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segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24865: E depois da peluda... a luta continua: as minhas escolas (Joaquim Costa) - Parte I: Santo Tirso, o dono da "tasca"



Porto > O atual edifício do ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto. que faz parte do IPP - Instituto Politécnico do Porto. Fonte: ISEP (2023)


Santo Tirso - Fachada da atual Escola Secundária Tomaz Pelayo.
Fonte: Agrupamento de Escolas Tomaz Pelayo (2023)



1. Mensagem do Joaquim Costa:

(i) ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã"  (Cumbijã, 1972/74);

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022) (*), e que depois publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;

(v) foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar;

(vi) minhoto, de Vila Nova de Famalicão (**), vive em Rio Tinto, Gondomar;



Data - 24/10/2023, 10:49
Assunto - Depois da Guiné... a luta continua

Olá,  Luís,

Espero que tudo esteja bem contigo.

Envio-te a minha primeira crónica, que publico no Facebook, sobre as “Minhas Escolas”.

Esta primeira crónica faz uma pequena referência às dificuldades e peripécias sobre o regresso à escola para concluir os cursos que ficaram a meio com a nossa mobilização para a guerra.

Deixo ao teu critério o interesse na publicação do Blogue.

Um grande abraço

Joaquim Costa



2. Comentário do editor LG:

Joaquim, é indecente responder-te só agora... Para mais sendo tu um colaborador "líquido", do nosso blogue, já com 67 referências, o que é muito para quem entrou há pouco mais de dois anos e meio. Lembro que és autor de uma notável série, "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", com  base da qual publicaste o teu livro “Memórias de Guerra de um Tigre Azul” (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2021, 179 pp.), 

Como já te respondi, por mail e na sequência da nossa última conversa ao telefone, claro que vamos publicar.  É um "filão" a explorar, o teu, o nosso pós-guerra como "paisanos"... 

Não temos aqui falado tanto quanto deveríamos  das dificuldades e obstáculos que, nós, antigos combatentes,  tivemos de enfrentar e vencer depois da peluda: exorcisar os fantasmas da guerra, "esquecer a Guiné", fazer os "lutos",  acertar o relógio e o calendário, arrostar  com as "piadas de mau gosto" (quando não mesmo a hostilidade de certos indivíduos e grupos), voltar a estudar, arranjar um emprego, ou retomar o trabalho que já tínhamos antes da tropa, refazer a vida pessoal e familiar, arranjar casa, casar, contrair o primeiro empréstimo bancário (e pagar juros altíssimos!), comprar o primeiro automóvel,  ou fazer as primeiras férias com a namorada, ou a mulher e os filhos, viajar, sair pela primeira vez do país, etc.  

Tu que fostes professor toda a vida, e também passaste pela experiência da administração escolar, podes falar de cátedra do que é isso de andar com a casa às casas até conseguir um lugar efetivo do quadro, próximo da terra e da casa onde queremos viver.

Seguramente que as tuas crónicas vão motivar e ajudar outros camaradas a escrever sobre o assunto, doloroso e fascinante ao mesmo tempo.


E depois da peluda... a luta continua: as minhas escolas (Joaquim Costa) 

Parte I: Santo Tirso, o dono da "tasca"


Ainda na ressaca dos dois anos passados no inferno da Guiné e completamente alucinado com o desenvolvimento do PREC (Processo Revolucionário Em Curso, 1974/75), assistindo incrédulo ao incêndio e destruição da sede de um partido político com uma multidão em fúria, lá me desloquei à minha antiga Escola (hoje ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto) tentar retomar os estudos vencendo as cadeiras por concluir. 

Foi uma tarefa de avanços e recuos; não só pelo alvoroço de toda aquela juventude que já se tinha livrado da guerra e que,  ao que parece,  também queria mudar o mundo, sabe-se lá para onde... mas fundamentalmente por sentir que aquela já não era a escola que eu tinha deixado.

Esta miudagem olhava para estes “velhos;” tisnados pelo sol da Guiné e com aspeto de alucinados, com alguma desconfiança já que cumprimentavam com deferência os seus antigos professores, que eles queriam sanear.

Como os porcos espinho no inverno,  lá se conseguiu um espaço mais ou menos confortável para as duas gerações. Os miúdos tinham já conseguido reduzir para 3 anos a duração dos cursos, entrar na direção da escola e sanear alguns professores. Nós conseguimos manter a antiga estrutura e duração do curso, o mesmo currículo e aulas suplementares nas cadeiras estruturantes.

Lá se conseguiu concluir o curso com o mesmo espírito com que se venceram os dias de inferno na Guiné, apoiados uns nos outros, nunca deixando ninguém para trás.

Concluído o curso, enquanto esperava pela resposta aos inúmeros currículos enviados para várias empresas, com outros colegas avançámos, como profissionais liberais, na elaboração dos primeiros projetos (ou proje...tinhos) de engenharia.

Entretanto surge a minha colocação na Escola Industrial e Comercial de Santo Tirso, que aceitei uma vez que me garantia o vínculo à função pública.

Não foi fácil, pois o ensino estava a anos-luz das minhas preferências. Apresentei-me na escola num dia, e nesse mesmo dia me indicaram a sala, cheia de alunos, para iniciar as aulas. 

O que é isso de pedagogia?!... Desenrasquei-me, ensinando como fui ensinado!

Entrei pela primeira vez na sala de professores, onde se discutia aos gritos os últimos desenvolvimentos do PREC. Mesmo naquelas condições não foi uma entrada discreta, para além do silêncio de igreja que abruptamente se fez sentir, vejo, incrédulo, toda a gente a afastar-se de mim. Tinha acabado de trocar o meu Fiat 600 por uma Diane nova com os estofos de uma mistela que deixava um cheiro na roupa insuportável. Demorou um ano a sair aquele cheiro,  pelo que não foi fácil fazer... amizades.

Passei dois anos nesta Escola, bem perto de casa (que era em Famalicão), mas não foram propriamente os melhores anos da minha vida. Contudo gostei muito dos alunos com quem mantive uma boa relação.

Também ajudou a algum desconforto o facto de ser o responsável pelo bar da escola, tarefa que ninguém queria, já que se estava sujeito a todo o tipo de piropos sobre a qualidade dos produtos e a quantidade do queijo e fiambre no pão. Chegaram a insinuar que eu estava a meter dinheiro ao bolso. Era brincadeira, mas... aleijava!

Até os amigos das jogatanas de futebol de salão me tratavam por... “tasqueiro”!

Sim, é mesmo verdade! Imaginem o meu espanto quando a Diretora me entrega o horário com duas horas da “disciplina” de Bar. Argumentei que a minha formação era em engenharia eletromecânica pelo que nada sabia sobre restauração. Dizia ela, com um sorriso nos lábios: "não dá trabalho nenhum, é só comprar os produtos e vendê-los ao preço de custo. No final do ano entregas um relatório com a diferença do deve e haver a zeros!"...

Ficou, ao menos,  uma grande amizade com o funcionário do bar, o meu braço direito...e esquerdo.

Não foram propriamente dois anos fáceis, principalmente na "cadeira" de Bar...

Joaquim Costa

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Notas do editor

(*) Último poste da série > 28 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23465: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVIII: Em 1976, uma viagem pela velha Europa para esquecer a guerra e espairecer do PREC

(**) Vd. postes de:

18 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23891: Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) - Parte I: A pomada milagrosa

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13514: Fotos à procura de... uma legenda (33): Professoras que passaram pelas escolas da Guiné colonial... (Nelson Herbert)


Foto nº 1 

Foto nº 1 A

Foto nº 1 - B

Uma relíquia, diz o Nelson Herbert!...  Legenda sumária: Algumas das professoras que passaram pelas.escolas na Guiné...colonial. Foto enviada pelo nosso amigo Nelson Herbert, jornalista  da VOA (Voice of America, Voz da América), de origem guineense.  Os únicos dois homens do grupo parecerem ser padres, missionários...

Será que neste grupo está a professora de Bambadinca do meu tempo e do tempo de alguns camaradas do blogue, a Dona Violete da Silva Aires, de origem caboverdiana ?  Não me parece, na única foto que temos dela, de c. 1965/66, ela usava óculos escuros e cabelo encaracolado... (LG)

Foto: © Nelson Herbert (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13470: Fotos à procura de... uma legenda (32): A arte xávega... que está a morrer (Luís Graça)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9737: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (4): Mansabá, solene inauguração

1. Foi com esta mensagem de 28 de Março de 2012 que o nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) nos apresentou o seu trabalho de que hoje terminamos a sua apresentação:

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Durante a minha vida militar na Guiné, tirando os quatro meses iniciais, sempre dei aulas, melhor dizendo, fiz alfabetização. Guardei sempre uma parte do meu tempo livre para proporcionar a muitos soldados a obtenção da quarta classe e, nos últimos quatro meses, trabalhei a tempo inteiro com soldados e com crianças. A minha "guerra" foi sublimada com este meu trabalho de que me orgulho e ao qual me dediquei. Talvez ingenuamente foi a procura dessa sublimação o que sempre me conduziu na minha atividade como combatente. Precisei desse objetivo mesmo sem saber ou pouco me importar qual o resultado final.

Titulei este trabalho com "Um professor na guerra". Professor e combatente fui de certeza. O título está para o"frouxo". Arranjam-me um melhor para este relato? Vai dividido em quatro partes. Se acharem por bem publicar é possível que prefiram uma outra divisão. Fica ao vosso critério.

Manuel Joaquim


UM PROFESSOR NA GUERRA

IV - Solene inauguração

Continuando a falar da nova escola de Mansabá passo por cima da sua óbvia atividade que é o ensino o qual, neste caso e de minha responsabilidade, não passou da iniciação na língua portuguesa e na matemática. É que, poucos dias após a sua inauguração, o meu Bcaç 1857 saiu de Mansabá a caminho de Bissau, em fim de comissão.

Logo em janeiro no início das aulas, debaixo do frondoso mangueiro, comecei a pensar no que as crianças poderiam oferecer aos visitantes da sua escola, no dia da sua inauguração, para além de cantarem o Hino Nacional, tarefa de que me incumbiram e eu garanti cumprir. A primeira ideia que me surgiu foi a de elas se apresentarem com canções populares locais. Ainda começámos a ensaiar uma, por sinal muito bonita, mas numa noite de insónia veio-me à ideia ensinar-lhes canções populares portuguesas. Percebi de imediato que, se o conseguisse fazer, a coisa iria funcionar como uma maravilha para as “chefias”! Ratice!

Se rápido o pensei, mais depressa pus mãos à obra, melhor dizendo, memórias e gargantas a funcionar! Sentia ser esta uma tarefa muito difícil para a miudagem, por não saberem falar português, mas dois meses dariam para memorizar duas canções. E, com esta ideia, comecei a ensaiar o “Malhão” aproveitando uns vinte minutos diários, no final das aulas de cada dia. Fiquei espantado com a rapidez com que aprenderam a música (lalalá lá lá). Mas a letra estava mais difícil, havia dificuldade na sonorização de certas sílabas, a coisa não estava a ser fácil. Da minha parte, alguma experiência nesta área ajudou-me a obter bons resultados. Tinha coro infantil!

Perante este resultado fiquei tão entusiasmado que lancei a canção “Ó Rosa arredonda a saia”. Que problema para conseguirem dizer/cantar “órrosárredondássaia”! Mas conseguiram! Como o conseguiram com a “Tia Anica de Loulé”! O que é certo é que , em dois meses de ensaios, as canções estavam que se “podiam” ouvir. “Sabiam-me” musicalmente melhor do que quando cantadas pelos meus alunos na metrópole, devido à expressão mais sonora das palavras, com as sílabas muito mais abertas. Esta vocalização foi precisa para aquelas maravilhosas crianças apreenderem os sons de todas as sílabas (não esquecer que estavam a começar a aprender português e muitas daquelas palavras eram para elas como é o chinês para mim!).

E vamos agora ao Hino Nacional. Aqui é que foi o busílis! Enquanto que nas canções infantis eu lá lhes conseguia explicar o sentido das palavras e das frases, nos versos do Hino a explicação era impossível! (Quando ouço alguém a tentar cantar em inglês sem saber uma palavra desta língua, lembro-me sempre dos meus alunos de Mansabá a cantarem “A Portuguesa”!) Imaginem-se a explicar-lhes o que são “heróis do mar”, “nobre povo”, “esplendor de Portugal”, “brumas da memória”, “egrégios avós”, etc.

Pois é, não percebiam nada do que estavam a cantar mas memorizaram aquela caterva de sons alinhadinhos que até parecia que sabiam o que estavam a dizer!: “Irós di má ...nó...bipô ô ô naçãvalen...ti...mutá”, etc. etc.

Chegou o grande dia, a inauguração da escola. Os três Furriéis a ela ligados (eu, o Passeiro e o Correia) estavam um pouco nervosos, eu especialmente, mas correu tudo muito bem. O Hino Nacional, cantado por aquelas crianças, saiu lindo! (Foi fantástico elas memorizarem todas aquelas palavras(?)-sons! A sua memória era maravilhosa!) E as canções populares portuguesas foram um sucesso. E foram tão bem cantadas! Arnaldo Schulz gostou tanto que me veio dar um abraço e bater mais umas palminhas às “minhas” crianças.

Este acontecimento foi reportado na imprensa e na rádio da Guiné. Num jornal a que chamo Diário da Guiné (não tenho ideia nenhuma da sua existência) saiu uma reportagem de que mostro aqui a parte principal e que mandei à namorada (os sublinhados são dessa altura):

Bissau, 25Abril67 (...) “Como já reparaste vai aqui um excerto do Diário da Guiné. O jornal não identifica a minha actividade militar em Mansabá (...) Fiquei um pouco admirado quando li a reportagem. Na fotografia, a minha presença vai assinalada com uma seta. Aqui vai tudo para te distraíres um bocado! Ah ah ah! (...)Até fui abraçado pelo general! A exibição coral foi, na verdade,um sucesso. Palavra que me chegaram as lágrimas aos olhos quando, à frente das crianças, a exibição coral passou muito além do que eu pensava. Dois dias depois ouvi pela rádio a transmissão e fiquei visivelmente orgulhoso pela maravilha como me saíu o “Malhão”, a “Tia Anica de Loulé”, “Ó Rosa arredonda a saia” e outras.(...)”


Uns vinte e poucos dias depois destes factos, deixámos Mansabá. O melhor que tenho para encerrar este relato da minha vida de militar-professor é esta transcrição do que então disse à namorada, na última carta que lhe escrevi da Guiné: (...)Saí de Mansabá com as lágrimas nos olhos pois não consegui conter-me perante a despedida afectiva daquelas crianças. Ver criancinhas negras com lágrimas na face e abraçadas a mim foi demais. Nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. Foi qualquer coisa de inolvidável (...).”

FIM
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Nota de CV:

Vd. postes da série de:

2 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9692: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (1): Analfabetismo, um outro combate

5 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9703: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (2): Uma Escola em Mansabá
e
9 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9721: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (3): Na escola, com as crianças

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9721: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (3): Na escola, com as crianças

1. Foi com esta mensagem de 28 de Março de 2012 que o nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) nos apresentou o seu trabalho de que hoje publicamos a terceira parte.

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Durante a minha vida militar na Guiné, tirando os quatro meses iniciais, sempre dei aulas, melhor dizendo, fiz alfabetização. Guardei sempre uma parte do meu tempo livre para proporcionar a muitos soldados a obtenção da quarta classe e, nos últimos quatro meses, trabalhei a tempo inteiro com soldados e com crianças. A minha "guerra" foi sublimada com este meu trabalho de que me orgulho e ao qual me dediquei. Talvez ingenuamente foi a procura dessa sublimação o que sempre me conduziu na minha atividade como combatente. Precisei desse objetivo mesmo sem saber ou pouco me importar qual o resultado final.

Titulei este trabalho com "Um professor na guerra". Professor e combatente fui de certeza. O título está para o"frouxo". Arranjam-me um melhor para este relato? Vai dividido em quatro partes. Se acharem por bem publicar é possível que prefiram uma outra divisão. Fica ao vosso critério.

Manuel Joaquim


UM PROFESSOR NA GUERRA

III - Na “escola”, com as crianças

Em 9 de janeiro de 1967 escrevia à namorada: “Já quase me faço compreender pelas miuditas a quem dou aulas todos os dias. É um trabalho que me está a agradar imenso. (...) Como sabes fui dispensado do serviço operacional. Aqui está com certeza a causa da minha maior satisfação (...).

Duas semanas depois: “Falar-te do meu dia a dia talvez tenha algum interesse para ti. Como já sabes não ando no mato. Sábados de tarde e Domingos não trabalho. Nos outros dias dou duas horas de aula da parte da manhã às crianças e outras duas da parte da tarde aos soldados. (...) Vistas bem as coisas é caso para andar bem satisfeito e ando, comparando a minha situação actual com a anterior. (...).

Eu (agachado, de boné) com um grupo de alunas. Atrás, o Fur Mil A.G. Correia

O Fur Mil F.G. Passeiro com o seu grupo e eu (de boné) à esquerda da foto

Fotos de F.G. Passeiro

Em 6 de fevereiro/67: (...)Há pouco estava a falar-te de barulho e é precisamente agora, já passa um pouco da meia-noite, que ele está a atingir um grau bastante chato. É a altura das bebedeiras. E o melhor é pôr-me pelo menos a fazer que durmo, já que tenho de me levantar cedo para ir aturar a minha catraiada. (...)

Vinte dias depois: (...)“A minha situação,(...), não é para grandes preocupações. Isto não quer dizer que esteja livre de perigo. No entanto ele é muito menor. Ainda agora chegaram os meus camaradas que passaram oito dias seguidos no mato sem vir ao quartel. Eu fiquei, está claro, em Mansabá, de volta das miuditas. E muito satisfeito, sem dúvida, livre desta prova de resistência e de perigo. (...)

Em seis de março/67 escrevi: “(...) às vezes tenho estados de espírito estranhos, tal como o de começar a ter saudades de alguma coisa que por cá existe. Refiro-me, muito em especial, às minhas pequenitas que todos os dias, eu a caminho da escola, disputam em corrida qual delas chega primeiro para me agarrar e dizer “bom dia!”. Elas ainda mal falam o português mas já me sabem dizer “adeus amor di mim”, “adeus querido di mim” e outras frases similares.(...)

Uma aluna leva-me a casa para me apresentar a mãe e os irmãos

Fotos de Manuel Joaquim

(...) Enfim, são uns tempos muito bem passados, estes em que lido com as crianças. Cá na terra toda a gente me conhece pelo nome. Passo pelas ruas e, às vezes, até chateia a frequência com que me dizem “Manuel Joaquim!” Não dizem, muitas vezes, mais nada e só esperam que me volte e sorria.Há pouco tempo aconteceu conversar com uma rapariga que me olhava um pouco intrigada e sem o à vontade que eu esperava. Soube que era nova cá em Mansabá. Quando lhe disse que era o Manuel Joaquim veio logo um “Ah, bó professor di bajuda” (...)”Manga di bom pessoal, bó mesmo” (...). Alegra-me saber que fiz algo de bom por aqui. E é, sim, com um pouco de saudade que vou deixar esta gente” (...).

Estas transcrições pretendem dar uma ideia do meu estado de espírito perante o trabalho que me obriguei a fazer. Tudo correu bem, o edifício escolar foi construído e os alunos ocuparam a sala de aula já equipada, todos contentes por terem saído da rua e eu ainda mais contente por não ser agora tão fácil distrairem-se face aos ruídos da rua. Aproximava-se a data da inauguração da escola. Não me lembro do dia mas foi num dos últimos dias de março/1967. Sei porque em 02/abril escrevi à namorada e referia-me ao facto de ter sido louvado pelo comandante de batalhão e este louvor ter tido como causa o que sucedeu na inauguração da escola, a que me referirei noutro capítulo. No final da inauguração, o repórter do PFA (o alferes milº M.F.Teixeira, meu amigo e companheiro de estudos), veio bisbilhotar-me que tinha ouvido o general perguntar, referindo-se a mim, “ já louvou aquele furriel?”

Tenho pena de não ter fotografias da escola e da sua inauguração. Não sei se foi erro meu, o mais certo foi ter sido. Temendo que algumas fotos pudessem infringir certos ditames político-militares da época, adiei a revelação dum rolo onde estavam também essas fotos para quando estivesse na “metrópole”. Ainda hoje me dói recordar a transparência do negativo quando quis levantar as fotos. Fotos, zero! Como diz o ditado castelhano “no creo en brujas mas que las hay las hay”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9703: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (2): Uma Escola em Mansabá

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9703: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (2): Uma Escola em Mansabá

1. Foi com esta mensagem de 28 de Março de 2012 que o nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) nos apresentou o seu trabalho de que hoje publicamos a segunda parte.

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Durante a minha vida militar na Guiné, tirando os quatro meses iniciais, sempre dei aulas, melhor dizendo, fiz alfabetização. Guardei sempre uma parte do meu tempo livre para proporcionar a muitos soldados a obtenção da quarta classe e, nos últimos quatro meses, trabalhei a tempo inteiro com soldados e com crianças. A minha "guerra" foi sublimada com este meu trabalho de que me orgulho e ao qual me dediquei. Talvez ingenuamente foi a procura dessa sublimação o que sempre me conduziu na minha atividade como combatente. Precisei desse objetivo mesmo sem saber ou pouco me importar qual o resultado final.

Titulei este trabalho com "Um professor na guerra". Professor e combatente fui de certeza. O título está para o"frouxo". Arranjam-me um melhor para este relato? Vai dividido em quatro partes. Se acharem por bem publicar é possível que prefiram uma outra divisão. Fica ao vosso critério.

Manuel Joaquim


UM PROFESSOR NA GUERRA

II - Uma escola em Mansabá

Por Manuel Joaquim

O ano de 1967 chegou, tinha a CCaç 1419 dezassete meses de Guiné e estava sediada em Mansabá. Quantas e quantas vezes suspirei pela chegada deste 1967! Ele trazia no “ventre” a senha de largada daquele martírio e a viagem de regresso a Lisboa!

Tinha planeado começar o ano em grande: umas belas e relaxantes férias em Bubaque, o momento ideal para “saborear” a Guiné, longe da guerra e disponível para gozar os encantos do mar e clima tropicais. Já tinha distribuído trabalhos escolares pela minha turma da “escola regimental”, tipo TPC como se diz hoje. Mas, inesperadamente, tudo falhou!

Uns dias antes da minha previsível partida para férias, sou chamado ao Comandante de Companhia. Queria “dar-me” uma missão, criar uma escola primária, em cumprimento de ordem recebida de Bissau para pôr essa escola a funcionar num prazo máximo de três meses. O Governador-Geral viria inaugurá-la.

 - "Toma lá! Como prémio pelo trabalho destes meses todos a dar aulas a 40 e tal soldados, tens agora uma escola primária a teu cargo!"- devo ter pensado na altura. Comecei por dizer que tinha férias aprovadas e marcadas, que não poderia aceitar. Levei como resposta que a situação se não compadecia com as minhas férias. "Porra, lá se foram as férias!

Mansabá, JAN67 > Interior do aquartelamento

Comecei a analisar a situação. Por um lado agradava-me o convite mas, por outro, não encontrava tempo disponível para cumprir a missão. Sendo assim, apresentei uma condição para aceitar e que era a de vir a ser dispensado de toda a atividade operacional. Esta condição foi recusada na base de que a minha saída do Grupo de Combate poderia trazer problemas operacionais. Reiterando que não me seria possível, física e temporalmente, assumir este trabalho, recusei o convite. Se o Comando queria apresentar ao Governador coisa séria teria de lhe apresentar uma escola a funcionar plenamente e não somente um edifício, por muito bonito que fosse. E eu, naquelas condições, não conseguiria cumprir.

Como já disse noutro “post”, fui para a guerra assumindo totalmente a situação de combatente. Desta vez, percebi e aproveitei a situação para me excusar às ações de combate. Aproximava-se o fim da comissão e o “não ir para o mato” seria uma maravilha. De qualquer modo também não me seria possível exercer as funções para que tinha sido “convidado” se continuasse no serviço operacional.

No dia seguinte fui novamente chamado, pensava eu que para mais uma tentativa do capitão. Mas não, foi para me dizer que fora tida em conta a minha situação e que, a partir daquele momento, ficava isento do serviço operacional e com a responsabilidade de pôr a funcionar as aulas na escola a construir de imediato. Senti o incómodo no seu tom de voz, como se quisesse acrescentar: “Já que és tão exigente, sempre quero ver o que vais fazer!” Fiquei sem férias mas com uma qualidade de vida muito melhor. Que alívio!

Dei a notícia à Companhia e a coisa não me foi agradável. Ainda hoje me lembro de não me sentir bem ao olhar os meus camaradas de Pelotão e, principalmente, os meus soldados da Secção. Foi uma separação repentina, uma peça daquela “maquineta” de combate que se partiu. Eles viam o meu trabalho, percebiam com certeza que não poderia estar nos dois lados, mas também invejavam a minha situação. Eu sentia-o, pois comigo aconteceu coisa igual quando vi o meu amigo e camarada de Especialidade e de beliche na caserna de Mafra, Raul Durão (CCaç 1421), sair de Mansabá (K3?) para trabalhar na Rádio em Bissau. Que inveja aquilo me deu! Mas deu-me também um jantar pago pelo Raul quando dele me despedi e deixei Bissau a caminho de Bissorã. (R.I.P. Raul!)

E ... mãos à obra! Fiquei com os dias totalmente preenchidos com o ensino: de manhã, a um grupo de crianças e, de tarde, aos soldados.

Bela “sala” de aulas, à sombra do mangueiro florido! 

O Pelotão de Sapadores ficou encarregado da construção do edifício escolar. Eu, apoiado pelos Furriéis Francisco Germano Passeiro (CCaç 1421) e António Correia (C?), tratava da parte pedagógica e administrativa. Tudo tinha de estar a funcionar como deve ser para finais de março, princípios de abril, altura já marcada para a solene inauguração pelo Governador e Comandante-Chefe Arnaldo Schulz.

E tudo correu como planeado. Para começar apareceram vinte e tal crianças. Como não havia sala, distribuímo-las por nós três e começámos a alfabetização na rua, no meu caso com o grupo das meninas debaixo de um grande mangueiro. Construído o edifício, no princípio de Março tomei conta da parte letiva enquanto os furriéis referidos se encarregaram das atividades circum-escolares.

E lá nos fomos preparando e preparando a miudagem para a festa da inauguração.

É hora de recreio!
Foto de F.G. Passeiro

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 2 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9692: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (1): Analfabetismo, um outro combate

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9692: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (1): Analfabetismo, um outro combate

1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 28 de Março de 2012:

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Durante a minha vida militar na Guiné, tirando os quatro meses iniciais, sempre dei aulas, melhor dizendo, fiz alfabetização. Guardei sempre uma parte do meu tempo livre para proporcionar a muitos soldados a obtenção da quarta classe e, nos últimos quatro meses, trabalhei a tempo inteiro com soldados e com crianças. A minha "guerra" foi sublimada com este meu trabalho de que me orgulho e ao qual me dediquei. Talvez ingenuamente foi a procura dessa sublimação o que sempre me conduziu na minha atividade como combatente. Precisei desse objetivo mesmo sem saber ou pouco me importar qual o resultado final.

Titulei este trabalho com "Um professor na guerra". Professor e combatente fui de certeza. O título está para o"frouxo". Arranjam-me um melhor para este relato? Vai dividido em quatro partes. Se acharem por bem publicar é possível que prefiram uma outra divisão. Fica ao vosso critério.

Manuel Joaquim


UM PROFESSOR NA GUERRA

I - Analfabetismo, um outro combate 

Por Manuel Joaquim

É um facto que, inicialmente, por atitude dos comandos militares locais e mais tarde por ordem governamental para a generalidade do território, os militares portugueses muito fizeram para combater o analfabetismo reinante na então chamada província da Guiné. Analfabetismo este que era quase geral quando se refere a população local e era muito grande, vergonhosamente grande, no seio dos nossos soldados.

A minha maior surpresa política quando cheguei à Guiné foi constatar que a língua portuguesa era uma coisa residual, praticamente ninguém a falava fora dos círculos da chamada elite social. “Os 500 anos de Portugal no território da Guiné, parte inalienável da pátria portuguesa” (como se dizia na altura) nem sequer tinham conseguido implantar a língua portuguesa como veículo de comunicação global!

Cheguei à Guiné no início de agosto de 1965, tinha 24 anos de vida e 18 meses de “tropa”. Pode-se dizer que, naquelas circunstâncias, era um veterano perante a idade (civil e militar) da quase totalidade dos meus camaradas da companhia. Apesar de ser ideologicamente contra a guerra, assumi até ao “miolo” a situação de combatente, sem subterfúgios, sem resistências, sem manigâncias (havia por lá tantas!) para me escapar à atividade operacional.

No início do ano de 1966, o meu comandante de companhia vem pedir-me que tomasse conta da alfabetização de alguns soldados. O meu “sim” foi imediato e feliz:

Bissorã, 24FEV66 (... ... ...) Há uns tempos para cá tenho a meu inteiro cargo a instrução primária de 44 soldados, o que me ocupa todas as tardes e princípios de noites, precisamente o tempo mais propício ao descanso. Mas eu trabalho com gosto. Até porque é o meu único trabalho oficial válido. E os alunos compreendem e acarinham-me. O que é certo é que o tempo livre voou quase todo.(... ... ...)

E assim, durante mais de um ano, tive mais esta ocupação que me manteve psicologicamente bem à tona. Nos intervalos da minha atividade militar dei aulas a mais de três dezenas de soldados, alguns deles analfabetos, tentando preparar a maior parte deles para o exame da 4ª classe. Profissionalmente, estava na minha “quinta” pois era professor do quadro do ensino primário. Levei esta missão muito a sério, com devoção mesmo. Também os alunos o fizeram e o resultado foi terem completado o ensino primário, aprovados em exame oficial realizado nos termos legais, por um júri presidido pelo diretor provincial do ensino. Aprovados sem qualquer favor especial, bastou terem cumprido os objetivos mínimos (os mesmos que, em Portugal, estavam estabelecidos para o ensino de adultos). Foi um ponto de honra que assumi com os alunos.

Os poucos, à volta da dezena, que o não conseguiram, aprenderam os rudimentos do português escrito e da matemática, permitindo-lhes terem um certificado da 3ª classe que, pelo menos, lhes retirou o estigma de analfabetos. Aqui, confesso, houve alguma condescendência. Foi um dos momentos altos da minha vida pessoal e profissional. Resultado de um trabalho muito gratificante que proporcionou a mais de três dezenas de soldados um diploma escolar muito importante, diploma este que era essencial para um retomar da sua vida civil em condições muitíssimo mais favoráveis. Ter este diploma nas mãos foi para eles também uma grande vitória, deveu-se ao seu esforço e dedicação, à sua coragem para resistirem às tentações dos tempos livres. Senti-me feliz ao ver reconhecido o meu esforço e dedicação:

Mansabá, 10ABRIL67 (... ... ...) Reconheceram-no e ontem à noite organizaram uma festinha muito simples e comovente em minha honra. Senti-me confundido com a sua atitude, o seu reconhecimento por tudo o que fiz por eles, que sem dúvida foi alguma coisa sem outro intuito qualquer que não fosse o de instruí-los. A festinha terminou com razoáveis bebedeiras e eu, por pouco, não apanhei também a “perua”. Senti-me feliz, deveras satisfeito.(... ... ...) 

Sei que outros militares combatentes, como eu, dedicaram muito do seu tempo livre a alfabetizar muitos dos seus camaradas soldados, a combater o miserável analfabetismo que grassava neste país “farol da civilização”(!) como diziam as pancartas do regime político da época. Um país que, no início da 2ª metade do século XX, tinha um exército constituído por mais de um terço de analfabetos e uma outra parte dos soldados desse exército pouco mais sabia que soletrar e escrever o nome e fazer “de cabeça” umas simples continhas!

Quero aqui prestar homenagem aos que, acumulando com as atividades militares para que tinham sido mobilizados, se entregaram ao ensino de alguns seus camaradas e de muitas crianças das povoações onde estavam inseridos. Sem retorno económico ou de descanso, foram “missionários” da civilização, do bem comum. O meu caso não se compara, o trabalho foi mais fácil, exerci a minha profissão, “sabia da poda”. As minhas homenagens a quem o merece!

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9554: Reflexões sobre a Guerra Colonial / Guiné-Bissau (Manuel Joaquim)

terça-feira, 17 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4045: Nino: Vídeos (3): Em Portugal, um vizinho meu, antigo combatente, reconheceu-me e tratou-me por 'comandante Nino'...


Guiné-Bissau > Bissau > Palácio Presidencial > 6 de Março de 2008 > Excerto da audiência que o Presidente João Bernardo 'Nino' Vieira (1939-2009) deu, por volta das 12h, a cerca de duas dezenas de participantes estrangeiros do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). O grupo incluía 3 cubanos, Oscar Oramas, Ulises Estrada e o actual embaixador do seu país na Guiné-Bissau, e ainda três ou quatro guineenses. Mas a maioria dos presentes era portugueses, ex-combatentes da guerra colonial, portugueses... Estiveram também presentes o Dr. Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares, a Diana Andringa, e o José Carlos Marques, jornalista do Correio da Manhã. Também o francês Prof Doutor Patrick Chabal, o melhor biógrafo de Amílcar Cabral, esteve presente.

Ao todo, na sala, estariam cerca de duas dezenas de pessoas. A audiência foi decidida à última hora, por vontade expressa do 'Nino' Vieira, na qualidade de histórico comandante da guerrilha do PAIGC e um dos seus mais destacados militantes. Não estava prevista no programa do Simpósio. Uma hora antes, o grupo fora também recebidos pelo então 1º Ministro, Martinho N'Dafa Cabi. Não estava prevista, de resto, qualquer intervenção no Simpósio, por parte do Presidente da República - presumo que por razões de segurança - embora ele fizesse parte da comissão de honra.

Vídeo (6' 49''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em You Tube > Nhabijoes


Neste excerto da sua intervenção (*), 'Nino' pede aos portugueses, presentes, para transmitir ao seu Governo o pedido de envio (urgente) de mais professores de português. “Já alguns, mas não são suficientes. Não faltam no interior, em Bafatá, no Gabu”….

E lembra que são, ao fim e ao cabo, os cubanos quem está a fazer o maior esforço de alfabetização das populações no interior. São eles que ensinam o português. As duas línguas, português e castelhano, são próximas e facilmente se compreende o "portunhol"... Foram também os cubanos que criaram a Faculdade de Medicina (**), que ostenta o nome do comandante Raúl Díaz Argüelles (***), morto em Angola, e que está a funcionar no Hospital Nacional Simão Mendes, em Bissau. A ideia nasceu de uma conversa de ‘Nino’ com Fidel Castro.

'Nino' aponta o analfabetismo como a causa de muitos problemas estruturais da Guiné-Bissau… E remata: “Estamos agora todos do mesmo lado. No passado, nós estávamos a lutar contra um regime, não contra o povo português”... Recorda um episódio do seu exílio em Portugal: "Eu era vizinho de um antigo combatente português, que um dia me me reconheceu e me tratou como comandante 'Nino'...

Reconhece que há um problema, na Guiné-Bissau, de crescente perda da memória da luta de libertação… “A nossa história está a desaparecer. Vou ver se tenho um tempinho para ir aí a esse Simpósio, logo à tarde”.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

9 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4002: Nino: Vídeos (2): O amigo de Cuba... e de Portugal, que em Março de 2008 pedia mais professores de português (Luís Graça)

8 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3996: Nino: Vídeos (1): Ouvindo a versão do Coutinho e Lima sobre a retirada de Guileje (Luís Graça)

(**) Lembre-se que esta Faculdade, que recebe assessoria técnica e científica dos cubanos, propõe-se dar continuidade à formação de quadros que estava a cargo da Escola Nacional de Saúde (ENS), encerrada com o eclodir da guerra civil de 1998/99.

Criada em 1986, a ENS teria formado já cerca de uma centena de médicos guineenses. A parte terminal da licenciatura era (é) depois feita em Cuba.

A Faculdade de Medicina reabriu em 2006, sendo enquadrada na Universidade Amílcar Cabral (UAC), a única instituição do ensino superior pública existente na Guiné, e que lecciona, além de medicina, mais os cursos de licenciatura: Administração e Gestão, Educação e Comunicação, Sociologia, Economia, Jornalismo, Engenheira Informática.

A Guiné-Bissau dispõe ainda de uma Faculdade de Direito (FDB) cuja assessoria técnica e cientifica é dada pela cooperação portuguesa através da Faculdade de Direito, da Universidade de Lisboa.

(***) Raul Diaz Argüelles, chefe da missão militar cubana que veio em apoio do Governo do MPLA, a seguir à independência de Angola, proclmada a 11 de Novembro de 1975, morreu ao accionar uma mina anti-tanque no município do Ebo, província do Kwanza Sul, a 12 de Dezembro de 1975. Está sepultado no Cemitério do Alto das Cruzes, em Luanda.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2900: Blogoterapia (54): Chorar faz bem, chorar fez-me bem, camarada Jorge Félix (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Região do Oio > 10 de Março de 2008 > Samba Culo> Passando por Samba Culo a caminho de Canjambari > Mais uma recepção entusiástica...



Guiné-Bissau > Região Oio> 10 de Março de 2008 > Picada entre Samba Culo e Canjambari> "A poeira para recordar velhos tempos das colunas"...


Fotos (e legendas): Página de Carlos Silva > Guerra da Guiné 63/74 - BCAÇ 2879 > Viagens > Guiné 2008 (com a devida vénia...)


1. Mensagem do A. Marques Lopes, dirigida ao Jorge Félix, antigo piloto de helicóptero (Guiné, BA12, 1968/70):

Caro amigo:

Chorar fez-me bem, porque alimenta esta dor que eu não consigo (nem quero) apagar. Contei-te que tive de matar uma professora em Samba Culo e, como sempre que o faço, tive de chorar.Porque nunca quiz matar, porque fui obrigado a matar. Já disse uma vez, e é verdade que tentei ao longo da minha vida banir esta mágoa, mas sem o conseguir. Muitos copos bebi para tal, mas, como viste, por mais copos que beba não consigo. Disseste-me que, como piloto de helicóptero, também matas-te com certeza. Tabém eu te disse que, nas emboscadas, se calhar tinha matado também, assim como eles mataram dos meus. Nunca sabemos. Mas esta soube. Era eu que estava à frente dela e fui eu que disparei. E não queria.

Reavivou-me a dor, mas esta catarse do nosso encontro permitiu-me manifestar esta mágoa. É bom, sempre que possível.
Obrigado.

A. Marques Lopes

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Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 24 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - 2879: Blogoterapia (53): Falar da Guiné e verter lágrimas, faz bem (Jorge Félix)

(2) Vd. postes de:

29 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(...) "Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...)

"Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora". (...)

7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II (A. Marques Lopes)

" (...) o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.

"E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito
prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência.

"Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida" (...).