domingo, 6 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10903: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (21): 22.º episódio: Memórias avulsas (3): The Python Sebae

1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) em mensagem do dia 2 de Janeiro de 2013 relata-nos um encontro imediato com uma pithon sebae, num dos dias de um dos melhores 40 meses da sua vida. E não é que nós continuamos a acreditar?!


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA (22)

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS (3)

THE PYTHON SEBAE

Como todos sabemos, aquando da chegada das colunas que nos traziam os mantimentos e até o material de guerra, cabia às Companhias de destino, fazer a segurança das suas áreas e nos percursos de passagem das viaturas. Para tal emboscava-se e patrulhava-se a fim de que o terreno não estivesse minado e preparava-se tudo nos locais mais perversos e onde já antes tinham havido problemas, para que desta vez não se materializassem.

Naquele dia coube ao meu pelotão a preparação duma emboscada, nos "carreiros", sítio chato com'ó caraças e de passagem dos maganões, ali mais ou menos a três quilómetros do K3, na estrada que ligava a Bironque.

Estrada Mansabá-Farim. O K3 fica um pouco acima do cruzamento de Nema. Vd. carta de Farim

Incumbido fui para preparar a coisa, o que fiz naturalmente, considerando os conhecimentos antes adquiridos e treinados ao vivo e presencialmente com os "velhinhos" de Mansabá e de Bissorã.

Minucioso saiu na escrita, só que no terreno, nada seria igual pois que a rapaziada borrifava-se, não descurando contudo, as seguranças próprias e do grupo mas lá, onde era importante, as ordens emanadas pelos superiores sempre foram cumpridas com coragem e lealdade absolutas.

E foi assim, que a excursão nocturna lá partiu, organizadamente desorganizada, uns fumando para que o IN se por aí estivesse, pensasse que eram gambozinos ou pirilampos a faiscar, outros praguejando com a maldita sorte da escolha logo neste dia com tanta chuva, outros ainda maldizendo a empecilhosa lama escorregadia e as botas rotas por baixo e tudo em alta voz como convinha.

Só que esta destemida juventude já veterana e ao primeiro sinal de alerta, tornava-se num exército disciplinado, aguerrido e cumpridor e se antes pareciam putos reguilas, agora eram uns valentes combatentes, antes incapazes de fazer mal, mas depois era o "cá se fazem cá se pagam".

Chegados, indiquei-lhes os "bedroom's" a ocupar o que não seria necessário que já conheciam bem o esquema, mas pronto... gostavam de ouvir a minha palavra amiga... e aquele toque positivo da palmada no ombro.

Para mim escolhera o primeiro lugar donde esperaria que surgissem os problemas, se tudo acontecesse como anteriormente.

A noite ainda se não fizera dia, a chuva continuava mais qu'a muita, a trovoada ribombava assustadoramente, mas o solo molhado e fofo, recebeu-nos carinhosamente. Silêncio absoluto agora, olhos mais que bem abertos, dedos engatilhados e assim se passaram quase duas horas.

Já lusco-fusco, começo a ouvir e ali bem perto de mim, o ruído sereno, como o de alguém que viesse a rastejar ao meu encontro. Em alerta máximo fiquei e dei conta da situação aos camaradas do lado.

Dois ou três minutos de hiper-tensão depois, aparece-me ali a três metros, uma cabecinha a espreitar e quase disparei.

Ela olhou-me, eu olhei-a e creio que foi amor à primeira vista, pelo menos da minha parte nunca mais esqueci aquela que me enfeitiçou pra sempre.

Nisto e num saracotear e manso rastejo, ela mirou-me longamente, despediu-se tristonha e com uma lágrima ao canto do olho, que bem na vi saída daqueles formosos olhos azuis, mostrou-se-me tal como viera ao Mundo e lá foi suavemente atravessando para o outro lado.


The Python Sebae
Com a devida vénia a www.wildlife-pictures-online.com

Garanto-vos que eram pr'ái 5 ou 6 metros de belíssima cobra. E assim a "sebae" se foi.

Relembrei-a-a noutro dia em que e sem querer pisei, indo no jeep, uma qu'até me fez saltar para o chão com o dito em movimento, julgando eu estar a ser submetido a qualquer vil tiroteio ou ter atropelado alguma minazita mal intencionada, pois que o rebentamento fora idêntico.

Entretanto lá longe, começava-se a ouvir o roncar das viaturas o que significava que desta vez conseguíramos o objectivo. Então o Cmdt do pelotão que levava o rádio, mas nem usá-lo sabia, tentou o contacto:
- "Alô, alô... aqui eu... diga se me escuta... ôvo"

Trocou os verbos, pronunciou mal os tempos, mas foi útil para uma saudável risota de descontracção e a ordem veio para abandonarmos o local e recolher a penates. Como na ida, regressámos "todos ao molho e fé em Deus" e em alegre cavaqueira com a patrulha pedonal, que andara a fiscalizar no vai-vem costumado e constante.

Missão cumprida portanto, tomámos o petit-dejeuner que para quem não sabe quer dizer "o café da manhã" (PS: de vez em quando sinto esta necessidade de vos mostrar que também sou culto e daí aquelas duas palavritas em inglês).

Foi-nos dado o resto do dia para descansarmos, o que calhou mesmo bem para pôr a escrita em dia:
Saudades PAI, Saudades MÃE. Beijinhos e abraços para todos os restantes familiares e bom ano 1966.

(continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10878: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (20): 21.º episódio: Memórias avulsas (2): Uma banhoca em Bissorã

Sem comentários: