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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13858: Memórias de Mansabá (34): As amêndoas da Páscoa de 1969 (Francisco Henriques da Silva)

Vista aérea do quartel de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 1 de Novembro de 2014:

Meu caros camaradas e amigos,
Por razões várias, tenho prestado uma colaboração muito irregular a este blogue (mea culpa!) que, aliás, leio sempre com interesse e debato os “posts” aí publicados com os meus amigos e ex-camaradas de armas Mário Beja Santos e Raul Albino.
Junto vos envio uma descrição de um grande ataque a Mansabá, em 3 de Abril de 1969, poucas semanas depois da minha companhia se ter instalado naquela localidade, para participar na protecção aos trabalhos da construção da estrada Mansabá-K3-Farim.
Não disponho de qualquer fotografia de Mansabá no meu arquivo e muito menos do ataque em questão.

 Com um abraço cordial e amigo
Francisco Henriques da Silva
Ex- alferes miliciano de infantaria, C. Caç. 2402 (Có, Mansabé e Olossato), 1968-1970
Ex- embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)


MEMÓRIAS DE MANSABÁ

34 - As amêndoas da Páscoa

A 3 de Abril de 1969, Quinta-feira Santa, pelas 11 da noite, dá-se o grande ataque ao quartel de Mansabá, em que o grupo de combatentes inimigos devia ser superior a 120 elementos, armado com canhões sem recuo, morteiros de 82mm, metralhadoras pesadas, para além do armamento ligeiro habitual (Kalashnikovs, “costureirinhas”, RPG-2 e RPG-7, morteiro de 60mm, etc).(1)

A intensidade de fogo nos primeiros minutos, para além do efeito surpresa, impediu toda e qualquer reacção da nossa parte. Os rebentamentos incessantes faziam-se ouvir por todo o lado e percebia-se que tinham atingido a maioria das instalações militares.

No que me respeita, tinha acabado de fechar a luz, depois de passar os olhos, como era meu hábito, por um livro qualquer, porque no dia seguinte era dia de trabalho (ou seja, de protecção aos trabalhos em curso na estrada Mansabá-Farim), quando começou o fogachal. Encontrava-me num edifício constituído por um renque de pequenos apartamentos térreos, no enfiamento da pista de aviação, portanto num local completamente aberto e exposto ao fogo do inimigo, que estava, na prática, a fazer tiro de pontaria ao casario com, pelo menos, um ou dois canhões sem recuo e duas metralhadoras pesadas, para já não falar dos lança-rockets e das armas ligeiras que disparavam ininterruptamente. A cadência de fogo era, pois, de uma enorme violência. As coisas complicavam-se. As balas sibilavam em várias direcções. Os rebentamentos persistiam. Agarrei na G-3 e nas cartucheiras, vesti apenas a camisa do camuflado. Creio que uma bala terá trespassado a rede de mosquiteiro da janela indo alojar-se na parede. As coisas estavam a ficar feias. De xanatos e, em cuecas, corri para o quarto de banho, uma pequena dependência, nas traseiras, com uma parede de separação. Preparei-me para o pior, porque a violência do tiroteio e das explosões não abrandava. No quarto propriamente dito eu estaria demasiado exposto e o fogo vinha precisamente do fundo da pista, mesmo em frente. As balas de uma “pesada” iam quebrando as telhas do meu quarto mesmo por cima da minha cabeça. Um rebentamento muito próximo – fiquei momentaneamente surdo - dava-me a entender que uma canhoada ou morteirada devia ter destruído um dos apartamentos vizinhos. Se acaso os guerrilheiros tentassem entrar nas instalações, eu dispunha pelo menos da G-3 e de 5 carregadores para me defender. Tive a nítida sensação de que podiam tentá-lo. Não se atreveriam a tanto, ficava para a próxima... Quem sabe?

 Quartel de Mansabá - 1-Quartos dos Oficiais; 2-Edifífo do Comando: 3-Messe dos Oficiais

Será que tive medo? Não, creio que não tive, ou seja, o medo emocionalmente paralisante e que inibe o raciocínio, a decisão e a acção, mas também não podia iludir o sentimento de espanto, bem como, a veemência inicial do ataque, que atingiu proporções inusitadas. Por outro lado, também não terei tido aquela sensação habitual da entrada em combate, aquele nó na garganta, a boca seca com um gosto amargo, aquela sensação indizível de que ia começar um jogo incerto, mas que de algum modo o podia controlar, pelo menos na parte que me tocava Aqui não, estava só, literalmente só. Valia apenas por mim. Era tudo.

Entretanto, o fogo inimigo abrandou, enquanto se encetava a resposta do nosso lado, tímida e lenta, primeiro na base de morteiro 81 e uns largos minutos depois com as peças de artilharia. O tempo de reacção da nossa parte foi demasiado arrastado, o que permitiu ao IN actuar com total à-vontade. Tendo o fogo do exterior abrandado, corri para um abrigo situado na extremidade da fiada de apartamentos. Ouvi uma mulher a chorar e também o que me parecia ser o choro de uma criança. Devia ser família de algum dos engenheiros civis. Passei em corrida. Trazer mulheres e crianças para a guerra!?! Francamente...

Bati à porta, energicamente e com alguma impaciência.

- Oh, minha senhora, saia daí. É melhor refugiar-se no abrigo. É mais seguro – gritei-lhe cá de fora, agachado junto a um pequeno muro de resguardo, que a bem dizer não protegia nada, porque choviam balas tracejantes por todos os lados que iam iluminando o céu estrelado.

Noutro apartamento ao lado, alguém acendeu uma luz. Crispado, já com os nervos à flor da pele, vociferei não sei muito bem para quem:

- Desligue lá essa m... imediatamente, senão ficamos aqui todos! Não vê que isso chama a atenção?

No final da fiada de casas, lá estava o abrigo. Entro e ponho logo os pés numa quantidade infinda de fezes humanas, os meus xanatos de quarto para nada serviram. Fiquei sujo quase até aos joelhos. Os nossos bravos soldados, jamais prevendo que pudessem ser alvo de um ataque, tinham transformado o abrigo em retrete colectiva!

Não estava ali viv’alma. Enfim, para que é serviam os abrigos? Boa pergunta. Uma metralhadora lá para o fundo da pista ainda estava activa. Disparei inutilmente três ou quatro tiros, naquela direcção, porém sem qualquer convicção. O certo é que não estava a fazer nada e, entretanto, o fogo tinha amainado consideravelmente, ouvindo-se apenas tiros isolados e uma ou outra rajada. Passei pelo quarto, vesti uns calções, corri então para a parada em direcção a um dos barracões onde estavam instalados os meus homens. De caminho, vi 3 ou 4 feridos, de outras unidades, um jazia numa poça de sangue a contorcer-se com dores, um outro coxeava e tinha um braço ensanguentado, mais longe perto do abrigo do morteiro 81 alguém jazia prostrado no solo, sem dar sinal de vida (Morto? Ferido? Sei lá...). Enfim, não parei. Havia gente a correr por todos os lados e ainda se respondia ao fogo.

Entro no barracão, onde estariam os meus homens e gente da minha companhia. Pergunto de chofre:
- Temos muitos mortos e feridos?

Não era um dos meus soldados, mas pertencia à C.Caç. Respondeu-me:
- Feridos há alguns, meu alferes. Mortos creio que não, mas nas outras companhias parece que morreu gente.

Os enfermeiros e maqueiros corriam de um lado para o outro. Alguns feridos pareciam necessitar de evacuação urgente, porque aparentavam ferimentos graves. Com grande parte dos edifícios atingidos (quase todos), foi um milagre não se terem verificado mais vítimas. Para tal bastaria uma canhoada em cheio numa das casernas. Procurei o nosso capitão. Estava de serviço, mas não o encontrei.

Num abrigo de pequenas dimensões, perto da messe de oficiais e da torre de transmissões, vi o comandante de batalhão, deitado numa cama a olhar para o tecto, com um ar inquieto.

- Há muitos feridos e mortos? – perguntou-me.
- Alguns, meu comandante, alguns, ainda não se sabe ao certo quantos.
- Então, têm de ser evacuados – concluiu
- A esta hora e nestas condições não creio que seja possível - repliquei.
- Você está todo enlameado – interrompeu ele, mudando de assunto e olhando para as minhas pernas.
- Não é bem lama, meu comandante. Como sabe, estamos na estação seca. É outra coisa. Com sua licença...

Dei meia volta. Creio que não se apercebeu, nem sequer pelo olfacto, do meu estado real de sujidade, nem, tão-pouco, das razões para tal.

Foto 1 > Mansabá > Alguns dos feridos esperando evacuação para Bissau

O capitão que encontrei um pouco mais tarde disse-me que o comandante de batalhão havia solicitado apoio aéreo, o que era uma asneira, pois a aviação já nada podia fazer àquela hora, uma vez que a “guerra” tinha, de facto, acabado, nem actuava em plena escuridão. Seguiu-se uma noite sem pregar olho a cuidar dos feridos, a contabilizar os homens, a verificar os estragos e à espera de ordens. A população civil da tabanca e os trabalhadores da obra tinham sido duramente atingidos, mais do que a própria tropa, e registavam-se vários mortos e feridos entre eles, para além de inúmeras moranças incendiadas.

Os comandos lá conferenciaram entre si e deram-me por missão, bem como a outros grupos de combate da minha companhia, de efectuar um reconhecimento, logo ao raiar do dia, pelos presumíveis locais de instalação do inimigo, designadamente pela pista de aviação e região circunvizinha. Verificámos dois ou três factos curiosos: antes do mais, era extremamente difícil, à primeira vista, determinar os ditos locais, uma vez que, contrariamente ao que era usual, não se viam invólucros pelo chão; em segundo lugar, os trilhos de aproximação tinham sido apagados com ramos de árvores, que nos impediam de determinar com algum grau de certeza os rodados das armas pesadas (muitas, como viemos a saber mais tarde, foram previamente desmontadas e transportadas a ombro por carregadores – técnica que era também utilizada, como se sabe, na guerra do Vietname) e as próprias pegadas do grupo inimigo; em terceiro lugar, as posições dos canhões sem recuo e dos lança-rockets só se conseguiam detectar pelas ervas queimadas ou pelos vestígios de pólvora no solo; finalmente, o terreno, vasculhado a pente fino, não estava minado, o que, felizmente, contrariava as nossas piores expectativas.

Na Sexta-feira Santa, pouco depois de terminado o nosso reconhecimento no terreno, desembarcado do helicóptero para se inteirar do que se havia passado e dar algum alento às tropas, lá estava o inefável “Caco” Baldé. Uma das alcunhas porque era conhecido, à época, António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné. Baldé é um nome comum entre as etnias fula e mandinga e “caco” pelo facto de usar monóculo. Mostrou-se insatisfeito com o comportamento do comandante de batalhão.

Foto 3 > Mansabá > Um dos edifícios atingidos
Fotos: © Raul Albino

Uns dias mais tarde, por ordem do “hómi garandi da Bissau”, é lançada uma grande operação de retaliação na mata do Morés com pára-quedistas que, para além de terem infligido algumas baixas ao inimigo e de capturarem numeroso material de guerra, descobriram um mapa com a localização exacta das instalações militares e civis de Mansabá, com as medições em passos aferidos da localização das diferentes construções existentes e com indicação precisa das actividades que ali se desenvolviam. Ora, aí estava uma das explicações para a constante fuga de capinadores e de trabalhadores que, aliás, continuavam a circular, como sempre, sem quaisquer restrições, dentro do quartel. As deficiências da nossa intelligence foram mais que notórias, sem falar, evidentemente, das patentes falhas da segurança, que carecem de adjectivação adicional e que, aliás, continuavam.

Depois disto, Spínola, incumbiu-nos de nova missão: o Olossato, do outro lado da mata do Morés, onde iríamos terminar a nossa comissão de serviço.
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Notas do editor:

(1) Vd. poste de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá

Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13457: Memórias de Mansabá (33): No dia em que morri (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

sábado, 2 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13457: Memórias de Mansabá (33): No dia em que morri (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

MEMÓRIAS DE MANSABÁ

33 - NO DIA EM QUE MORRI

Carlos Vinhal

Domingo. Para fazer algo de diferente, sempre o que as actividades operacionais permitissem, era dia de vestir à civil, jogar ténis de mesa pela manhã e após o almoço dar um pequeno passeio pela tabanca. Às vezes até se batiam umas chapas para mandar à família e mostrar que a guerra não era aquilo que se dizia. Então não se via nas fotos?!

O pessoal da tabanca, acho que também se tinha adaptado aos nossos hábitos. As pessoas corriam em menor número à enfermaria civil e militar, e as nossas lavadeiras não entregavam roupa lavada. A população, pela manhã, assistia com respeito ao hastear da Bandeira Nacional em frente ao Posto Administrativo, cerimónia que só acontecia ao domingo. Os homens conversavam ou deambulavam pela tabanca ouvindo música ou os relatos de futebol da Metrópole, em alto som, como era hábito, naqueles portáteis enormes por vezes carregados ao ombro.

Depois de um almoço melhorado, bem regado com uma cervejinha geladinha, tomado o digestivo, normalmente um VAT 69 ou um White Horse, como era hábito lá fomos arejar o fato domingueiro.

Tínhamos aprendido na Doutrina que o domingo era dia do Senhor, dia de descanso, dia de paz e amor.
As diversas actividades quotidianas nem sempre permitiam o contacto directo com a população. Assim, aproveitava-se para dois dedos de conversa aqui, um piropo a uma bajuda ali, por que não até uma inocente foto com algumas delas, e assim se ocupava algum tempo. 

 Interior do quartel de Mansabá, 28 de Novembro de 1971 - Dias, Fur Mil Mec Auto, e eu

Naquele domingo, terminado o passeio, regressava o grupo já em direcção à porta de armas, ainda em plena avenida de acesso ao quartel, quem vinha de Cutia, quando rebenta um fogachal enorme.
O quartel estava a ser atacado em pleno dia, o que era extremamente raro.

Armas pesadas e ligeiras pareciam instaladas junto ao arame farpado, quando não, já do lado de dentro.
Começámos a correr o mais que podíamos em direcção aos nossos aposentos para nos armarmos e ocuparmos os nossos postos ou pura e simplesmente irmos para o abrigo mais próximo.
Lembro-me que ultrapassei a porta de armas, antecedido por uns quantos camaradas e, quando a escassos vinte metros da porta do meu quarto, situado precisamente no enfiamento da entrada do quartel, sinto um impacto violento nas costas.

Caio de bruços, curiosamente sem dores. Acho que se apaga uma luz ao mesmo tempo que sinto uma sensação de paz como nunca tinha vivido.

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O quarto dos pesadelos

Sobressaltado, dou um pulo na cama e desperto.
Não era domingo, não era de dia, nem felizmente o quartel estava a ser assaltado.
Tento na escuridão verificar que o meu camarada Dias não se tenha apercebido do meu pesadelo. O silêncio reinava no quarto. Ainda bem.

Lá fora, na noite escura e misteriosa, alguns dos meus camaradas velavam com certeza pela nossa relativa segurança. Bem hajam.
Esperei acordado pelo romper do dia já que não mais consegui adormecer.

Carlos Vinhal, 
ex-Fur Mil Art MA, 
CART 2732, 
Mansabá, 1970/72
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13143: Memórias de Mansabá (32): Conversas filosóficas com o Alferes Médico (Francisco Baptista)

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13143: Memórias de Mansabá (32): Conversas filosóficas com o Alferes Médico (Francisco Baptista)

1. Em mensagem do dia 11 de Maio de 2014, o nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), trouxe até nós uma memória de Mansabá.


MEMÓRIAS DE MANSABÁ

32 - CONVERSAS FILOSÓFICAS

O alferes médico de Mansabá era um camarada pouco expansivo, sempre com ar calmo e meditativo que lia muito sobretudo livros de yoga, mais velho alguns anos do que a generalidade dos militares da Cart 2732, era educado e prestável mas parecia-me por vezes que olhava para os operacionais como os rapazes que andavam a brincar às guerras. Guerra que ele detestava e temia também.
Como ele conheci alguns camaradas de vários serviços que não tendo que sair para fora do quartel viviam um pouco aterrorizados pois imaginavam o inimigo logo ali à volta do arame farpado. Os operacionais que pela sua actividade tinham que conhecer toda a área exterior do quartel alguns quilómetros em redor, tinham outros medos mas não esse medo permanente do desconhecido pois eles conheciam esses terrenos como os terrenos das suas aldeias ou como as ruas das suas cidades.o que lhes dava outra segurança psicológica.

A propósito das suas leituras e prática de yoga nunca esqueci uma conversa que um dia tive com ele. Um dia falando eu da minha educação religiosa tradicional e habitual na maior parte das famílias de Portugal sobretudo a Norte, confessei que já tinha abandonado a religião pois por alguns motivos, que terei desenvolvido, tinha deixado de acreditar.

Ele disse que ao contrário de mim tinha sido criado numa família que não praticava qualquer religião e não lhe tinham sido inculcados quaisquer princípios religiosos. Com o passar dos anos, disse ele: comecei a sentir um vazio espiritual que me obrigou a dedicar-me ao yoga para o preencher. A ti como muitos como tu, - dizia ele, - a educação religiosa, deu-vos esse alimento espiritual e mesmo quando negais os seus dogmas preenche o espírito nessa discussão e nunca sentis esse vazio na alma que eu sentia.

Este diálogo foi para mim dos mais filosóficos ou metafísicos, como lhes queirais chamar que eu tive na Guiné, eu que tinha desistido praticamente da leitura e da reflexão intelectual quando embarquei para lá e andava um pouco narcotizado pelo cheiro da terra africana, e pelo seu calor tropical e que procurava gozar tudo isso e os prazeres mais imediatos dos sentidos como qualquer animal instintivo.
Foi das conversas que mais abanou comigo e me despertou do marasmo em que vivia, voltei a ficar desperto e inquieto como quando lia na solidão da "casa velha" de Brunhoso, os livros de Dostoiévsky, esse grande romancista e filósofo. Lembrei-me de Rodion Românovitch Raskólnikov, o protagonista de "Crime e Castigo" quando ele, sentindo-se só no mundo e só no cosmos, pois tinha deixado de ser crente, com a alma vazia, acaba por concluir que "se Deus não existe tudo é permitido" e que com essa justificação acaba por matar a velha usurária mas que vai continuar só e vazio pois o niilismo não lhe vai preencher a existência.

O diálogo sobre esta premissa irá continuar nas discussões intermináveis, existenciais e filosóficos dos três "Irmãos Karamazov". Esse diálogo continua nas sociedades porque as bases filosóficas e metafisicas que sustentam a moral vigente são baseadas em dogmas e ensinamentos dos profetas das várias religiões, cristãs, islâmicas, judaicas, hindus, budistas, animistas ou outras. Fora das religiões os filósofos ainda não conseguiram criar um sistema filosófico universal e acessível às multidões que possa substitui-las nas suas certezas e ilusões e garantir paz e riqueza espiritual aos homens. Os filhos e netos dos ateus e descrentes do nosso tempo, hoje andam, muitos, à deriva à procura dalgum alimento para lhes saciar a fome que lhes vai na alma e lhes reponha a alegria de viver.

Alguns tornam-se praticantes de yoga e doutras filosofias orientais, outros tornam-se trabalhadores ou estudiosos compulsivos, outros tornam-se consumidores de todos os produtos melhores ou piores que a sociedade capitalista oferece.
Um assunto tão vasto e polémico carece da opinião de especialistas de várias áreas do conhecimento para um debate sério, falo nele contudo porque foi uma conversa que tive na Guiné e que periodicamente me vem à memória.

Gravei na memória também conversas à mesa nas horas das refeições na messe de oficiais em Mansabá, em que o principal protagonista era o capitão Abreu, comandante do COP 6. Além dele estávamos 4 alferes da CART 2732, o respectivo capitão, o alferes de transmissões, o alferes médico e durante um mês (ou dois?) a sua esposa que lhe foi fazer companhia. Havia uma Companhia de Comandos no quartel, com uma cultura militar mais democrática e outros meios financeiros também, pois os seus oficiais comiam com os restantes militares da Companhia, sargentos e soldados.

Pela impressão que causava em todos nós, não quero deixar de falar da mulher do médico, por sinal também médica, uma senhora elegante e bela, que sendo a única europeia e a única mulher no meio de tantos homens, naturalmente era alvo da atenção (discreta e educada) de todos. A senhora porém não se sentia bem no quartel, notava-se mesmo que vivia um pouco aterrorizada naquele ambiente de guerra. Para acicatar ainda mais esses temores, havia dois alferes que por vezes, talvez por um certo marialvismo consciente ou inconsciente se punham a falar dos perigos da actividade operacional. Um dia tivemos uma flagelação de armas pesadas ao quartel, em que felizmente não houve feridos, embora tivessem caído algumas granadas dentro do quartel. Passados dois dias o quartel e a messe ficaram com menos graça e beleza porque a esposa do médico regressou a Portugal.

O capitão Abreu tinha sido adjunto do tenente-coronel Correia de Campos, já muito falado neste blogue e considerado por muitos como um grande estratega e dos combatentes mais corajosos que passaram pela Guiné. Da forma mais direta, no estado mais puro, eu ouvi e os outros presentes na messe de oficiais de Mansabá, com dois anos de antecedência, pela voz do capitão Abreu. as razões subjectivas e objectivas que conduziram ao desencadear da revoltas dos capitães em 25 de Abril de 1974.

Para mim foi música nova que não esperava ouvir da boca dum destacado capitão da academia militar. Falava dessas razões pessoais, familiares e políticas com a mesma coragem com que lutou ao lado do comandante Correia de Campos, que tanto admirava. Era um homem honesto, um militar competente mas já cansado da guerra, desiludido e descrente pelo rumo da politica em relação aos territórios africanos.

Arruda dos Vinhos, 18JAN2009 - Convívio de pessoal da CART 2732. 
Da esquerda para a direita: Cor Carlos Marques Abreu, que comandou o COP 6 com o posto de Capitão; ex-Alf Mil TRMS Brito Ribeiro do COP 6; ex-Alf Mil Nunes Bento, CMDT do 3.º Pelotão da CART 2732; ex-Fur Mil Carlos Vinhal do 3.º Pelotão da CART 2732 e ex-Soldado de TRMS Malhão Gonçalves da CART 2732, um dos organizadores do convívio, no uso da palavra.

Foto: Blogue A Madeirense CART 2732
Legenda: Carlos Vinhal

Desses dias de sol africano, calor tropical, trovoadas, chuvas diluvianas, porque os ecos dos rebentamentos das granadas ainda soam por vezes nos nossos ouvidos ou na nossa memória,  e a discórdia sobre o fim da descolonização ainda divide muitos camaradas, eu propunha que esquecêssemos esse aspecto da política nacional e internacional, e que voltássemos aos tempos da Guiné, quando éramos todos amigos e estávamos dispostos a dar a vida uns pelos outros. Sem querer entrar em polémicas desnecessárias já que todos temos uma idade respeitável, e ninguém está disposto a abdicar das suas certezas, para atenuar divisões e azedumes exacerbados, vamos pensar que somos todos bons portugueses apesar de vestirmos camisolas de cores diferentes.

Descobri recentemente um fado, "Velhas Sombras", muito bem cantado pela Celeste Rodrigues, algo nostálgico e melancólico, bem musicado e com um poema muito lindo. Recomendo-o a quem gostar da canção nacional que nos identifica em todo o mundo.

Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13027: Memórias de Mansabá (31): Com o tempo interiorizámos três ou quatro coisas: (i) que tínhamos sempre medo; (ii) que de dentro do mato era muito difícil disparar um LGFog ou até um morteiro; e (iii) depois do primeiro tiro tínhamos a ideia que conseguíamos controlar as coisas (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13027: Memórias de Mansabá (31): Com o tempo interiorizámos três ou quatro coisas: (i) que tínhamos sempre medo; (ii) que de dentro do mato era muito difícil disparar um LGFog ou até um morteiro; e (iii) depois do primeiro tiro tínhamos a ideia que conseguíamos controlar as coisas (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67)


Guiné > Região do Oio > K3 > Um abrigo em construção...

Foto: © Ernesto Duarte (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem de Ernesto Duarte [ex-fur mil. CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67],

Data: 19 de Abril de 2014 às 21:29

Assunto: um abrigo em construção

Boa noite, Luís

Já passaram 49 anos e eu continuo a arrepiar-me, e em vez de ter sonhos tenho pesadelos, ainda hoje não sei muito bem o que é dormir, dormir considerado normal! Só que as forças vão faltando e vão aparecendo alguns problemas!

Chegados à Guiné, mais propriamente a Mansoa, a nossa primeira saída, se é que se pode chamar, ao que supostamente fomos fazer, uma saída!

Na estrada Mansoa-Bissorã, uma auto metralhadora tinha sido atingida com uma granada anticarro, restou o esqueleto!

Corridos poucos dias, ida para Mansabá, com armas e bagagens, muita bagagem, penso que todos nós só tínhamos um pensamento, é na próxima curva que vem aí a nossa granada!

Com o tempo interiorizámos três ou quatro coisas:

(i) Que tínhamos sempre medo, e que a fuga teria que ser sempre para a frente, nunca voltar as costas;

(ii) Que de dentro do mato era muito difícil disparar uma bazuca, um roquete, assim como os célebres morteiros 120;

(iii) Depois do primeiro tiro tínhamos a ideia que conseguíamos controlar as coisas.

Era de uma tensão de rebentar os nervos a um santo, o espaço de tempo que mediava entre o ouvir a granada sair e o cair! Não valia a pena nos mexermos, porque nunca ninguém tinha uma ideia onde ela ia cair!

Os morteiros 120 começaram a ser utilizados, quando fazíamos os golpes de mão, depois do primeiro tiro o nosso poder de fogo era superior, e quando eles se calavam ouvia-se o disparar do morteiro, que supostamente estaria regulado para a zona que eles ocupavam, ou zona por onde tínhamos feito a aproximação!

Rapidamente atirávamos as granadas incendiárias e íamos como se fossemos atrás deles, flectindo depois em ângulo recto e lá tínhamos sempre uma bolanha para passar!

Eles faziam três, quatro morteiradas, mais tarde soubemos que era-lhes muito difícil o disparar de dentro da floresta e o terreno não tinha consistência para o prato, aparelho de pontaria, etc.

Onde apanhámos com maior eficácia, mas também para aí uma meia dúzia de tiros, foi em Morés!

Os deuses decidiram a nosso favor porque os tiros caíram na bolanha e perderam eficácia! Era uma granada pesada foi muito para o fundo, mas esses estavam bem apontados, ou casualidade.

Os abrigos de Mansoa, se os tinha não me lembro, os de Cutia eram do modelo da fotografia, os de Mansabá mais tipo trincheira clássica, os de Manhau, de Banjara e K3 eram iguais mais pormenor menos pormenor. Farim também não me lembro como eram!

Todos nós, mesmo as chefias dizendo maravilhas de aquilo, tínhamos consciência, que se caísse uma granada na frente, próximo da vigia, que as hipóteses eram nulas e se uma dos 120 caísse em cima que aquilo não aguentava!

O primeiro tiro que deram no primeiro ataque ao K3, de noite, acertaram com uma granada anticarro numa viatura, que com a ajuda da gasolina do depósitos só ficou uns restos do chassi!

Aconteceu que nesses ataques, ainda com os abrigos em construção, a foto é do meu abrigo acabado, puseram dentro do arame dúzias de granadas. Atiravam granadas muito velhas que não rebentaram, mas era contando com os rebentamentos por simpatia. Mas tal como em Cutia, Manhau e Banjara, não acertaram uma, excepto a da viatura.

No K3 não se ouvia a saída dos canos porque havia umas LDM no rio Farim que faziam fogo para as laterais, era mesmo guerra adulta.

Eu daquele abrigo via em frente a chama das Costureiras e servia-me de uma Manelica 8mm, ponta redonda, dos meus caçadores nativos! Fazia tiro instintivo e aquilo causava grandes estragos, passava um morro baga-baga com uma facilidade espantosa. Eu disparava e os caçadores carregavam!

No meu tempo, por falta de apontadores que deveriam ter, por ser difícil disparar do mato, por serem armas de tiro curvo, o aproximarem-se só lhes trazia desvantagens e por aquilo a que chamamos sorte, não acertaram nenhuma, depois, depois não sei!

O nosso grande inimigo foram as minas! Levantámos muitas mas também rebentaram muitas!

No meu tempo ainda não se falava muito em canhões sem recuo!

Mando-te uma foto do referido abrigo numa fase ainda da construção!

Quantas cavadelas, quantas pazadas de terra!

Um abraço,
Ernesto
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Nota do editor:

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12287: Memórias de Mansabá (30): Um nunca acabar de recordações (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 9 de Novembro de 2013:

Olá amigo Carlos
Olá caro camarada Mansabense
Pois é tu estiveste duas semanas ausente, eu estou, ou ando a maior parte do tempo ausente!
O tempo é o grande mestre! Claro que ter deixado a minha serra e ter vindo trabalhar para Lisboa as escolhas eram muito poucas, e com aquele pequenino pormenor de o pais ignorar o que se passava no Ultramar, logo não se poder falar muito.

Entre a minha época e a tua já houve uma diferença, cada vez era mais difícil esconder as coisas. Mas quando me reformei não tive a noção das minhas limitações, e ao ter ficado com a casa que era dos meus pais soube muito bem e não me doíam os ossos, não me custava nada lá ir e ia com gosto e alegria, hoje aborrece-me muito, ou pelo menos já não tem a graça que tinha, mas não quero abandonar as coisas, e lá vou indo e isto tudo para dizer que só no principio da semana recebi o teu email que desde já agradeço, assim como agradeço, a fortificação de Cutia e o mapa da nossa área critica!
Mas antes faço um reparo a mim próprio eu esqueci-me um pouco que tu também lá estiveste em condições de “hospitalidade“ diferentes na rua, mas na prática iguais. Tenho lido muito e quando há tempos vi que andaste por Manhau, não senti como que uma necessidade de te fazer perguntas sobre aquilo, mas disse cá para os meus botões, mais um que lá andou a arriscar a pele.

Não sei se no teu tempo ainda havia uma serração a funcionar em Mansabá! Era logo à entrada à esquerda quando se ia de Cutia. O dono fez o favor de me convidar e a mais dois ou três para irmos lá almoçar, jantar! Não eram ofertas por pura simpatia, era a necessidade que ele tinha de se dar bem connosco, tendo as relações piorado muito, quando nós não trouxemos de Banjara um trator enorme de lagartas que lá tinha ficado quando ele fugiu de lá.
Esse senhor com meia dúzia de caçadores africanos, mais os lenhadores e mais uns loucos como eu que íamos à caça, cortava madeira na zona de Mansomine, não passava aquela zona sem floresta antes de Cucuto e também não se aproximava muito de Demba Só.

Imediações de Mansabá que a CART 2732 palmilhava frequentemente, não evitando mesmo assim o mau feitio da vizinhança. Vd. Carta de Farim 1:50.000
Legenda: CV

Para o lado de Morés, nada, e depois com um certo à-vontade em frente e para a direita em relação à pista de aviação. Eu falo disto com muita emoção, mas o engraçado, ultimamente quando vou ao Algarve já não levo computador, se levo não abro, até porque a banda larga é uma porcaria, eu leio e penso, tento recordar! Eu lembro-me de sair de casa, já camuflado, com uma mala numa mão e um saco ao ombro, mas não lembro emoções nenhumas nem de pessoas terem falado comigo. Só lembro uma enfermeira da terra que veio no mesmo comboio que eu, Lagos – Barreiro se preocupar muito comigo!

Depois de termos desembarcado na Madeira e nos últimos dias de viagem, eu comecei a sentir uma certa expectativa em relação a Bissau. Depois de tanto ter ouvido da história dos portugueses e seus feitos, eu ia finalmente pisar uma cidade, capital de província, deveria ter que ver. Não digo que foi uma desilusão, digo onde estás Bissau, não sei que se passa com meus olhos que te não enxergam, estou a passar por ti e não te enxergo.

Uns campos, uns montes de bagabaga e eis que estou noutra grande cidade, Mansoa!

Tiro-lhe o Man e fico com o soa!
Mas não soa
Não soa os ecos da cidade.
Soa o estrondo das armas
Não soam risos de crianças
Soam choros de criança
Não soam risos de gente feliz
Soam gritos de gente com raiva
Soa o silencio de uma cidade em guerra
Parto para Mansabá que tem algumas casas com traços de arquitetura mas com janelas e terraços tapados a tijolos de terra batida.
Mansabá com a sua rua principal chegava a ter alguma beleza, quando as acácias floriam e se enchia com o garrido das bajudas, talvez se passeando!
A Mansabá, tirando-lhe igualmente o Man fico com sabá
Sabá rainha do saber
Foste uma rainha para muitos de nós
Não pelo saber
Não pelos teus encantos
Mas pelo teu poder total
Porque nos prendeste
Porque nos acorrentaste
Porque nos escravizaste
Porque nos obrigaste a fazer coisas que não queríamos
Porque transformaste nossos cérebros
Porque transformaste nossas personalidades
Porque transformaste nossas vidas
Porque transformaste a vida dos nossos familiares
Porque dispuseste de nós como te apeteceu Incluindo deformar nossos corpos
Incluindo tirar nossas vidas
Nunca ouvindo nossos pedidos de clemência
Mas eu não te odeio
Se calhar até tenho saudades tuas

Carlos, o texto são mais umas linhas para juntares a tantas que tens recebido.
As fotos são para voltares a ver aquilo que nunca esqueces.

Um obrigada por tudo
Um abraço aqui de Mansabá
BCAÇ 1857 / CCAÇ 1421
Ernesto Duarte
Furriel Miliciano

 Ernesto Duarte em Mansabá(?)

O Fur Mil Ernesto Duarte junto ao memorial da sua Companhia (CCAÇ 1421), "Os Caveiras" 


 Duas vistas aéreas de Mansabá no tempo de Ernesto Duarte

Ernesto Duarte na "avenida" de acesso à Porta de Armas do aquartelamento de Mansabá, tão bem descrita com a sua alma poética, acima, no texto

Ernesto Duarte numa das paradas do aquartelamento de Mansabá

Fotos: © Ernesto Duarte. Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: CV)


2. Comentário do editor:

Caríssimo Ernesto Duarte
As tuas palavras, quando falas de Mansabá, são apaixonadas, deixando transparecer o quanto ficaste marcado por aquela "terra onde se arde vivo", assim designada no livro "Guiné 1965 Contra Ataque", de Amândio César. Compreendo-te porque ali permaneci 22 meses e 11 dias.
A minha actividade operacional e ocupação das "horas livres", ajudando na Secretaria, não dava para grandes convívios na tabanca. Conheci meia dúzia de civis, os nossos dedicados guias e milícias e nossos camaradas do Pel Caç Nat 57. Lembro-me bem dos domingos em que nos vestíamos umas horas à civil, para arejar a roupa, e íamos passear a tabanca. Sentia-se um ar diferente nestes dias. Quase só os pelotões de piquete e serviço estavam ocupados. Com a noite voltava o sentir da guerra e os sentidos entravam todos em modo de emergência.

As horas mal dormidas em alerta permanente; os sucessivos ataques ao aquartelamento e tabanca; as sempre perigosas colunas para Mansoa e Farim; a protecção, com emboscadas quase diárias, durante meses aos trabalhos de pavimentação do troço da estrada Bironque-K3; as emboscadas nocturnas no fim da pista e no Alto de Bissorã; os patrulhamentos diurnos e nocturnos, assim como as operações, são parte da nossa memória que se apagará só no último dia das nossas vidas.

Quanto à Serração de que julgo falares, no meu tempo estava já desactivada e era um local de passagem muito perigoso.
Havia contudo um branco, não sei se é do teu tempo, o senhor José Leal que, com uns quantos colaboradores locais, abatia árvores algures nas imediações de Mansabá. Não precisava de protecção e tanto quanto me lembro nunca foi atacado. Provavelmente explorava a área que referes. Sinceramente não me lembro se ele tinha alguma serração ou se trazia os toros já limpos do local. Lembro-me que a camioneta era muito velha, que só tinha a cabina em cima do chassi onde transportava os toros.
Fica aqui a sua foto para ver se te lembras dele. Morava do lado de fora, quase encostado ao arame que cercava o quartel, por trás da casa do gerador e da mecânica, quem ia para a tabanca do lado esquerdo, quando se saía a porta de armas.

Mansabá, Abril de 1971 - Senhor José Leal segurando a sua filhota, o Cap Mil Jorge Picado, ajuda, e o Alf Mil Manuel Casal, assiste.
Foto e legenda: © Caros Vinhal. Todos os direitos reservados.

Não de Mansabá, mas de Leça da Palmeira, recebe camarada mansabense Ernesto, um fraterno abraço e os melhores votos de boa saúde.
CV
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12150: Memórias de Mansabá (29): A tabanca de Manhau já não existia em 1965 (Ernesto Duarte)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12150: Memórias de Mansabá (29): A tabanca de Manhau já não existia em 1965 (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 28 de Setembro de 2013, a propósito de uma pergunta que lhe foi feita sobre a tabanca de Manhau:

Uma boa noite com cordialidade, Carlos.
Uma boa noite por Mansabá.

Vou falar um pouco sobre Manhau.
Não, em 1965 a Tabanca de Manhau já não existia e segundo o que ouvi devia ter ardido por fins de 1962, melhor entre 1961 e 1963. Dizia-se também que foi naquela região onde a revolta se deu. Mas isto são conversas de Tabanca e não havia unanimidade.

Diziam que tinham assaltado uma camioneta de passageiros, tendo-a queimado, ainda lá estava no meu tempo, tendo morrido uma professora.

Algumas das tabancas desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau.
Ver Carta de Farim

Logo quando se passava a Bolanha, indo de Mansabá, havia uma subidinha antes da zona mais plana, onde esteve o aquartelamento, onde ainda se podia ver o esqueleto da camioneta.
Dizia-se que um oficial Português de nome Pita Alves, que eu conheci em 64 em Tavira, tinha sido lá ferido. Pouco tempo depois a tabanca tinha sido incendiada. O incêndio terá sido medonho, dizia-se.

Por um lado, Ussado, Cubande, por outro, Mantida, Gussará, Uália, Bambaia, Bagadage, Gendo, Biribão, Canjambari e outros nomes que eu já não lembro, estavam cheios de população.
O comando decidiu construir Cutia, Manhau, Banjara e mais tarde o K3.

Destacamento de Cutia 
Foto: © César Dias

Quando cheguei, Cutia estava acabadinho de fazer. Eram todos iguais, a estrada ao meio do quadrado, um buraco a cada canto, mais quatro buracos entre os cantos e mais uns dois ou três para comando e transmissões.
Dizia-se que nos ataques violentos a Cutia tinham deixado no terreno, dois cubanos e uma bazuka 8.8.

Em Manhau ainda a 1421 participou nos acabamentos.
Nos ataques violentos que fizeram, deixaram no terreno um morteiro 8.2 rachado como se uma granada tivesse rebentado no cano.

Destacamento de Banjara
Foto: © Alfredo Reis (2009). Direitos reservados.

Em Banjara a 1421 foi prestar segurança aos trabalhos e limpar a estrada desde Mantida.
Apanhou-se muita gente, à qual se deu conservas e se disse para irem espalhar a boa nova. Nem um voltou.

Eu na metrópole nunca tinha ouvido falar no BCAÇ 1858, nem na companhia 1422.
Instalados em Mansabá, com uma Companhia dos Águias Negras, eles em quadrícula, nós em intervenção, saíamos todos os dias e algumas delas grandes, tanta tabanca queimada, tanto campo de milho destruído, tanto prisioneiro. Era hábito aparecerem outras tropas para irem connosco, ou nós com eles, desde Paraquedistas, Comandos e Caçadores, sempre com pelotões africanos.

Uália, mais ou menos a norte de Manhau, já tinha sido visitada umas quantas vezes, e naquela noite era mais uma. A minha Companhia, não sei como foi com as outras, desde logo se organizou em três grupos de combate, tendo ficado um alferes, um santo, livre. Mas houve necessidade de se proceder a uma substituição e coitado dele, aquilo calhou de maneira que ele foi a todas.
Ele não tinha muito jeito, se isto tem alguma lógica dizer, e os soldados também não sentiam o apoio de que se calhar necessitavam. Com os sargentos, gordos e barrigudos, o problema ainda foi pior. Eu e uns quantos éramos velhos, tínhamos quase 24 anos, a maioria dos milicianos, ainda não tinha os 23 anos.
Naquela noite de chuva com uns fulanos que eu não conhecia, lá fomos até Manhau, para dali, altas horas da noite, sairmos para o Ualia, e lá estava o Verissimo.

Como as condições eram nulas eu fui para a cabine da GMC que era o carro da água.
Passado pouco tempo veio apanhar abrigo o capitão, grande homem. Então lá estás mais uma vez por conta do barco, tens que olhar por fulano e o ajudar. Entretanto a conversa continuou e nós começamos a pensar que o combinado, que era sair em direção a Mansabá e de pois voltar à direita e subir a bolhanha, não era muito viável. A bolhanha era um rio, decidimos, apanhar o lado de uma picada que em tempos tinha sido perpendicular à estrada, atravessando o quartel. Reunimos em cima da hora no comando para dar esta informação, tudo certo.

O capitão perguntou a mim e ao malogrado Feijão:
- Vocês já sabem como é na frente?

Eu disse:
- Vou eu à frente.
- O Feijão já te está a armar em chefe, quem vai sou eu. Anda lá vamos os dois e fulano vai sempre comigo.

E fomos saindo os dois, pondo a coluna em marcha, recomendando para não se afastarem porque como estava muito escuro podia-se perder o contacto.
Penso que a coluna ainda não tinha saído toda do arame, um moço de Coimbra gritou:
- Arame.

Voei para a cova do lixo, ficando todo cortado pelas latas. Levantei-me fui ter com o Feijão, era o que gritava mais. Peguei nele ao colo, pontapeei todos os que se não levantavam. Ele morreu nos meus braços. Fui buscar mais e mais e o meu homem com o pânico instalado.
Começaram a aparecer luzes não sei de onde.

O Veríssimo apareceu no blogue quando eu te mandei isto e ele leu. Ele diz que quem estava para ir à frente era ele. De facto era, mas era no plano inicial. Claro que eu nunca esqueci e o Capitão também não esqueceu.

Quando eu fazia serviço em Mansabá, alta noite, ele ia ter comigo e bebíamos um trago de brandy. Dizia ele:
- A culpa não é tua é só minha.

Eu sei que não mandava, mas estive de acordo e quando nos despedimos em Abrantes, a nossa culpa esteve presente.
Muito mais tarde quando nos reencontramos, a conversa veio todinho ao de cima.
Claro que senti alguma alegria, alegria infantil, quando encerramos Manhau, quando destruímos aquilo tudo à granada de mão. Mas antes ainda, e também na ausência do comandante de Pelotão, apanhei uma emboscada, antes de chegar à Bolanha, que a artilharia teve que bater os lados da estrada.

Furaram o carro da água todo e os bancos das viaturas.
E ainda há outra, que também tem a sua história.

Numa viatura,  4 a 8 fulanos iam às laranjas a Mantida. Foram uma vez, foram duas, foram muitas, mas naquele dia não foram porque uma mensagem avisava da passagem de uma coluna de metralhadoras pesadas, que ia passar a caminho de Bafatá.
O terreno era duro e direito, eles entraram pelo capim. Que estragos meu Deus. Isto já não consegue mexer mais comigo, mas se faz parte daquelas coisas que continuam a me encher de raiva e a tirar o sono.

Um abraço, Carlos e tudo de bom para ti
Mansabá, 28 de Setembro de 2013
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12081: Memórias de Mansabá (28): Minas na estrada de Mansabá (Francisco Baptista / Carlos Vinhal)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12081: Memórias de Mansabá (28): Minas na estrada de Mansabá (Francisco Baptista / Carlos Vinhal)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 19 de Setembro de 2013:

É muito difícil para mim falar da guerra da Guiné.
Porque eu não quis essa guerra nem as das outras colónias.


Um dia nos finais de 1971, o comandante da companhia mandou-me com o 4º pelotão da CART 2732, a Mansoa, esperar e trazer sob protecção uma coluna de reabastecimento com destino a Mansabá, K3 e Farim.

Mansoa, segundo a ideia que me vem à memória, era um quartel bastante grande com boas instalações quando comparadas com a maioria dos quartéis da Guiné. Não sei quantas companhias estariam lá aquarteladas, mas pelos alferes que eu encontrava no bar deveria lá morar um batalhão, não sei ao certo.
Porque havia sempre alguns tiques diferentes entre as diversas armas, ao tempo não sei se esses militares não seriam de cavalaria. Em todo o caso aqueles que contactei em Mansoa foram sempre afáveis e simpáticos.

Nesse dia mal entrei falaram-me numa mina que estaria na estrada entre Mansoa, Mansabá e o K3. Eles tinham recebido a informação no dia anterior, através dos serviços secretos. Agradeci a informação, que não tinha recebido em Mansabá e no regresso fomos com mais cuidado e atentos a possíveis minas, na estrada que era de alcatrão.

Até Mansabá nada encontrámos. Continuámos na direcção de K3 e chegados ao Bironque, num pedaço de estrada sem alcatrão, por causa do rebentamento duma mina, muitos meses antes, detetamos uma mina anticarro.

O meu pelotão não tinha especialistas de minas e armadilhas. O alferes Couto que tinha sido o primeiro a comandar o pelotão infelizmente morrera ao levantar uma.

Recordo-me de dois especialistas de minas e armadilhas que ou já estavam connosco ou vieram na altura do quartel que até era perto. Acho que teriam vindo com mais alguns soldados do quartel. Talvez porque o assunto era delicado eles pouco falaram, pois viriam concentrados a pensar na melhor forma de o resolver.

Decidiram que iriam tentar levantá-la. A decisão teria que ser deles, e eu só teria que a acatar mas fiquei apreensivo, porque cerca de um ano antes, na CCaç 2616, em Buba, tinha morrido o meu amigo Furriel Ferreira ao tentar levantar uma mina anti-carro, o alferes Couto, primeiro comandante do pelotão morrera também ao levantar uma e o alferes Queiroz que eu tinha rendido em Buba, também morrera ao pisar uma.
Seria muito mau que uma mina provocasse outra tragédia semelhante.

Hoje penso, recordando o porte e postura de um deles e de alguém que revi há cerca de 2 meses, que um dos especialistas de minas era o nosso amigo Carlos Vinhal. Só ele poderá confirmar se quiser.
Mandaram pôr o pelotão à distância regulamentar e fizeram o levantamento da mina duma forma eficiente e segura. Por mim confesso que respirei de alívio.

Depois fomos até ao K3 a verificar se poderia haver outras minas, que não encontrámos. O aquartelamento de K3 que ficava junto ao rio Geba, antes da travessia para Farim, ao contrário do de Mansoa era pobre, feito de troncos de árvores, que ladeavam um grande terreiro poeirento, onde talvez estivesse uma companhia.
Mais parecia um forte como o dos filmes americanos que víamos quando éramos novos. O pessoal não o recordo tanto como o de Mansoa, talvez por serem menos, talvez por eu ter ido menos vezes lá.

No regresso a Mansabá soube que a mensagem sobre as minas tinha sido recebida no dia anterior no aquartelamento mas não foi comunicada à CART 2732.
Foi uma falha humana, como infelizmente há muitas e havia muitas.
Felizmente não houve vítimas a lamentar.


2. Comentário de Carlos Vinhal, ex-Fur Mil da CART 2732

Não na qualidade de editor, mas como interveniente no acontecimento que o ex-Alf Mil Francisco Baptista aqui lembra, vou comentar e dar a mão à palmatória por em tempos ter sido impreciso, por lapso de memória.
Fica mais uma vez provado que há pormenores que nos vão escapando.
Passemos então ao comentário.

Em 9 de Julho de 2006 escrevi no Poste 948*:

Durante uma grande parte da comissão fui encarregue da gerência dos bares do aquartelamento. Por inerência do cargo ia quase todos os meses com o meu camarada Costa, Fur Mil Alimentação, a Bissau para acompanharmos no regresso os reabastecimentos da Cantina e Bares.

As colunas de reabastecimento eram compostas por um número elevado de viaturas de carga civis e militares, carregadas com víveres destinados a Mansoa, Mansabá, K3 e Farim. As viaturas militares de mercadorias eram pertença da Companhia de Transportes Militares e eram comandadas normalmente por um Furriel Miliciano que coordenava também as viaturas civis, alugadas para reforço. A protecção da coluna era assegurada entre Bissau e Mansoa pelas forças de Mansoa. A minha Companhia, por sua vez, esperava ali a coluna de onde fazia protecção até Mansabá e daqui ao K3. As viaturas de carga destinadas a cada aquartelamento iam ficando sucessivamente a descarregar, sendo apanhadas, mais tarde, no regresso da coluna para Bissau.

No dia 3 de Dezembro de 1971, num desses reabastecimentos, chegou, ainda em Bissau, uma informação de que teria sido montada, pelo IN, uma mina anticarro no trajecto entre Mansoa e o K3. Deram-me conhecimento do facto por eu ser o único graduado com o curso Minas e Armadilhas na coluna. Dirigi-me ao comandante das viaturas de reabastecimento, por sinal um Furriel Miliciano recentemente chegado à Guiné, para o avisar de que os condutores das viaturas de carga deveriam conduzir com cuidado, porque a todo o momento poderiam surgir complicações. Julgando que eu estava a amedrontá-lo por ele ser periquito, não me levou muito a sério.

Foram precisos sete anos para se saber a verdade. Não foi em Bissau que eu soube da possível existência mina, mas, segundo o testemunho do camarada Francisco Baptista, foi em Mansoa.
Se pensarmos bem, até é mais lógico porque ali era sede de Batalhão e era ali que começava o perigo.
Em Mansabá, ao tempo, estava activado o COP 6, logo estou em crer que a mesma informação também lá estivesse. Pelos vistos estava, mas dela não foi dado conhecimento a quem de direito, ao CMDT da coluna, Alf Mil Francisco Baptista.

A detecção da mina deveu-se à informação recolhida em Bissau e ao bom hábito de picar a zona da cratera sempre que ali passávamos.

Aqui também devia ter dito que a detecção da mina deveu-se à informação recolhida em Mansoa e acrescentar: ao especial cuidado do Comandante da coluna que mandou picar aquela zona com especial atenção.

Analisada a situação, afastámos toda a gente para uma distância de segurança e metemos mãos à obra. Por sorte a mina, uma TM42, que possui uma asa própria para transporte, tinha-a acessível sem necessidade de lhe mexer muito. Foi só afastar um pouco de terra com cuidado não fosse estar armadilhada. Atámos-lhe uma corda estendendo esta de modo a, por de trás de uma árvore, puxar a mina até ela se soltar. À conta de alguma força, lá a conseguimos soltar. Para a tornar inofensiva, removi-lhe a espoleta e ei-la em condições de ser tocada e fotografada para a posteridade.

Cabe aqui um pedido de desculpas ao camarada Francisco Baptista pela angústia que lhe causamos, que felizmente não notei. Claro que eu também estava tenso, pelo menos até saber como íamos dar a volta ao caso. Cabe aqui também uma palavra de apreço ao meu camarada de Minas e Armadilhas, Fur Mil Sousa. Foi um trabalho de equipa.

Para relembrar, ficam as fotos então publicadas, com legendas de hoje:

Bironque, 03DEZ71 - A mina AC TM42 momentos antes de ser levantada e neutralizada 

Parafraseando Francisco Baptista: "Mandaram pôr o pelotão à distância regulamentar e fizeram o levantamento da mina duma forma eficiente e segura".

Acabada a operação, e aproveitando a presença do fotógrafo, (quem seria?) fez-se a foto de família para a posteridade. O Sousa segura a menina com o prazer do dever cumprido. Agora reparo que saí para o mato com os galões de furriel nos ombros. Tal foi a pressa.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 DE JULHO DE 2006 > Guiné 63/74 - P948: Memórias de Mansabá (3): A angústia do minas e armadilhas (Carlos Vinhal)

Último poste da série de 15 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11396: Memórias de Mansabá (27): Naquele Domingo de Páscoa de 1971, festejei os meus 34 anos (Jorge Picado)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11396: Memórias de Mansabá (27): Naquele Domingo de Páscoa de 1971, festejei os meus 34 anos (Jorge Picado)

Mensagem do nosso camarada Jorge Picado (ex-Cap Mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 13 de Abril de 2013:

Caríssimo Carlos Vinhal
Aproveitando o facto de estares na secretaria do Comando, aí vai trabalho.
Envio este meu texto que, servindo ao mesmo tempo de agradecimento pelo meu Aniversário*, aproveito para enviar “os retratos de alguns figurantes que penaram em MANSABÁ” nos Idos de 71 do Século passado. Assim até parece que fazem parte da História Antiga!
Abraços para todo o pessoal da Tabanca Grande
JPicado


Quero agradecer a todos, e não vou aqui citar nomes para que não cometa o erro de me esquecer de algum, quantos se lembraram de me enviar os parabéns, no dia em que iniciei mais um ano desde que a minha saudosa Mãe me entregou a este Mundo dos vivos no tão distante Ano da Graça de 1937.

Sinceramente agradeço mais os desejos de saúde para ir enfrentando as “agruras desta vida que agora nos oferecem”, do que parabéns por mais um ano que tenho de “suportá-los”…

Aproveito para desejar aos “meus irmãos aniversariantes, Jorge Félix e Manuel Marinho” muita saúde para que venham a durar mais uns anitos, já que são mais novos do que eu, e que cheguem a esta minha “bonita idade”, se não for com melhor saúde, pelo menos com a mesma que tenho tido, que tem sido bem razoável.

Quando o amigo e camarada de MANSABÁ, Carlos Vinhal me telefonou, estava eu às voltas com umas fotos tiradas 42 anos antes! Já podem calcular pela antiguidade de onde eram.

Pois claro que se referiam ao dia 11ABR71, um Domingo de Páscoa, quando comemorei o 34.º Aniversário precisamente naquela localidade do OIO, juntamente com pessoal da CART 2732.

Para verem como o tempo passa aí seguem algumas dessas fotos.

Na 1.ª o ainda “jovem Cap Mil”, aguardando a chegada do almoço. [Em cima à direita]

Nesta, no meio de dois brilhantes Alf Mil da CART, Casal à minha direita e Rodrigues do meu lado esquerdo.

Nesta, eu estou na ponta direita, seguindo-se os Alf Casal e julgo que Meneres, ambos da CART; Figueiredo (se a memória não me trai) que era do Pel Art e está na cabeceira da mesa; depois um 1.º Sarg que o Carlos diz ser o Santos da CART, mas não sei, seguindo-se o Alf Capelão (confirma Carlos) e de camisa branca o Alf Vassalo do Pel Rec.

Nesta, o outro lado da mesa. Começa com o Alf Casal, a minha pessoa e os Alf Bento, Rodrigues e Rolando (Médico, que foi apanhado parcialmente e de copo na boca), todos da CART. É pena não apanhar o resto.

Nesta foto, já tirada no Bar, não sei se durante a tarde ou já de noite. A partir da esquerda: os Alf Bento, Rolando, Capelão, o “Boss”, o tal 1.º Sarg Santos e o Rodrigues que parece fugir, mas devia antes ir abastecer-se de “combustível líquido”!

Fotos e legendas de Jorge Picado


Nota de CV:

Caro Jorge, meu capitão, o teu furriel confirma que aquele sargento que aparece nas fotos é o ex-1.º Sargento António da Piedade dos Santos, actualmente Major Reformado.

O Dr. Rolando não estaria adstrito à CART 2732 mas ao COP 6. Estivemos na mesma mesa na festa do batisado da filha do senhor José Leal, onde também estiveste. Nos meus apontamentos tenho como se tivesse sido no dia 13 de Abril o que acho estranho. Terá sido no dia 11, Dia de Páscoa e dos teus anos?

Nesta foto: eu, à civil; Alf Mil Bento; Alf Mil Médico Dr. Rolando; Fur Mil Enf.º Marques, à civil, e Alf Mil Rodrigues
Foto e legenda: Carlos Vinhal

Quanto ao alferes Meneres, mal chegou a Mansabá, em Janeiro de 1971, disse logo que não estaria muito tempo connosco. Na verdade, segundo a HU da CART, em Setembro, o Alf Mil Batista foi colocado na 2732 em substituição do alferes Meneres que tinha sido transferido para o Comando Chefe. Curiosamente não me lembro das caras de um e de outro.

Dos alferes Figueiredo e Vassalo não me lembro nem um bocadinho.

E pronto, amigo Jorge, nesta memória de Mansabá recuamos ao tempo dos teus 34 e meus 23 anos. Há séculos, literalmente.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11372: Parabéns a você (561): Jorge Félix, ex-Alf Mil Pilav da BA 12 (Guiné, 1968/70); Jorge Picado, ex-Cap Mil do BCAÇ 2885 e CAOP 1 (Guiné, 1970/72) e Manuel Marinho, ex-1.º Cabo do BCAÇ 4512/72 (Guiné, 1972/74)

Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10731: Memórias de Mansabá (26): Os meus 45 dias em Mansabá (José António Viegas)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10731: Memórias de Mansabá (26): Os meus 45 dias em Mansabá (José António Viegas)

 Vista aérea de Mansabá
 Foto de Carlos Vinhal


1. Mensagem do nosso camarada José António Viegas (ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 54, Guiné, 1966/68), com data de 23 de Novembro de 2012:

Caro Carlos Vinhal

Vou voltar aos meus 45 dias em Mansabá. Pena que não tenha fotos desta fase pois ardeu-me tudo no ataque em Missirá.

Nos primeiros dias em Mansabá, ao cair da noite, começou o nosso obus 8.8 a cantar, vim até ao pé da bateria falar com o artilheiro um Fur. Mili. cabo-verdiano, perguntar o que se passava, dizendo ele que tinham informações que o Amílcar andava por ali.

Na semana seguinte foi feita uma operação em forte com a 5.ª CComandos, a CCP 121, a CCAÇ 1421 e o nosso Pelotão. Entrámos pelo Morés, os Comandos e os Páras fizeram o estrago e voltamos.
Um Sargº. Paraquedista trocou o seu camuflado com o meu, soube há pouco tempo que morreu com a doença maldita e que vivia aqui perto de Loulé.

Todas as semanas estávamos a sair sempre à noite. Nas progressões, até me habituar no escuro da noite, às grandes teias de aranha e aos terríveis bicos das Micaias, foi uma tortura.

Antes de sairmos, fomos montar uma emboscada no Alto de Momboncó com um Pelotão da 1421. Estava com o meu pelotão emboscado quando vejo os Fiat a picar sobre nós, deu para assustar, levantámos com as armas para o alto e vejo o asa a desviar, logo de seguida ouviu-se largar as bombas e o cheiro horrível de petróleo. Este era um dia não, e no regresso apanhámos com uma emboscada de abelhas, os nativos largaram as armas e toca a fugir. O Sargento Monteiro da 1421 ficou bem picado e ainda por cima tinha pouco cabelo, ficando num estado lastimável.

Desta CCAÇ 1421 lembro-me do Cap Carrapotoso, já falecido, e dos Furriéis Fernandes e Passeiro.

E aqui está uma pequena resenha da minha passagem por Mansabá.
Segue a nossa colocação no Enchalé com a CCAÇ 1439

Um abraço
Viegas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8405: Memórias de Mansabá (25): Recordações de António Dâmaso, Sargento-Mor Pára-quedista - Operação Nestor

sábado, 11 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8405: Memórias de Mansabá (25): Recordações de António Dâmaso, Sargento-Mor Pára-quedista - Operação Nestor

1. Mensagem de António Dâmaso, Sargento-Mor da FAP na situação de Reforma Extraordinária, com data de 9 de Junho de 2011:

Ao Editor e Co-editores os meus cumprimentos.
Mando à atenção de Carlos Vinhal mais uma recordação de Mansabá.
Um Ab
Dâmaso


RECORDAÇÕES DE MANSABÁ (3)

OPERAÇÃO “NESTOR”

Zona de, Choquemone, onde desenrolou a Operação “Nestor”em 20JUH69

Com base nas informações obtidas a um dos prisioneiros capturados uma semana antes na Operação ”Orfeu”, foi planeada a operação “Nestor”. O prisioneiro dizia existir um acampamento na mata entre Insumeté e Infaíde, mais uma vez a CCP 122 a 3 GComb foi helicolocada em 20 de Junho de 1969, cerca das 08,40. A primeira vaga de 40 homens, sendo a segunda vaga de mais 40 colocada cerca de 25 minutos mais tarde, um pouco mais a sul da mesma bolanha.

Formação de Hélis partindo para uma operação (Foto de A Martins álbum de memórias do BCP 12)

Mais uma vez fui na segunda vaga. Quando se deu a reunião da Companhia estava o prisioneiro a levar um “tratamento”, para ver se espevitava uma vez que se mostrava desorientado, a meu ver não era caso para menos porque que tinha sido levado e trazido de helicóptero, fartamo-nos de andar às voltas com os “turras” sempre a chatear-nos, lá andava o Heli-canhão a tentar mantê-los à distância, atravessámos a mata entre as duas bolanhas, encontrámos um acampamento abandonado, onde foram encontradas munições, granadas, medicamentos e grande quantidade de artigos diversos.

Travessia de uma bolanha (Foto de Albano Martins Álbum de memórias do BCP 12)

Por volta das 16 horas a sul da bolanha de Infaíde foram encontradas pequenas barracas individuais no tarrafo numa pequena ilhota, estas continham grandes quantidades de armamento e equipamento.

Para alcançar a citada ilhota tivemos de atravessar braços do rio Bipo, com água pelo peito, aquilo era uma zona de muita água, à parte a água havia ainda umas espinheiras muito afiadas que nos rasgavam tudo que lá tocava.

Páras em terreno difícil (Foto de Albano Martins Álbum de memórias do BCP 12)

Foi aqui que apanhei os meus primeiros “despojos de guerra” que foram: 1 cantil, um cinturão com fivela de chapa com a foice e martelo em relevo, um boné de pala do tipo chinês, e um estojo de faca garfo e colher, a faca perdi-a em Nampula, restam a colher e garfo com abre-latas e saca-rolhas porque nunca lhes dei uso, os restantes objectos já não existem desgastaram-se pelo uso, era um estojo bastante adiantado para a época, devia pertencer a algum comandante.

Foto do Estojo com colher e gafo

Foto do pormenor da marca, País do Leste?

Os guerrilheiros continuaram a flagelar-nos, era sol-posto quando a Operação foi dada por concluída, regressamos a Bissalanca com o material capturado.

Uma recuperação Héli (Foto Álbum de memórias do BCP 12)

Durante a operação foram abatidos dois guerrilheiros e capturados outros dois sendo um o chefe do grupo de Iracunda. Em vez de mencionar aqui todo o material capturado, resolvi expor a foto do mesmo.

Material capturado pela CCP 122 na Operação “Nestor” em 20/JUN/69 (Foto H BCP 12)

E foi mais uma operação em que participei sem dar um tiro.

No mesmo dia o Alf. Pára-quedista Armindo Calado, pertencente à CCP 121 que estava em Teixeira Pinto, foi morto em combate na região do Bachile.

Sentimos sempre a morte dos camaradas de armas, mas uns mais que outros conforme seja a nossa proximidade. Com o Alf. Calado tinha criado laços de amizade por ter convivido de perto com ele durante os dias e algumas noites, que durou Instrução de Combate 2/68, com início em 17JUN68 até 07SET68, pois tinha sido monitor no pelotão dele. Depois eles foram mobilizados e eu ainda fiquei a dar a Escola de Recrutas 3/68 que teve inicio em 16SET68.

A 28JUN69 fui com a CCP 122 para Teixeira Pinto via auto e no dia 08JUl69, fui de Teixeira Pinto para Bafatá integrando a CCP 123 (1), tendo passado por Bafatá, Galomaro e Dulombi.

(1) Tratou-se de uma Companhia a 3 GCOMB que estava mobilizada para Angola, mas foi enviada para a Guiné em reforço durante 3 meses passando a denominar-se CCP 123, no final as praças foram integradas nas CCP 121 e CCP 122 e os graduados seguiram o seu destino para Angola.

Saudações Aeronáuticas
Dâmaso
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8171: Memórias de Mansabá (13): Recordações de António Dâmaso, Sargento-Mor Pára-quedista - O baptismo de fogo na Guiné