1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2012:
Queridos amigos,
À semelhança da antologia que organizara para o uso dos quadros do PAIGC, na Guiné-Bissau, Mário Pinto de Andrade organizou nos mesmos moldes uma antologia que veio a ser publicada em França pela Maspero. Reúne, na ótica de um ideólogo que conviveu muitíssimo com Cabral, o que há de mais saliente para conhecer o ideólogo, o revolucionário, o organizador, o diplomata, o chefe de partido.
Mário de Andrade procurou fixar o pensamento luminoso, a linguagem acessível, a extraordinária capacidade pedagógica, o pensamento independente dentro de referentes tipicamente marxistas mas com uma grande abertura que chocava outros pensadores congéneres daquele tempo.
Um abraço do
Mário
Amílcar Cabral, os textos fundamentais
Beja Santos
Em 1980, a conceituada Librairie François Maspero publicava, com a coordenação de Mário Pinto de Andrade, uma seleção de textos de Cabral. Mário de Andrade, vale a pena insistir, foi um dos mais importantes ideólogos angolanos, teve larga convivência com Cabral, admiravam-se reciprocamente, a sua biografia do líder do PAIGC ainda hoje é obra de incontestável importância e esta seleção de textos mostra inequivocamente como Andrade conhecia as comunicações de maior peso de Andrade. Como se passa a referir.
O primeiro texto desta antologia intitula-se "Relatório geral sobre a luta de libertação nacional" apresentada na Conferência das organizações nacionalistas da Guiné e das ilhas de Cabo Verde, que se realizou em Dakar, em Julho de 1961. Trata-se da primeira dissertação de Cabral sobre o colonialismo, é um documento pleno de vivacidade, uma comunicação que pretende abraçar os diferentes manifestos colonialistas, com destaque para Angola. Refere a conferência das organizações nacionalistas das colónias portuguesas (realizada em Casablanca em Abril de 1961), refere a situação económica e social da Guiné e Cabo Verde e considera que a luta anticolonial está ao nível dos interesses fundamentais dos povos africanos e da paz mundial.
O segundo texto é de uma importância primordial, intitula-se “Os princípios do partido e a prática política”, é a coletânea das suas comunicações no seminário de quadros que se realizou em Conacri, em 1969. Temos aqui o registo do pensamento político de Cabral, a excelência da sua pedagogia, a visão do revolucionário. Aborda a unidade e a luta, socorrendo-se de imagens comuns, mostra-se conhecedor da vida guineense e da realidade cabo-verdiana. Depois centra-se na realidade, e fala da economia, da sociedade e da cultura, chama a atenção para o peso do animismo e apela para que os preconceitos e as crenças não sejam proibidos, que haja um diálogo para despertar nos camaradas ideias novas, instrução e compreensão da realidade. Quanto à realidade política, anuncia que a vida partidária não é para dar lugar a ministros e a gente que queira cuidar dos seus interesses, o PAIGC deve estar ao serviço de toda a população, a sua direção política, os seus quadros militares deverão ser plebiscitados pelo povo, só se deve premiar a responsabilidade e a competência e refere concretamente o papel da mulher, não ilude a aspereza do tempo que a luta armada reserva aos combatentes, haverá ainda muitos sacrifícios pela frente. E passa para a natureza da luta do povo, pelo povo e para o povo, para esclarecer contra quem se está a lutar e quais os objetivos da luta; aqui a sua linguagem revela a sua preparação marxista, luta-se contra o capitalismo e o imperialismo graças a forças materiais ou espirituais que configuram a vontade popular para atingir a liberdade, a independência e a justiça. Como se estivesse a estabelecer as bases de uma política externa, insiste na natureza da independência de pensamento do PAIGC face a todos os seus aliados, refere a solidariedade com os povos em luta e agradece o apoio que tem sido concedido pela Guiné-Conacri.
O trabalho partidário é pormenorizadamente abordado e explica a democracia revolucionária, a exigência de combater todo e qualquer oportunismo, exaltando a sinceridade nos debates como obrigatória. Documenta as tarefas do trabalho político e os perigos do laxismo, em que consiste a segurança, a importância das milícias populares e como estas devem estar enquadradas pelas forças armadas. Chamo a atenção para a economia das zonas libertadas e para a importância do bom funcionamento dos armazéns do povo.
“A arma da teoria” é o título da comunicação que ele proferiu em Havana no contexto da conferência de solidariedade dos povos de África, Ásia e América Latina, em Janeiro de 1966. Todos os investigadores do pensamento de Cabral consideram esta intervenção como o seu exercício ideológico mais original, mais visionário.
Surpreendo os ortodoxos, reaprecia o conselho de luta de classes, reavalia o modo de produção para ilustrar que a situação colonial é bastante distinta da luta conduzida pelo proletariado. A luta anticolonial é liderada por uma peque a burguesia autónoma que aceita o papel revolucionário.
“O papel da cultura na luta para a independência” foi uma intervenção de Cabral lida numa reunião da UNESCO e releva também a sua visão distinta de que a cultura tem um papel determinante no processo de independência, quem está a ser libertado tem que regressar às origens, é aqui que se dá a cisão entre a pequena burguesia revolucionária e aquela que se resigna à dominação estrangeira e que partilha os valores do colonizador.
A segunda parte da antologia intitula-se “A prática das armas”, inclui o famoso memorando do PAIGC ao Governo português, tem a data de Dezembro de 1960, mostra a evolução do pensamento da ONU quanto à independência das colónias e apresenta um caderno reivindicativo encimado pelo reconhecimento dos direitos dos povos guineenses e cabo-verdianos à autodeterminação. O segundo documento data de 1963 e fala já da luta de libertação nacional. Vem ali referida a declaração do ministro Gomes Araújo de que o PAIGC já tinha um controlo territorial de cerca de 15 %. Cabral refere existir terra libertada na região do Oio, uma quase total desorganização do sistema de comunicações entre Bissau e o interior, a instalação da guerrilha na zona de Binar-Bula. E sintomático do desespero colonial era o reforço em material de guerra e soldados: em 1959, havia mil militares, em 1961 5 mil, em 1962 10 mil, o número de 1963 ascendia a cerca de 20 mil homens e ao recurso a bombardeamentos maciços.
No relatório datado de Dezembro de 1966, sobre a situação da luta de libertação nacional, Cabral fala sobre os aspectos da guerrilha guineense, chamando a atenção que enquanto as incursões às terras libertadas iam diminuindo, cresciam os bombardeamentos e o uso das tropas especiais, chamando a atenção para a existência de casernas e quartéis fortificados que praticamente se limitavam a cuidar os seus abastecimentos e a lançar morteiradas ou granadas de obus em terras libertadas. Nesse relatório faz-se uma apreciação da situação catastrófica da economia colonial e termina o enunciado com as perspectivas de luta para o ano seguinte. No relatório sobre a situação referente a 1967, fala um efetivo de 35 mil militares, nos sucessos do trabalho político do movimento de libertação e de como os apoios internacionais se tinham intensificado.
Estes relatórios sobre a situação de luta anuais tinham um uso interno e externo, com o passar dos anos Cabral usava a panóplia de argumentos em areópagos internacionais, como comités da ONU ou reuniões da organização da unidade africana. Explora erros e dislates de documentos portugueses, caso de um documento emanado do general Kaulza de Arriaga, comandante-chefe em Moçambique, e dirigido ao presidente da República em que alegadamente dizia que a subversão é uma guerra sobretudo de inteligência e que os povos negros não eram altamente inteligentes, pelo contrário, estavam ao nível mundial entre os povos menos inteligentes.
A antologia inclui ainda as famosas palavras de ordem, documentos sobre as relações internacionais, o comunicado em que se anuncia a criação da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau e a mensagem de Janeiro de 1973, conhecida por “Testamento político de Cabral”.
Em suma, uma antologia que permite captar os rasgos de génio do organizador, do ideólogo, do diplomata, do revolucionário.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 DE JANEIRO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P10906: Notas de leitura (447): "Alpoim Calvão, Honra e Dever", por Rui Hortelão, Luís Sanches de Baêna e Abel Melo e Sousa (2) (Mário Beja Santos)