Quadragésimo sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.
É Dezembro, vamos ao norte
É Dezembro, aproximam-se as festas de Natal, vamos a
caminho do norte, vamos para os estados de
Pennsylvania e Nova Jersey, viajamos no nosso carro
utilitário, não na “caravana”, pois a neve e o frio para
estes lados, não convida a “acampar”. A estrada rápida
número 95 é terreno plano com longas rectas, por vezes
passamos a poucos quilómetros do Oceano Atlântico,
outras no interior. Paramos aqui e ali, até que o trânsito fica
mais lento, alguma construção, abrem-se novas vias, que
podem ser usadas alternadamente para norte ou para
sul, que são abertas consoante o trânsito o determina,
começando a surgir placas de sinalização com a palavra
Washington, D.C., que é a capital dos USA e, para quem
não sabe, D.C. é a abreviatura de Distrito de Colúmbia,
onde a cidade está localizada, no entanto, a cidade tanto
pode ser conhecida como Washington, D.C. ou
simplesmente Washington, que foi formada com território cedido pelos Estados de Maryland e Virgínia, por
volta do ano de 1847, todavia a região que fora cedida
pela Virgínia foi devolvida, fazendo parte atualmente do Condado de Arlington, que é onde está
localizado o Cemitério Nacional de Arlington, motivo que
nos fez parar, pois era um local que queríamos visitar.
Dezenas de vezes por aqui passamos, quase nem
reparamos, mas desta vez parámos, queríamos visitar o
Cemitério, mais conhecido por ser o cemitério
militar dos USA, fundado no antigo terreno da Casa de
Arlington, que era o palácio da família da esposa do
comandante das forças confederadas da Guerra Civil
Americana, General Robert Lee, Mary Anna Lee,
descendente da mulher de George Washington, primeiro
presidente dos Estados Unidos da América.
Para quem quiser, viajando pela estrada rápida número 95,
desviando-se para oeste, pode atravessar a cidade,
passando na Avenida Pennsylvania, vendo os edifícios
famosos, cujas imagens correm o mundo nos meios de
comunicação, pois o Cemitério fica do outro lado do Rio
Potomac, que corta a cidade, perto dos prédios do
Pentágono. Na sua área, com várias centenas de acres,
estão enterradas mais de 300 mil pessoas, veteranos de
cada uma das guerras travadas pelos USA, desde a
revolução americana até à actual Guerra do Iraque. Os
corpos dos mortos antes da Guerra da Secessão foram
para lá levados, após o ano de 1900.
Algumas das personagens históricas mais famosas estão
enterradas em Arlington, mas o local mais popular entre
os visitantes é o Túmulo ao Soldado Desconhecido, onde
os restos de três soldados não identificados da I Guerra
Mundial, Guerra da Coreia e Segunda Guerra Mundial,
são guardados perpetuamente por uma Guarda de Honra
do Exército, cuja cerimónia de troca de sentinelas é um
evento bastante procurado pelos visitantes. Nós
emocionámo-nos ao ver as imagens de alguns
monumentos da parte dedicada à guerra do Vietname, é
muito parecida com as imagens que nós, combatentes da
guerra da Guiné, passámos por aquelas savanas e
pântanos, que nos estão gravadas para sempre na nossa
memória.
Já no regresso, voltámos a passar por dentro da cidade,
que foi escolhida para capital, pois no início da
independência dos USA não havia uma capital fixa e as
reuniões do Congresso eram feitas em diferentes cidades,
mas por volta do ano de 1783, houve um motim durante
uma reunião do congresso na cidade de Filadélfia, o que
forçou os congressistas a saírem da cidade, que ficou
conhecido como “Motim da Pennsilvânia de 1783”, onde
as autoridades locais se recusaram a enfrentar o motim e,
a necessidade de uma capital independente dos estados,
foi discutida no mesmo local quatro anos depois.
No entanto, a Constituição não estabelecia o local
específico onde seria o distrito, claro, houve logo um
conflito de interesses entre as regiões norte e sul para
estabelecer a sua localização. Os estados do norte
preferiam a capital numa das grandes cidades do país,
localizadas ao norte, enquanto os estados do sul
favoreciam uma capital mais próxima de seus interesses,
onde usavam o trabalho escravo, sobretudo nos trabalhos
agrícolas. Houve negociações, onde foi proposta a
federalização das dívidas contraídas ao longo da guerra
de independência pelos estados, onde os estados do sul
já haviam pago a maior parte das suas dívidas. Assim, o
acordo foi a federalização das dívidas em troca da
localização da capital num estado do sul, onde, por volta
do ano de 1790, deu ao então Presidente Americano,
George Washington, o poder de escolher o local onde
seria construída a nova capital americana.
Logo no ano seguinte, George Washington escolheu uma
área de 259 km² na margem do Rio Potomac, onde a vila
de Georgetown estava localizada, que, talvez por
coincidência, ficava a escassos quilómetros da sua casa,
pois vivia em Mount Vernon, Virgínia.
Já vamos longe, mas não queremos terminar sem
mencionar uma questão controversa na nova capital dos
USA, que era a escravidão, pois a capital Washington,
estava localizada na Região Sul dos USA, onde o uso de
escravos era intensivo. Dizem alguns historiadores que foi
com o trabalho dos escravos que muito da cidade foi
construída, incluindo as estruturas governamentais e vias
públicas, mas a grande parte do país era contra a
escravidão, especialmente a população dos Estados do
norte e, só por volta do ano de 1850, uma lei federal
proibiu o comércio escravo em Washington, no entanto, a
escravidão seria definitivamente abolida pelo Presidente
Americano Abraham Lincoln só em 1863, quando a guerra
Civil Americana havia já começado dois anos antes.
Proprietários de escravos que decidiram ficar do lado da
União Nortista, composta por estados que apoiavam a
abolição da escravidão e leais ao Presidente Americano,
foram recompensados com 300 dólares por cada escravo
libertado.
Companheiros, já vamos longe, deixemos os cemitérios e
os escravos em paz, continuemos para norte, tendo
quase a certeza de que não regressaremos ao sul sem
parar em Nova Jersey, na histórica cidade de Newark, o
bairro do Ironbound, visitar o “Portuguesa” Ferry Street,
comprar bacalhau, azeite ou castanhas, ver os
restaurantes e padarias portuguesas, não querendo falar
outra vez na Gracinda, aquela das tranças, que adorava
vestir de preto, já com os dedos das mãos tortos, de
montar os esqueletos dos colchões, lá na “fábrica dos
colchões” onde trabalhava, que diziam que “mandava” no
seu marido, o Manuel Murtosa, que era encarregado, mas
na linguagem emigrante, era “puxa” na construção, que
dizia que a Inês, uma rapariga portuguesa espanholada,
que praticamente vivia na Ferry Street e, na boca da
Gracinda, fazia favores aos homens honrados e
trabalhadores, era mesmo o “diabo em figura de gente”,
uma tentadora, com aquele corpinho jeitoso, fazia com
que os homens perdessem todo o seu tempo livre na
Ferry Street, agora usava pinturas, fumava, fazia a
permanente e usava uns óculos à “Hollywood”. Um dia o
seu Manuel apareceu em casa a cheirar a tabaco, e ela,
a Gracinda, mulher honrada e respeitadora, que nunca
falou da vida de ninguém, não sabia porquê, aquele
cheiro a tabaco, tudo isto, porque ela, a Inês, aquela
espanhola que parecia portuguesa, trabalhava na “fábrica
dos óculos”, e lá, segundo o seu parecer, era tudo uma
“putaria”, ou então quando se lastimava que, o António
Serrano, vítima de um acidente, pois entrou com o seu
carro para debaixo de um camião, era quase uma hora da
manhã, quando vinha do trabalho, na “fábrica do cobre”, depois de fazer dois turnos seguidos, morreu a uma
quarta-feira, e já tinha quase 30 horas de “overtime”, lá na
companhia onde trabalhava e, agora a Rosa, a viúva,
anda por aí a “dá-lo e a gastá-lo”, até já foi à Flórida, ao
parque do Walt Disney, com aquele “garoto” com quem
anda agora metida.
Enfim, era a Ferry Street do nosso tempo, em que a filha
dos nossos vizinhos do segundo andar, que também eram
de origem portuguesa e, sempre diziam que a sua filha
era irreverente e mal educada, pois ela, era a segunda
geração de emigração portuguesa, não apreciava roupas
escuras, xailes, tranças no cabelo, grandes bigodes,
vinho, carne de porco salgada, couves e pão caseiro,
adorava coca-cola, hamburgueres e batatas fritas e, pela
manhã, ao cimo das escadas, quase sem roupa interior,
esticando os braços para o céu, nos falava em inglês,
sorrindo:
“what a beautiful day, let's enjoy it”
Tony Borie, Dezembro de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 6 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15451: Libertando-me (Tony Borié) (46): O Bairro de Ironbound, Newark, N.J. - USA
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
O meu vizinho do sul, um autêntico “snowbird” português, ao longo dos termpos tem tido o cuidado de nos apresentar um pouco a sua vivência americana, se preferirem, da sua adaptação ao sonho americano. Pelo que escreve é bem visível que está plenamente integrado na vivência e cultura americana, todavia, sem esquecer ou denegrir as suas raízes lusitanas. Só lhe fica bem.
Aprecio imenso a forma como Tony Borié dá a conhecer um pouco da História dos EUA, ao mesmo tempo que embeleza os seus artigos com o humor típico dos portugueses que demandaram terras do tio Sam, neste caso, o estado de New Jersey.
Infelizmente, para nós portugueses que temos travado uma luta insana na preservação das nossas tradições e costumes neste grande país americano, o último parágrafo é um alerta ou, se preferirem, a simplicidade como as novas gerações lentamente se vão desligando de Portugal. Nem o caldinho verde escapará.
Um grande abraço,
José Câmara
O Tony e a segunda geração de emigrantes portugueses, está porreiramente exemplificada com essa da filha leviana dos seus vizinhos.
De facto muitas das segundas gerações portuguesas fogem das tradições dos humildes, pobres, atrasados, ultrapassados, progenitores.
Muitos até escondem que são filhos de portugueses (Brasil)
Muitos nas ex-colónias (Angola) aliaram-se ao MPLA, e acusavam o pai de racista.
Tony, se um dia revires aquela filha leviana dos teus vizinhos, diz-lhe para passar umas férias na terra dos pais, para animar a terrinha, que isto aqui anda precisa animação.
Cumprimentos
Enviar um comentário