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domingo, 3 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15570: Libertando-me (Tony Borié) (50): Em direcção ao sul

Quinquagésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 30 de Dezembro de 2015.




Em direcção ao sul

Viajando pelas montanhas do estado de Pennsylvania, que estão localizadas a norte do equador, se, na nossa imaginação tomássemos uma qualquer estrela como referência no nosso trajecto, iríamos verificar que, embora lentamente, ela se movia para trás, ao contrário de nós que viajávamos em frente, isto talvez seja o efeito de que o dia tropical, portanto a sul do equador, embora seja uns segundos mais pequeno, nesta altura do ano existe mais tempo de luz, mas como as estrelas estão a uma enorme distância, vistas a “olho nu”, de nós seres humanos, é de uma diferença enorme.

Isto tudo companheiros, vem a propósito de que nos meses de inverno, estas montanhas, sem neve, dão-nos a sensação de um cenário lunar, com áreas e áreas sem qualquer vegetação e, onde ela existe, é rasteira e queimada pelo frio. De vez em quando uma família de veados, procurando no alcatrão partido da estrada, qualquer vegetação que tenta sobreviver com o calor desse mesmo alcatrão, ou um urso preto, que se pendura num galho seco de uma qualquer árvore, procurando chegar à sua ponta, para depenar alguma flor ou rebento que tenta vir à luz do dia.

Chegámos sem neve, partindo sem a ver.

Viajámos de retorno ao sul, seguindo o mesmo trajecto, pagando, entre outras coisas, gasolina um pouco mais cara e as tais “portagens do norte”, debaixo de nevoeiro e alguma chuva miudinha, até ao estado de Virgínia, parando na área da pequena cidade de Petersburg, de que hoje vamos falar.

Deixando a estrada rápida 95, seguindo pela estrada estadual 301, pouco depois encontramos a pequena cidade de Petersburg, no estado de Virginia que foi um local estratégico durante a Guerra Civil Americana e cenário de diversas batalhas. Existe aqui um Centro de Visitantes, administrado pelo Serviço Nacional de Parques, dedicado à área das batalhas travadas durante o Cerco a Petersburg, nos anos de 1864 e 1865, que foi determinante para o fim da Guerra Civil Americana. Depois de vermos uma exposição e alguns filmes sobre todos estes acontecimentos, pudemos viajar de veículo automóvel pelos antigos campos de batalha, vendo aqui e ali as trincheiras, os locais estratégicos, as barricadas, alguns monumentos comemorativos, do que foram, entre outras, a “Batalha de Cinco Forquilhas”, que destruiu uma parte considerável do restante exército confederado de Virgínia do Norte, local onde alguns historiadores designam por "Waterloo da Confederação", pois a “Batalha de Cinco Forquilhas” ajudou a pôr em marcha uma série de eventos que levaram à rendição de Robert E. Lee, na aldeia de Appomattox Court House.

Não querendo roubar espaço ao nosso blogue, vamos ser breves na história que nos diz que Petersburg lutou a partir de 9 de junho de 1864 a 25 de março de 1865, durante a Guerra Civil Americana, embora seja mais conhecido popularmente como o Cerco de Petersburg, que não era um cerco militar clássico, em que uma cidade geralmente é cercada e todas as linhas de abastecimento são cortadas, nem foi estritamente limitado a acções contra Petersburg, pois a campanha consistiu em nove meses de guerra de trincheira em que as forças da União, comandados pelo Tenente-General Ulysses S. Grant, assaltou Petersburg sem sucesso e, em seguida, as linhas de trincheiras construídas que eventualmente se estenderam ao longo de 48 km, a partir dos arredores a leste de Richmond, para cerca de uma periferia leste e sul de Petersburg, foram cruciais para o fornecimento do exército confederado do General Robert E. Lee e a capital confederada de Richmond, onde numerosos ataques foram realizados e batalhas se travaram na tentativa de cortar as linhas de abastecimento, tornando assim a diminuição dos recursos confederados.


No entanto, o General Robert E. Lee, cedeu à pressão no ponto em que as linhas de abastecimento foram finalmente cortadas e um verdadeiro cerco começou em 25 de Março, abandonando ambas as cidades em Abril de 1865, o que levou à sua retirada e rendição na aldeia de Appomattox Court House. De salientar que o cerco de Petersburgo era uma cópia da guerra de trincheiras que era comum na Primeira Guerra Mundial, que ganhou uma posição de destaque na história militar. Também não podemos esquecer que deste cerco fez parte a maior concentração de guerra das tropas americanas africanas, que sofreram pesadas baixas.

A batalha de Appomattox Court House, travada na manhã de 9 de Abril de 1865, foi uma das últimas da Guerra Civil Americana. Era o final do Exército da Virgínia do Norte que pertencia ao Exército Confederado do General Robert E. Lee, onde já não tinha escolha a não ser render-se.

A assinatura dos documentos de rendição ocorreu na sala de estar da casa propriedade de Wilmer McLean, na aldeia de Appomattox, na tarde de 9 de Abril, numa cerimónia formal marcando a dissolução do Exército da Virgínia do Norte, dando liberdade condicional aos seus oficiais e soldados, impondo assim, de forma eficaz, o fim da guerra em Virgínia, onde este evento desencadeou uma série de resgates em todo o Sul, levando assim ao fim da Guerra Civil Americana.

Não querendo ser o General Robert E. Lee, rompemos o cerco, seguindo em direcção ao sul, já era noite no estado de Carolina do Sul, logo a seguir ao “South of the Border”, de que já falámos por diversas vezes. Numa qualquer área de descanso, das muitas que existem ao longo da estrada rápida número 95, dormimos umas horas, tal como fazem centenas de famílias viajantes que regressam ao sul e, ou não têm recursos financeiros para uma estadia num hotel, ou entendem que não é necessário, parando pouco tempo, ocupar um quarto de hotel. De um modo ou de outro, nós, “viajantes do mundo”, chegámos à nossa Flórida, onde já existe sol, não “frio de rachar”.

Tony Borie, Dezembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15545: Libertando-me (Tony Borié) (49): Newark, New Yok, Newark

domingo, 27 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15545: Libertando-me (Tony Borié) (49): Newark, New Yok, Newark

Quadragésimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 24 de Dezembro de 2015.




Newark, New Yok, Newark! 

Devíamos de ter na altura, talvez 8 ou 9 anos de idade, foi quando celebrámos a “comunhão cristã”, que colocámos nos pés a primeira protecção, uns sapatos usados, oferecidos ou emprestados, não sabemos ao certo, pelo companheiro Carlos, filho do Santos dos Correios de Águeda, que tinha vindo dos lados de Leiria. Até essa idade, era “pé descalço”, no inverno, nas manhãs de geada, divertíamo-nos partindo o gelo das poças de água com os pés, nos carreiros da nossa aldeia, era uma bricadeira agradável, pois o gelo derretia com mais facilidade.
Ufa, até nos arrepiamos só de lembrar, mas é Dezembro, ainda não vimos neve, está muito frio por aqui, mas esta história de colocarmos nos pés a primeira protecção, para nós, ainda é considerada “o nosso primeiro Dia de Natal”.

Deixemos o passado, nesse bonito Portugal, vamos falar de hoje, chegámos a Nova Jersey, viemos em trânsito para Nova Iorque, passámos na cidade de Newark, visitámos a portuguesa Ferry Street, procurámos os lugares nossos conhecidos, onde moravam as personagens de que vos temos falado, está tudo diferente, no lugar do “Bar do Minhoto” está um Restaurante Grill, que aceita reservas via internete; onde morava a Gracinda está um parque de estacionamento, onde uma senhora afro-americana, nos atendeu, embrulhada num enorme casaco e cachecol, pois o frio era muito, teve dificuldade em receber o pagamento e guardar o dinheiro, pois usava umas luvas sem a parte dos dedos, onde sobressaiam umas “unhas azuis”, muito compridas. Perguntámos se falava português ou espanhol, pois era a “Ferry Street”, com um sorriso matreiro, respondeu-nos qualquer coisa como, “mi non habla”.

A Ferry Street tem algumas árvores, está limpa, alguns canteiros com flores, onde havia a loja do Orlando está um grande edifício de um Banco, os estabelecimentos têm portas de vidro, não mais aquelas portas em madeira, que “chiavam”, alguns restaurantes têm esplanadas nos passeios, está uma Avenida para turistas.

Vamos em frente, deixámos a viatura na cidade de Newark, seguindo de comboio, pois o estacionamento na cidade de Nova Iorque é muito caro. Estava nevoeiro, quase cerrado, como se dizia na minha aldeia. Atravessámos um dos túneis do rio Hudson que desagua na ilha de Manhattan, que é o mais densamente povoado dos cinco bairros da cidade de Nova Iorque, que se situa na ilha com o mesmo nome, delimitada pelos rios Hudson, East e Harlem, sendo um dos principais centros comerciais, financeiros e culturais do mundo. É o coração da "Big Apple", é onde estão os arranha-céus, cujas imagens correm o mundo, como o Empire State Building. As luzes de néon no Times Square ou os teatros da Broadway, nós saímos na área do World Trade Center, visitámos mais uma vez o museu educativo, dedicado ao “11 de Setembro”, meditámos em homenagem às vítimas, tomando em seguida o “subway” para a Rua 53, junto da Quinta Avenida, caminhando, fomos vendo a Catedral de São Patrício, parando por mais tempo na área do “Rockefeller Center”, onde está a árvore de Natal que tradicionalmente é um abeto vermelho da Noruega, sendo iluminada por 30.000 ecológicas luzes, que envolvem mais de cinco milhas de fio eléctrico, coroada por uma estrela de cristal Swarovski. Esta árvore de Natal é um símbolo mundial em Nova York, foi acesa pela primeira vez na quarta-feira, 2 de Dezembro, com performances ao vivo na Rockefeller Plaza, entre as Ruas 48, 51, e a Quinta e Sexta Avenidas, onde dezenas de milhares de pessoas todos os dias enchem as calçadas para assistir a este evento, que milhões podem assistir em todo o mundo pelos meios de comunicação que hoje existem.
Faz este ano 83 anos que foi iluminada pela primeira vez, e permanecerá acesa, podendo ser visitada até ao dia 7 de Janeiro de 2016. Oxalá seja a mensageira de Paz para todos nós, em especial para os nossos companheiros combatentes.


Comemos “pretzels cookies”, que é um biscoito típico, parecido com pão, feito de massa, em forma de um nó torcido, que teve origem na Europa, provavelmente entre os mosteiros da Idade Média, que se vende em qualquer quiosque de rua, em Nova Yorque e não só. Continuando a nossa jornada, vendo os edifícios da cadeia de televisão NBC, do Rádio City Music Hall, onde em frente algumas “Rockettes”, que são as tais raparigas que dançando, levantam a perna esquerda ou a direita, todas ao mesmo tempo, fazendo uma coreografia de “cabaré do século passado”, convidam a partilharmos momentos inesquecíveis juntos, experimentando a magia do Natal, transformando tudo num país das maravilhas onde o “Pai Natal” não se cansa de espalhar elogios a todos.

Parámos por momentos no “Times Square”, já andam em montagem de estruturas para as celebrações da passagem de ano, continuando, pela Sétima Avenida, em direcção à estação de comboio “Pennsylvania”, que se localiza na Rua 34, por baixo do edifício de grandes eventos desportivos e não só, que é o célebre e histórico “Madison Square Garden”, onde tomámos o comboio de regresso à cidade de Newark, em Nova Jersey, de novo na portuguesa Ferry Street, onde tivemos a sorte de encontrar um restaurante que dá pelo nome de “Bar & Restaurante Sagres”, com charme, num espaço acolhedor, música ambiente, onde numa escala de dez, damos a nota dez, onde o Henrique, um simpático jovem, que se dedicava ao ensino em Portugal e veio para os EUA há uns anos para “ver a neve”, e que por cá ficou, nos atendeu com simpatia, servindo-nos “Chistorra” e “Bacalhau à Casa” com natas e camarões, que estava bom, mesmo muito bom, oferecendo-nos no final, um copo com vinho do Porto.

Não sabemos se era o efeito do vinho do Porto ou se sonhávamos, mas retornando à Ferry Street, já no regresso, em direcção ao parque de estacionamento, não vimos roupas escuras, xailes, tranças e bigodes, mas sim uma jovem, usava um sapato alto de cada cor, umas meias compridas de um azul escuro, por baixo de uma saia que parecia o lenço que a minha avó usava à cintura, quando ia à romaria do Senhor dos Passos, na vila de Águeda, onde uma espécie de blusa só lhe tapava parte da frente do seu corpo, mascava “chiclets”, algumas pinturas, não para tornar a face mais atractiva, mas sim diferente do normal, o perfume não era exótico, era diferente, o cabelo era curto, pintado com uma cor que nem era verde nem azul, usava óculos à “Hollywood”, não nos olhos, estavam colocados a segurar o cabelo, um casaco de “cabedal” amarelo, debaixo do braço onde usava umas cinco ou seis pulseiras que brilhavam e completavam a história do seu vestuário, falava alto, numa linguagem sem preconceitos, havia “frio de rachar” mas estava excitada, recebendo o calor, talvez do cigarro que fumava, pois era parecido com aqueles que nós algumas vezes, quando estávamos com o moral em baixo, fumávamos lá na então nossa Guiné, pela coreografia talvez fosse alguma descendente da Inês, aquela portuguesa espanholada, do nosso tempo da Ferry Street.

Boas Festas para todos, em especial aos companheiros combatentes e, já agora, se não é pedir muito, que continuemos juntos pelo ano de 2016, com saúde, alegria em ainda por cá andarmos, que nunca nos falte a panela a cozinhar no fogão e alguma “protecção nos pés”.

Tony Borie, Dezembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15514: Libertando-me (Tony Borié) (48): Vamos para Norte

domingo, 20 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15514: Libertando-me (Tony Borié) (48): Vamos para Norte

Quadragésimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




Vamos para Norte

Com atenção ao trânsito, ouvindo música, conversando com a nossa companheira e esposa, viajámos mais de setecentas milhas na óptimas estradas do sul. Parecem pistas, onde se viaja sem custos até entrarmos nos tais estados no norte, encostados ao Oceano Atlântico, bastante comerciais e industriais. Aí começamos a pagar por usar as estradas rápidas, tal como na Europa, as tais “Portagens” e, a estrada não apresenta um bom estado de conservação, não se comparam com as do sul, a única razão compreensível, é que necessitam de reparação frequente, pois o inverno no norte é rigoroso.

Já passámos Washington, é o mesmo que passar de sul para norte, não sabemos se ainda existe a tal influência da federalização das dívidas contraídas ao longo da guerra de independência, pelos estados, onde, os estados do sul já haviam pago a maior parte das suas dívidas, de que já falámos no texto anterior, o que é certo é que ainda hoje, no ano de 2015, no sul, viajamos pela estrada rápida número 95, em óptimo estado, sem pagar qualquer “portagem”, a partir de Washington, existem curvas acentuadas, descidas, subidas, túneis, onde se paga “portagem”; pontes, onde se paga “portagem”; troços de estrada em melhores condições, mas também, onde se paga “portagem”; então se passarmos o estado de Nova Iorque, continuando para norte, com várias pontes e túneis, continua-se a pagar “portagem”, chegando a pensar algumas vezes que era preferível viajar de avião, pois compensava.

Mas os emigrantes que regressam de visita aos estados do norte, onde tiveram residência e ainda estão os seus familiares e amigos, querem viajar de veículo automóvel, pois no regresso querem parar em Nova Jersey, na histórica cidade de Newark, na portuguesa “Ferry Street”, e comprar, além de bacalhau e azeite, talvez, latas de conserva de atum dos Açores, marmelada, rebuçados “São Braz” ou sabão “Clarim”, para levarem para sul, onde agora vivem, e quem sabe, talvez lembrar a Inês, aquela portuguesa espanholada, que além de fumar “Malrboro” e, tudo o que já dissemos a seu respeito, também usava, pelo menos ao fim de semana um perfume exótico, parecido com aquele que usavam as filhas do Libanês, lá na vila de Mansoa, na então Guiné Portuguesa, que lhe trouxe a Eulália, que trabalhava na “fábrica dos perfumes”, que vivia maritalmente com o Zé Paulo, um rapaz muito educado, que servia ao balcão no “Bar do Minhoto”, no seu tempo livre, pois trabalhava a tempo inteiro na construção, fazendo parte do “gang” do Manuel Murtosa, marido da Gracinda, mulher honrada e respeitadora, que não falava na vida de ninguém, mas não perdia qualquer oportunidade para fazer gestos eróticos com os dedos da mão, piscar o olho ou apalpar o rabo ao Zé Paulo, que era um jovem que ao chegar do trabalho na construção, tomava banho, arranjava as unhas, vestia com elegância, com uma camisa branca e um laço preto, com que atendia ao balcão do “Bar do Minhoto”, onde sem o querer, dada a sua posição, facilitava encontros para, entre outras coisas, trabalho, pois sabia quem precisava de força laboral e quem procurava trabalho, sabia dos problemas, alegrias e desgostos de quase toda a comunidade, indo muitas vezes levar a casa alguns emigrantes que por lá ficavam a beber até mais tarde, como por exemplo o “Carlos das Pombas”, pois viviam no mesmo edifício.


Este bom homem, o “Carlos das Pombas”, cujo apelido lhe foi dado porque trabalhando na “fábrica da reciclagem”, que se localizava próximo de algumas pontes, lá para os lados do Porto de Newark, vivia amargurado, dizendo que tinha perdido a sua honra porque um dia, vendo centenas de pombas, que viviam debaixo das já referidas pontes, pensando “numa valente arrozada”, pediu a alguém uma espingarda e, aquilo era, cada tiro meia dúzia das bonitas aves que vinham parar ao chão, alguém passou por lá, talvez sentindo-se molestado, nunca ninguém soube, ouviu tiros, avisou a polícia, uns minutos depois passa por lá um carro policial, em silêncio, com dois polícias armados, que vendo um homem de caçadeira na mão, naquele local, onde a ramagem quase cobria um homem e o terreno era alagadiço, logo pensaram tratar-se de algum “ajuste de contas da máfia”, o melhor era irem embora com o mesmo silêncio com que vieram, contudo, com alguma coragem, de pistola em punho, foram-se aproximando e, ainda a uma certa distância, ficaram algo surpreendidos, ao verem o Carlos a descalçar as botas, tirar as calças e ir em cuecas, apanhar uma pomba à água, que tinha caído ao lado do rio e ainda esvoaçava.

Quando o Carlos se volta, ainda dentro da água, em cuecas, ao ouvir os polícias ordenarem-lhe prisão e para que fique quieto, mudou a cor do seu rosto, ia-lhe dando uma tontura que quase mergulhava na água, largou a pomba, começou a tremer, tendo um dos polícias entrando na água para o socorrer, claro, os polícias esperaram que se vestisse de novo, foi algemado e levaram-no preso.

Toda a Ferry Street soube da desgraça do Carlos, a sua esposa, a Lucinda, que trabalhava na “fábrica dos perfumes”, juntamente com a Eulália, foram à esquadra em seu socorro, primeiro com o senhor padre, da Igreja Nossa Senhora de Fátima, que falava muito bem inglês, que era um português do Bunheiro, uma localidade próxima da vila da Murtosa, em Portugal, depois logo apareceu o sargento da polícia, filho de portugueses nascidos no Minho, que o libertaram com a responsabilidade de se apresentar ao juiz no dia seguinte, que derivado ao bom comportamento anterior, lhe confiscou a arma, sentenciando-o, entre outras restrições para o futuro, com uma multa por não ter licença de usar arma de fogo e uma pena de serviços comunitários por o período de algum tempo, mas a partir desse momento foi sempre um homem amargurado, não se cansando de dizer que tinha sido preso em cuecas e que era agora a vergonha da família.

Ferry Street, Ferry Street!

Tony Borie, Dezembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15483: Libertando-me (Tony Borié) (47): É Dezembro, vamos ao Norte

domingo, 13 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15483: Libertando-me (Tony Borié) (47): É Dezembro, vamos ao Norte

Quadragésimo sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




É Dezembro, vamos ao norte

É Dezembro, aproximam-se as festas de Natal, vamos a caminho do norte, vamos para os estados de Pennsylvania e Nova Jersey, viajamos no nosso carro utilitário, não na “caravana”, pois a neve e o frio para estes lados, não convida a “acampar”. A estrada rápida número 95 é terreno plano com longas rectas, por vezes passamos a poucos quilómetros do Oceano Atlântico, outras no interior. Paramos aqui e ali, até que o trânsito fica mais lento, alguma construção, abrem-se novas vias, que podem ser usadas alternadamente para norte ou para sul, que são abertas consoante o trânsito o determina, começando a surgir placas de sinalização com a palavra Washington, D.C., que é a capital dos USA e, para quem não sabe, D.C. é a abreviatura de Distrito de Colúmbia, onde a cidade está localizada, no entanto, a cidade tanto pode ser conhecida como Washington, D.C. ou simplesmente Washington, que foi formada com território cedido pelos Estados de Maryland e Virgínia, por volta do ano de 1847, todavia a região que fora cedida pela Virgínia foi devolvida, fazendo parte atualmente do Condado de Arlington, que é onde está localizado o Cemitério Nacional de Arlington, motivo que nos fez parar, pois era um local que queríamos visitar. Dezenas de vezes por aqui passamos, quase nem reparamos, mas desta vez parámos, queríamos visitar o Cemitério, mais conhecido por ser o cemitério militar dos USA, fundado no antigo terreno da Casa de Arlington, que era o palácio da família da esposa do comandante das forças confederadas da Guerra Civil Americana, General Robert Lee, Mary Anna Lee, descendente da mulher de George Washington, primeiro presidente dos Estados Unidos da América.

Para quem quiser, viajando pela estrada rápida número 95, desviando-se para oeste, pode atravessar a cidade, passando na Avenida Pennsylvania, vendo os edifícios famosos, cujas imagens correm o mundo nos meios de comunicação, pois o Cemitério fica do outro lado do Rio Potomac, que corta a cidade, perto dos prédios do Pentágono. Na sua área, com várias centenas de acres, estão enterradas mais de 300 mil pessoas, veteranos de cada uma das guerras travadas pelos USA, desde a revolução americana até à actual Guerra do Iraque. Os corpos dos mortos antes da Guerra da Secessão foram para lá levados, após o ano de 1900.

Algumas das personagens históricas mais famosas estão enterradas em Arlington, mas o local mais popular entre os visitantes é o Túmulo ao Soldado Desconhecido, onde os restos de três soldados não identificados da I Guerra Mundial, Guerra da Coreia e Segunda Guerra Mundial, são guardados perpetuamente por uma Guarda de Honra do Exército, cuja cerimónia de troca de sentinelas é um evento bastante procurado pelos visitantes. Nós emocionámo-nos ao ver as imagens de alguns monumentos da parte dedicada à guerra do Vietname, é muito parecida com as imagens que nós, combatentes da guerra da Guiné, passámos por aquelas savanas e pântanos, que nos estão gravadas para sempre na nossa memória.


Já no regresso, voltámos a passar por dentro da cidade, que foi escolhida para capital, pois no início da independência dos USA não havia uma capital fixa e as reuniões do Congresso eram feitas em diferentes cidades, mas por volta do ano de 1783, houve um motim durante uma reunião do congresso na cidade de Filadélfia, o que forçou os congressistas a saírem da cidade, que ficou conhecido como “Motim da Pennsilvânia de 1783”, onde as autoridades locais se recusaram a enfrentar o motim e, a necessidade de uma capital independente dos estados, foi discutida no mesmo local quatro anos depois. No entanto, a Constituição não estabelecia o local específico onde seria o distrito, claro, houve logo um conflito de interesses entre as regiões norte e sul para estabelecer a sua localização. Os estados do norte preferiam a capital numa das grandes cidades do país, localizadas ao norte, enquanto os estados do sul favoreciam uma capital mais próxima de seus interesses, onde usavam o trabalho escravo, sobretudo nos trabalhos agrícolas. Houve negociações, onde foi proposta a federalização das dívidas contraídas ao longo da guerra de independência pelos estados, onde os estados do sul já haviam pago a maior parte das suas dívidas. Assim, o acordo foi a federalização das dívidas em troca da localização da capital num estado do sul, onde, por volta do ano de 1790, deu ao então Presidente Americano, George Washington, o poder de escolher o local onde seria construída a nova capital americana.

Logo no ano seguinte, George Washington escolheu uma área de 259 km² na margem do Rio Potomac, onde a vila de Georgetown estava localizada, que, talvez por coincidência, ficava a escassos quilómetros da sua casa, pois vivia em Mount Vernon, Virgínia.

Já vamos longe, mas não queremos terminar sem mencionar uma questão controversa na nova capital dos USA, que era a escravidão, pois a capital Washington, estava localizada na Região Sul dos USA, onde o uso de escravos era intensivo. Dizem alguns historiadores que foi com o trabalho dos escravos que muito da cidade foi construída, incluindo as estruturas governamentais e vias públicas, mas a grande parte do país era contra a escravidão, especialmente a população dos Estados do norte e, só por volta do ano de 1850, uma lei federal proibiu o comércio escravo em Washington, no entanto, a escravidão seria definitivamente abolida pelo Presidente Americano Abraham Lincoln só em 1863, quando a guerra Civil Americana havia já começado dois anos antes. Proprietários de escravos que decidiram ficar do lado da União Nortista, composta por estados que apoiavam a abolição da escravidão e leais ao Presidente Americano, foram recompensados com 300 dólares por cada escravo libertado.

Companheiros, já vamos longe, deixemos os cemitérios e os escravos em paz, continuemos para norte, tendo quase a certeza de que não regressaremos ao sul sem parar em Nova Jersey, na histórica cidade de Newark, o bairro do Ironbound, visitar o “Portuguesa” Ferry Street, comprar bacalhau, azeite ou castanhas, ver os restaurantes e padarias portuguesas, não querendo falar outra vez na Gracinda, aquela das tranças, que adorava vestir de preto, já com os dedos das mãos tortos, de montar os esqueletos dos colchões, lá na “fábrica dos colchões” onde trabalhava, que diziam que “mandava” no seu marido, o Manuel Murtosa, que era encarregado, mas na linguagem emigrante, era “puxa” na construção, que dizia que a Inês, uma rapariga portuguesa espanholada, que praticamente vivia na Ferry Street e, na boca da Gracinda, fazia favores aos homens honrados e trabalhadores, era mesmo o “diabo em figura de gente”, uma tentadora, com aquele corpinho jeitoso, fazia com que os homens perdessem todo o seu tempo livre na Ferry Street, agora usava pinturas, fumava, fazia a permanente e usava uns óculos à “Hollywood”. Um dia o seu Manuel apareceu em casa a cheirar a tabaco, e ela, a Gracinda, mulher honrada e respeitadora, que nunca falou da vida de ninguém, não sabia porquê, aquele cheiro a tabaco, tudo isto, porque ela, a Inês, aquela espanhola que parecia portuguesa, trabalhava na “fábrica dos óculos”, e lá, segundo o seu parecer, era tudo uma “putaria”, ou então quando se lastimava que, o António Serrano, vítima de um acidente, pois entrou com o seu carro para debaixo de um camião, era quase uma hora da manhã, quando vinha do trabalho, na “fábrica do cobre”, depois de fazer dois turnos seguidos, morreu a uma quarta-feira, e já tinha quase 30 horas de “overtime”, lá na companhia onde trabalhava e, agora a Rosa, a viúva, anda por aí a “dá-lo e a gastá-lo”, até já foi à Flórida, ao parque do Walt Disney, com aquele “garoto” com quem anda agora metida.

Enfim, era a Ferry Street do nosso tempo, em que a filha dos nossos vizinhos do segundo andar, que também eram de origem portuguesa e, sempre diziam que a sua filha era irreverente e mal educada, pois ela, era a segunda geração de emigração portuguesa, não apreciava roupas escuras, xailes, tranças no cabelo, grandes bigodes, vinho, carne de porco salgada, couves e pão caseiro, adorava coca-cola, hamburgueres e batatas fritas e, pela manhã, ao cimo das escadas, quase sem roupa interior, esticando os braços para o céu, nos falava em inglês, sorrindo:
“what a beautiful day, let's enjoy it”

Tony Borie, Dezembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15451: Libertando-me (Tony Borié) (46): O Bairro de Ironbound, Newark, N.J. - USA

domingo, 6 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15451: Libertando-me (Tony Borié) (46): O Bairro de Ironbound, Newark, N.J. - USA

Quadragésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




“We Speak English”

Cada País tem o seu idioma oficial, todavia em alguns, praticam-se diversos, mas, por vezes, pelo menos por aqui, tirando a normal conversação entre pessoas que se querem compreender, pelo menos nós emigrantes, ao ouvir esta frase, vinda da boca de algumas personagens em certas ocasiões, mostra um pouco de, “arrogância”, “xenofobismo”, “querer ser mais”, “mostrar que a pessoa com quem se fala, não tem suficiente educação escolar”, ou única e simplesmente, “querer mostrar-se”.

Nas novas gerações, em qualquer País, é normal falar inglês e, claro, sem o perceberem, estão a esquecer o idioma da sua Pátria, todavia, não é o caso dos emigrantes que viveram ou ainda vivem no Bairro do Ironbound, na histórica cidade de Newark, do lado de lá do rio Hudson, no estado de Nova Jersey.

Muito antiga, fundada no ano de 1666, a cidade de Newark é a cidade com mais habitantes no estado de Nova Jersey e, dada a sua localização, é uma das principais cidades da região metropolitana de Nova Iorque, além de centro comercial, industrial e financeiro, que é a Baía do Rio Passaic que abriga um dos maiores portos de mar, inaugurado no ano de 1831, onde chegava o carvão das minas do estado de Pensylvania para sustentar as unidades fabris da região. Também aqui está localizado o segundo principal aeroporto que é o conhecido mundialmente, o Aeroporto Internacional de Newark, que movimenta quase 30 milhões de passageiros anualmente.

Mas hoje companheiros, não estamos aqui para falar das potencialidades da cidade, mas sim de nós, portugueses, emigrantes do século passado, onde quase todas as conversações entre nós era, trabalho, trabalho e quase só trabalho, onde a palavra “yes”, (sim), ou “overtime”, que neste caso, quer dizer mais ou menos “horas extrordinárias”, era sempre uma das primeiras que se aprendia.

Portanto, cá vai.

Existe por aqui o tal bairro operário chamado Ironbound, mais conhecido pelo bairro português, no qual existe grande concentração de portugueses, onde a principal rua é a Ferry Street, cujo segundo nome é “Portugal Avenue”, ou seja Avenida de Portugal.


À medida que os emigrantes Portugueses foram chegando à cidade, atraídos pela concentração de indústria que existia na altura, principalmente no tal bairro do Ironbound, que quer dizer mais ou menos “rodeado de ferro”, com intensa actividade comercial e industrial, cercado de linhas férreas, era um lugar muito atractivo, para quem tinha desejos de trabalhar, onde estes homens e mulheres, de descendência portuguesa, com a sua força física e dedicação, por vezes destruindo a sua própria saúde, compensavam a falta de educação escolar.

As raízes portuguesas na área são profundas, com os primeiros emigrantes, talvez chegados na década de 1910, mas o grande afluxo de portugueses veio na década de sessenta e setenta do século passado, porque hoje, a emigração de Portugal é praticamente inexistente, mas o idioma português mantém-se estável e, se voltássemos àquelas décadas do século passado, podíamos ver e ouvir, em qualquer rua do bairro do Ironbound, este cenário:
“...a Gracinda, casada com o Manuel Murtosa, que é encarregado de uma “gang” de construção de valas para esgoto, homem robusto e respeitado, até tem “pic-up” da companhia, onde todos os dias, por volta das quatro ou cinco horas da manhã, pois o trabalho é longe, lá para os lados de Riverville, transporta os outros cinco companheiros do seu grupo. Hoje é domingo, eles, os homens, estão para a “Ferry Street”, foram ouvir o relato e beber uns copos, ela, a Gracinda, neste momento de domingo à tarde, está sentada nas escadas de entrada do edifício onde residem, num compartimento de cave, que repartem com a Ermelinda e o João de Verdemilho, anda sempre vestida de preto, gosta desta cor, às vezes, quando vai à missa, até põe qualquer coisa de outra cor, especialmente uma blusa branca, que uma vizinha lhe trouxe da “fábrica da costura”, onde trabalha, está sol, começou por pentear-se, desfez, tornando a fazer as tranças, deu-lhe duas voltas, fazendo um “carrapito”, os dedos das suas mãos, já estão um pouco tortos, é dos calos, tem que falar com a Nazaré, que trabalha na “fábrica das peles”, para lhe trazer umas luvas, pois ela, trabalha na “fábrica dos colchões”, ganha mais que as outras, compete com os homens, trabalha à peça, monta o esqueleto dos colchões, encaixa as molas, “tudo a pulso”, ali, em frente ao “boss”, que é o seu chefe, mas é “cheap”, pois não lhe dá, lá muito “overtime”.
Ali sentada, entretem-se a falar com a Ermelinda, está um pouco enjoada, pois comeu uns chocolates que a Alzira lhe trouxe, aquela das “ilhas”, que trabalha na “fábrica dos chocolates”, parece que lhe “caíram” mal, vai remendando umas meias do seu Manuel, até nem precisava, pois tem mais três pares, que lhe trouxe a Manuela, aquela rapariga alta, que tem cara de homem, pois dizem que corta o bigode, que trabalha na “fábrica das meias”, mas está a guardá-las para levar para Portugal, quando lá for, por altura das vindimas, pois a sua casa, que ela diz a todos que é uma pequena “mansão”, lá em Portugal, precisa de ser aberta e arejada e, talvez necessite de pintura, pois à beira do mar, o vento e a chuva, às vezes traz sal”.

E continuando, diz: Porra, Caral.., que já me espetei na agulha, Santíssima Nossa Senhora de Fátima me perdoe que hoje é “Sunday”, (Domingo), e estou a dizer asneiras, já me esquecia, lembra-me por favor, o meu Manuel tem que chamar o Eurico, aquele da Agência, que fala muito bem inglês, para ir com ele terça-feira ao aeroporto, para “grab” (agarrar) o José Maricas, que foi a Portugal, creio que lhe morreu um irmão, pois ele não sabe o caminho e, já agora, tu sabes se a Filomena, aquela solteirona, que anda “in love” (apaixonada) com aquele “bonitinho”, que anda a estudar, que trabalha em “part-time” (meio tempo) na farmácia, ainda trabalha na fábrica da “meat” (carne), em Jersey City, queria ver se ela ”bring” (trazer) umas chouriças italianas, o meu Manuel “like” (gosta muito) fod.-.., caral.. que já me espetei outra vez, olha, precisamos de uma panela maior para cozinhar as batatas, couves e a carne de porco salgada, tu sabes, caldo e conduto ao mesmo tempo, para todos nós, vamos falar com a Isaura, aquela que trabalha na “fábrica das cafeteiras”, para ver se nos arranja uma, das grandes, o meu Manuel já tem quase cinquenta garrafões vazios, daquele vinho da Califórnia “Paisano”, que parece português, para “send” (mandar) para Portugal, quando houver lugar no Contendor da agência do Eurico, que sai do porto de Newark, pelo menos quatro vezes ao ano, tu sabes que o Orlando da mercearia, na Ferry Street, já não põe as coisas em “vegas” (cartuchos) de papel, que eram tão jeitosas, eu até andava a guardá-las para levar para Portugal, agora usa “vegas” de plástico, aquela merda rompe-se toda.

Voltando aos dias de hoje, esta linguagem era corrente e comum, as ditas “asneiras” eram normais, o bairro do Ironbound é um bairro onde o idioma inglês é pouco ouvido, sendo superado pelo idioma português, com palavras em inglês pelo meio, ou mesmo espanhol, tornando-se num bairro famoso, chegando a ser considerado uma das maiores concentrações de portugueses, fora de Portugal, aqui existia tudo o necessário para se poder viver, falava-se, e ainda se fala em alguns lugares, português com sotaque do Minho ao Algarve, com algumas palavras de inglês pelo meio, nos restaurantes, bares, casas de mercearia, alfaiatarias, sapatarias, peixarias, galinheiros, padarias, lojas de fruta, farmácias, lojas de ferramentas, consultórios de doutores, dentistas ou advogados, hospital local e agências de viajem. Construiu-se uma igreja, ao domingo havia e continua a haver, missa em português, oficinas mecânicas e venda de carros e, muito mais, em algumas ruas, em alguns estabelecimentos, onde só viviam portugueses havia letreiros, dizendo: “WE SPEACK ENGLISH”.

Pois às vezes, também por lá passava uma pessoa de origem americana.

Tony Borie, Dezembro de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15422: Libertando-me (Tony Borié) (45): Antes éramos cowboys

domingo, 29 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15422: Libertando-me (Tony Borié) (45): Antes éramos cowboys

Quadragésimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




Antes, éramos Cowboys, agora somos Índios!

Era ainda manhã, a estrada rápida número 75, no sentido norte, nas proximidades da cidade de Atlanta, no estado da Geórgia, era uma azáfama, todos procuravam o seu rumo, a estrada dividia-se, havia seis ou sete pistas para cada lado, mas passavam uns pelos outros, fazendo sinal para esquerda ou para a direita, procurando a saída para o seu destino. O nosso rumo era o norte, lá íamos seguindo, até que o trânsito ficou mais livre, já tínhamos passado a cidade, estávamos quase na fronteira, passando-a, para o estado de Tennessee, continuámos no sentido norte, passando ao lado da cidade de Chattanooga, até nos surgir a placa de sinalização da estrada estadual número 60, depois a 58, tomando em seguida uma estrada rural, que dá pelo nome de Blythe Ferry Lane, que segue entre pequenas povoações, quintas, pequenos lagos e pântanos, acabando em frente ao rio Tennessee, onde está localizado o “Cherokee Removal Memorial Park”, onde parámos.

Companheiros, temos que interromper para vos dizer que hoje, nas nossas viagens por aqui, vamos falar de um local que nos merece muito respeito, onde a história nos diz que uma nação se constrói por períodos bons e outros menos bons, como esta grande Nação que nos recebeu de “mãos abertas”, a nós europeus e nos deu aquilo que o nosso País de nascimento, por quem todos demos a vida numa frente de combate, e agora falando de nós, pessoas simples do povo que éramos, sem educação superior e, essa mãe Pátria, esse nosso querido Portugal, sempre nos colocou numa posição de pessoa inferior, talvez por entre outras coisas, os nossos progenitores sempre dizerem não a certas situações que privilegiavam outros, que nada faziam para contribuir para uma sociedade mais justa.

Perdoem lá, já me estou a desviar com palavras que nada têm a ver com a nossa conversa de hoje, vamos continuar. Este local, cujo nome já mencionámos, que quer dizer mais ou menos, “Parque Memorial da Remoção do Povo Cherokee”, é visitado por quem tem, ou quer ter, algum conhecimento do que foi o destino dos verdadeiros americanos, aqueles a quem ainda chamam “Índios”.


Aqui, neste local, existe alguma informação daquilo que foi um dos capítulos mais sombrios da história americana, que foi o acto desprezível da remoção de alguns povos, entre eles os “Cherokees”, os “Chickasaw”, os “Choctaw”, os “Creeks” e “Seminoles”, na altura chamadas de “As Cinco Tribos Civilizadas”, que por aqui viviam com alguma autonomia política e que deveriam ser considerados americanos do sul. Aqui começou o “Trail of Tears”, que tem muitas traduções, mas para nós quer dizer mais ou menos o Caminho das Lágrimas, mas na linguagem Cherokee é chamado de “Nunna daul Isunyi”, “O caminho onde eles choraram”, que fez correr muitas lágrimas e é uma marca negra na história americana, que nunca poderá ser justificada ou explicada, mas como em tudo na vida, nenhum de nós tem qualquer culpa de actos menos felizes, praticados pelos nossos antepassados, temos é que aprender e fazer com que nunca mais se repitam.

Em 1835, alguns representantes auto-nomeados da nação Cherokee, ao fim de alguns anos de negociações, assinaram o Tratado de “New Echota”, onde diziam que trocavam as suas terras a leste de Mississippi por cinco milhões de dólares, que envolvia assistência para a deslocalização assim como a compensação pela propriedade perdida, deste modo, as tribos indígenas localizadas a leste do rio Mississippi foram forçadas a viajar no “Caminho Cherokee das Lágrimas”.


A história diz que, pelo resultado deste tratado, documento com base numa lei de 1830 (Indian Removal Act), assinado pelo Partido Ridge nunca foi aceite pelos líderes ou pela maioria da tribo Cherokee, representada no Partido Ross, mas esse pormenor pouca influência iria ter, pois as tensões entre os representantes do estado da Georgia e do povo Cherokee ficaram tensas com a descoberta de ouro nas proximidades de Dahlonega, no estado da Georgia, em 1829, onde alguns historiadores dizem que esta foi a primeira “corrida ao ouro” na história dos EUA.

Quando o povo Cherokee assinou o tratado, foi-lhe prometida a tal quantia em dinheiro, que devia ser paga em ouro, todavia não sabemos se foi paga em ouro ou em papel impresso, cedendo as suas terras ao governo federal, começando assim a sua migração forçada por mais de 1200 milhas para o chamado Território Indígena, que é hoje o actual estado de Oklahoma. Os nativos sofreram muito com esta migração, e vários morreram durante as viagens e nos acampamentos forçados, que se formavam durante esta migração, estimando-se que, da tribo Cherokee, de uma população de 15.000, vieram a falecer cerca de 4000.

Centenas de escravos e afro-americanos libertos, que viviam com os índios, acompanharam-nos nesta migração, por este Caminho das Lágrimas, muitos foram transportados em grandes carroças, mas a neve e o frio de inverno dificultavam este procedimento e, com a diminuição da comida, havia racionamento, alguns moradores das aldeias por onde passavam iam ajudando, viajando em barcos ou jangadas, quando era possível pelos rios ou pântanos, mas quando a temperatura baixava, os rios congelavam, forçando a pararem e formarem acampamentos onde iam morrendo, principalmente por serem mal alimentados, onde a maioria das mortes ocorria por coqueluche, tifo, disenteria, cólera, infecções ou gripes, assim como a fome, foram essas as epidemias que ao longo do caminho assolavam esses acampamentos.


O Presidente Martin Van Buren enviou o General Winfield Scott 7000 soldados para organizar o processo de remoção. Scott e as suas tropas forçaram o povo Cherokee para fora das suas casas, na ponta das suas baionetas, enquanto outros saqueavam casas e pertences. Um dos soldados da operação, sob as ordens do general Winfield Scott, escreveu: “Eu lutei nas guerras entre países e disparei contra muitos homens, mas a remoção Cherokee foi o trabalho mais cruel que eu conheci”.

Um filósofo francês, no ano de 1831, testemunhou esta migração forçada, escrevendo na altura: “Pairava no ar um sentimento de ruína e destruição, era o fim destes atraiçoados, era o seu adeus, ninguém poderia aqui assistir sem sentir um aperto no coração. Os Índios estavam quietos, sombrios e tactiturnos, perguntei a um deles por que deixavam as suas terras, responderam-me, “para serem livres”. Assistimos à expulsão de um dos mais famosos e antigos povos americanos”.

Aqueles que resistiram, querendo ficar nas suas terras, foram objecto de intimidação legal e perseguição, tendo as suas casas sido derrubadas e queimadas, assim como o seu gado.

O governo federal prometeu ao povo Cherokee, que a sua nova terra, ou seja o tal “Indian Territory”, que é hoje o estado de Oklahoma, iria permanecer sua para sempre, sem serem molestados, mas a força da colonização branca empurrou-o para o oeste e foi encolhendo, encolhendo, o espaço do “Indian Territory” e, claro, quando em 1907, Oklahoma se tornou num estado, o “Indian Territory”, tinha ido embora para sempre. Muitos anos passaram, hoje a população Cherokee, que mantém o seu próprio alfabeto, portanto fala a sua língua, teve alguma recuperação e são esses índios o maior grupo nativo americano.

Depois de algum tempo de meditação, deixámos este parque, localizado no meio de alguns pântanos, em silêncio, também sombrios e taciturnos, passados quase dois séculos, em respeito por este povo.

Tony Borie, Novembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15394: Libertando-me (Tony Borié) (44): Simplesmente Fernando

domingo, 22 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15394: Libertando-me (Tony Borié) (44): Simplesmente Fernando

Quadragésimo quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




Simplesmente, Fernando

Quando um caminho rural se separa, com uma simples placa de sinalização, normalmente colocada numa velha árvore, paramos, pensando por momentos, mas seguimos o nosso destino, ficando no nosso pensamento, onde nos levará o outro caminho, na outra direcção. É como em tudo na vida, ninguém tem o poder de adivinhar o futuro, seguimos o nosso caminho, pensando sempre que para a frente haverá primavera, flores aqui e ali, algum sol, aves exóticas chilreando, homens, mulheres e crianças sorrindo, árvores com fruto, rios de água pura, prados verdes onde animais pastam, um sossego divino, enfim, um mundo agradável para se viver.

Quase nunca queremos voltar para trás, ir ver de novo a placa de sinalização, pois sabemos que não está lá escrito, que naquela direcção é inverno escuro, frio, não existe vegetação, árvores, sol, homens, mulheres e crianças sorrindo, enfim, só lá existe guerra pela sobrevivência, entre outras muitas coisas, alguma fome, injustiça, discriminação, onde só nós, os seres humanos, podemos modificar o ambiente educando, dando exemplos de solidariedade, perdoando, tentando fazer a diferença.

Tudo isto, companheiros, vem a propósito de que ele, o Fernando Vasconcelos, andou por lá, em Bissau, na Guiné, nos anos de 1965/68, não como militar, trabalhava para um “colonialista”, perdão, vamos aqui interromper para explicar que, ao mencionar a palavra “colonialista”, não é nossa intenção desprestigiar o verdadeiro “colonialista”, pois todos sabemos que havia “colonialistas” no verdadeiro sentido da palavra e, as “pessoas ou até famílias colonialistas”, que única e simplesmente foram para África procurar um meio melhor de sobrevivência, eram honestas no tratamento com os naturais, ajudavam, ensinavam, conviviam, repartiam a sua casa, os seus bens, criavam motores de desenvolvimento, dando comida, trabalho, ajudando em caso de doença, enfim, proporcionavam aos naturais uma vida melhor, uma vida mais fácil, criando e desenvolvendo uma comunidade, onde todos se conheciam e entendiam, onde os naturais tiravam algum proveito da presença das tais pessoas que iam da Europa, na procura de uma vida melhor.

Vamos continuar, este “colonialista” tinha estabelecimento em Bissau, os seus negócios desenvolveram-se com a situação de guerra que se vivia na altura, a chegada de militares, vindos da Europa, eram potenciais clientes, pois todos os que conseguiram sobreviver àquela maldita guerra, sempre que vinham, ou mesmo se estivessem estacionados na capital, entre duas cervejas, um passear pela marginal, reparavam naquelas letras pintadas por cima da porta de entrada que anunciava a Casa António Pinto, “Pintozinho”, onde compravam a máquina de fotografar “Leica M6”, o rádio portátil a pilhas “Sony”, o par de sapatos “de pala”, (que não eram necessário atacadores), a camisa branca de manga curta, importada de Macau, o relógio de pulso “Cauny”, (alguns, muito grandes, com cronómetro), para não falar nos óculos “Ray-Ban”, que eram um “luxo” e faziam “manga de ronco”.


Voltando ao Fernando, ele nasceu no Bairro da Mouraria, vivendo e trabalhando na altura em Lisboa, no Bairro das Mercês, o seu pai, que relembra, enxugando uma lágrima furtiva, tocava guitarra, conhecia melhor o nome das ruas da capital que um motorista de táxi, pois caminhava todos os dias daqui para ali, fazendo entregas ou outras coisas, lidava com pessoas, era, e ainda é, muito comunicativo, houve uma oferta de emprego para uma província do então Ultramar, recomendaram-no, ele lá foi à entrevista, numa casa com algum luxo no Estoril, ficou entusiasmado com a oferta, umas semanas depois, navegando no barco “Alfredo da Silva”, da Companhia Colonial de Navegação, com paragens de rotina na Ilha da Madeira e em Cabo Verde, desembarcando finalmente na então província da Guiné e, para quem o tinha visto em Lisboa, agora podia vê-lo em Bissau, atencioso por trás do balcão e não só, fazendo vendas, explicando, falando a nossalinguagem de nós, militares. As vendas aumentaram, já andava por fora, nos aquartelamentos, fazendo contratos para produtos de consumo, já conhecia e convivia com alguns militares com patente superior, deslocava-se mesmo a Cutia ou a Mansoa, o patrão prometia, mas no final do mês, no acerto de contas, havia sempre uma desculpa em favor deste.

Um dia até lhe disse, com ar muito sério: “Se conseguirmos vender “mil contos mensais”, vou dar a cada funcionário um corte de fazenda para um fato, dos melhores”.

Vendiam até mais, mas dava a desculpa de que os produtos que não davam lá muito lucro, portanto a promessa não era cumprida e o tal corte de fazenda, que aqueles “costureiros, fulas, papeis, balantas e mandingas”, que nós todos víamos nas ruas de Bissau e não só, em frente a uma máquina de costura “Singer”, nunca tiveram oportunidade de tirar as medidas ao corpo do Fernando para lhe fazer o tal fato, da tal melhor fazenda.

Era popular em Bissau, tirou as licenças para conduzir automóvel e bicicleta, depressa fazia amigos, ajudava, repartia o seu ordenado por amigos guinéus mais carenciados, tendo algum dinheiro no bolso não havia fome ao seu redor, dizia ele que só conhecia “escudos”, os “pesos” eram da Guiné, portanto eram dos locais, não eram dele, eram de todos, dava-se com todas as pessoas com quem convivia, o local onde vivia era visitado e repartido tanto por civis como militares, andava, conhecia e confraternizava com pessoas, principalmente ao fim de semana, nos principais clubes de Bissau, em algumas festas a Polícia do Estado estava presente e pedia a sua colaboração, perguntando-lhe se conhecia aquele ou o outro, jurando-me ele, hoje, que nunca deu uma resposta comprometendo ninguém, dizia sempre que conhecia, mas não sabia mais nada, o que às vezes fazia com que a polícia lhe dissesse coisas como: “qualquer dia, vais dentro”.

Viveu alguns anos em Bissau, mas o seu patrão “colonialista”, fez como a outra direcção, da tal placa de sinalização, que mencionámos a princípio, que nos dirigia para o tal mundo de inverno escuro e frio, onde as pessoas não sorriem, não existem árvores de fruto, as pessoas lutam e morrem, não são compreensivas, não perdoam, fez com que deixasse de acreditar em promessas, em ganâncias, no lucro fácil, que normalmente é só temporário, assim despediu-se dos amigos e colegas de trabalho, dizendo que tinha que regressar à então Metrópole, por motivos particulares, todas as pessoas com quem tinha convivido acompanharam-no ao aeroporto de Bissalanca, numa “romaria”, fazendo “manga de ronco”, o que o fez pensar que o tempo passado na então Guiné foi uma experiência muito rica, pelo menos em pura amizade.

Hoje, o Fernando Vasconcelos vive aqui, com sua dedicada esposa, no estado da Flórida, viveu muitos anos no norte, no estado de New Jersey, onde constituiu família, de que se orgulha, continua a ser popular, entre outras actividades, tal com nós, é pescador, quando saímos a barra, enquanto uns admiram a paisagem, ele, o Fernando, começa imediatamente a preparar as canas, a iscar ou a encher os tanques com água salgada, continua a querer ajudar, às vezes entra pela nossa casa com um balde de camarão, fresco a saltar, ajudando todos que se lhe dirigem, levando os que necessitam, ao doutor, ao hospital, ao aeroporto, ou até a um Centro de Compras, onde muitos vão comprar coisas simples, onde já não existe à venda, aquele relógio de pulso, “Cauny”, ou um rádio a pilhas “Sony”, a que chamávamos, “o meu transistor”.

Amanhã, vamos à pesca do camarão, Fernando?

Tony Borie, Setembro de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15370: Libertando-me (Tony Borié) (43): Pois, se não viste, vê!

domingo, 15 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15370: Libertando-me (Tony Borié) (43): Pois, se não viste, vê!

Quadragésimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 10 de Novembro de 2015.




...Pois se não viste, vê! 

Já lá vão mais de trinta anos, muito perto dos quarenta, recebemos uma mensagem daí de Portugal, a dizer que o pai Tónio estava doente, depressa fizemos tudo para o ir ver, sobretudo, mostrá-lo ao nosso filho, pois em todas as conversas que tínhamos sobre ele, sempre falávamos dele como um “heroi”, não sabia ler ou escrever, assinava de cruz, mais tarde, desenhava o seu nome, criou a sua família, alimentando-a à base de uma agricultura artesanal, deixou os filhos irem à escola do Adro, em Águeda, tinha coragem para ser do “contra”, fazia favores aos vizinhos, por vezes dava o último bocado de broa a um cigano ou qualquer pobre que por lá passava, sempre com um sorriso naquele rosto com a pele morena e encorrilhada, do sol ou chuva que recebia, pegando numa enxada o dia inteiro, onde aquela boina preta, que encobria um olhar de sofrimento, lhe dava um ar de pessoa honesta e amargurada, sobrevivendo numa sociedade complicada, sempre contrariado quando descia à vila de Águeda, onde alguns invejavam a sua coragem e outros o desprezavam, porque eram beneficiados pelo tal sistema e viam naquela simples personagem, uma negação às benesses com que eram contemplados.

Portanto, depois de tudo o que lhe dizíamos, no pensamento do nosso filho, ele, o pai Tónio, era um “herói”. Na nossa viajem “à pressa”, levámos o nosso filho a ver o avô Tónio, o seu “herói”, fomos os dois, ia pela nossa mão, desembarcámos em Lisboa, tomámos um táxi para a estação de Santa Apolónia, trajecto que conhecíamos do serviço militar, lá indo no comboio rumo ao norte, era depois da Revolução do 25 de Abril, em todo o lugar por onde passávamos viam-se cartazes retratando um militar com uma multidão a apoiá-lo, ao ponto de o nosso filho nos questionar se a figura representada no cartaz, era o avô Tónio, o seu “heroi”. Em Águeda, além da família, convivemos com muitas pessoas e um companheiro que tinha sido nosso amigo, mas agora era “representante do povo”. Ao ver-nos, sabendo que éramos emigrantes nos EUA, logo nos questionou:
- Então, estás nos Estados Unidos, de lá, no sul, existe algum local onde se pode ver a ilha de Cuba?

E, com uma expressão que não enganava, pois era mesmo provocativa, rematou:
- Tu já viste, pois se não viste, vê, é lá, naquela ilha, naquele líder que está o futuro.

Nós ouvimos, lembrámo-nos de que não respondemos, pensando que aquelas palavras, vindo da boca de um amigo, que naquele momento, parecia se ter tornado num inimigo feroz, valiam o que podiam valer, no entanto muitos anos passaram, quis o destino que viéssemos viver aqui para a Flórida, portanto, talvez seguindo a recomendação do nosso amigo, que parecia ser nosso inimigo, “representante do povo” e, segundo viemos a saber, não exerceu por muito tempo a tal “representação”, pois pouco tempo depois abandonou o mandato, emigrando “a salto” para França, talvez desolado por todas as manhãs ao sair de casa ver que a sua rua continuava com o mesmo aspecto. Disse-nos mais tarde a mãe Joana que queria exercer o tal poder, mas em seu benefício, pois das primeiras decisões que quis tomar, após a sua eleição, foi querer alargar a rua em frente à sua casa, roubando o terreno dos seus vizinhos, alargando e beneficiando a frente da sua casa, o que não conseguiu, pois o tal “seu povo”, não concordou.
Enfim, pequenas “coisas da revolução” que podem ser consideradas normais, em qualquer revolução, em qualquer país, mas vamos em frente, contando coisas daqui.

Como dizíamos, talvez seguindo a sua “recomendação”, um dia pela madrugada, um pequeno farnel na caixa frigorífica, eis-nos na estrada rápida número 95, no sentido sul, em direcção à área das “Florida Keys”, que é um conjunto de ilhas ligadas por pontes, algumas com quilómetros de extensão, que começa na ilha de Key Largo, passando por muitas outras mais pequenas, onde as principais são as ilhas de Islamorada e de Marathon, terminando na de Key West.

Levámos as canas de pesca, fomos parando aqui e ali, vendo vestígios de tempestades, em alguns locais o mar parecendo um rio, em outros, correntes fortes saindo Golfo, levando areia e ramagem em direcção ao sul, até que chegando ao nosso destino, parámos na ponta final, na ilha de Key West, onde além de muitas outras atracções existe um marco histórico identificando o local como que estando a 90 milhas, (140 Km) de Cuba, onde alguns naturais dizem que com o tempo limpo, com o auxílio de uns potentes binóculos se pode ver uma nuvem, que é a ilha de Cuba.

Mas Key West é uma ilha cujas dimensões têm mais ou menos 6,5 Km de comprimento por 1,5 de largura, onde a Duval Street é a típica “main street”, ou seja a rua principal, com quase 2 quilómetros, atravessando 14 pequenas ruas que vêm do Golfo, onde a água é calma e quente, até ao oceano Atlântico, onde a água se caracteriza pela sua cor azul, com muitas zonas onde existe vegetação submarina, com algas a saírem à superfície, desprendendo-se do fundo do oceano, vindo dar à praia.


Nestas 14 pequenas ruas, assim como na avenida principal, existe todo o tipo de atracções, desde as casas de personagens famosos que por aqui viveram em determinado momento da sua vida, como os antigos presidentes dos USA, Harry Truman, Franklin D. Rosevelt, Dwight D. Eisenhover ou John F. Kennedy. Um lugar bastante visitado é o que foi a residência de Ernest Hemingway, onde viveu e escreveu o famoso livro “Farewell to Arms”, onde contam as mais mirabolantes histórias deste famoso escritor que adorava visitar o bar da esquina, que ainda se chama ”Sloppy Joe’s Bar”, onde ainda se serve uma bebida composta de rum e coca-cola, ou seja a união do continente USA com as Caraíbas! O pôr-do-sol é muito apreciado nesta área, proporcionando excelentes fotos, onde as palmeiras e outras ramagens tropicais servem de fundo, em contraste com com a cor avermelhada do horizonte, principalmente para o lado da ilha de Cuba. Também por aqui existe um razoável porto de mar, onde o primeiro navio de cruzeiro, que se chamava “Sunward”, aqui atracou no ano 1969 e onde hoje fazem regular visita as companhias de cruzeiros: Royal Caribbean, Magesty of the Seas ou a Carnival Fascination.

O local mais visitado, e onde se tiram mais fotos, onde em alguns dias a fila se prolonga por algum tempo, principalmente quando chegam barcos de cruzeiro, é o marco histórico assinalando as 90 milhas de Cuba, erguido em 1983, pintado com cores distintas e com os dizeres já famosos, que são: “Southernmost Point Continental USA”, ou seja, ponto mais ao sul do território do Estados Unidos. Outras atrações podem-se considerar única e simplesmente admirar as casas, os seus telhados, no histórico distrito, onde as estruturas de casas de madeira, com um ou um e meio andares, com datas de 1886, se distinguem por serem construídas sobre estacas de tronco de árvores, sobre a água, com varandas e passeios em frente das casas, que nos fazem lembrar um quadro pintado.

Embora indo um pouco longe na dimensão do texto, não queremos terminar o mesmo sem vos dizer que esta ilha em tempos pré-colombianos, era habitada pelo povo “Calusa”, que foi um povo que entrou no que é hoje a Florida há alguns milhares de anos, onde o clima tinha alcançado as condições actuais e o mar tinha subido para perto do que é hoje o seu nível actual e as pessoas começaram a viver em aldeias perto de zonas húmidas, locais favorecidos, que provavelmente foram ocupados por várias gerações, onde as pessoas apreciavam viver, ocupando ambas as zonas húmidas, mas com água doce e salgada, onde por séculos, a sua dieta ficou dependente, principalmente de peixe, marisco ou aves, vivendo em grandes aldeias, com montes de terraplanagem, construídos de propósito, às vezes formando pequenas ilhas, onde além de outras ocupações, começaram a criar a cerâmica queimada no fogo, onde se foi desenvolvendo uma cultura regional muito distinta.

Tudo isto até que por aqui chegou a primeiro europeu, que foi Juan Ponce de Leon, por volta do ano de 1521, tornando-se imediatamente num território espanhol, como uma aldeia de pescadores e de salvamento, com uma pequena guarnição para sua defesa. “Cayo Hueso” foi o seu nome original em espanhol e as pessoas de língua espanhola ainda hoje usam este termo para se referir à ilha de Key West. Este nome significa literalmente “ilhota óssea”, mas na verdade é uma ilha baixa, com alguns recifes, dizendo-se hoje que a ilha estava coberta com os restos de ossos de habitantes nativos anteriores, que usavam a ilha como um cemitério comunal. Um pormenor importante é que esta ilha, naquele tempo, foi por muitos anos a Key (em inglês chave), portanto a chave ocidental, como um suprimento confiável de água.

Em 1763, quando a Grã-Bretanha assumiu o controle da Florida, a comunidade de espanhóis e nativos americanos que aqui viviam, foram transferidos para a aldeia ou porto de Havana, na ilha de Cuba, mas a Flórida retornou ao controle Espanhol 20 anos mais tarde, no entanto já não houve reassentamento oficial da ilha, pois informalmente esta foi usada pelos pescadores de Cuba, Britânicos e mais tarde os USA, após a sua independência, o que quer dizer que enquanto reivindicada a sua soberania pela Espanha, nenhuma outra nação exerceu o controlo sobre esta comunidade, por algum tempo.

Voltando ao tempo de hoje, também existe a parte moderna, já com centros comerciais, restaurantes e hotéis “temáticos”, onde nós, na nossa infinita ignorância, perguntámos o preço de uma dormida e, talvez por ser à última hora, sem marcação prévia, nos disseram que estavam superlotados, mas por sermos seniores e talvez “boas pessoas”, nos arranjariam um confortável quarto, pagando somente à volta quatro centenas de dólares por uma noite.

Companheiros, depois de terem a pachorra de lerem tudo isto, talvez já se estivessem esquecido se o pai Tónio sobreviveu, sim, sobreviveu e mais tarde veio aqui ver-nos, andou por Nova Iorque com a mesma boina na cabeça, viu a Broadway, foi ao cimo das torres gémeas, tirou fotos na Manhattan Bridge, comparou o rio Hudson ao rio Águeda, queria descalçar as botas, pois estava muito calor e queria refrescar-se. Entrando no lago que existe no Central Park, e apesar de levarmos as canas de pesca, não tivemos lá muita sorte na “pescaria”, e claro, da próxima vez que pensarmos em ir a Key West, vamos levar a caravana, pois derivado ao elevado preço que se pratica lá, viemos dormir à cidade de Miami, por os normais $69.99, com direito ao pequeno almoço.

Até qualquer dia, de novo em viagem.
Tony Borie, Novembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15340: Libertando-me (Tony Borié) (42): As Regras da Escola

domingo, 8 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15340: Libertando-me (Tony Borié) (42): As Regras da Escola

Quadragésimo segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 3 de Novembro de 2015.


As Regras da Escola

Quase todas as recordações que guardamos do nosso Portugal são as aldeias, começando pela nossa, que era a do Vale do Ninho D’Águia, em Águeda, que também podia ser qualquer aldeia de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alentejo ou outro qualquer lugar e, é com esse pensamento, que os nossos olhos vêm, desde as grandes metrópoles, até às aldeias pequenas, apreciamos os pormenores, agora vamos continuar a falar daqui, cá vai.

O dia estava com céu limpo, a temperatura era quente, a estrada rápida número 15, no estado de Montana, era deserta, longas rectas, aqui e ali havia pequenas elevações no terreno, a nossa companheira e esposa levava os comandos da viatura em suas mãos, nós, cantarolávamos, desligámos o ar condicionado, abrimos um pouco a janela e tirámos as sandálias dos pés, encostámo-nos no assento, pousando-os na frente do carro, encostados mesmo ao vidro, ela, a nossa companheira e esposa, logo falou “complicando”, e disse: "Cala-te lá com essa cantiga que não faz qualquer sentido, por favor arranja outra canção ou liga o rádio e, já agora, tira daí os pés, ou então abre mais a janela, pois creio que estavam melhor dentro das sandálias.

Passávamos próximo da estrada estadual número 278, que depois de algum tempo atravessando algumas planícies, quase desertas, seguindo a direcção de uma placa de informação, entrámos numa estrada rural, em terra batida, que nos levaria ao que é hoje o Parque Nacional de Bannack, que fazia parte do nosso roteiro daquele dia e, que hoje, roubando algum espaço ao nosso blogue, não resistimos em mostrar algumas fotos.


Tal como outras aldeias, tem uma história que começa por volta do ano de 1862, recebendo este nome dos índios locais, que eram os Bannack, que por aqui viviam como uma nação, numa comunidade pacífica, cuja sobrevivência era a caça ou a pesca, até que neste local aconteceu um fenómeno por volta do ano de 1862, que foi a descoberta de ouro, que tornou esta aldeia na capital do Território de Montana por alguns anos, até que essa capital foi transferida para Virgínia City. Hoje a capital do estado de Montana é a cidade de Helena, onde está situado um majestoso edifício, o “Montana State Capitol”.


Era, e ainda é, um lugar extremamente remoto, apenas ligado ao resto do mundo por uma estrada de terra batida, é um lugar abandonado, “uma aldeia fantasma”, ainda lá estão algumas dezenas de históricas estruturas, que teimam em permanecer de pé, algumas bastante bem conservadas. Hoje, a aldeia de Bannack é considerada distrito histórico, sendo declarada Património Histórico Nacional e actualmente tem o nome de “Bannack State Park”, sendo visitado particularmente por historiadores, muito popular entre os turistas, é um dos lugares favoritos, principalmente para os nativos daquela região. Mas a história para nós começa a ter algum interesse quando soubemos que tudo por aqui começou quando um tal Dr. Erasmus Darwin Leavitt, um médico nascido no estado de New Hampshire, que desistiu de praticar medicina por um tempo, para se tornar num mineiro, pesquisador de ouro, pegando numa pá e numa picareta, mas depressa verificou que apesar de algum sucesso a coroar o seu trabalho, logo descobriu que tinha mais reputação como médico do que como pesquisador de ouro, não se identificando com todos aqueles aventureiros, alguns fugitivos de outras aldeias de Montana, como o xerife Henry Plummer, que chefiava uma quadrilha responsável por mais de cem assassinatos nos campos de ouro de Virginia City, Bannack e nos trilhos para Salt Lake City, no estado de Utah, no entanto, apenas oito mortes são historicamente documentadas, alguns historiadores modernos têm posto em causa a natureza exata desta quadrilha, enquanto outros negam a sua existência completamente.


Em qualquer caso, o xerife Plummer e dois dos seus ajudantes foram enforcados, sem julgamento, em Bannack em Janeiro de 1864, um largo número de companheiros da sua quadrilha foram mortos a tiro de pistola ou outra arma, durante uma luta, quando descobertos, sendo outros banidos sob pena de morte se voltasem a Bannack. Uns anos depois, já com alguma civilização, vinte e dois indivíduos foram acusados informalmente, julgados e enforcados pelo Comité de Vigilância de Bannack e Virginia City, que era composto por homens considerados honestos, dos quais fazia parte um tal Nathaniel Langford Pitt, que foi o primeiro superintendente do Parque Nacional de Yellowstone, e que era membro dessa comissão de vigilância.


No seu auge, Bannack, considerada uma aldeia mineira, onde todas as estruturas foram construídas de troncos, algumas com falsas frentes decorativas, em algumas épocas a sua população chegou quase a uma dezena de milhar de habitantes, tinha três hotéis, padarias, lojas de ferragens, estábulos, mercados de carne, restaurantes, muitos salões de divertimento e uma escola onde ainda lá se encontra o quadro preto, onde estão escritos os regulamentos dos alunos e professores, que não resistimos em traduzir algumas das regras, cá vai:


Regras para o aluno, 1872

1 - Respeita o teu mestre-escola. Ouve-o e aceita as suas punições.
2 - Não chames nomes, nem provoques os teus companheiros e não lutes com eles. Ama-os e ajudem-se uns aos outros.
3 - Nunca faças ruídos ou perturbes os teus companheiros quando eles estudam.
4 - Está silencioso durante a aula. Não fales a menos que seja absolutamente necessário.
5 - Não deixes o teu assento sem permissão para ir lá fora, para comer ou qualquer outra coisa que perturbe a tua classe.
6 - No final da classe tens de lavar as mãos, o rosto, e talvez os pés, se for necessário.
7 - Traz lenha para a sala de aula sempre que o professor te pedir.
8 - Sai calmamente para fora da classe, seguindo as normas.
9 - Se o mestre-escola chamar pelo teu nome após a aula, responde imediatamente.

Regras para o Mestre-escola, 1872.

1 - O mestre-escola tem de encher as candeias, (as luzes) e limpá-las todos os dias.
2 - O mestre-escola tem que trazer um balde com água e um rolo de erva, (devia de ser para esfregar as mãos ou os pés), todos os dias da época.
3 - O mestre-escola tem que ter sempre as canetas, (deviam ser lápis de pedra, para escrever na lousa), em muito boas condições, sempre ao gosto dos alunos.
4 - O mestre-escola, que seja mulher, que se casou ou envolveu, mas com uma conduta imprópria, será imediatamente demitida.
5 - Cada mestre-escola deve deixar de lado uma soma considerável de seus ganhos, que serão economias para usar durante a sua aposentadoria, para que não seja um “fardo” para a sociedade.
6 - Qualquer mestre-escola que fume, use licor, frequente salões de prazer, ou até vá para a barbearia, falar mal dos habitantes, ou qualquer outra boa razão que mostre não ser um bom cidadão, será imediatamente demitido.
7 - O mestre-escola deve saber montar e tratar o seu cavalo, pode e deve usar arma para defesa, mas nunca entrar armado na sala de aula.

Estas são algumas regras que nos fazem recordar o bom que foi, termos nascido nos anos quarenta e cinquenta do século passado.

Tony Borie, Outubro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15312: Libertando-me (Tony Borié) (41): O passado é o início do futuro

domingo, 1 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15312: Libertando-me (Tony Borié) (41): O passado é o início do futuro

Quadragésimo primeiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 28 de Outubro de 2015.



O passado é o início do futuro! É quase uma afirmação de que, tudo o que de novo se inicia nas nossas vidas, teve origem num passado.

Gostávamos de falar do nosso Portugal, mas infelizmente não recebemos muita formação escolar durante a nossa juventude, sabemos só o básico, portanto, às vezes, contamos coisas da região de Águeda e outras povoações por onde passámos, pelo menos no serviço militar, portanto amigos companheiros, não fiquem pensando que “isto são americanisses”, falamos daqui, que é onde vivemos e onde recebemos alguma educação superior.

Cá vai a história de hoje.
Viajávamos no estado de Kansas, na estrada rápida número 70, no sentido Oeste, quando nos surge uma placa de sinalização dizendo “Fort Wallace”, não pensámos duas vezes, seguindo a estrada estadual número 40, passado algum tempo, depois de viajar por planícies sem fim, surge-nos Fort Wallace, que tem um passado importante na história da imigração para o oeste.

Tudo começou por volta do ano de 1865, quando foi considerada como a melhor rota não só para correio como para caravanas a partir de Atchison, no estado de Kansas, para Denver, no estado do Colorado, onde começaram a nascer estações, aproximadamente de 15 em 15 milhas de distância e, uma estação era uma "casa" que alimentaria os viajantes, fornecia feno aos animais, e onde também poderiam trocar as mulas, ou cavalos, por animais mais frescos. A área era um hostil território de índios Cheyennes, que não apreciavam a invasão dos colonos brancos, e claro, os ataques tornavam-se demasiado frequentes, chegando ao ponto de cada caravana ter, pelo menos, 20 ou mais vagões e 30 homens armados.

Muitas destas paragens eram pequenas fortalezas, com poucas condições de sobrevivência, que eram palco de frequentes ataques, quase só abrindo as suas portas quando recebiam as caravanas de colonos. Assim surgiu um posto avançado com mais segurança a que deram o nome de Stage Station Pond Creek, ou seja Acampamento de Pond Creek, sendo este o maior acampamento daquela rota, portanto logo se tornou no maior alvo dos índios Cheyennes, pois viam naquele acampamento um forte motivo do avanço dos colonos brancos, atacando-o frequentemente, os ataques dos índios eram tão numerosos por esta altura, que o negócio tornou-se inútil, ou seja, os colonos estavam quase a desistir do avanço para oeste, chegando ao ponto do governo intervir, instalando um Acampamento Militar bem próximo, a mais ou menos milha e meia de distância, a que deram o nome de Fort Wallace, em honra de WHL Wallace, um general que morreu na batalha de Shiloh.


Neste forte estavam estacionados à volta 350 militares, chegou a ser designado como “Fightin’est Fort in the West”, ou seja mais ou menos, o forte onde se praticaram as maiores lutas do Oeste. Numa altura em que o búfalo era o mais importante meio de sobrevivência, tanto para os índios Cheyennes, como para os colonos em trânsito, era o principal motivo de guerras, pois os índios viam nos animais o seu sustento única e simplesmente, controlando o seu abate, que era feito consoante a necessidade, enquanto que alguns colonos, além de sustento, viam o lucro na comercialização da sua pele. Vimos vestígios do passado dizendo-nos que por aqui passaram nomes históricos como General George Armstrong Custer, que aqui teve a primeira batalha com os índios, o grandes homens de fronteira como George Forsyth, Buffalo Bill Cody ou Wild Bill Hickok.

Mas o que nos “tocou” mais foram as sepulturas no cemitério da área, onde as placas dizem coisas como por exemplo: “L. Frey, idade 35, veio da Prússia, morreu de desinteria, família, não há conhecimento”; “Campa 42, nome, não se sabe, idade, não se sabe, causa da morte, não se sabe”; “H. T. Wyatt, veio de Missouri, morreu em 1868, assassinado por um tiro de pistola às mãos de Wm. Comstock”; “John Etcher, idade 60, veio de Inglaterra, encontrado morto, gelado, próximo de Wallace”; “Sand Callahan, idade, não se sabe, morreu de profundos ferimento das setas dos índios, próximo ribeiro Rose”; “Philip Cory, assassinado em Pond Creek Station, não tinha família”; “Charles Walker, idade, não se sabe, assassinado com tiros de pistola em Pond Creek”; “sepultura 24, nome, não se sabe, foi encontrado na planície, próximo da estrada militar, família, não se sabe”; “John Drier, idade, não se sabe, assassinado a tiro de pistola em Sheridan, Kansas”; “William McDonald, idade, não se sabe, morreu de acidente, caindo da carroça onde seguia na caravana, próximo de Sheridan, Kansas”; “nome, não se sabe, morreu pelo escalpe, arrancado ainda vivo, por índios, a oito milhas oeste da planície”; “Miss Katie Runey, idade 2 anos, morreu com a doença da cólera, próximo do campo de Fort Wallace”; “John Langford, idade 22, enforcado numa árvore pelos “vigilantes”, perto de Pond City, Kansas”; “G. H. Brownell, idade não se sabe, morto por índios perto da Estação de Timbers”.

Estes são exemplos da odisseia, da aventura dos colonos a caminho do Oeste, para onde seguiam pessoas das mais variadas origens, procurando novos rumos, para onde alguns levavam na sua mente o tal espírito de aventura, que todos nós temos, que às vezes é só “querer estar onde não estamos”.

Tony Borie, Outubro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15288: Libertando-me (Tony Borié) (40): Isto é a Flórida

domingo, 4 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15199: Libertando-me (Tony Borié) (37): Tirar férias na guerra

Trigésimo sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 29 de Setembro de 2015.




Tirar férias na guerra

O comandante Luís sugeriu algo importante, não é um simples “explicar de vida na guerra”, é mais, consoante a história de cada um, podemos analisar muitas mais coisas, como por exemplo os militares solteiros sem namorada, poderiam vir à então Metrópole, no conceito de ver a família ou amigos, os solteiros com namorada, talvez fosse isso tudo, mais o amor, os casados sem filhos, era isso tudo, mais passar tempo com a esposa, os casados com filhos, era isso tudo, mais ver e abraçar os seus descendentes, enfim, o seu estado civil tinha muita influência nessas decisões e, os que não tinham pai, mãe, esposa ou namorada, com certeza não tinham lá muita vontade de vir de férias à então Metrópole, sabendo que tinham que regressar de novo à zona de guerra, como era o caso do Curvas, alto e refilão.

Depois havia os outros, que o motivo de não virem à então Metrópole, eram os seus recursos financeiros, este talvez fosse o motivo mais importante e em maior número, havia aqueles que se habituaram ao ambiente de África, de cativeiro, àquela muito pequena comunidade de “irmãos de guerra”, onde algumas vezes tirando “férias na guerra”, por um dia ou umas horas, trajando civilmente com roupa emprestada por companheiros, a que chamávamos “roupa da comunidade”, era um pequeno grupo de amigos, dois, três, quatro ou cinco e, também decidiam vir para Bissau ou mesmo para Bolama, na altura pacífica e com praias que só os naturais conheciam, talvez por um período de uma semana no máximo. Também havia aqueles que única e simplesmente tiravam licença fora das suas tarefas e por lá ficavam no aquartelamento, vadiando pelas tabancas, bebendo álcool e fumando cigarros não muito recomendáveis, nos quais nós éramos incluídos, porque talvez derivado à nossa falta de formação escolar e recursos financeiros, entre outras coisas, entendíamos que não devíamos fazer planos para viagens dessas, pois os nossos planos eram muito curtos, eram planos até ao próximo sábado à noite, quando se levava a “bajuda” amiga e querida ao cinema ao ar livre, que existia na sede dos Balantas, lá em Mansoa.


De um modo ou de outro, a condição financeira, a educação escolar, portanto, a patente militar ou o seu estado civil, eram muito importantes nessas decisões, nós por diversas vezes viemos a Bissau acompanhando companheiros que viajavam nos aviões militares, ficando nós a pensar como seria agradável viajar para a civilização, mas muitas vezes não tinham lugar no referido avião, então ficávamos em Bissau por um ou dois dias, vagabundeando pelos cafés e dormindo no aquartelamento da base dos pára quedistas onde o “Zargo” nos proporcionava cama, bebida e comida.

Naquele tempo havia uma curiosidade, que a nós nos fazia ficar algo excitados, era o pensamento de estar num lugar exótico, onde as pessoas trajavam motivos também exóticos, com savanas, pântanos, casas cobertas de colmo, num clima de calor infernal com chão de terra vermelha, em algumas áreas consideradas zonas perigosas, que eram zonas de guerra e, passado umas horas, estar na civilização de Lisboa, isso fazia alguma confusão que nos excitava.

Tony Borie, Outubro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15166: Libertando-me (Tony Borié) (36): ...tal e qual uma árvore centenária