram reais contributos para salvar vidas. Nada ganhámos em ter ignorado, nós próprios, em ter feito uma política de paz e perdão com toda a descolonização, mas isso é outra história.

Um abraço do
Mário



A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas

Beja Santos

A revista Ler História, n.º 65 de 2013, inclui um artigo de Fátima da Cruz Rodrigues intitulado “A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial”. É um trabalho que nos permite deter uma visão de conjunto sobre a evolução da africanização da nossa guerra colonial e como ocorreu a desmobilização.

Atenda-se aos números avançados pela autora. “No ano que antecede o início da guerra, em 1960, eram 6500 os militares do Exército Português mobilizados em Angola. 5000 desses soldados pertenciam ao então denominado recrutamento local. Até ao final do ano de 1961, estes valores sofrem uma profunda transformação. Rapidamente se inverteu a proporção dos números dos soldados mobilizados em Angola. O número dos soldados africanos, que eram de 5000 no final de 1960, manteve-se o mesmo até finais de 1961, enquanto o número de soldados expedicionários aumentou de 1500 para 28 477. No final desse mesmo ano, a maioria dos soldados mobilizados nos três territórios pertencia ao recrutamento vindo de Portugal. Apenas 18,21% dos 49 422 soldados mobilizados, pertenciam ao recrutamento local”.

Recorde-se que no início da guerra houvera desconfiança quanto à africanização, temia-se que se dessem infiltrações de terroristas nas nossas Forças Armadas em Angola, ou mesmo deserções. Os anos passaram, a guerra prolongou-se e a africanização da guerra aconteceu. Mas com a exceção da de Moçambique, onde a africanização só se tornou um facto real a partir de 1971. Mas voltemos aos números enunciados pela autora. “Em termos globais, e de acordo com os valores disponíveis, entre 1961 e 1973 foram recrutados aproximadamente 1 milhão e 400 mil soldados para a guerra. Mais de 400 mil desses homens faziam parte do recrutamento local, ou seja, aproximadamente um terço dos efetivos”. Tornaram-se notórias as dificuldades de aumentar o número de efetivos, por razões simplesmente demográficas e também pela sangria das emigrações. E, gradualmente, foi-se reconhecendo a mais-valia das forças africanas no conhecimento dos territórios, das línguas e de outras caraterísticas locais, e não foi despicienda a economia que este recrutamento acarretava.

Outra tese abonou a africanização: usar os elementos locais para conquistar as populações locais. Outro fator pode ser tido como preponderante, como a autora assinala. “Se a africanização das Forças Armadas deu resposta a necessidades económicas e a interesses estratégicos de caráter militar, o que parece é que serviu igualmente para demonstrar e promover a ideia de que Portugal era, de facto, uma nação pluricontinental e plurirracial sustentando, assim, a defesa da manutenção do domínio português nos territórios africanos”. E a autora refere a legislação que levou à abolição do estatuto do indigenato, era necessário procurar agradar à comunidade internacional.

A nível interno, também se procurou dar uma certa visibilidade aos combatentes africanos das nossas Forças Armadas. E a autora disseca esta evolução em Angola, Moçambique e Guiné. Vamos pôr o foco, obviamente, na Guiné. “Na Guiné as forças irregulares tinham a designação oficial de milícias, embora algumas tenham passado pela designação de caçadores nativos, e podiam ser normais ou especiais. As primeiras eram reservadas à autodefesa da população e, em 1966, já existiam 18 formadas em companhias. As segundas foram criadas pelo general Spínola e eram organizadas em grupos de combate. Spínola não se limitou a introduzir essa mudança nas forças operacionais da Guiné. O que o distinguiu, e que constituiu um caso que nunca se repetiu nos outros dois territórios, foi ter procurado que as distinções entre os soldados portugueses e locais terminassem, argumentando que a discriminação dos africanos envolvia riscos para Portugal. Outra especificidade do seu mandato foi ter criado os comandos africanos, uma força de elite estruturada de modo semelhante às unidades de comandos já existentes na Guiné e nos outros dois territórios em guerra. A Guiné foi também o único território onde foram constituídos dois destacamentos de fuzileiros especiais africanos”.

Iniciado o processo de desmobilização dos combatentes africanos, em cada um dos teatros de operações surgiram problemas delicadíssimos, conforme a autora expõe.

“Na Guiné, embora o processo da negociação da transferência de poderes tenha sido menos controverso do que o de Moçambique e sobretudo o de Angola, em contrapartida, foi o território onde a desmobilização dos soldados africanos registou mais problemas e onde, após a independência, os antigos combatentes mais sofreram as consequências por terem pertencido à força colonial. Se o facto de existir um único movimento de libertação envolvido nas negociações para a transferência de poderes poderá ter contribuído para a possibilidade dos antigos combatentes africanos integrarem o novo exército nacional fosse posta de parte, tal como aconteceu em Moçambique, considera-se que o papel que lhes foi atribuído durante a guerra, sobretudo nos seus últimos anos, constituiu um dos fatores que mais terá condicionado o desenrolar dos episódios conturbados da sua desmobilização e que evoluíram para situações dramáticas em certos momentos da história da Guiné independente.

Ainda durante as negociações, os combatentes africanos das nossas Forças Armadas, especialmente os Comandos, começaram a ser objeto de várias suspeitas segundo as quais estariam a preparar-se para apoiarem uma invasão a Bissau. Os problemas com os antigos combatentes africanos da Guiné começam quando as autoridades portuguesas procedem ao seu desarmamento, segundo o estipulado no Acordo de Argel. Algumas unidades começaram por recusar-se em entregar as suas armas mas acabaram por fazê-lo após lhes serem dadas certas garantias. Pouco tempo após a partida dos portugueses, começaram as discriminações, as perseguições, a prisão e a execução de antigos combatentes das nossas Forças Armadas de origem guineense.

Neste território, embora as Forças Armadas tenham sido sempre em menor número do que em Angola e Moçambique, o seu envolvimento na guerra foi de grande destaque, sobretudo desde que se formaram os Comando africanos. Mas o lugar de destaque que lhes foi atribuído na guerra, não decorreu, unicamente, do facto de terem sido formadas na Guiné, unidades exclusivamente compostas por africanos, incluindo os seus comandantes, nem tão pouco por terem participado em numerosas operações de caráter ofensivo. O que distingue as Forças Armadas na Guiné foi a sua integração num ‘projeto político destinado a alterar o status quo existente’.”


E a autora também recorda que o protagonismo concedido a estas forças africanas enquadrava-se no projeto mais amplo de Spínola em que competia aos guinéus defender e lutar pela manutenção da presença portuguesa em África. Spínola concebera um exército africano de caraterísticas “nacionais” tendo em vista provavelmente uma futura federação de Estados de língua portuguesa, era dentro dessa lógica que foram criados os congressos do povo e o programa “por uma Guiné melhor” era uma das bases da tese federalista de Spínola. Daí o PAIGC considerar uma ameaça permanente estes combatentes, independentemente de não ter havido nenhum génio político capaz de gerar um movimento de “paz e perdão”, como na África do Sul.

A autora reconhece que o Estado Português não se demitiu totalmente das suas responsabilidades em relação a estes homens, comprometendo-se a pagar indemnizações e reformas, durante a transferência de poderes. Por razões diversas, assobiou-se para o lado, minimizando os perigos para os combatentes que ficaram nos seus países. Devido ao Direito Internacional, Portugal pouco podia fazer depois das independências. E muitos dramas permanecem.

Imagem retirada do jornal Público, com a devida vénia.
Capitão João Bacar Djaló, 1.ª Companhia de Comandos Africanos.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23451: Nota de leitura (1467): "A Minha Vida Militar", por José Costa; edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23341: Notas de leitura (1454): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
O casal Éric e Jeanne Makédonsky dão como explicação de que este acervo apreciável de testemunhos recolhidos junto de intervenientes guineenses, cabo-verdianos e portugueses, entre 1980 e 1982, não foi publicado logo a seguir atendendo a que a aura de que a guerrilha guineense se cobrira de glória, no campo internacional, perdera-se, deixou de haver interesse em acompanhar o fenómeno revolucionário da Guiné-Bissau, entrara-se por um caminho sombrio, a própria investigação, que continuou a fazer-se, perdeu muito do interesse inicial. No entanto, a despeito de que todos estes testemunhos introduzam novidades de maior, a sequência cronológica como se estrutura a obra permite ao iniciado seguir a trama de forma sequencial, do princípio a uma quase atualidade. Tudo começou em estado de tormenta e em tormenta e profunda inquietação prossegue.

Um abraço do
Mário



Assitiram à independência da Guiné, décadas depois publicam livro (2)

Beja Santos

“La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky, L’Harmattan, 2018, é uma obra que forçosamente nos surpreende. Marido e mulher eram jornalistas que permaneceram longamente no continente africano. E abrem o seu livro explicando porquê, só agora, dão à estampa os testemunhos que recolheram décadas atrás. Entenderam os autores que a guerrilha guineense em poucos anos perdeu o furor e o entusiasmo com que eram vistos pelo movimento revolucionário à escala mundial. No entanto, não quiseram deixar de contribuir para que a investigação sobre os acontecimentos relacionados com a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde perdesse a possibilidade de conhecer os testemunhos de inúmeras personalidades intervenientes, do lado guineense, cabo-verdiano e português.

Após o testemunho dos guineenses (Nino, Paulo Correia, Vasco Cabral, Fidelis Cabral d’Almada) que dão conta da evolução da luta a partir de 1968, fica-se com uma apreciação do quadro político e militar até ao assassinato de Amílcar Cabral. É um dado curioso, atenda-se que estes testemunhos são recolhidos entre 1980 e 1982, do lado cabo-verdiano já há insinuações de compromisso guineense ao mais alto nível. Aristides Pereira chega a dizer quando foi raptado e metido numa lancha cuja marcha foi travada em Boké, ouviu elementos do complô referir nomes de altos dirigentes do PAIGC naturais da Guiné. Mas não diz quais. Refere a reação dos órgãos diretivos e a intensificação da luta. Pedro Pires enfatiza a preparação e execução da operação Amílcar Cabral e as consequências associadas aos mísseis Strela e ao uso de viaturas já no interior do território da Guiné para lançar mísseis sobre os quarteis. Pedro Pires recorda o pedido que fez a Aristides Pereira, então em tratamento em Moscovo, era necessário mais artilharia pesada, canhões 122, novas rampas de lançamento de mísseis GRAD e os temíveis morteiros de 120 milímetros, bem como canhões B10 e de 85 e 76 mm. O Conselho Executivo da Luta dera luz verde para uma ofensiva prevista para os meses de novembro e dezembro de 1974 com blindados T34 e BRDM, isto num quadro em que ainda se desconhecia qual seria a decisão da Organização de Unidade Africana, que tinha apelado à formação de um exército africano para expulsar as forças portuguesas.

Sobre as mesmas matérias do assassinato e da reação político-militar do assassinato de Amílcar Cabral, depõem José Araújo, Manuel dos Santos, Osvaldo Lopes da Silva, entre outros. E seguem-se os testemunhos guineenses de Nino, Vasco Cabral e Fidelis Cabral d’Almada. Uns atribuem o complô a quadros que se tinham marginalizado e que até viviam do roubo, há também quem atribua um papel relevante a Momo Touré e Aristides Barbosa, na época era uma acusação que parecia vingar, ainda não se sopesara tal inviabilidade quando o complô, como se veio a apurar, envolvera centenas de participantes de diferentes perfis. Do lado português irão depor Carlos Fabião, Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Matos Gomes. Fabião nega perentoriamente qualquer envolvimento de Spínola ou das Forças Armadas, mas fica a pairar no ar a possibilidade de uma intervenção completamente fora das regras clássicas de Alpoim Calvão, que ao tempo dirigia um discreto serviço de informações em Lisboa. Mas não exclui uma intervenção da PIDE, a título meramente institucional. Otelo também se mostra persuadido da intervenção da PIDE e recorda que encontrou Alpoim Calvão em Bissau em dezembro de 1972. À distância destes anos todos, estes depoimentos revelam-se profundamente datados, presunções sem mostra de prova.

Chegamos ao 25 de Abril, há um conjunto de depoimentos sobre o que era possível fazer de descolonização da Guiné, como se atuou em 25 de Abril, como se abriram conversações com o PAIGC, etc. Obviamente que os testemunhos cabo-verdianos remetem-nos para a realidade do envio de quadros para Cabo Verde, o modo como tal se processou é contado por Aristides Pereira, Pedro Pires, José Araújo, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Julinho e Corsino Tolentino. Do lado guineense, Juvêncio Gomes confirma um depoimento que deu igualmente noutros locais sobre o seu papel de primeiro interlocutor do PAIGC após o 25 de Abril.

Insiste-se que a generalidade destes depoimentos não se reveste de aspetos inovadores. Nino Vieira, a propósito do golpe de 14 de novembro de 1980, repete que existia um quadro persecutório cabo-verdiano e que eram humilhantes para os guineenses os contextos institucionais existentes em Cabo Verde que inferiorizavam a Guiné, segundo Nino, Luís Cabral estava incapaz de ler a realidade. A linha guineense, caso de Fidelis Cabral d’ Almada, não deixará de referir os excessos da polícia de segurança, que gradualmente se tornou um Estado dentro do Estado. Dá-nos um quadro alucinante de uma pseudo insurreição dos antigos Comandos africanos, quando eles vieram do Senegal, aonde se tinham refugiado, apareceram praticamente sem qualquer armamento, quem os chamara dissera que vinham para apoiar Nino para fazer parte de um grande exército nacional, foram presos pela segurança e mais tarde executados.

No final desta recolha de depoimentos e dado que a sua publicação ocorreu em 2018, os autores dão-nos conta do que se passou com todos estes protagonistas: 

  • Fidelis Cabral d’Almada, Ministro da Justiça após o golpe de 14 de novembro de 1980, depois Ministro de Estado na Presidência, deixou a esfera pública em 1996 para se dedicar aos negócios, faleceu em 2002; 
  • José Araújo manteve-se em Bissau até ao golpe de 14 de novembro de 1980, foi para Cabo Verde onde seria Ministro da Educação, faleceu em 1982; 
  • Vasco Cabral manteve-se em funções governativas depois da rutura entre a Guiné e Cabo Verde, já faleceu;
  • Vítor Saúde Maria foi várias vezes ministro, será nomeado Secretário Permanente do PAIGC e membro do Conselho de Estado, faleceu em 2009; 
  • Paulo Correia irá ocupar altos cargos e será detido em 1986 acusado de tentativa de golpe de Estado, sujeito a espancamentos e depois fuzilado; 
  • Juvêncio Gomes será afastado do cargo de Presidente da Câmara Municipal de Bissau após o golpe de 14 de novembro, será depois recuperado e exercerá funções de responsabilidade, incluindo o Ministério do Interior, faleceu em 2016; 
  • Manuel dos Santos (também chamado Manecas) ficará na Guiné-Bissau depois do golpe de Estado e será várias vezes ministro, dedicar-se-á mais tarde aos seus negócios; não deixará de publicamente se insurgir quanto às pensões de miséria dos antigos combatentes, dando o exemplo de um velho combatente, com deficiência, não recebia mais de 21 euros de pensão; 
  • o destino de Nino é bem conhecido, irá gradualmente proceder como um ditador, será afastado do poder após o conflito político-militar de 1998-1999, para espanto geral regressa do exílio português e apresenta-se como candidato presidencial, será eleito, irá entrar em conflito frontal com as chefias militares, será acusado de ter mandado liquidar Tagmé Na Waié e em sua sequência, em março de 2009, morto em sua casa, de forma bárbara.

Reconheça-se que o trabalho de Éric e Jeanne Makédonsky merece realce relativamente à cronologia dos acontecimentos desde a era das independências africanas até ao período pós-independência da Guiné e Cabo Verde. São relatos após a recente rutura entre a Guiné e Cabo Verde, há, como é evidente, alguns indícios de ressentimentos, mas no essencial os testemunhos guineenses e cabo-verdianos mantiveram consistência ao longo de décadas.

Éric Makédonsky
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23331: Notas de leitura (1453): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23331: Notas de leitura (1453): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Os autores são um casal de jornalistas franceses com um longo e afinal currículo. Recolheram entre 1980 e 1982 um acervo de depoimentos de figuras proeminentes na chamada luta de libertação, ouvindo portugueses, guineenses e cabo-verdianos. 

Atenda-se aos aspetos sensíveis do período em que se recolheram os depoimentos, dera-se a rutura irreversível na unidade Guiné/Cabo Verde, e por vezes alguns dos entrevistados não se escusaram a comentários de lamento e crítica. 

A obra, que podemos classificar como historiografia tardia, e onde as informações não trazem praticamente nada de novo no estado atual da arte, tem o mérito da estrutura, tem princípio, meio e fim, começa no quadro da descolonização, ouvindo sempre em sucessivas fases os diferentes protagonistas, até se chegar à independência. No final, menciona, já na atualidade, por onde param todos estes intervenientes, como se sabe, muitos deles falecidos.

Um abraço do
Mário



Assistiram à independência da Guiné, décadas depois publicam livro (1)

Beja Santos

“La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky, L’Harmattan, 2018, é uma obra que forçosamente nos surpreende. Marido e mulher eram jornalistas que permaneceram longamente no continente africano. E abrem o seu livro explicando porquê, só agora, dão à estampa os testemunhos que recolheram décadas atrás. 

Entenderam os autores que a guerrilha guineense em poucos anos perdeu o furor e o entusiasmo com que eram vistos pelo movimento revolucionário à escala mundial. No entanto, não quiseram deixar de contribuir para que a investigação sobre os acontecimentos relacionados com a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde perdesse a possibilidade de conhecer os testemunhos de inúmeras personalidades intervenientes, do lado guineense, cabo-verdiano e português.

Tratemos esta obra, pois, como um documento de estudo, se bem que, no essencial, possuímos já bibliografia esclarecedora sobre a maior parte dos pontos versados pelos autores. Logo o contexto internacional da descolonização. Reconheça-se, no entanto, que a obra oferece uma estrutura sequencial em que todos estes intervenientes fazem os seus comentários em todas as etapas da luta pela independência até às meditações que deixam sobre a rutura Guiné-Bissau/Cabo Verde. Na verdade, eles recolheram oralmente em Lisboa e em África, entre 1981 e 1982, todos estes testemunhos, daí eles estarem profundamente marcados pelo divórcio recente, alguns depoimentos não escondem amargura ou acinte.

Temos primeiro o despertar nacionalista. Aristides Pereira depõe sobre a sua infância em Cabo Verde e a sua vida na Guiné, a sua ligação à formação do PAIGC. Poderá ter sido lapso, ele não faz nenhuma referência a uma reunião que para alguns historiadores é bastante controversa, datada de 1956 e tratada como a data de fundação do PAIGC. 

O que ele realça é a reunião de 1959 e as decisões tomadas de haver uma direção do PAIGC no exílio e outra no interior da clandestinidade, a recrutar jovens para a luta armada e a criar um ambiente favorável à hostilidade colonialista. 

Depõem outros cabo-verdianos, como José Araújo, Silvino da Luz, Manuel dos Santos e Corsino Tolentino, contam como evoluiu a sua obsessão nacionalista e como chegaram até Conacri. Os guineenses Nino, Vasco Cabral, Fidelis Cabral d’Almada e Paulo Correia são os testemunhos guineenses, seguem-se os portugueses Carlos Fabião, Mário Tomé e outros. 

E estamos no início da guerra, Nino dá conta das suas atividades em 1962, ele e um punhado de combatentes tinham-se formado na China em 1961, Amílcar Cabral enviou-os para o Sul, para a subversão e para a desarticulação das vias de comunicação de toda a espécie. 

Carlos Fabião recorda os primeiros anos do conflito e não deixa de observar que o período de 1964-1966, em que o PAIGC dispunha de pouca artilharia, era considerado um dos piores períodos da guerra. Perdera-se o controlo do Morés, para lá chegar mobilizavam-se centenas de homens, podia-se chegar a uma das bases mas saía-se sempre debaixo de intenso tiroteio. Cedo se apercebeu que era totalmente inviável fechar o corredor de Guilege, a fronteira era muito porosa, as matas densas, as forças do PAIGC alteravam os percursos. O sistema de informações era, ao tempo, precário, demorou a identificação dos comandantes dos grupos e o conhecimento das principais bases. Ainda no testemunho do último governador da Guiné ele observa que Nino era já uma figura mitificada, vezes sem conta se tentou a sua detenção, era impossível.

Para Aristides Pereira, a “batalha de Conacri” foi duríssima, o regime de Sékou Touré vivia a psicose do complô, na capital proliferavam grupos que se diziam nacionalistas a favor da independência da Guiné Portuguesa e que atacavam constantemente Cabral. Havia pouquíssimas armas até que Hassan II, o rei de Marrocos, autorizou o envio de armamento, foi crucial para o período de 1963-1964, as populações, ao verem os guerrilheiros com bom armamento não hesitaram em tomar partido. Refere ainda que data de julho de 1963 um programa orientado para a intensificação da luta em Cabo Verde, mas os obstáculos foram inúmeros, a própria União Soviética considerava demencial a tentativa de introduzir a guerrilha em Cabo Verde.

Um pouco à maneira como se comporta a historiografia portuguesa, que não esconde o desconhecimento das fontes do período referente à governação de Schulz, Éric e Jeanne Makédonsky saltam para o período de Spínola e Carlos Fabião depõe sobre o novo estilo: as visitas diárias às instalações militares e mesmo ao teatro de operações, o oficial-general exigia melhores condições de vida para quem combatia no mato; a centralização na planificação das ações militares; a reformulação da informação e da contrainformação; a gradual africanização da guerra; a criação dos Congressos do Povo; o abandono de posições tidas por insustentáveis; um afinado sistema de escuta das comunicações do PAIGC; um modelo de desenvolvimento com a criação de infraestruturas, reordenamentos das populações, tudo sob a égide do slogan “uma Guiné melhor”. 

Era uma nova estratégia, o PAIGC iria ser desafiado de cima a baixo, acresce que a propaganda portuguesa iria acentuar uma questão sensível que Amílcar Cabral lateralizava com talento: a desconfiança e mesmo estados de ódio dos guineenses face aos cabo-verdianos, vistos durante séculos como os interlocutores mais duros da colonização. E foi usada uma pedra do xadrez que estarreceu o PAIGC: o presidente do Partido, Rafael Barbosa, foi liberto em 3 de agosto de 1969 e apelou ao povo guineense que apoiasse a política de Spínola.

Aristides Pereira também depõe sobre este período inicial de Spínola. O insucesso em travar os percursos de abastecimento no Sul; observa que o novo governador facilitava a vida aos comerciantes, os djilas, que circulavam por todo o território, entre amigos e inimigos, assim se instituía um sistema de informações que melhoraram a vida operacional dos portugueses.

 Põe em realce a libertação de Momo Touré e Aristides Barbosa, entre outros, que foram de novo juntar-se ao PAIGC, atribui-lhes faculdades que efetivamente estes dois homens não possuíam, o complô que levou ao assassinato de Cabral tinha seguramente cérebros efetivos. Mais adiante, será o próprio Aristides Pereira a dizer que preso pelos assassinos de Cabral ouviu na lancha que foi detida em Boké o nome de altas figuras guineenses que estariam com a responsabilidade na direção do complô, mas não invoca nomes. 

Noutros contextos, Aristides Pereira irá veladamente referir-se a Osvaldo Vieira e ao seu primo Nino Vieira. E refere detalhadamente a política externa do PAIGC, a sua indeclinável vontade de se manter neutral nos conflitos entre a URSS e a China, embora esta tenha mais tarde deixado de apoiar o PAIGC.

Pedro Pires, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e Corsino Tolentino irão depor sobre as suas atividades, nomeadamente a partir de 1969, as forças portuguesas tinham-se retirado de quartéis na fronteira no Sul, retirou-se de Gandembel, retirou-se de Béli e de Madina do Boé, como igualmente do Sul se saiu de Cachil, na ilha do Como. Na ótica destes combatentes cabo-verdianos, era cada vez maior o espaço que se usava como obsessivo clichê de “zonas libertadas”.

(continua)


Éric Makédonsky
Capa de outro livro de Éric Makédonsky, publicado em 1986
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23322: Notas de leitura (1452): Crónicas soviéticas , o segundo livro do antigo comandante do PAIGC Osvaldo Lopes da Silva (Rosa de Porcelana, 2021, 240 pp.)