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domingo, 16 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24226: (In)citações (237): "Reflexão sobre a pobreza" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO SOBRE A POBREZA

adão cruz

Formar e educar pressupõe que as pessoas estão em primeiro lugar e não podem ser sacrificadas em nome de uma qualquer estruturação produtiva. É por isso que as relações capitalistas são incapazes, pela sua natureza intrínseca, de promover o conjunto de direitos fundamentais dos seres humanos, a começar pelo direito à vida digna, à educação livre, aos cuidados de saúde, à habitação, ao emprego, à cultura, ao lazer e à aposentação. Não se podem criar verdadeiras escolas e seguir processos de formação de qualidade dentro de um sistema social excludente, desigual e antidemocrático.

A pobreza, ou o holocausto da pobreza como alguém lhe chamou, é a maior e mais cruel das violências, a mais descarnada evidência do fracasso social, o resultado exponencial de todas as ganâncias. Seria o flagelo da consciência dos ricos, se esta não estivesse dominada pela iniquidade económica e pela insensibilidade ao sofrimento e ao drama de cada um. Não só a pobreza do sul do planeta, do terceiro mundo, mas também a pobreza dos excluídos do primeiro mundo, onde o abismo entre pobreza e riqueza é cada vez maior por força de um sistema altamente injusto, corrupto, explorador dos fracos, que não se coíbe de matar, massacrar e praticar genocídios, para aumentar os superlucros e as mais-valias que já não sabe como utilizar. Degradam-se as condições de vida porque as necessidades humanas são geridas pela política das sobras. Destrói-se a natureza pela proliferação de indústrias que nada produzem além de lixo. Envenenam-se as relações entre pessoas e países pela luta de interesses e pela invenção das guerras. Combate-se a cultura em todas as frentes. Impõe-se uma pretensa e soberana eficácia de todas as panaceias que originam fabulosos lucros, através da intoxicação comunicacional.

Toda esta religião do mercado, todos estes rituais dos sacerdotes do poder espalhados pelos cultos reverenciais do dinheiro são consagrados em cimeiras, onde um profundo défice de moralidade define a repartição do que ainda resta para roubar. Toda esta lógica neoliberalizante, tão cara ao primarismo de tantos chefes de estado e seus correligionários, insensível à exclusão social e à generalização da pobreza, tende para a anulação do homem e para a promoção de uma cultura de gestão, cuja meta não é outra senão a mecanização de uma sociedade em que os homens não são mais do que peças.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24195: (In)citações (236): "Reflexão sobre a Ciência" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

Hieronymus Bosch 053 detail

Detail from "The Extraction of the Stone of Madness", a painting by Hieronymus Bosch depicting trepanation (c.1488–1516) / Uma representação da trepanação: pormenor de "A Extração da Pedra da Loucura", quadro de Jerónimo Boch (c. 1488-1516), com a representação da trepanação. Coleção do Museu do Prado. Public domain / domínio público, Wikimedia Commons


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por razões familiares, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos se revele de algum interesse e proveito. Comentários e sugestões serão bem vindos".





4. Hospital, Pobreza e Caridade 



4.4. "Quando o pobre come frango, um dos dois está doente"

O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente um locus religiosus do ponto de vista eclesiástico e uma pia causa do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc. (Rosen, 1963; Steudler, 1974; Graça, 1996).

Também na estrutura do financiamento do hospital medieval era patente a sua origem como pia causa e a natureza caritativa da sua missão:

  • De facto, as suas receitas provinham exclusivamente da caridade dos ricos e poderosos;
  • O seu património original resultava, muitas vezes, do remanescente de uma herança, doada em vida ou à hora da morte, por um cristão, leigo ou religioso, que se sentia em dívida para com Deus;
  • O essencial das receitas do hospital, quer em espécie quer em géneros, provinha do seu património fundiário (alugueres de prédios urbanos, foros e rendas de prédios rústicos, exploração agrícola directa, etc.);
  • Quanto aos custos de hospitalização, eram sobretudo representados pelas despesas com a alimentação (mais de 50%);
  • Os encargos com o pessoal não ultrapassavam os 15%, enquanto as despesas com os produtos farmacêuticos não iam além dos 3% (Steudler, 1974; Rochaix, 1996; Graça, 1996).

Alguns dados estatísticos sobre a assistência hospitalar de há 150 anos são altamente reveladores da permanência, durante séculos, de certas características estruturais do hospital cristão medieval. De acordo com o Relatório Wateville (1851, cit. por Rochaix, 1966), havia em França, em 1847, no final da Restauração:

  • 1270 estabelecimentos, dos quais 337 eram classificados como hospitais, 199 como hospícios e 734 como hospitais-hospícios;
  • O número de camas elevava-se a mais de 118 mil, sendo 14% reservadas aos militares e pouco mais de 4% aos doentes que tinham possibilidades de pagar os custos de hospitalização; a grande maioria das camas destinavam-se, pois, a doentes indigentes (34,3%) ou idosos (47,4%);
  • O número de entradas nos estabelecimentos hospitalares foi de 486 mil, numa população estimada em 36 milhões (em 1850, segundo Duby, 1995. 651), o que daria então 13.5 internamentos por cada mil habitantes;
  • Em contrapartida, a duração média de internamento hospitalar era alta, embora variando conforme o género e a idade: 48 dias para os homens; 64 para as mulheres; e 70 no caso das crianças.

Não obstante o furacão revolucionário que varreu a França entre 1789 e 1799, a estrutura orçamental do hospital não tinha mudado muito em 1847, quando comparada com a do final do Ancién Régime.

Do lado das despesas (Quadro XII, em anexo), a alimentação continuava a constituir a principal rubrica e o grosso da fatia dos custos de internamento (56%). O pão (43%), a carne (25%), o vinho e outras bebidas (25%) praticamente esgotavam esta rubrica.

Em segundo lugar, mas apenas com 14% do total, surgiam os encargos com o pessoal. Por categorias destacava-se o pessoal administrativo, seguramente mais bem pago que as religiosas que constituíam, só por si, quase metade dos efectivos. A fraca proporção dos ordenados dos médicos e cirurgiões (menos de 1.9% do total geral dos custos de hospitalização) sugere que o seu número e a sua importância, no contexto hospitalar de há 150 anos atrás, eram ainda muito reduzidos.

Ainda em relação aos custos de pessoal, há que ter em conta a persistência da tradição do pagamento em géneros, particularmente sob a forma de fornecimento gratuito de alimentação e alojamento ao pessoal. Por não terem uma expressão monetária, estes encargos não eram contabilizados, aparecendo diluídos noutras rubricas. 

O risco de viés estatístico é, pois, óbvio, pelo que em rigor teríamos que ter em conta uma percentagem mais elevada de custos salariais (directos e indirectos), talvez da ordem dos 20% a 25%, como sugere Rochaix, para o período correspondente ao final do Ancien Régime (1996. 43).

Em suma, os custos de hospitalização por doente não chegavam a 82 francos franceses, dos quais 46 respeitavam à alimentação (Quadro XIII ). Só em pão gastava-se, em média, 20 francos por doente. Com a aquisição e a lavagem de roupa, mais 6 francos, enquanto o aquecimento ficava em 5 francos e meio e a iluminação em 1 franco. Estes valores dão-nos uma pálida ideia do que seria o terrível desconforto dos doentes naquela época.

Compare-se, por fim, o custo médio, por doente, do serviço religioso (0,7 francos) com a medicação (3,1 francos) e os honorários do pessoal médico (1,7 francos). 

No essencial, e independentemente de eventuais variações no custo por doente conforme o tipo de estabelecimento, estatuto do doente e região, o hospital no final da primeira metade do Séc. XIX em muito pouco se distinguia ainda do hospital da Idade Média, continuando a privilegiar a sua função de acolhimento de doentes pobres (que representavam mais de 4/5 da sua clientela).

Quadro XIII - Custo da hospitalização em França, por doente e por rubrica de despesa (1847)  

Unidade: Franco Francês  
 

Fonte: Adapt. de Rochaix (1996)


A associação do hospital com a prisão e, portanto, a sua natureza de instituição concentraccionária e totalitária, tem as suas raízes na dolorosa experiência da população europeia mais miserável e socialmente excluída (Quadro X, em anexo):

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital";
  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos".
  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"
  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Durante muito tempo, aquilo a que eufemisticamente se vai chamar no Séc. XIX a assistência pública, tem duas funções distintas:

  • Uma função médica e hospitalar (prestação de cuidados aos doentes pobres);
  • E uma função de controlo social de todas as formas de déviance e da exclusão (pestilência, loucura, pecado, deficiência, pobreza, marginalidade, criminalidade, vagabundagem, prostituição, orfandade, velhice, desemprego, mendicidade).
É o início da intervenção do Estado, conferindo ao hospital, a coberto da caridade, uma função claramente policial de controlo de grupos da população potencialmente perigosos. 

Nomeadamente em França, é criado, em 1656, por Luís XIV o  Hôpital Géneral,Hospital Geral, com o objectivo explícito de impedir, nas principais cidades, "a mendicidade e a vagabundagem como fontes de todas desordens" (Foucault, 1972. 75). Trata-se do grand renfermement, um "estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: a 3ª ordem da repressão" (61).

Á semelhança do Hôpital Géneral, os ingleses tinham criado as workhouses, no âmbito da famigerada Lei dos Pobres (promulgada em 19 de Dezembro de 1601, pela Rainha Isabel I). 

 O seu estatuto tinha sido definido por Carlos II em 1670 e no Séc. XIX eram conhecidas como as Bastilhas de Chadwick (!), numa alusão à conhecida fortaleza-prisão de Paris, por um lado, e ao papel (controverso) do arquitecto do moderno sanitarismo, E. Chadwick (1800-1890): A primeira de todas remontava ao ano de 1697 (Bristol).

Segundo o historiador polaco B. Geremek (no seu livro sugestivamente intitulado "A piedade e a forca: História da miséria e da caridade na Europa", 1995), "aquilo que se propunha o Hospital Geral, com a sua política de enclausuramento e de trabalho obrigatório, era pois a afirmação do ethos do trabalho: assegurar a todo o custo - pelo terror, pela ameaça e pela violência - o respeito geral de tal princípio. O espectáculo da repressão que a assistência social dos Tempos Modernos integra nos seus métodos de intervenção desempenha uma função ideológica precisa" (Geremek, 1995. 261).

A clientela hospitalar seria, pois, constituída por toda a espécie de excluídos sociais, nomeadamente no Ancien Régime, vivendo amontoados, em total promiscuidade, em estabelecimentos que primavam pela mais completa e absoluta ausência de condições de higiene e de segurança. 

Além disso, os incêndios, as inundações ou outras catástrofes eram frequentes: por ex., o nosso Hospital de Todos os Santos sofreu nada menos do que três grandes incêndios, entre 1504 e 1755 (Graça, 1994).


4.5. "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"


Além de um locus religiosus e de uma pia causa, o hospital até ao fim ao Ancien Régime continuara a ser um locus infectus, um lugar de infecção e de propagação de doenças. O universo hospitalar era concentracionário e a mortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal.

Não havia, por outro lado, nenhuma distinção entre o doente mental e o criminoso, sendo o louco tratado como um animal durante toda a Idade Média até praticamente ao Séc. XIX.: 

"Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro", diz o provérbio, já que "quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce" (Quadro X) (*).

A fundação da psiquiatria data de 1798 com a distinção que o francês Ph. Pinel (1745-1826) fará entre loucos e criminosos, na sequência do ideário da Revolução Francesa. O mesmo Pinel iria também dirigir a primeira escola psiquiátrica em França (Sournia, 1995. 228).

É na primeira metade do Séc. XIX que surge o manicómio, o precursor do moderno hospital psiquiátrico (entre nós, a criação do manicómio de Rilhafolhes data de 1848). 

Discípulo de Pinel, J. Esquirol (1772-1840) será o inspirador, em 1838, da lei francesa, considerada exemplar para a época, "que institui a protecção jurídica dos alienados, até aí submetidos com demasiada frequência a internamentos excessivos e a tratamentos desumanos" (Sournia, 1995. 277).

Também entre nós, com o triunfo das ideias liberais, surgem as primeiras denúncias da condição infra-humana em que viviam os doentes mentais ("doidos, lunáticos, alienados", como eram então rotulados).

De entre os médicos que se debruçam e se preocupam com esse problema, destaca-se o nome de Clemente Bizarro (1805-1860) que, em 1836, em sessão da Sociedade das Ciências Médicas, chama a atenção para "os insalubres, os pavorosos, e os acanhados recintos onde confusamente estão misturados e em contacto mais de duzentos alienados de manias tão opostas e que por isso exigem cuidados tão diversos" (cit. por Mira, 1947. 420).

Bizarro referia-se mais concretamente à Enfermaria de S. João de Deus do Hospital de S. José onde se amontavam sobretudo doentes do sexo feminino:

 "Doidas nuas e desgrenhadas, entregues a todos os seus desvarios, gritando e gesticulando, encerradas às vezes num cubículo escuro e infecto onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se; um local de todo apertadíssimo, com escassa luz, imprópria ventilação, e nele jazendo perto de 150 infelizes alienados com o diminuto número de três empregadas, que tantas são as destinadas ao seus serviço" (citado por Costa, 1986).

Em 1837, Bizarro pedia a criação de um hospício orientado especificamente para o acolhimento e tratamento de doentes mentais, o que veio a acontecer, dez anos mais tarde: de facto, graças ao legado de um benemérito, é criada em 14 de Novembro de 1848, o primeiro estabelecimento para alienados.


Alguns anos depois, o manicómio de Rilhafolhes alberga já mais de meio milhar de doentes; mais tarde, será seu director o médico Miguel Bombarda (1851-1910), o qual além de ampliar e modernizar o estebelecimento, lutou vigorosamente contra os métodos repressivos então ainda em uso (o "babeiro de cola", a "coleira", o "berço-prisão", o "colete de forças", etc.);

Em 1948, passou a chamar-se Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda.

Em 1883, entra em funcionamento o Hospital de Conde de Ferreira, pertencente à Misericórdia do Porto, e que foi construído com o remanescente da herança de J.F. Ferreira (1782-1866). Este último, depois de enriquecer no Brasil e em África, iria tornar-se um dos grandes filantropos do reinado de D. Maria II.

O Hosputal Conde de Ferreira, para o qual transitaram os doentes mentais, até então encerrados como animais nos porões do Hospital de Santo António, igualmente sob administração da Misericórdia do Porto, irá tornar-se a escola dos grandes "alienistas" do nosso Séc. XIX: A. M. Sena, Urbano Peixoto, Magalhães de Lemos e Júlio de Matos, entre outros (Mira, 1947).

É a época do desenvolvimento da neurologia e psiquiatria (ou melhor, da neuropsiquiatria), o qual decorre, em grande parte, dos progressos realizados em disciplinas fundamentais como a anatomia, a fisiologia e a patologia. As funções do cérebro e do sistema nervoso e o seu papel na saúde/doença começam a ser largamente objecto de investigação por homens como os franceses G. Duchenne (1806-1875), J. M. Charcot (1825-1893), J. Déjerine (1849-1917) e sua mulher, P. Marie (1853-1940) (uma das primeiras mulheres médicas), J. Babinsky (1857-1922), e o inglês J. H.Jackson (1835-1911) (Rosen, 1990; Sournia, 1995).

A fundação da neuropsiquiatria é atribuída ao francês J. M. Charcot, com a publicação em 1873 do seu Curso sobre as doenças do sistema nervoso. Posteriormente, o alemão E. Kraeppelin (1856-1926) vai classificar as doenças mentais.

Voltando à França e ao fim do Ancien Régime, não admira a grande desconfiança (se não mesmo a suspeição e o repúdio) com que a instituição hospitalar será tratada no período revolucionário, já que ela é sinónimo da caridade mais abjecta. Como dirá Barère, no relatório feito em nome do Comité de Salut Publique:

"Quanto mais esmolas, mais hospitais. Tal é o objectivo para o qual a Convenção deve caminhar sem cessar, porque estas duas palavras devem ser riscadas do vocabulário republicano " (cit. por Rochaix, 1995. 59).

Em contrapartida, em Portugal será o Estado Novo, em pleno Séc. XX, a recuperar a ideologia do acto misericordioso e a sobrepor a caridade individual à solidariedade social (Caixa 1, em anexo).






Caixa 1 - A Caridade

Perto da minha casa, mora, sòzinho um velho doente, que todo o dia treme e pouco fala.

Como não tem família, são os vizinhos   que o trazem ao colo e o sentam à porta  nos dias de sol.

Chora sem lhe fazerem mal e sem dizer porquê.

Gosto muito deste pobrezinho. Quando lhe levo alguma coisa que o consola, vou tão depressa que nem sinto os pés a tocar o chão.

Ando sempre contente nos dias em que posso visitá-lo e dar-lhe esmola. Não há alegria como a de fazer bem.

Nosso Senhor ensinou que a maior de todas as virtudes é a caridade.

Fonte: O Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 62


(Bibliografia a apresentar no final da série)

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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10597: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (19): A pobreza em chão manjaco


1. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (AGA), há algumas referências à "pobreza" e à miséria" em que viviam as populações guineenses, nomeadamente  no chão manjaco... AGA tinha chegado à Guiné, há pouco tempo, tinha vivido em países ricos como a Alemanha... O contraste é duro, aos seus olhos, mesmo cotejando as duas pobrezas, a nossa e a deles...  Aqui se reproduz essa parte do Diário do AGA, com a devida vénia... (LG):


(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 27 de Junho de 1972

Fui dar uma volta pela terra e já ouvi uma enormidade de coisas sobre o lugar para onde me atiraram os acasos da sorte e da pouca fortuna.

Teixeira Pinto ou Canchungo é a quarta ou quinta maior povoação da Guiné, tem uma larga avenida central quase com um quilómetro e casas razoáveis estendendo-se para ambos os lados. Ao fundo situa-se a praça Dr. Oliveira Salazar. Isto é airoso e parece sossegado. À volta da avenida, para norte, ficam as tabancas ou moranças, centenas e centenas de casas pobres da população predominantemente de etnia manjaca, uma das muitas existentes neste território. Estamos no Chão Manjaco, a terra destes negros. Os miúdos pretos são uma ternura que dói. A carapinha, os olhos muito escuros, nus e sujos, as barrigas grandes, subalimentados, mas por dentro são iguais aos meninos loiros e morenos da nossa Europa. O mundo à sua volta é que os faz diferentes! (...).

(...) Canchungo, 5 de Julho de 1972 

Não é tempo de inventar coisa nenhuma, são horas de tudo descobrir.  Não posso falar, escrever sobre a guerra se não a conhecer, se não a viver até dilacerar o sentir, não posso falar deste povo, deste solo queimado se desconheço os negros e os brancos, a terra que pisamos.

Hoje, a primeira saída. Fui até ao Bachile, um aquartelamento uns quinze quilómetros a norte, na estrada para o Cacheu, junto às florestas que dão acesso ao Balanguerez e à Caboiana, zonas libertadas pelo PAIGC. Dois jipes, no da dianteira, um capitão e dois cabos armados, no meu, três homens desarmados. Fui à confiança, esta zona é controlada pelas nossas tropas, não há perigo. As populações da região, de etnia manjaca, parecem estar do nosso lado e os guerrilheiros vivem ainda longe, não atacam, não costumam atacar.

O que vi? Logo à saída de Canchungo, tabancas paupérrimas cobertas de colmo, negros indolentes, lixeiras, vacas esqueléticas, cabras, porcos passeando pela estrada. A savana africana, terras pobres para se cultivar o que quer que seja. O jipe do capitão atropelou um porco e seguiu em frente.  (...)

(...) Canchungo, 11 de Julho de 1972 

Faz amanhã um mês que estive de serviço como adjunto do oficial de dia no quartel do Depósito Geral de Adidos, na calçada da Ajuda, em Lisboa. Há quanto tempo isso foi! 

Precisava de comer um bom bacalhau ou um borrego assado, um cozido, um esplendoroso bife em qualquer parte do nosso Portugal mimoso. Parece que saí daí há três anos e ainda não tenho três semanas de Guiné.

Hoje dei comigo a pensar na grande Europa por onde já derramei algum suor durante um dos meus vinte e cinco anos de vida. Quero atravessar outra vez o velho continente, saltitar de país para país, falta-me conhecer Londres, Viena, Budapeste, Florença, Roma, sei lá, tanta coisa! Há-de acontecer. A esperança é uma menina com olhos de todas as cores.

De tarde, resolvi sair e dar uma grande volta a pé, sozinho pelas ruelas e tabancas de Canchungo, Guiné, África. Tanta pobreza! Só o que os alemães gastam para alimentar principescamente os seus cães de estimação - o que tanta admiração me causou quando dos dezanove para os vinte anos ancorei a minha vida em Hamburgo, no norte da Alemanha, - só esses marcos, moeda forte alemã, davam para alimentar milhões de crianças desta África pobre.

Mas isto não é assim tão simples. Os problemas do continente africano são muito complexos e é aqui que têm de ser resolvidos. Está quase tudo por fazer. Como passar de uma sociedade primitiva e agrária para estádios de desenvolvimento mais decentes? Há ventos que sopram quer do leste, quer do ocidente e ajudam quem? Essa ajuda é mesmo “ajuda”? Aqui na Guiné a agricultura é um desastre e funciona como a única fonte de subsistência e riqueza. Eles têm as bolanhas, os arrozais, mas são tão difíceis de cultivar! Hoje, nas tabancas vi os negros a comer. Fazem uma bola de arroz e metem-na na boca com a mão. Não têm facas nem garfos, fiquei impressionado. 


(...) Canchungo, 3 de Agosto de 1972 

Estou rico. No meu quarto tenho agora uma cadeira com encosto de lona, outra de pau e uma mesa quadrada sobre a qual escrevo. A Companhia 122 de pára-quedistas seguiu ontem para Bissau a fim de reforçar a segurança da capital nestes dias “tenebrosos” que se aproximam, com as comemorações do aniversário do PAIGC. Fui incumbido da difícil tarefa de guardar as chaves dos quartos dos alferes pára-quedistas, companheiros de degredo nas terras da Guiné. Vai daí, fui-lhes buscar duas cadeiras e uma mesa que tanto jeito fazem no meu quarto. Os páras regressam daqui a doze dias e então devolverei a mobília, ficarei de novo pobre.



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 1972 > Meninos (manjacos) a caminho da escola, em transporte militar.


Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados




Canchungo, 4 de Agosto de 1972 

Ontem a brincar com a minha pobreza, hoje a sentir a pobreza a sério, brutal, dilacerante. Como se já não bastasse a guerra!... 

É uma fatalidade nascer na Guiné, a terra é avara, o clima é mau, as populações também sofrem com o calor e as doenças.

Esta manhã Canchungo foi assolada por um pequeno tufão que passou sobre uma extremidade da vila e arrasou vinte tabancas, as casas de adobe e colmo das famílias negras. Meti-me no jipe e fui ver o que se podia fazer.

Um espectáculo impressionante. Os telhados das casas de palha ou de zinco voaram e despedaçaram-se, estilhaçados. Algumas tabancas ruíram completamente arrastando as pobres mobílias, os tarecos e as gentes. Felizmente não morreu ninguém, só três feridos graves que foram hoje evacuados para Bissau.

O que me arrepiou foi a atitude dos negros. Os homens tentavam salvar os restos dos haveres, as mulheres choravam, um choro feito de berros, de esponjar na lama, de gestos como eu nunca tinha visto. O corpo encarna a dor total, é o máximo da expressividade possível. Ao olhar para aquela miséria toda e para os negros transfigurados em desgraça, lembrei-me do que será a destruição de uma aldeia aqui perto, nesta mesma Guiné, pela guerra, pelo napalm, pelo fogo. São coisas que escapam à nossa compreensão. Só quem as vive pode entender.

Isto do tufão e miséria está mal escrito. É tudo muito pior do que as palavras possam dizer. Eu ainda sou “periquito” nesta guerra. Vi pouco, continuo a tentar entender. (...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10025: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (18): A ponte Alferes Nunes, a CCAÇ 16, o Bachile, a 38ª CCmds, o Canchungo, o cor pára Rafael Durão, o futebol, a violência, a morte...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7084: Ser solidário (89): Em Oeiras e Lisboa, dia 6 de Outubro, dois eventos da iniciativa da ONGD Ajuda Amiga: Combate à Pobreza e à Exclusão Social, e Defesa da Biodiversidade (Carlos Silva)








1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Carlos Silva,  co-fundador e vice-presidente da ONGD Ajuda Amiga:


Data: 3 de Outubro de 2010

Assunto: Eventos - Combate à Pobreza e à Exclusão Social, e Defesa da Biodiversidade

Exmos(as) Senhores(as)


No âmbito do combate à pobreza, à exclusão social e na defesa da biodiversidade, que a todos nos sensibiliza e mobiliza, muito agradecíamos a divulgação dos eventos apresentados a seguir:





A. Oeiras, Biblioteca Municipal, 6 de Outubro de 2010, às 15h45  - Evento "Biodiversidade e Combate à Pobreza"


No dia 6 de Outubro na Biblioteca Municipal de Oeiras a ONGD Ajuda Amiga realiza:

(i) Exposição de quadros, fotografias e esculturas;

(ii) Projecção do filme Bemba di Vida (O Celeiro da Vida) às 15H45, entrada livre;

(iii) Recolha de livros no local.

No Ano Internacional da Biodiversidade e no Ano Europeu de Combate à Pobreza e à Exclusão Social,  a ONGD Ajuda Amiga associa-se à iniciativa de mobilização e sensibilização da sociedade portuguesa para a problemática da pobreza, da exclusão social, e da biodiversidade.

O evento irá decorrer com o apoio da Câmara Municipal de Oeiras, na Biblioteca Municipal de Oeiras, situada na Avenida Francisco Sá Carneiro, Urbanização Moinho das Antas, nº 17, em Oeiras.

Será projectado no Auditório da Biblioteca Municipal de Oeiras, o filme "Bemba di vida", sobre as áreas protegidas da Guiné-Bissau, o qual tem uma duração de 45 minutos.

A ONGD Ajuda Amiga irá ainda fazer no local uma exposição de quadros, fotografias, esculturas, e uma recolha de livros que os visitantes queiram doar, participando deste modo no combate à pobreza através do conhecimento. Os livros serão depois armazenados nos nossos armazéns na Amadora, e enviados por contentor para a Guiné-Bissau em Janeiro de 2011, nele seguem também outros bens como equipamento hospitalar, computadores, unidades de compostagem, cobertores, roupa, calçado, brinquedos, etc.

B. Lisboa, Centro Cultural Franciscano, 6 de Outubro de 2010, às 21h15,  Evento "Conservação da Biodiversidade para manter o Pão dos Guineenses"

No dia 6 de Outubro irá ocorrer um outro evento sobre o mesmo tema no Centro Cultural Franciscano, situado no Largo da Luz, 11, 1600-498 Lisboa, tel. 217140515, também realizado pela ONGD Ajuda Amiga, e com o seguinte programa:

(i)  Projecção do filme Bemba di Vida (O Celeiro da Vida) às 21h15 no Centro Cultural Franciscano,  entrada livre
(ii)  Tertúlia com Engº Técnico Agrário António Estácio [, membro da nossa Tabanca Grande].

Agradecemos desde já a atenção dispensada.

AGRADECEMOS QUE REPASSEM PARA OS VOSSOS AMIGOS/AS

Estes Eventos também estão anunciados no Mural do Facebook da Ajuda Amiga

Com os melhores cumprimentos

Carlos Silva
Vice-Presidente Ajuda Amiga
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Nota de L.G.:

Último poste da série > 22 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7022: Ser solidário (88): A Alicinha do Cantanhez e a sua mãe, Cadi, estão bem de saúde e recomendam-se (Pepito / Luís Graça)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3208: Pensamento do dia (16): E não se pode exterminá-la ?... A epidemia de cólera em Bissau (Sofia Branco, "Público")

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Barro > Abril de 2006 > As crianças são sempre as principais vítimas de doenças transmissíveis como a coléra que corre o risco de se tornar endémica na Guiné-Bissau e em especial na cidade de Bissau onde, em muitas zonas residenciais, faltam alguns dos principais requisitos de saúde: água potável, electricidade, saneamento básico, recolha do lixo, desinfectantes como o cloro, higiene pessoal e ambiental, cuidados médicos, etc. Guiné-Bissau > Região de Bafátá > Mansambo > Fonte de Mansambo > Abril de 2006 > Água corrente, potável, e sabão: a saúde começa aqui ou por aqui... Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Fonte de Mansambo > Abril de 2006 > Lavadeiras... Fotos: © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Direitos reservados 1. Chama-se atenção para a publicação, na edição de ontem do jornal Público, de uma notável crónica de Sofia Branco, com fotos de Daniel Rocha, sobre a actual epidemia de cólera em Bissau: A doença das mãos sujas continua a matar todos os anos na Guiné-Bissau, Público, P2, 14.09.2008, Sofia Branco (texto) e Daniel Rocha (fotos), em Bissau. Eis aqui, com a devida vénia e o nosso apreço pelo trabalho da jornalista do Público, alguns excertos, devendo esta longa citação (*) ser entendida como sugestão para uma leitura integral da peça jornalistística e como manifestação da nossa preocupação e solidariedade em relação a mais esta crise sanitária que afecta os nossos amigos da Guiné-Bissau. (A Sofia Branco tem-se destacado, nos últimos anos, como jornalista, competente, corajosa, lúcida e empenhada, na investigação e divulgação do problema da Mutilação Genital Feminina na Guiné-Bissau). Aproveito para chamar a atenção para o paradoxo da situação actual da Guiné-Bissau, que exporta médicos e enfermeiros nacionais (!) e que vê-se na contingência de pedir ajuda internacional para combater o actual surto de cólera que lavra em Bissau... São os médicos estrangeiros (neste caso, da associação Médicos Sem Fronteira) quem está na linha da frente da luta contra a cólera em Bissau, no Hospital Nacional Simão Mendes... O terrível paradoxo é que a Guiné-Bissau, que não tem (a par de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe) uma Faculdade de Medicina, depende da ajuda de terceiros (Portugal, China, Cuba...) para formar os seus médicos, os quais, acabada a sua formação, não voltam a casa onde as conidições de trabalho e de vida estão longe de ser atractivas, ou no mínimo decentes e aceitáveis... Ainda há dias dei os meus parabéns a um aluno meu, médico, guineense, que veio para Portugal, com uma bolsa (portuguesa!) , para fazer um mestrado em gestão da saúde, e que entretanto conseguiu ver reconhecidas, pela nossa Ordem dos Médicos, as suas competências profissionais (tirou o curso de medicina na ex-União Soviética ou já na actual Rússia). Dei-lhes os meus parabéns, a ele, como pessoa, como médico, como meu aluno e como meu amigo... E os meus pêsamos à Guiné-Bissau por que vai perder, por vários anos, o contributo qualificado de um dos seus filhos, para mais numa área, a saúde, onde as carências de pessoal são brutais... "Agora vou ganhar algum dinheiro, aqui, em Portugal... mas um dia hei-de voltar à minha terra"... É humano, humaníssimo, vistas as coisas no plano individual... Mas é uma terrível sangria, uma tragédia, para países tão pobres como a Guiné-Bissau, que tem os seus melhores quadros na diáspora, na emigração... (Atenção: há gente extraordinária, guineense, a viver e a trabalhar, em condições dificilíssimas, na Guiné-Bissau, e que merecem o nosso reconhecimento, apoio e aplauso... Portanto, nada de estigmatizar ninguém, e muito menos fazer a distinção entre bons e maus filhos; até por que também nós, portugueses, temos mais de cinco milhões espalhados pelo mundo fora, e que nunca mais voltarão, na maior parte dos casos...). A questão não é saber se um dia os filhos da Guiné-Bissau na diáspora (portuguesa, comunitária, mundial...) os mais qualificados, voltam, mas como conseguir criar condições - de parte a parte, Portugal, a União Europeia e a Guiné-Bissau... - para que eles voltem, os médicos, os enfermeiros, os técnicos de diagnóstico e terapêutica e outros técnicos de saúde, os engenheiros, os professores, os gestores, os informáticos, os operários qualificados e os empresários, guineenses, que tanta faltam fazem no seu país. (...) "Estão vivos, mas o seu olhar parece já ter desistido. Os doentes de cólera que se aglomeram no Hospital Simão Mendes, principal unidade de saúde da Guiné-Bissau, esperam em macas de lona pela sua sorte - que pode ser a morte. Conhecida como a doença das mãos sujas, este ano a cólera já matou mais de cem pessoas e infectou cerca de 5500. "São homens e mulheres, algumas crianças também. Os doentes mais graves têm o luxo de poder dormir dentro da ala reservada para a cólera, os outros espalham-se ao ar livre pelo alpendre que abraça o edifício, embrulhando-se num lençol branco, que é trocado pelos enfermeiros quando muda de cor - a cólera, infecção intestinal aguda causada por uma bactéria, normalmente contraída por ingestão de alimentos ou de água contaminada, manifesta-se em diarreias, vómitos e até sangramentos. Outros doentes já estão instalados na tenda de campanha em frente, montada pela Unicef. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF), há um mês em Bissau, vão instalar outras tendas nos próximos dias. (...)" Combater a cólera não custa muito dinheiro, as soluções de cloro têm preços acessíveis. Mas a Guiné-Bissau não tem cloro suficiente em armazém e precisa de o importar. Quando a equipa de emergência dos MSF chegou ao país, o stock do hospital central era 'insuficiente e irregular' e não havia cloro nos centros de saúde espalhados pela capital - 'ainda não há', disse ao [Público] o coordenador da equipa dos MSF, Daniel Remartínez. ...) "A cólera não é propriamente uma surpresa na Guiné, um dos países mais pobres do mundo. Espera-se que ela aconteça todos os anos, por alturas das chuvas - a Organização Mundial de Saúde diz que a doença é endémica no país. Como é endémica em todos os países subdesenvolvidos que carecem de saneamento básico, aterros sanitários, sistema de distribuição de água potável. Menos de dez por cento da população guineense tem acesso a água potável e mais de 80 por cento dos poços estão contaminados. "O próprio Presidente, Nino Vieira, reconheceu que o surto de cólera no país é 'preocupante'. (...) (...)"A área mais afectada pelo surto de cólera deste ano é a de Bissau. A sobrepopulação, a degradação ambiental e o lixo a céu aberto atacado diariamente por djugudés (abutres) ajudam a explicar por que é que é na capital que se concentram o maior número de casos e o maior número de mortes. Só no Hospital Simão Mendes, onde têm dado entrada 60 doentes por dia, já morreram 35 pessoas. "No mercado de Bandim, o maior da cidade, é fácil perceber o que faz deste bairro da capital o mais afectado de todos. É um labirinto de ruelas estreitas, com centenas de comerciantes, à semelhança de um qualquer suq marroquino, onde o cheiro fétido chega a ser insuportável. O chão está invariavelmente enlameado, poças de água aqui e ali. Na zona onde se vendem os alimentos é difícil permanecer. Há quem durma no chão sujo. Em bancas de madeira estende-se o peixe fumado muito consumido pelos guineenses. 'O mercado está muito cheio, devia ser uma feira bem organizada para que as pessoas possam vender e haja mais condições e mais limpeza', reclama Aneximandro Ribeiro, 33 anos e comerciante no Bandim. (...) "A cólera tem um período de incubação 'muito rápido' - entre as 12 e as 48 horas, 'na maioria nas primeiras 24' - e, portanto, é crucial que as pessoas que tenham 'diarreias e vómitos rápidos parecidos com água de arroz' se dirijam de imediato para o hospital, explicou ao [Público] a enfermeira dos MSF Llanos Montero" (...). ___________ Nota de L.G.: (*) Vd. último poste desta série > 7 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3184: Pensamento do dia (15) : Paz à Nossa Alma (Anónimo)