Mostrar mensagens com a etiqueta pobreza. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta pobreza. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25848: Manuscrito(s) (Luís Graça) (253): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - II (e última) Parte


Lisboa > Hospital Real de Todos os Santos (1492 - 1775)  <c.  1ª metade do séc. XVIII > Por menor de Painel de azulejos de oficina de Lisboa,  existente no Museu da Cidade, Lisboa. (Com a devida vénia...)



I Parte

1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade

2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"

3. O movimento de concentração hospitalar

II Parte

4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O provedor

4.2. O almoxarife

4.3. O hospitaleiro e o vedor

4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar


Artigo originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, 



O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo:

II (e última) Parte (a)


4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O Provedor


À frente do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS) (também conhecido na cidade pelo Hospital dos pobres) estava o provedor, o official principal, que deveria ser "pessoa honrada, e de bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo" (Regimento...,1984: 35). 

De preferência, a escolha deveria recair num membro do alto clero ou, em último caso, um leigo solteiro, letrado, que fosse da confiança pessoal e política do rei, ou seja, da corte.

De facto, por ser "couza tam grande, e de tão grande maneo" (sic), o hospital deveria ser administrado com "muy grande recado", tanto no que tocava ao "serviço de nosso Senhor", como no que dizia respeito à "conservação da mesma Caza" que - sublinha enfaticamente o outorgante do seu regimento - foi "feita para obras de piedade, e de serviço de Deoz " (Regimento...,1984: 35). Daí o provedor dever "ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos".

A avaliar pelo menos pelo espírito e letra do citado regimento as principais funções do provedor (Quadro 2, em baixo) não seriam então muito diferentes daquelas que hoje em dia são atribuídas à actual figura do presidente do conselho de administração   dos nossos hospitais.

Repare-se que a preocupação em atribuir explicitamente ao provedor a função de zelar pelo cumprimento da missão do HRTS enquanto instituição. Mais concretamente:

  • Assegurar a realização da triagem dos doentes, de modo a que no hospital não fossem admitidos doentes incuráveis ou vítimas da peste (estes últimos serão posteriormente referenciados para a Casa da Saúde, em Alcântara, nos arredores da cidade);
  • Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não pudessem deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios;
  • Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas (um problema que se vai agravar na Lisboa das Descobertas);Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes.



A partir de 1564, com a passagem da administração do hospital para a Misericórdia de Lisboa, o título de provedor passa a ser substituído pelo de enfermeiro-mor:

Essa tradição irá manter-se até 1913, ano da criação dos Hospitais Civis de Lisboa e da extinção do cargo de enfermeiro-mor;

Em 1913, a nova primeira figura do hospital passa a chamar-se director.

Em 1927, em plena ditadura militar, o cargo de enfermeiro-mor é restabelecido e manter-se-á durante o Estado Novo (Graça, 1996).

O mesmo Capítulo III do Regimento do HRTS define a área de influência do estabelecimento, o qual devia cobrir a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".

Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo terror da peste.


4.2. O Almoxarife

O almoxarife - que devia ser "homem de bem, e de fiança, e bemcriado" (Capº VIII, pp. 57 e ss.) estava encarregue fundamentalmente dos seguintes funções:

  • Contabilidade e tesouraria (cobrança de receitas, em dinheiro e em géneros, pagamento de despesas, incluindo os vencimentos e salários, ou seja as "tenças, e mantimentos dos Officaes e Capellaes, e mercieiros e todas as outras pessoas q no dito Esprital servirem", p. 58), no que era auxiliado por um escrivão;
  • Aprovisionamento do hospital, ou seja, o "carrego de (...) comprar todas aquelas couzas q se houveremm de comprar por grosso, e em quantidade".


O regulamento vai ao pormenor de estipular que o almoxarife "não faça despesa de nenhuma couza grande nem pequena, salvo por assinados (...) e mandados do Provedor" e na presença do "Escrivãoq temos ordenado da receita e despeza do dito Almoxarife" (p. 58), "sob pena de perdimento do Officio e mais qualquer outra q for nossa merce" (p. 57).

Este escrivão seria já um precursor do moderno contabilista. Competia-lhe fazer a escrituração de três livros diferentes:

  • "Terá livro bem decracrado de todas as rendas, bens propriedades, e fazenda qualquer outra" do hospital bem como o nome daqueles "a quem sam aforadas, e emprazadas", etc. (Capº VIII, p. 61);
  • Terá ainda um livro da despesa diária;
  • Bem como um livro de registo anual de "todolos meninos Engeitados" (p. 62).

Esta figura é distinta do outro escrivão (tabelião ou protonotário) a que se refere o Capº I, "que ha de haver (...) dante o Provedor do dito Esprital". Não era residente no hospital e nem sequer tinha direito a remuneração:

"Este não hade haver mantimento algum pelo Proveito do seu Officio, hade escrever em todolos feitos q se tratarem perante o Provedor, fara as Escrituras demprazamentos das propriedades e todo o mais q a isto pertencer, segundo q agora já o faz" (p. 20).

4.3. O Hospitaleiro e o Vedor

A minúcia do regulamento é de tal ordem nem sequer deixou de fora as funções de categorias de pessoal que corresponderiam hoje ao agrupamento do pessoal operário e auxiliar dos nossos estabelecimentos hospitalares, tais como:

  •  o despenseiro (Capº VI), 
  • a costureira ( ou alfayata ) (Capº XIII) 
  • e a lavadeira (Capº XIV).

Ainda ao nível dos serviços de apoio, havia a figura do vedor (Capº V, p. 51) a quem cabia "a principal parte do Governo do dito Espitral, e da boa Ordem e Conservação das couzas delle". As suas funções seriam, pois, de intendência e supervisão dos serviços hoteleiros (e, em particular, da alimentação dos doentes e do pessoal).

Parte das tradicionais funções da gestão hoteleira também eram da competência do hospitaleiro (ou espritaleiro) (Capº XI) e da hospitaleira (ou espritaleira) (Capº XV).

Essas funções eram basicamente as de administrar o serviço de rouparia e de limpeza, mas também de supervisão e avaliação do serviço de enfermagem:

"O dito Espritaleiro he obrigado a prover muy a meude e ao menos duas vezes no dia se os Enfermeiros cumprem o q por bem de seus Officios devem, e se fazem de dia, e de noute as piedades, e serviço dos doentes, q por bem de seus Regimentos sam obrigados, segundo a necessidade, q a cada hum tever, e na quello q vir, q não cumprem segundo sua obrigaçam os amoestará, q se emmendem, e fará saber ao Provedor o que não fizerem bem feito, ou de todo não cumprirem para nisso prover, e fazer como o cumpram, e fação o q nisso são obrigados" (pp. 78-79).

O hospitaleiro tinha ainda o "carrego da Caza dos pedintes, andantes, q se hamde recolher na Caza q para elles he ordenada no dito Esprital" (p. 80). 

É provável que houvesse conflito de papéis entre o hospitaleiro e o vedor: em todo o caso o primeiro tinha originalmente um estatuto remuneratório superior ao segundo.


4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

Quanto aos praticantes da arte de curar, ou prestdaores de cuidados de saúde (como diríamos hoje), o regulamento do hospital previa originalmente as seguintes categorias:

  • Um físico
  • Dois cirurgiões
  • Dois ajudantes de cirurgião
  • Um boticário
  • Três ajudantes de boticário
  • Doze enfermeiros (dos quais três com a categoria de enfermeiro-mor)
  • Um barbeiro-sangrador
  • Uma cristaleira (mulher encarregue de ministrar clisteres)

Todos eles deveriam residir no Hospital, à exceção de um dos cirurgiões e do barbeiro-sangrador.

Ao físico cabia fazer a "visitaçãode todos os doentes (...), duas vezes no dia (...), pela menhã em sahindo o sol, e à tarde até às duas" (Capº IV, p.47), tanto nas enfermarias como nas "outras casas". 

Nesta visita diária, era acompanhado pelo provedor, além do vedor e do hospitaleiro, pelo enfermeiro-mor da respectiva enfermaria e, ainda, pelo cirurgião e pelo boticário (ou seu ajudante).

Este capítulo é notável pela concepção que já havia na época do que deveria ser a organização do trabalho em equipa no hospital. Na prática, não sabemos como as coisas funcionavam. Em todo o caso, na visita diária aos doentes internados, o enfermeiro-mor (categoria equivalente ao actual enfermeiro-chefe) levava uma "taboa" donde constava o nome e o número da cama dos enfermos:

"Feita a vezitação dos pulsos dos doentes" e vistas "as agoas [ urina ] de cada hum q lhe serão dadas pelos Enfermeiros pequenos" (prática a que se resumia, então, e no essencial, o diagnóstico clínico), o físico "bem considerando (...) sobre o remedio de cada hum paciente, ordenará as mezinhas de cada um, segundo q lhe melhor parecer, e as mandará compoer, e ordenar ao Boticário ".

Este último, por sua vez, "traerá consigo huma imenta comprida da folha de papel de marca grande encarnada" na qual o Físico (ou o boticario, se "for melhor Escrivão, e mais despachado" do que aquele) "assentará as receptas e mezinhas, q ordenar para cada hum doente em titulo apartado", isto é, "purgas apartadas por sy e de todas outras qualidades de mezinhas, debaxo doutro titutlo", por "serem tam desvariadas (umas) das outras". De qualquer modo, o físico devia "assinar (...) na dita imenta as ditas receptas" (p. 48).

O enfermeiro-mor, por sua vez, registava na respectiva "tavoa (...) debaixo do titulo" de cada doente, a dieta prescrita pelo físico, "para por aly se mandar fazer o comer na Cozinha pelo Veador". Esta prescrição era igualmente assinada pelo físico ou pelo cirurgião.

O físico tinha ainda que fazer o que hoje chamaríamos o serviço de banco de urgência (ou, talvez melhor, de consulta externa), nomeadamente "ver todolos enfermos q á porta do Esprital vierem, e de aly á porta lhe ver suas agoas, e tomar seus pulsos, e dar todo conselho, e remedio, q para suas curas lhe parecer compridouro". Devia ainda "vezitar os doentes das Boubas em todo aquello, q á Fizica tocar, e remedialos ha, e curará o melhor q poder na casa apartada, q para oz ditos doentez hordenamos no dito Esprital" (p.49).

Notável é também, para a época, a preocupação do legislador com a eficiente utilização dos recursos, e nomeadamente dos medicamentos, obrigando o físico a "sempre prover a imenta das receptas das mezinhas para saber se gastaram todas, por q ás vezes se manda fazer huma mezinha, e o paciente a não toma". Ou seja, já na época se punha o problema da aderência à terapêutica e da sobremedicação. Ora, para que tal não aconteça, o médico "proverá sempre as ditas receptas, e aproveitará as mezinhas o melhor q se possa fazer e falloha de maneira q se não possa fazer couza indevida e seja tudo aproveitado como devem " (p. 49).

O regimento do físico aplicava-se igualmente ao cirurgião (Capº XII). No hospital estava prevista existência de dois celorgiaes, um dos quais residente e com funções de ensino:

Que "o dito Celorgiam q hade viver dentro no Esprital leya cada dia huma lição aos seus dous mossos q hade ter, e q hamde ser pagos das rendas do Esprital, para aprenderem theorica, e pratica , e poderam ficar ensinados para o serviço do dito Esprital" (p. 83). Esta disposição prefigura já a criação da primeira escola de cirurgia do país e do internato complementar de cirurgia.

Os dois cirurgiões eram, tal como o físico, obrigados a visitar duas vezes ao dia "todos os enfermos (...) q de Cilurgia ouverem de ser curados" (p. 83).

O enfermeiro-mor (Capº X), que chefiava cada uma das enfermarias, tinha "cuidado principal da cura, e da vizitação dos doentes", devendo ser "homem caridoso, e de boa condição, e sem escândalo". Na época, e durante muito tempo, os enfermeiros eram recrutados entre o pessoal religioso, nomeadamente das ordens hospitaleiras.

Os enfermeiros tinham o "carrego de todo o serviço dos doentes" (que deviam servir "com toda caridade , e amor q devem por Deoz, e por os proximos"), incluindo a higiene pessoal do doente, a muda das camas, a limpeza das enfermarias e dos "ourinoes". Esta última (duas vezes por semana no verão e uma por semana, no inverno) era sobretudo uma tarefa dos seus ajudantes (ditos enfermeiros pequenos ), bem como dos escravos (que, trazidos de África, chegaram a constituir 10% da população de Lisboa da época).

Nesta altura, já existia (ou estava previsto) o trabalho nocturno e por turnos em enfermagem, tal como se depreende deste capítulo: "Item sam obrigados os ditos Enfermeiros mayores, e asy os pequenos (...) de Vellarem todas as noutes agyros todos os Enfermos de suas Enfermarias" (p. 71).

Além disso, retirar, amortalhar e enterrar os mortos com discrição e dignidade era uma responsabilidade da enfermagem. 

Assim, em caso de falecimento de algum doente, os enfermeiros "tiraloham do leito onde gouver pelo corredor q está detraz dos leitos por q os outros doentes os não possam ver, nem recebam com isso torvaçam , e levarão o tal finado á Igreja" e dali para o cemitério, depois de prestado o serviço fúnebre religioso (pp. 72-73).

A administração aos doentes das "purgas, lamedores, unções" e demais mezinhas, prescritas pelo médico (a que se resumia, no essencial, a panóplia terapêutica da época), também era tarefa dos enfermeiros. 

Tinham, além disso, um armário onde guardavam "alguns repairos convem a saber dasucar rosado, e agoas de cheiro, e outros cordiaes, e asy cheiros para os darem aos doentes de noute, e de dia quando lhe parecer necessario".

O fornecimento desses produtos ("couzas do repairo dos doentes") era decidido pelo provedor e pelo físico, de acordo com o que era de "mais proveito para os doentes, segundo as suas paixões, e Enfermidades" (p. 75).

Competia ainda ao enfermeiro estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937. 21-22).

Por fim, era esperado que o enfermeiro cumprisse as suas tarefas, não apenas com "muy grande cuidado", como também "com toda boa vontade, e mansidam, e sem escandalo dos doentes, e com toda a caridade, e consolando-os em suas paixões, e muy ameude lhe lembrando, q se encomendem a Nosso Senhor e a nossa Senhora" (p. 76).

Pelo perfil exigido a alguns dos oficiaes do esprital, presume-se que, pelo menos, o hospitaleiro, a hospitaleira, os enfermeiros e as enfermeiras fossem originariamente recrutados entre o pessoal das ordens religiosas. O restante pessoal seria laico.

Noutros estabelecimentos hospitalares de menor dimensão e importância, o número de oficiais (grandes e pequenos) era mais reduzido (caso de Coimbra, Porto, etc.)

Na cidade de Coimbra, e antes da fundação do primeiro hospital geral, em 22 de Outubro de 1508, na sequência da política de centralização de D. Manuel I, terão existido pelo menos 17 pequenos estabelecimentos assistenciais (na maior parte, hospícios e albergarias), segundo a pesquisa documental feita por Ferrão (199?). Coimbra era então uma cidade que, após a reconquista cristã, em 1064, se irá desenvolver à sombra do Mosteiro de Santa Cruz (fundado em 1130) e, mais tarde, da Universidade (que se instala definitivamente nas margens do Mondego em 1531)

O Hospital da Conceição e da Convalescença, em Coimbra, que resultou da fusão dos demais estabelecimentos assistenciais até então existentes, com excepção do Hospital e da Albergaria de Milreus e da Gafaria de S. Lázaro, situava-se na Praça Velha. Com portal virado para poente, sobrepujando uma varanda de parapeito, possuía três naves. Mais tarde, começou a ser conhecido por Hospital da Praça (Ferrão, 199?, p. 73).

De menor dimensão do que o HRTS, regia-se por um regulamento semelhante, embora as necessárias adaptações. Dirigido por um provedor, de nomeação régia, o hospital de Coimbra tinha também menor número de oficiais do que o de Lisboa (Ferrão, 199?):

  • O hospitaleiro exercia as funções inerentes à enfermagem, além de ter a seu cargo a despensa e a tesouraria;
  • Ao escrivão competia a contabilidade hospitalar e a fiscalização património;
  • Quanto ao capelão, além da assistência religiosa, tinha também a seu cargo o registo dos doentes.

"O tradicional arcão ferrageado, onde se arrecadavam os dinheiros da instituição, possuía três chaves das quais, uma, estava nas mãos do Provedor e as restantes, uma nas mãos do Hospitaleiro e a outra nas do Escrivão" (Ferrão, 199?74).

O hospital tinha, pelo menos, um físico que, durante o dia, devia visitar os doentes, pelo menos duas vezes. O recurso ao barbeiro-sangrador e ao cirurgião era feito de acordo com as necessidades. Também não havia botica própria.

Em 1548, por provisão régia de 24 de Junho, a administração do hospital geral de Coimbra é confiada aos cónegos seculares de S. João Evangelista (ou Lóios, como eram popularmente conhecidos). O seu provedor passou então a ser recrutado entre gente desta congregação. Vinte e cinco anos depois da instalação definitiva da Universidade em Coimbra, o Hospital da Conceição e da Convalescença passa a funcionar como hospital escolar.

Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ainda em 1830 existia a figura da cristaleira, no Hospital de São José, e durante muito tempo foi um ofício mecânico exercido cumulativamente com o de parteira. No Séc. XVIII uma cristaleira chegava a fazer 400 clisteres por mês!5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar

As diferenças de estatuto do pessoal hospitalar eram já visíveis ao nível remuneratório (vd. Quadro I, em anexo):

  • No ano de abertura do HRTS, em 1504, o leque remuneratório, em dinheiro, seria originalmente de 15 para 1;
  • A remuneração média anual rondaria os de 3$800 réis (Máximo 30 mil, mínimo 2 mil);
  • E o total dos encargos com os seus mais de cinquenta oficiais grandes e pequenos ultrapassava os 250$000 por ano, não contando com outros custos com o pessoal que incluíam formas de pagamento indirecto, em géneros (alojamento, alimentação e até vestuário).

De acordo com a estrutura da despesa do hospital europeu no Antigo Regime, os encargos com pessoal do HRTS deveriam representar cerca de 15 por cento do total.

O orçamento global deste hospital deveria, pois, ser superior a 1600$000 réis; e mais de 60% das receitas seriam muito provavelmente consagradas a custear os encargos com a alimentação tanto dos doentes como do pessoal. Sabemos que, com o tempo, as despesas aumentaram exponencialmente, e o nº oficiais grandes e pequenos terá atingido as 8 dezenas em meados do séc. XVIII (Alberto et al, 2021).

De qualquer modo, no HRTS (que era originalmente sustentado pela fortuna pessoal do rei, distinta do erário público), havia dois tipos de remuneração em espécie:

  • A tença, anual, para os oficiais grandes e pequenos (pessoal dirigente, capelania, prestadores de cuidados, pessoal de apoio);
  • A soldada ou salário, para certas categorias do pessoal menor, afectas às actividades de apoio, como o atafoneiro, a amassadeira e a forneira, que eram pagos à jorna ou ao dia, não devendo por isso pertencer ao quadro de pessoal (como diríamos hoje) do HRTS;
  • Refira-se ainda a existência de mão de obra-escrava, de origem africana, que exercia funções de ajudante de lavadeira e que tinham apenas direito a pagamento em géneros (alimentação, alojamento e vestuário).

O provedor (o equivalente hoje ao presidente do conselho de administração do hospital) ganhava dez vezes mais (30$000 réis) do que o barbeiro-sangrador—o único, juntamente com um dos cirurgiões, que não tinha, de resto, direito nem a alojamento nem a alimentação, sendo os seus serviços requisitados sempre que necessários (tal como os serviços do atafoneiro ou moleiro, da amassadeira e da forneira, os quais eram pagos à jorna)

O físico, por sua vez, ganhava três vezes mais (18$000 réis) do que um enfermeiro-mor (responsável por uma enfermaria de homens), e o boticário 1,25 vezes mais (15$000 réis) do que o cirurgião residente. Este último, que também tinha funções de ensino, tinha uma tença seis vezes superior (12$000) ao do seu ajudante (o equivalente hoje a um interno de cirurgia).

Além do provedor, o restante pessoal dirigente era letrado, ou pelo menos tinha que saber ler e escrever, auferindo o dobro (12$000 réis, no caso do almoxarife, do escrivão e do hospitaleiro) da remuneração dos oficiais menores como o cozinheiro e o despenseiro, e o triplo ou até mesmo o quádruplo das demais categorias de pessoal subalterno (por ex., porteiro, lavadeira, costureira).

O almoxarife, o escrivão, o hospitaleiro e até mesmo o vedor (que auferia apenas 8$000 réis por ano, além de alojamento e alimentação, como os restantes oficiais) teriam hoje o estatuto remuneratório do director de serviços, do chefe de divisão ou do chefe de repartição na função pública.

No que respeita ao pessoal médico e paramédico, o físico estava, pois, acima do boticário, e este do cirurgião, em termos de estatuto remuneratório. Abaixo do meio da tabela, vinha o enfermeiro-mor que ganhava um pouco menos (6$000 réis) que o primeiro capelão (6$300 réis) e o dobro da cristaleira (que ministrava os clisteres ou purgas), da enfermeira (responsável por uma enfermaria de mulheres), do ajudante de boticário e do barbeiro-sangrador. Estranha-se, por outro lado, a não existência de um cristaleiro.

O regimento também é omisso quanto ao montante da remuneração da hospitaleira. Em todo o caso, o estatuto remuneratório das mulheres era claramente inferior ao dos homens, se compararmos quatro ocupações femininas (enfermeira, cristaleira, costureira e lavadeira) com outras tantas ocupações masculinas de qualificação mais ou menos equivalente (enfermeiro, barbeiro-sangrador, despenseiro, cozinheiro).

Estas diferenças de estatuto remuneratório reflectiam, antes de mais, a hierarquização social (e sexual) dos titulares de cargos e dos ofícios, com destaque para o provedor, que era recrutado de entre gente da corte ou do alto clero, e para o físico, que muito provavelmente seria o único a deter um título universitário (bacharel ou licenciado) e que, além disso, devia gozar, também ele, da protecção do próprio rei ou, pelo menos, do seu físico-mor.


_______________

Referências Bibliográficas (a rever)

BASTO, A. M. (1934) - História da Misericórdia do Porto, Vol. I. Porto: Santa Casa da Misericórdia do Porto.

CORREIA, F.S. (1981) - Misericórdias. In: Dicionário de História..., op. cit.. 1981. Vol. IV, 1981. 312-316.

CORREIA, F.S. (1984) - Prefácio. In: Regimento..., op. cit. 1984

Dicionário de História de Portugal (Dir. de J. Serrão) (1981). Porto: Figueirinhas.

Dicionário da História de Lisboa (Dir. de Francisco Santana e Eduardo Sucena). Lisboa: 1994.

FERRÃO, A. S. S. (199?) - Os hospitais de Coimbra. Gestão Hospitalar. 199? 73-79.

FERREIRA, M. E. C. (1981) - Capital. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 462-465.

FERREIRA, F.A. G. (1990) - História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

GRAÇA, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa (Textos, T 1238 a T 1242).

LEMOS, M. (1991) - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, 2 Volumes. Lisboa: D. Quixote; Ordem dos Médicos (1ª ed., 1899).

NETO, M. L. A. M. C (1981) - Assistência Pública. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 234-236.

PINA, L. (1938) - Aspectos da vida médica portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Casa Holandesa.

Regimento do Hospital de Todos-os-Santos (1984). Lisboa: Hospitais Civis de Lisboa (facsimile da 1ª edição, 1946).

 
(Importante, para a revisão que estou a fazer, o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia. Estamos ainda a lê-lo.)


_______________

(a) Fonte / Source: Versão adaptada e actualizada de: GRAÇA, L. (1994) - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994) 26-31.

Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional

 

Categoria (ou 'título')Remuneração

anual em espécie

Remune-

ração em géneros

Perrfil psicoprofissional (Requisitos)
  UnidadeTotal  
Pessoal dirigente     
Provedor130$00030$000A"Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo"
Almoxarife112$00012$000A"Homem de bem, e de fiança, e bemcriado"
Escrivão112$00012$000A 
Protonotário1??  
Hospitaleiro112$00012$000A+B"Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança"
Hospitaleira1??A+B"Muito diligente, e destra no serviço"
Vedor18$0008$000A+B"Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber"

Sub-total

7 74$000  
Pessoal de capelania     
1º Capelão16$3006$300A+B 
2º Capelão16$0006$000A+B 
Ajudante22$0004$000A+B 

Sub-total

4 16$300  

Pessoal    médico e paramédico

     
Físico118$00018$000A 
Cirurgião interno112$00012$000A 
Cirurgião externo16$0006$000  
Ajudante  de cirurgião22$0004$000A+B 
Boticário

1

15$00015$000A"Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado"
Ajudante de boticário33$0009$000A+B 
Enfermeiro- mor  (ou chefe)46$00024$000A+B"Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo"
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar)72$00014$000A+B 
Enfermeira-mor   (ou chefe)13$0003$000A+B 
Enfermeira  auxiliar12$0002$000A+B 
Barbeiro-sangrador13$0003$000  
Cristaleira13$0003$000A+B 

Total

25 113$000  
Pessoal operário e auxiliar     
Despenseiro16$0006$000A+B 
Cozinheiro16$0006$000A+B 
Ajudante de cozinheiro33$0009$000A+B 
Porteiro14$0004$000A+B 
Costureira14$0004$000A+B 
Lavadeira14$0004$000A+B 
Ajudante de lavadeira1(a)(a)A+B+C 
Atafoneiro1(b)(b)  
Amassadeira1(b)(b)  
Forneira1(b)(b)  
Outros (eventuais)43$00012$000A+B 

Sub-total

16 45$000  
Total geral52 248$300  

Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário

 

Quadro 2 - Funções do provedor do HRTS

Funções

Descrição

Gestão financeira

Gerir as receitas (rendas, doações, exploraçãodirecta) e as despesas (tenças, alimentação, mesinhas)

Gestão patrimonial

Arrendar, aforar e emprazar o património

Reparar e conservar os equipamentos e instalações

Controlo contabilístico

Autorizar, assinar e fiscalizar todos pedidos de despesa, e nomeadamente os do almoxarife

Conferir e assinar semanalmente os respectivos livros

Poder hierárquico e disciplinar

Exercer o poder hierárquico ("ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos")

Admitir, avaliar, suspender e substituir os funcionários

Manter a ordem e a disciplina, bem como controlar a assiduidade do pessoal

Triagem dos doentes

Assegurar que seja feita a triagem dos doentes, de modo a que no hospital não sejam admitidos doentes incuráveis, de acordo com o exame médico

Garantia de acessibilidade

Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não possam deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios

Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas

Qualidade dos cuidados

Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes ("de modo a que sejam muy curados, e providos em suas necessidades, e consolados com boas palavras ")

Participar na visita diária aos doentes

Prevenção dos riscos

Prevenir as infecções hospitalares, através nomeadamente da permanente limpeza e asseio das enfermarias

Eficiência

Assegurar a eficiente utilização dos recursos (incluindo os medicamentos e outros materiais consumíveis)

Fonte: Adapt. de Regimento do HRTS (1984)



____________

domingo, 16 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24226: (In)citações (237): "Reflexão sobre a pobreza" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO SOBRE A POBREZA

adão cruz

Formar e educar pressupõe que as pessoas estão em primeiro lugar e não podem ser sacrificadas em nome de uma qualquer estruturação produtiva. É por isso que as relações capitalistas são incapazes, pela sua natureza intrínseca, de promover o conjunto de direitos fundamentais dos seres humanos, a começar pelo direito à vida digna, à educação livre, aos cuidados de saúde, à habitação, ao emprego, à cultura, ao lazer e à aposentação. Não se podem criar verdadeiras escolas e seguir processos de formação de qualidade dentro de um sistema social excludente, desigual e antidemocrático.

A pobreza, ou o holocausto da pobreza como alguém lhe chamou, é a maior e mais cruel das violências, a mais descarnada evidência do fracasso social, o resultado exponencial de todas as ganâncias. Seria o flagelo da consciência dos ricos, se esta não estivesse dominada pela iniquidade económica e pela insensibilidade ao sofrimento e ao drama de cada um. Não só a pobreza do sul do planeta, do terceiro mundo, mas também a pobreza dos excluídos do primeiro mundo, onde o abismo entre pobreza e riqueza é cada vez maior por força de um sistema altamente injusto, corrupto, explorador dos fracos, que não se coíbe de matar, massacrar e praticar genocídios, para aumentar os superlucros e as mais-valias que já não sabe como utilizar. Degradam-se as condições de vida porque as necessidades humanas são geridas pela política das sobras. Destrói-se a natureza pela proliferação de indústrias que nada produzem além de lixo. Envenenam-se as relações entre pessoas e países pela luta de interesses e pela invenção das guerras. Combate-se a cultura em todas as frentes. Impõe-se uma pretensa e soberana eficácia de todas as panaceias que originam fabulosos lucros, através da intoxicação comunicacional.

Toda esta religião do mercado, todos estes rituais dos sacerdotes do poder espalhados pelos cultos reverenciais do dinheiro são consagrados em cimeiras, onde um profundo défice de moralidade define a repartição do que ainda resta para roubar. Toda esta lógica neoliberalizante, tão cara ao primarismo de tantos chefes de estado e seus correligionários, insensível à exclusão social e à generalização da pobreza, tende para a anulação do homem e para a promoção de uma cultura de gestão, cuja meta não é outra senão a mecanização de uma sociedade em que os homens não são mais do que peças.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24195: (In)citações (236): "Reflexão sobre a Ciência" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

Hieronymus Bosch 053 detail

Detail from "The Extraction of the Stone of Madness", a painting by Hieronymus Bosch depicting trepanation (c.1488–1516) / Uma representação da trepanação: pormenor de "A Extração da Pedra da Loucura", quadro de Jerónimo Boch (c. 1488-1516), com a representação da trepanação. Coleção do Museu do Prado. Public domain / domínio público, Wikimedia Commons


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por razões familiares, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos se revele de algum interesse e proveito. Comentários e sugestões serão bem vindos".





4. Hospital, Pobreza e Caridade 



4.4. "Quando o pobre come frango, um dos dois está doente"

O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente um locus religiosus do ponto de vista eclesiástico e uma pia causa do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc. (Rosen, 1963; Steudler, 1974; Graça, 1996).

Também na estrutura do financiamento do hospital medieval era patente a sua origem como pia causa e a natureza caritativa da sua missão:

  • De facto, as suas receitas provinham exclusivamente da caridade dos ricos e poderosos;
  • O seu património original resultava, muitas vezes, do remanescente de uma herança, doada em vida ou à hora da morte, por um cristão, leigo ou religioso, que se sentia em dívida para com Deus;
  • O essencial das receitas do hospital, quer em espécie quer em géneros, provinha do seu património fundiário (alugueres de prédios urbanos, foros e rendas de prédios rústicos, exploração agrícola directa, etc.);
  • Quanto aos custos de hospitalização, eram sobretudo representados pelas despesas com a alimentação (mais de 50%);
  • Os encargos com o pessoal não ultrapassavam os 15%, enquanto as despesas com os produtos farmacêuticos não iam além dos 3% (Steudler, 1974; Rochaix, 1996; Graça, 1996).

Alguns dados estatísticos sobre a assistência hospitalar de há 150 anos são altamente reveladores da permanência, durante séculos, de certas características estruturais do hospital cristão medieval. De acordo com o Relatório Wateville (1851, cit. por Rochaix, 1966), havia em França, em 1847, no final da Restauração:

  • 1270 estabelecimentos, dos quais 337 eram classificados como hospitais, 199 como hospícios e 734 como hospitais-hospícios;
  • O número de camas elevava-se a mais de 118 mil, sendo 14% reservadas aos militares e pouco mais de 4% aos doentes que tinham possibilidades de pagar os custos de hospitalização; a grande maioria das camas destinavam-se, pois, a doentes indigentes (34,3%) ou idosos (47,4%);
  • O número de entradas nos estabelecimentos hospitalares foi de 486 mil, numa população estimada em 36 milhões (em 1850, segundo Duby, 1995. 651), o que daria então 13.5 internamentos por cada mil habitantes;
  • Em contrapartida, a duração média de internamento hospitalar era alta, embora variando conforme o género e a idade: 48 dias para os homens; 64 para as mulheres; e 70 no caso das crianças.

Não obstante o furacão revolucionário que varreu a França entre 1789 e 1799, a estrutura orçamental do hospital não tinha mudado muito em 1847, quando comparada com a do final do Ancién Régime.

Do lado das despesas (Quadro XII, em anexo), a alimentação continuava a constituir a principal rubrica e o grosso da fatia dos custos de internamento (56%). O pão (43%), a carne (25%), o vinho e outras bebidas (25%) praticamente esgotavam esta rubrica.

Em segundo lugar, mas apenas com 14% do total, surgiam os encargos com o pessoal. Por categorias destacava-se o pessoal administrativo, seguramente mais bem pago que as religiosas que constituíam, só por si, quase metade dos efectivos. A fraca proporção dos ordenados dos médicos e cirurgiões (menos de 1.9% do total geral dos custos de hospitalização) sugere que o seu número e a sua importância, no contexto hospitalar de há 150 anos atrás, eram ainda muito reduzidos.

Ainda em relação aos custos de pessoal, há que ter em conta a persistência da tradição do pagamento em géneros, particularmente sob a forma de fornecimento gratuito de alimentação e alojamento ao pessoal. Por não terem uma expressão monetária, estes encargos não eram contabilizados, aparecendo diluídos noutras rubricas. 

O risco de viés estatístico é, pois, óbvio, pelo que em rigor teríamos que ter em conta uma percentagem mais elevada de custos salariais (directos e indirectos), talvez da ordem dos 20% a 25%, como sugere Rochaix, para o período correspondente ao final do Ancien Régime (1996. 43).

Em suma, os custos de hospitalização por doente não chegavam a 82 francos franceses, dos quais 46 respeitavam à alimentação (Quadro XIII ). Só em pão gastava-se, em média, 20 francos por doente. Com a aquisição e a lavagem de roupa, mais 6 francos, enquanto o aquecimento ficava em 5 francos e meio e a iluminação em 1 franco. Estes valores dão-nos uma pálida ideia do que seria o terrível desconforto dos doentes naquela época.

Compare-se, por fim, o custo médio, por doente, do serviço religioso (0,7 francos) com a medicação (3,1 francos) e os honorários do pessoal médico (1,7 francos). 

No essencial, e independentemente de eventuais variações no custo por doente conforme o tipo de estabelecimento, estatuto do doente e região, o hospital no final da primeira metade do Séc. XIX em muito pouco se distinguia ainda do hospital da Idade Média, continuando a privilegiar a sua função de acolhimento de doentes pobres (que representavam mais de 4/5 da sua clientela).

Quadro XIII - Custo da hospitalização em França, por doente e por rubrica de despesa (1847)  

Unidade: Franco Francês  
 

Fonte: Adapt. de Rochaix (1996)


A associação do hospital com a prisão e, portanto, a sua natureza de instituição concentraccionária e totalitária, tem as suas raízes na dolorosa experiência da população europeia mais miserável e socialmente excluída (Quadro X, em anexo):

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital";
  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos".
  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"
  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Durante muito tempo, aquilo a que eufemisticamente se vai chamar no Séc. XIX a assistência pública, tem duas funções distintas:

  • Uma função médica e hospitalar (prestação de cuidados aos doentes pobres);
  • E uma função de controlo social de todas as formas de déviance e da exclusão (pestilência, loucura, pecado, deficiência, pobreza, marginalidade, criminalidade, vagabundagem, prostituição, orfandade, velhice, desemprego, mendicidade).
É o início da intervenção do Estado, conferindo ao hospital, a coberto da caridade, uma função claramente policial de controlo de grupos da população potencialmente perigosos. 

Nomeadamente em França, é criado, em 1656, por Luís XIV o  Hôpital Géneral,Hospital Geral, com o objectivo explícito de impedir, nas principais cidades, "a mendicidade e a vagabundagem como fontes de todas desordens" (Foucault, 1972. 75). Trata-se do grand renfermement, um "estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: a 3ª ordem da repressão" (61).

Á semelhança do Hôpital Géneral, os ingleses tinham criado as workhouses, no âmbito da famigerada Lei dos Pobres (promulgada em 19 de Dezembro de 1601, pela Rainha Isabel I). 

 O seu estatuto tinha sido definido por Carlos II em 1670 e no Séc. XIX eram conhecidas como as Bastilhas de Chadwick (!), numa alusão à conhecida fortaleza-prisão de Paris, por um lado, e ao papel (controverso) do arquitecto do moderno sanitarismo, E. Chadwick (1800-1890): A primeira de todas remontava ao ano de 1697 (Bristol).

Segundo o historiador polaco B. Geremek (no seu livro sugestivamente intitulado "A piedade e a forca: História da miséria e da caridade na Europa", 1995), "aquilo que se propunha o Hospital Geral, com a sua política de enclausuramento e de trabalho obrigatório, era pois a afirmação do ethos do trabalho: assegurar a todo o custo - pelo terror, pela ameaça e pela violência - o respeito geral de tal princípio. O espectáculo da repressão que a assistência social dos Tempos Modernos integra nos seus métodos de intervenção desempenha uma função ideológica precisa" (Geremek, 1995. 261).

A clientela hospitalar seria, pois, constituída por toda a espécie de excluídos sociais, nomeadamente no Ancien Régime, vivendo amontoados, em total promiscuidade, em estabelecimentos que primavam pela mais completa e absoluta ausência de condições de higiene e de segurança. 

Além disso, os incêndios, as inundações ou outras catástrofes eram frequentes: por ex., o nosso Hospital de Todos os Santos sofreu nada menos do que três grandes incêndios, entre 1504 e 1755 (Graça, 1994).


4.5. "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"


Além de um locus religiosus e de uma pia causa, o hospital até ao fim ao Ancien Régime continuara a ser um locus infectus, um lugar de infecção e de propagação de doenças. O universo hospitalar era concentracionário e a mortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal.

Não havia, por outro lado, nenhuma distinção entre o doente mental e o criminoso, sendo o louco tratado como um animal durante toda a Idade Média até praticamente ao Séc. XIX.: 

"Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro", diz o provérbio, já que "quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce" (Quadro X) (*).

A fundação da psiquiatria data de 1798 com a distinção que o francês Ph. Pinel (1745-1826) fará entre loucos e criminosos, na sequência do ideário da Revolução Francesa. O mesmo Pinel iria também dirigir a primeira escola psiquiátrica em França (Sournia, 1995. 228).

É na primeira metade do Séc. XIX que surge o manicómio, o precursor do moderno hospital psiquiátrico (entre nós, a criação do manicómio de Rilhafolhes data de 1848). 

Discípulo de Pinel, J. Esquirol (1772-1840) será o inspirador, em 1838, da lei francesa, considerada exemplar para a época, "que institui a protecção jurídica dos alienados, até aí submetidos com demasiada frequência a internamentos excessivos e a tratamentos desumanos" (Sournia, 1995. 277).

Também entre nós, com o triunfo das ideias liberais, surgem as primeiras denúncias da condição infra-humana em que viviam os doentes mentais ("doidos, lunáticos, alienados", como eram então rotulados).

De entre os médicos que se debruçam e se preocupam com esse problema, destaca-se o nome de Clemente Bizarro (1805-1860) que, em 1836, em sessão da Sociedade das Ciências Médicas, chama a atenção para "os insalubres, os pavorosos, e os acanhados recintos onde confusamente estão misturados e em contacto mais de duzentos alienados de manias tão opostas e que por isso exigem cuidados tão diversos" (cit. por Mira, 1947. 420).

Bizarro referia-se mais concretamente à Enfermaria de S. João de Deus do Hospital de S. José onde se amontavam sobretudo doentes do sexo feminino:

 "Doidas nuas e desgrenhadas, entregues a todos os seus desvarios, gritando e gesticulando, encerradas às vezes num cubículo escuro e infecto onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se; um local de todo apertadíssimo, com escassa luz, imprópria ventilação, e nele jazendo perto de 150 infelizes alienados com o diminuto número de três empregadas, que tantas são as destinadas ao seus serviço" (citado por Costa, 1986).

Em 1837, Bizarro pedia a criação de um hospício orientado especificamente para o acolhimento e tratamento de doentes mentais, o que veio a acontecer, dez anos mais tarde: de facto, graças ao legado de um benemérito, é criada em 14 de Novembro de 1848, o primeiro estabelecimento para alienados.


Alguns anos depois, o manicómio de Rilhafolhes alberga já mais de meio milhar de doentes; mais tarde, será seu director o médico Miguel Bombarda (1851-1910), o qual além de ampliar e modernizar o estebelecimento, lutou vigorosamente contra os métodos repressivos então ainda em uso (o "babeiro de cola", a "coleira", o "berço-prisão", o "colete de forças", etc.);

Em 1948, passou a chamar-se Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda.

Em 1883, entra em funcionamento o Hospital de Conde de Ferreira, pertencente à Misericórdia do Porto, e que foi construído com o remanescente da herança de J.F. Ferreira (1782-1866). Este último, depois de enriquecer no Brasil e em África, iria tornar-se um dos grandes filantropos do reinado de D. Maria II.

O Hosputal Conde de Ferreira, para o qual transitaram os doentes mentais, até então encerrados como animais nos porões do Hospital de Santo António, igualmente sob administração da Misericórdia do Porto, irá tornar-se a escola dos grandes "alienistas" do nosso Séc. XIX: A. M. Sena, Urbano Peixoto, Magalhães de Lemos e Júlio de Matos, entre outros (Mira, 1947).

É a época do desenvolvimento da neurologia e psiquiatria (ou melhor, da neuropsiquiatria), o qual decorre, em grande parte, dos progressos realizados em disciplinas fundamentais como a anatomia, a fisiologia e a patologia. As funções do cérebro e do sistema nervoso e o seu papel na saúde/doença começam a ser largamente objecto de investigação por homens como os franceses G. Duchenne (1806-1875), J. M. Charcot (1825-1893), J. Déjerine (1849-1917) e sua mulher, P. Marie (1853-1940) (uma das primeiras mulheres médicas), J. Babinsky (1857-1922), e o inglês J. H.Jackson (1835-1911) (Rosen, 1990; Sournia, 1995).

A fundação da neuropsiquiatria é atribuída ao francês J. M. Charcot, com a publicação em 1873 do seu Curso sobre as doenças do sistema nervoso. Posteriormente, o alemão E. Kraeppelin (1856-1926) vai classificar as doenças mentais.

Voltando à França e ao fim do Ancien Régime, não admira a grande desconfiança (se não mesmo a suspeição e o repúdio) com que a instituição hospitalar será tratada no período revolucionário, já que ela é sinónimo da caridade mais abjecta. Como dirá Barère, no relatório feito em nome do Comité de Salut Publique:

"Quanto mais esmolas, mais hospitais. Tal é o objectivo para o qual a Convenção deve caminhar sem cessar, porque estas duas palavras devem ser riscadas do vocabulário republicano " (cit. por Rochaix, 1995. 59).

Em contrapartida, em Portugal será o Estado Novo, em pleno Séc. XX, a recuperar a ideologia do acto misericordioso e a sobrepor a caridade individual à solidariedade social (Caixa 1, em anexo).






Caixa 1 - A Caridade

Perto da minha casa, mora, sòzinho um velho doente, que todo o dia treme e pouco fala.

Como não tem família, são os vizinhos   que o trazem ao colo e o sentam à porta  nos dias de sol.

Chora sem lhe fazerem mal e sem dizer porquê.

Gosto muito deste pobrezinho. Quando lhe levo alguma coisa que o consola, vou tão depressa que nem sinto os pés a tocar o chão.

Ando sempre contente nos dias em que posso visitá-lo e dar-lhe esmola. Não há alegria como a de fazer bem.

Nosso Senhor ensinou que a maior de todas as virtudes é a caridade.

Fonte: O Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 62


(Bibliografia a apresentar no final da série)

____________