1. Mensagem do nosso camarada José Diniz de Souza e Faro, ex-Fur Mil Art do 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2015:
Bom dia caros Luís/Carlos,
Para os devidos efeitos, anexo alguns excertos do nosso jornal em assunto
editado em Junho de 1970.
O artigo principal é a extinção da Bataria de Artilharia de Campanha n.º 1 e o
nascer do Grupo de Artilharia de Campanha n.º 7.
Depois temos a chegada dos nossos substitutos, a praxe da ordem e a
nossa partida (oficias e furriéis), para a Metrópole.
Uma homenagem aos que tombaram em combate.
E por último os aniversariantes e a reportagem do Fogo real.
Espero que seja do vosso agrado a minha modesta contribuição e que a mesma
seja publicada.
Em breve mandarei um estudo em torno da mobilização das unidades de Artilharia
na guerra de África em particular na Guiné.
Grato pela atenção dispensada,
Abraço,
J.D.S. C. FARO
Ex-Fur. Milº Artª
Guiné 68/70
OBS: - Clicar nas imagens para ampliar para tamanho que permite leitura sem esforço
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Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 4 de julho de 2015
Guiné 63/74 - P14834: Tabanca Grande (468): José Jorge de Melo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1498/BCAÇ 1876 (Có, Jolmete, Ponate, Bula e Minar, 1966/67)
1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo José Jorge de Melo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1498/BCAÇ 1876, Có, Jolmete, Ponate, Bula e Binar, 1966/67, com data de 22 de Junho de 2015:
Caro camarada de armas,
Há cerca de um ano, o Armando Teixeira falou-me no seu “blog” e tentou entusiasmar-me para que eu viesse a participar no mesmo. Porém, os meus afazeres diários fizeram-me esquecer o assunto. Ontem ele enviou-me três textos que foram publicados no seu “blog” que tiveram o condão de me entusiasmar a fazer esta minha apresentação.
Respeitando as regras:
1 – Envio de uma foto antiga
2 . Envio de uma foto actual
3 - Texto de apresentação
Posto: alferes miliciano
Especialidade: atirador de infantaria
Unidades e locais:
Recruta em Tavira (aproximadamente 3 meses);
Especialidade em Mafra (aproximadamente 3 meses);
RI 18 nos Arrifes, Ponta Delgada, São Miguel, Açores (10 meses);
mobilizado para a Guiné pelo Regimento de Abrantes; Santa Margarida (1 mês);
Guiné-Bissau (21 meses), locais de permanência: Ponate, Có, Bula, Binar e ... “já consigo dizer que” fui condecorado com uma Cruz de Guerra de 3.ª classe. A seu tempo esclarecerei a razão porque escrevo “já consigo dizer que”
Onde vivo: Parede, concelho e distrito de Cascais;
Outros assuntos:
Esclarecimento do “já consigo dizer que...”
Quando terminei as ações de desmobilização em Novembro de 1967, decidi regressar a São Miguel, minha terra natal, para descansar, esquecer a guerra, e levei comigo um Manual de Geometria Descritiva, para ir lendo quando me apetecesse, porque tencionava regressar a Lisboa para me licenciar em Engenharia, no Instituto Superior Técnico (IST).
Regressei a Lisboa a 4 de Janeiro de 1968 e comecei os estudos imediatamente. Não tinha família em Portugal continental e convivia com um grupo de estudantes, seis anos mais novos do que eu, que frequentavam diversas universidades em Lisboa.
A minha educação era altamente religiosa e o meu pensamento estava imbuído de conceitos de disciplina, obediência, contenção e paz. Porém fui-me apercebendo, tanto no IST como nas outras faculdades, da existência de um forte movimento de contestação contra o governo de Salazar a que não pude ficar alheio. As reuniões de estudantes na Associação Académica que eu não deixava escapar e as discussões pela noite dentro sobre política, foram modificando a minha maneira de pensar. Mas... foram as discussões religiosas que mais me abalaram. Discutiram-se todas as provas da existência de Deus e foi-me mil vezes demonstrado a não existência de um Deus, sobretudo devido às enormes insistências de meu irmão Carlos, que frequentava Filosofia e me impingia os tratados de fenomenologia.
Posso dizer que quase fui obrigado a ler o Capital de Karl Max, A Vida e Morte de Che Guevara; e os mais marcantes, não sei precisar as datas em que os li, foram “Crimes de Guerra no Vietnam”, “Porque não sou Cristão”, “A minha concepção do Mundo” de Bertrand Russell, bem como “ O Macaco Nu” e ” O Zoo Humano” de Desmond Morris.
Depressa chegaram a Lisboa as notícias sobre a Revolta estudantil do Quartier Latin iniciada a 10 de Maio de 1968. Estavam refugiados em Paris muitos jovens açorianos e portugueses, que tinham fugido para França, para escapar a serem incorporados no exército português e arrastados para a Guerra colonial. E mandavam jornais livros, propaganda em favor do comunismo e do existencialismo. Recomendavam a leitura de Simone de Beauvoir e de Jean Paul Sartre e de facto senti uma certa revolta ao ler “A Idade da Razão” que foi um livro muito discutido.
A 27 de Setembro de 1968, a tomada de posse de Chefe do Governo de Portugal por Marcelo Caetano foi uma lufada de esperança que desapareceu rapidamente, por se tornar evidente desde muito cedo, que ele seguia os passos do seu antecessor. A guerra colonial era para continuar e os mandantes e influentes na condução do país continuavam a ser os mesmos.
Encurtando razões tornei-me ateu e contestatário político e em Janeiro de 1969 assinei o documento “Liberdade e Coerência Cívica” uma Candidatura Independente às eleições para Deputados em 1969.
"Declaração de Ponta Delgada" que está inserido nos arquivos do “Pensamento de Melo Antunes”.
Embora a minha mudança de pensamento politico me tenha agitado, o tornar-me ateu deixou-me vazio, por perder o ideal da perfeição mística. Senti uma premente necessidade de substituir esse ideal perdido por um outro, um outro de minha escolha, que me animasse, me guiasse na continuação da minha existência. Não escolhi a política, não escolhi a humanidade. A minha escolha recaiu sobre a beleza, a arte, a música, a liberdade, isto é, tudo aquilo que me proporciona prazer.
No primeiro trimestre de 1968 recebi o primeiro convite para receber a condecoração que me havia sido atribuída e declinei o convite. Estava abalada a minha estrutura mental nos campos religioso e politico. Deixei de falar sobre a minha vida militar, melhor dizer que procurei ocultar esse meu tempo de vida. Heróis eram os que tinham fugido para França e não pactuaram com um regime opressivo, os que estavam proibidos de regressar a Portugal por serem refractários e iam mandando notícias sobre as novas ideias e o progresso da humanidade.
No ano seguinte recebi novamente o convite para ir a Tomar receber a minha condecoração e, desta vez, pagavam as passagens de avião para os meus pais se deslocarem de Ponta Delgada a Tomar, a fim de assistirem à cerimónia. Meus pais nunca tinham saído de São Miguel, eu tinha casado, era estudante universitário e o dinheiro não abundava. Não podia perder a oportunidade de oferecer aos meus pais uma viagem a Lisboa que os deslumbrou. Sem dizer nada aos meus amigos universitários, aceitei o convite, e fui a Tomar, sentindo que estava a cometer uma ação incongruente para com o meu novo pensamento, pactuando com o regime.
Recusei os vários convites que recebi para me associar à Liga dos Combatentes e durante quarenta anos tentei ignorar e esquecer a minha vida militar. Nos dias de hoje já consigo dizer que fui combatente na Guiné Bissau.
Memórias do serviço militar obrigatório
O Armando Teixeira teve e tem o mérito de há dez anos dedicar uma parte da sua vida a descobrir o paradeiro de cada um dos militares do nosso pelotão, com o intuito de promover um almoço anual e que este ano vai ter a décima repetição.
Nesses convívios, tendo eles conhecimento das minha aptidão para a escrita, recebi vários pedidos para que escrevesse as aventuras vividas na Guiné Bissau. Eu porém fui adiando o início desse trabalho e agora venho propor-me a ir escrevendo no seu blog algumas das peripécias por que passámos, se tanto me for permitido.
Quando cheguei a Santa Margarida espantei-me pela falta de disciplina e desorganização que reinava na Unidade, no Batalhão e na Companhia a que estava adstrito. Na minha Companhia, a 1498, o capitão ainda não se apresentara na Unidade, sendo o sargento ajudante, administrativo, que a governava a seu belo prazer. Este sargento ajudante nomeou-me “oficial de dia”, em tom de pessoa de patente superior à minha, aspirante miliciano. Acatei a ordem e resolvi não iniciar um litígio logo no primeiro dia, mas confesso que a sua atitude não me agradou. Perguntei-lhe, no entanto, o que esperava de mim, na qualidade de “oficial de dia”? Estava a ser nomeado “oficial de dia” da Unidade ou do Batalhão?
O homem esboçou um sorriso de troça e esclareceu que se tratava somente de obrigações para com a companhia 1498; e que se resumiam unicamente em acompanhar os soldados que já se tinham apresentado até ao refeitório e coordenar a refeição.
Tinha levado comigo uma série de livros para através da leitura poder matar os tempos mortos. Chegada a hora do almoço dirigi-me para a camarata da 1498 e verifiquei que os soldados, de moto próprio, seguiam para o refeitório sem me dar cavaco.
- Hei! Militares! Vamos formar!
- Formar?! Os outros oficiais não mandam formar!
- Eu mando! Quem não formar não entra no refeitório! E tu aí, como te chamas?
- Eu sou o Cascais.
- Vai ao refeitório avisar os que já lá estão que têm de vir para a forma.
O primeiro que terminou a refeição, levantou-se e preparava-se para abandonar o recinto:
- Hei! Espera que todos acabem!
Quando todos terminaram, mandei porem-se de pé e destroçarem.
Foi o primeiro choque entre mim e os soldados da 1498.
Vinham para a formatura, uns fardados, outros em pijama, de chinelas. Eu não quis ser muito duro. A única exigência era que formassem e esperassem a minha ordem para destroçarem.
O capitão, na altura ainda tenente, acabado de sair da academia militar, era progressista e resolveu aplicar técnicas democráticas para a divisão dos soldados em pelotões. Reuniu todos os soldados num grupo e colocou os aspirantes em fila bastante separados uns dos outros, e perguntou:
- Quem quiser ir para o aspirante Branco desloque-se para o pé dele.
E moveu-se uma leva de soldados. Quando terminou o movimento, veio a segunda pergunta:
- Quem quer ir para o aspirante Pinto?
Nova leva de soldados.
- Quem quer ir para o aspirante Melo?
Nem sequer um mostrou o desejo de integrar o meu pelotão.
- Quem quer ir para o aspirante Travassos?
Moveu-se uma grande leva de soldados.
Um grupo, de uma a duas dezenas de soldados, ficaram sem se ter candidatado a nenhum dos pelotões. Conversaram entre si e depois um deles levantou o dedo:
- Meu tenente! Ainda podemos escolher?
- Claro que podem!
- Queremos ficar com o aspirante Melo.
Eram naturais de terras do norte, Braga, Barcelos e arredores; e foram os melhores soldados do meu pelotão. Os restantes foram arrebanhados dos pelotões que tinham gente a mais.
Todos aqueles soldados pareciam estarem condenados à morte. Desejavam portar-se mal, por revolta, por contestação. Excediam-se no álcool, jogavam até tarde. Eu, embora sabendo que na Guiné iria correr riscos de perda da minha vida, não me sentia um condenado à morte, e pensava que a minha vida dependia da atitude dos meus soldados e da disciplina que eu conseguisse impor por forma a conseguir deles rápidas e prontas respostas contra os imprevistos da guerra. Assim, imediatamente após saber quem eram os meus soldados, furriéis e sargentos, passei a ocupar-lhes as manhãs com sessões de esclarecimento e motivação, exercícios físicos e revisão do estudo do armamento, prometendo-lhes que, se fossem disciplinados e cumprissem as regras, haveríamos de voltar todos com vida.
Na dúvida, acataram as minhas sugestões e, embora em toda a Unidade o meu pelotão fosse o único a preencher as manhãs daquela maneira, não tive da parte deles qualquer contestação, porém não me livrei da fama de ser militarista.
Na Guiné continuei a ser extremamente duro no respeitante à disciplina e na primeira semana castiguei um motorista por não ter verificado o nível do óleo da sua viatura.
Nasci na ilha de São Miguel onde permaneci até aos 21 anos. Não tinha grande experiência e vivência social. Sentia-me diminuído pelo facto do meu falar ser bastante diferente do falar continental, o que em muitas situações era motivo para troça. A minha puberdade fora extremamente tardia. Aos 15 anos tinha o tamanho de uma criança de doze anos e, como dizia o meu pai, somente aos 17 anos comecei a espigar. Embora fosse um ano mais velho do que todos os meus soldados, porque tive um ano de adiamento por estar matriculado na Universidade, a minha aparência era acriançada enquanto eles, alguns já casados, tinham aspecto de serem mais maduros. Esta diferença de aparência obrigou-me a manter uma maior distância para com eles e um maior rigor na imposição da minha autoridade.
Tive de me manter inflexível para compensar o que o peso, a carranca e o tamanho do corpo me diminuíam.
Fui duro muitas vezes injustamente e, quando eu passava, ouvia-os murmurar entre dentes: “Deus não dorme!”
Porém, por sorte, consegui cumprir a minha promessa porque, embora o meu pelotão tivesse sido castigado com bastantes feridos graves, nenhum dos meus homens faleceu e disso sento orgulho; e ainda hoje não me arrependo da dureza e distância que mantive naquela altura da minha vida, que psicologicamente me doeu, principalmente nos primeiros tempos, no quartel de Ponate, porque não tinha com quem desabafar. Enquanto eles conversavam entre si sobre as suas vidas e sobre as notícias que recebiam por carta dos familiares, eu sentia uma certa solidão e tinha de remoer sozinho, entre as quatro paredes do meu dormitório, os meus receios, os medos e as responsabilidades.
A disciplina que implementei, permitiu que me pudesse dar ao luxo de poder dormir até quinze minutos antes da hora marcada para uma saída; e ter o prazer de ver o meu pelotão devidamente formado, municiado e pronto para avançar enquanto outros sofriam para conseguirem estarem preparados mesmo contando com atrasos.
Dez anos depois, em 1978, desloquei-me em serviço a Macau, na sequência de negociações de um contrato de fornecimento de material de telecomunicações para aquele território. A última reunião, a decisiva, teve lugar no palácio do Governador, com a presença do mesmo. Estavam as negociações em marcha quando o Governador, numa atitude completamente fora do contexto me pergunta:
- Você não se lembra de mim?
- Sinceramente não tenho ideia de alguma vez me ter cruzado com V. Exa.
- Mas eu lembro-me perfeitamente de si! Não se lembra de uma operação que saiu de Binar em que veio uma companhia de intervenção de Bissau para se integrar com as vossas forças.
- Lembro-me perfeitamente.
- Eu era o comandante dessa companhia e fixei a sua fisionomia porque você foi o único que tinha o pelotão pronto para sair à hora que tinha sido determinada. Invejei o comportamento do seu pelotão.
Tratava-se de José Eduardo Martinho Garcia Leandro, promovido a coronel quando, em 1974, foi nomeado Governador de Macau.
José Jorge de Melo
2. Comentário do editor:
Caro camarada de armas José de Melo
Bem-vindo ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Não vais estranhar o tratamento por tu, que torna mais próxima a comunicação entre camaradas que em comum têm o ter pisado o chão da Guiné naquela situação de guerra. Tentamos que a idade, o actual (ou antigo) posto militar, as habilitações académicas e profissão sejam o impedimento de proximidade entre quem partilha este espaço de memórias.
Muito obrigado por te decidires juntar à nossa tertúlia, onde poderás deixar escritas (e em imagem) as recordações dum tempo que jamais esqueceremos. Terás também de nos dizer porque foste agraciado com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe. Independentemente das nossas convicções políticas de então, não temos que nos envergonhar, hoje, por termos participado na guerra de África, a esmagadora maioria de nós foi para lá por imposição, cumprindo a lei vigente.
Se reparares, há parte da tua mensagem que foi omitida. Aquela que dedicas à tua faceta de artista enquanto escritor e pintor. Foi de propósito, já que na nossa série "Os nossos seres saberes e lazeres" irás ter, em breve, o destaque que mereces.
Não consegui fazer da tua foto antiga uma tipo passe para encimar os teus futuros postes. Se tiveres por aí uma onde estejas fardado, por exemplo a do BI militar, manda para os nossos arquivos. Se quiseres que faça outra actual onde apareças mais de frente, manda também.
Depois desta tua tão bem elaborada apresentação, resta-me deixar aqui um abraço de boas vindas em nome da tertúlia e dos editores.
Estaremos sempre ao teu dispor
Pela tertúlia
Carlos Vinhal
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14727: Tabanca Grande (467): José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (Colibuia, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), 691.º Grã-Tabanqueiro
Caro camarada de armas,
Há cerca de um ano, o Armando Teixeira falou-me no seu “blog” e tentou entusiasmar-me para que eu viesse a participar no mesmo. Porém, os meus afazeres diários fizeram-me esquecer o assunto. Ontem ele enviou-me três textos que foram publicados no seu “blog” que tiveram o condão de me entusiasmar a fazer esta minha apresentação.
Respeitando as regras:
1 – Envio de uma foto antiga
2 . Envio de uma foto actual
3 - Texto de apresentação
Posto: alferes miliciano
Especialidade: atirador de infantaria
Unidades e locais:
Recruta em Tavira (aproximadamente 3 meses);
Especialidade em Mafra (aproximadamente 3 meses);
RI 18 nos Arrifes, Ponta Delgada, São Miguel, Açores (10 meses);
mobilizado para a Guiné pelo Regimento de Abrantes; Santa Margarida (1 mês);
Guiné-Bissau (21 meses), locais de permanência: Ponate, Có, Bula, Binar e ... “já consigo dizer que” fui condecorado com uma Cruz de Guerra de 3.ª classe. A seu tempo esclarecerei a razão porque escrevo “já consigo dizer que”
Onde vivo: Parede, concelho e distrito de Cascais;
Outros assuntos:
Esclarecimento do “já consigo dizer que...”
Quando terminei as ações de desmobilização em Novembro de 1967, decidi regressar a São Miguel, minha terra natal, para descansar, esquecer a guerra, e levei comigo um Manual de Geometria Descritiva, para ir lendo quando me apetecesse, porque tencionava regressar a Lisboa para me licenciar em Engenharia, no Instituto Superior Técnico (IST).
Regressei a Lisboa a 4 de Janeiro de 1968 e comecei os estudos imediatamente. Não tinha família em Portugal continental e convivia com um grupo de estudantes, seis anos mais novos do que eu, que frequentavam diversas universidades em Lisboa.
A minha educação era altamente religiosa e o meu pensamento estava imbuído de conceitos de disciplina, obediência, contenção e paz. Porém fui-me apercebendo, tanto no IST como nas outras faculdades, da existência de um forte movimento de contestação contra o governo de Salazar a que não pude ficar alheio. As reuniões de estudantes na Associação Académica que eu não deixava escapar e as discussões pela noite dentro sobre política, foram modificando a minha maneira de pensar. Mas... foram as discussões religiosas que mais me abalaram. Discutiram-se todas as provas da existência de Deus e foi-me mil vezes demonstrado a não existência de um Deus, sobretudo devido às enormes insistências de meu irmão Carlos, que frequentava Filosofia e me impingia os tratados de fenomenologia.
Posso dizer que quase fui obrigado a ler o Capital de Karl Max, A Vida e Morte de Che Guevara; e os mais marcantes, não sei precisar as datas em que os li, foram “Crimes de Guerra no Vietnam”, “Porque não sou Cristão”, “A minha concepção do Mundo” de Bertrand Russell, bem como “ O Macaco Nu” e ” O Zoo Humano” de Desmond Morris.
Depressa chegaram a Lisboa as notícias sobre a Revolta estudantil do Quartier Latin iniciada a 10 de Maio de 1968. Estavam refugiados em Paris muitos jovens açorianos e portugueses, que tinham fugido para França, para escapar a serem incorporados no exército português e arrastados para a Guerra colonial. E mandavam jornais livros, propaganda em favor do comunismo e do existencialismo. Recomendavam a leitura de Simone de Beauvoir e de Jean Paul Sartre e de facto senti uma certa revolta ao ler “A Idade da Razão” que foi um livro muito discutido.
A 27 de Setembro de 1968, a tomada de posse de Chefe do Governo de Portugal por Marcelo Caetano foi uma lufada de esperança que desapareceu rapidamente, por se tornar evidente desde muito cedo, que ele seguia os passos do seu antecessor. A guerra colonial era para continuar e os mandantes e influentes na condução do país continuavam a ser os mesmos.
Encurtando razões tornei-me ateu e contestatário político e em Janeiro de 1969 assinei o documento “Liberdade e Coerência Cívica” uma Candidatura Independente às eleições para Deputados em 1969.
"Declaração de Ponta Delgada" que está inserido nos arquivos do “Pensamento de Melo Antunes”.
Embora a minha mudança de pensamento politico me tenha agitado, o tornar-me ateu deixou-me vazio, por perder o ideal da perfeição mística. Senti uma premente necessidade de substituir esse ideal perdido por um outro, um outro de minha escolha, que me animasse, me guiasse na continuação da minha existência. Não escolhi a política, não escolhi a humanidade. A minha escolha recaiu sobre a beleza, a arte, a música, a liberdade, isto é, tudo aquilo que me proporciona prazer.
No primeiro trimestre de 1968 recebi o primeiro convite para receber a condecoração que me havia sido atribuída e declinei o convite. Estava abalada a minha estrutura mental nos campos religioso e politico. Deixei de falar sobre a minha vida militar, melhor dizer que procurei ocultar esse meu tempo de vida. Heróis eram os que tinham fugido para França e não pactuaram com um regime opressivo, os que estavam proibidos de regressar a Portugal por serem refractários e iam mandando notícias sobre as novas ideias e o progresso da humanidade.
No ano seguinte recebi novamente o convite para ir a Tomar receber a minha condecoração e, desta vez, pagavam as passagens de avião para os meus pais se deslocarem de Ponta Delgada a Tomar, a fim de assistirem à cerimónia. Meus pais nunca tinham saído de São Miguel, eu tinha casado, era estudante universitário e o dinheiro não abundava. Não podia perder a oportunidade de oferecer aos meus pais uma viagem a Lisboa que os deslumbrou. Sem dizer nada aos meus amigos universitários, aceitei o convite, e fui a Tomar, sentindo que estava a cometer uma ação incongruente para com o meu novo pensamento, pactuando com o regime.
Recusei os vários convites que recebi para me associar à Liga dos Combatentes e durante quarenta anos tentei ignorar e esquecer a minha vida militar. Nos dias de hoje já consigo dizer que fui combatente na Guiné Bissau.
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Memórias do serviço militar obrigatório
O Armando Teixeira teve e tem o mérito de há dez anos dedicar uma parte da sua vida a descobrir o paradeiro de cada um dos militares do nosso pelotão, com o intuito de promover um almoço anual e que este ano vai ter a décima repetição.
Nesses convívios, tendo eles conhecimento das minha aptidão para a escrita, recebi vários pedidos para que escrevesse as aventuras vividas na Guiné Bissau. Eu porém fui adiando o início desse trabalho e agora venho propor-me a ir escrevendo no seu blog algumas das peripécias por que passámos, se tanto me for permitido.
Quando cheguei a Santa Margarida espantei-me pela falta de disciplina e desorganização que reinava na Unidade, no Batalhão e na Companhia a que estava adstrito. Na minha Companhia, a 1498, o capitão ainda não se apresentara na Unidade, sendo o sargento ajudante, administrativo, que a governava a seu belo prazer. Este sargento ajudante nomeou-me “oficial de dia”, em tom de pessoa de patente superior à minha, aspirante miliciano. Acatei a ordem e resolvi não iniciar um litígio logo no primeiro dia, mas confesso que a sua atitude não me agradou. Perguntei-lhe, no entanto, o que esperava de mim, na qualidade de “oficial de dia”? Estava a ser nomeado “oficial de dia” da Unidade ou do Batalhão?
O homem esboçou um sorriso de troça e esclareceu que se tratava somente de obrigações para com a companhia 1498; e que se resumiam unicamente em acompanhar os soldados que já se tinham apresentado até ao refeitório e coordenar a refeição.
Tinha levado comigo uma série de livros para através da leitura poder matar os tempos mortos. Chegada a hora do almoço dirigi-me para a camarata da 1498 e verifiquei que os soldados, de moto próprio, seguiam para o refeitório sem me dar cavaco.
- Hei! Militares! Vamos formar!
- Formar?! Os outros oficiais não mandam formar!
- Eu mando! Quem não formar não entra no refeitório! E tu aí, como te chamas?
- Eu sou o Cascais.
- Vai ao refeitório avisar os que já lá estão que têm de vir para a forma.
O primeiro que terminou a refeição, levantou-se e preparava-se para abandonar o recinto:
- Hei! Espera que todos acabem!
Quando todos terminaram, mandei porem-se de pé e destroçarem.
Foi o primeiro choque entre mim e os soldados da 1498.
Vinham para a formatura, uns fardados, outros em pijama, de chinelas. Eu não quis ser muito duro. A única exigência era que formassem e esperassem a minha ordem para destroçarem.
O capitão, na altura ainda tenente, acabado de sair da academia militar, era progressista e resolveu aplicar técnicas democráticas para a divisão dos soldados em pelotões. Reuniu todos os soldados num grupo e colocou os aspirantes em fila bastante separados uns dos outros, e perguntou:
- Quem quiser ir para o aspirante Branco desloque-se para o pé dele.
E moveu-se uma leva de soldados. Quando terminou o movimento, veio a segunda pergunta:
- Quem quer ir para o aspirante Pinto?
Nova leva de soldados.
- Quem quer ir para o aspirante Melo?
Nem sequer um mostrou o desejo de integrar o meu pelotão.
- Quem quer ir para o aspirante Travassos?
Moveu-se uma grande leva de soldados.
Um grupo, de uma a duas dezenas de soldados, ficaram sem se ter candidatado a nenhum dos pelotões. Conversaram entre si e depois um deles levantou o dedo:
- Meu tenente! Ainda podemos escolher?
- Claro que podem!
- Queremos ficar com o aspirante Melo.
Eram naturais de terras do norte, Braga, Barcelos e arredores; e foram os melhores soldados do meu pelotão. Os restantes foram arrebanhados dos pelotões que tinham gente a mais.
Todos aqueles soldados pareciam estarem condenados à morte. Desejavam portar-se mal, por revolta, por contestação. Excediam-se no álcool, jogavam até tarde. Eu, embora sabendo que na Guiné iria correr riscos de perda da minha vida, não me sentia um condenado à morte, e pensava que a minha vida dependia da atitude dos meus soldados e da disciplina que eu conseguisse impor por forma a conseguir deles rápidas e prontas respostas contra os imprevistos da guerra. Assim, imediatamente após saber quem eram os meus soldados, furriéis e sargentos, passei a ocupar-lhes as manhãs com sessões de esclarecimento e motivação, exercícios físicos e revisão do estudo do armamento, prometendo-lhes que, se fossem disciplinados e cumprissem as regras, haveríamos de voltar todos com vida.
Na dúvida, acataram as minhas sugestões e, embora em toda a Unidade o meu pelotão fosse o único a preencher as manhãs daquela maneira, não tive da parte deles qualquer contestação, porém não me livrei da fama de ser militarista.
Na Guiné continuei a ser extremamente duro no respeitante à disciplina e na primeira semana castiguei um motorista por não ter verificado o nível do óleo da sua viatura.
Nasci na ilha de São Miguel onde permaneci até aos 21 anos. Não tinha grande experiência e vivência social. Sentia-me diminuído pelo facto do meu falar ser bastante diferente do falar continental, o que em muitas situações era motivo para troça. A minha puberdade fora extremamente tardia. Aos 15 anos tinha o tamanho de uma criança de doze anos e, como dizia o meu pai, somente aos 17 anos comecei a espigar. Embora fosse um ano mais velho do que todos os meus soldados, porque tive um ano de adiamento por estar matriculado na Universidade, a minha aparência era acriançada enquanto eles, alguns já casados, tinham aspecto de serem mais maduros. Esta diferença de aparência obrigou-me a manter uma maior distância para com eles e um maior rigor na imposição da minha autoridade.
Tive de me manter inflexível para compensar o que o peso, a carranca e o tamanho do corpo me diminuíam.
Fui duro muitas vezes injustamente e, quando eu passava, ouvia-os murmurar entre dentes: “Deus não dorme!”
Porém, por sorte, consegui cumprir a minha promessa porque, embora o meu pelotão tivesse sido castigado com bastantes feridos graves, nenhum dos meus homens faleceu e disso sento orgulho; e ainda hoje não me arrependo da dureza e distância que mantive naquela altura da minha vida, que psicologicamente me doeu, principalmente nos primeiros tempos, no quartel de Ponate, porque não tinha com quem desabafar. Enquanto eles conversavam entre si sobre as suas vidas e sobre as notícias que recebiam por carta dos familiares, eu sentia uma certa solidão e tinha de remoer sozinho, entre as quatro paredes do meu dormitório, os meus receios, os medos e as responsabilidades.
A disciplina que implementei, permitiu que me pudesse dar ao luxo de poder dormir até quinze minutos antes da hora marcada para uma saída; e ter o prazer de ver o meu pelotão devidamente formado, municiado e pronto para avançar enquanto outros sofriam para conseguirem estarem preparados mesmo contando com atrasos.
Dez anos depois, em 1978, desloquei-me em serviço a Macau, na sequência de negociações de um contrato de fornecimento de material de telecomunicações para aquele território. A última reunião, a decisiva, teve lugar no palácio do Governador, com a presença do mesmo. Estavam as negociações em marcha quando o Governador, numa atitude completamente fora do contexto me pergunta:
- Você não se lembra de mim?
- Sinceramente não tenho ideia de alguma vez me ter cruzado com V. Exa.
- Mas eu lembro-me perfeitamente de si! Não se lembra de uma operação que saiu de Binar em que veio uma companhia de intervenção de Bissau para se integrar com as vossas forças.
- Lembro-me perfeitamente.
- Eu era o comandante dessa companhia e fixei a sua fisionomia porque você foi o único que tinha o pelotão pronto para sair à hora que tinha sido determinada. Invejei o comportamento do seu pelotão.
Tratava-se de José Eduardo Martinho Garcia Leandro, promovido a coronel quando, em 1974, foi nomeado Governador de Macau.
José Jorge de Melo
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2. Comentário do editor:
Caro camarada de armas José de Melo
Bem-vindo ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Não vais estranhar o tratamento por tu, que torna mais próxima a comunicação entre camaradas que em comum têm o ter pisado o chão da Guiné naquela situação de guerra. Tentamos que a idade, o actual (ou antigo) posto militar, as habilitações académicas e profissão sejam o impedimento de proximidade entre quem partilha este espaço de memórias.
Muito obrigado por te decidires juntar à nossa tertúlia, onde poderás deixar escritas (e em imagem) as recordações dum tempo que jamais esqueceremos. Terás também de nos dizer porque foste agraciado com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe. Independentemente das nossas convicções políticas de então, não temos que nos envergonhar, hoje, por termos participado na guerra de África, a esmagadora maioria de nós foi para lá por imposição, cumprindo a lei vigente.
Se reparares, há parte da tua mensagem que foi omitida. Aquela que dedicas à tua faceta de artista enquanto escritor e pintor. Foi de propósito, já que na nossa série "Os nossos seres saberes e lazeres" irás ter, em breve, o destaque que mereces.
Não consegui fazer da tua foto antiga uma tipo passe para encimar os teus futuros postes. Se tiveres por aí uma onde estejas fardado, por exemplo a do BI militar, manda para os nossos arquivos. Se quiseres que faça outra actual onde apareças mais de frente, manda também.
Depois desta tua tão bem elaborada apresentação, resta-me deixar aqui um abraço de boas vindas em nome da tertúlia e dos editores.
Estaremos sempre ao teu dispor
Pela tertúlia
Carlos Vinhal
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14727: Tabanca Grande (467): José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (Colibuia, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), 691.º Grã-Tabanqueiro
Guiné 63/74 - P14833: Inquérito online: os quatro rios mais votados (por mais de 2/3 dos 118 votantes): Geba, Cacheu, Corubal e Cacine... Seguram-se os rios Grande de Buba, Mansoa e Cumbijã...
Guiné > Zona leste > Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá) > Subsetor de Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > Foto do malogrado sold Jaime Maria Nunes Estêvão, natural de Ourém, lançando-se para a "piscina" à pai Adão... Morreu num ataque IN ao destacamento, em 24/7/1968, O rio, cujo nome não foi identificado pelos nosso cartógrafos, era um pequeno afluente do Rio Gambiel (vd. aqui carta de Banjara) (*).
Foto (e legenda): © Alfredo Reis / A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados. [Edição : LG]
I. Camaradas aqui vão os resultados da sondagem sobre os rios da Guiné, que fechou no dia 3, às 7h. Houve 118 votos.
Recorde-se que a pergunta era: "O meu rio da Guiné ( o que eu mais amei / odiei"...)
Os quatro rios mais votados (> 10 %), com um um total de 82 votos (69,5%)
Geba > 32 (27,2%)
Cacheu > 23 (19,5%)
Corubal > 14 (11,9%)
Cacine > 13 (11,0%)
Com menos de 10% dos votos cada, reunindo 26 votos (22%), ficaram os restantes grandes rios (ou rias)
Grande de Buba > 10 (8,5%)
Mansoa > 8 (6,8%)
Cumbijã > 7 (5,9%)
Tombali > 1 (0,8%)
II. Resultados residuais:
Outro rio (o que corria junto do sítio onde estive) > 5 (4,2%)
Outro rio (não referido acima) > 1 (0,8%)
Nenhum > 4 (3,4%)
III. Votos apurados: 118 (100,0%)
Sondagem "on line", fechada no dia 3/7/2015, às 7h00.
Obrigados a todos os participantes. Bom veraneio. E não se esqueçam de nos mandar um "bate-estradas"... Também pode ser um "corta-capim"... O mais simples: um email... Os editores.
_________________
Nota do editor;
(*) Vd. poste de 28 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7879: In Memoriam (72): Jaime Maria Nunes Estêvão, sold da CART 1690 / BART 1914, natural de Ourém, morto em 24/7/1968, num ataque ao destacamento de Banjara (A. Marques Lopes)
Guiné 63/74 - P14832: (De)caras (23): O mistério dos autocarros no Xime... Para mim, este "slide" é de março/abril de 1974... (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74)
1. Mensagem, de 3 do corrente, enviada pelo António Manuel Sucena Rodrigues, em complemento da informação prestada no poste P14810 (*)
Assunto: Os autocarros no Xime
Olá, Luís,
Voltando à carga com a data da foto que mostra os autocarros, pareceu-me que fazes depender a presença destes na Zona Leste, da passagem do 25 de abril. Ora, embora eu não possa garantir absolutamente nada, quero, no entanto, dar a seguinte explicação:
(i) estivemos (a CCaç 12) no Xime bem mais de um ano [, desde março de 1973]; não me lembro de ter alguma vez assistido ou sequer ouvido comentar algo acerca da descarga, no cais do Xime, de quaisquer autocarros civis (muito menos militares) destinados à Zona Leste e aí largados de uma LDG; suponho que seria um acontecimento que não passaria despercebido;
(ii) o cais do Xime, conforme já referi antes, era a única ligação terrestre com o resto do mundo; concluo daí que já lá existiam estes autocarros há bem mais de um ano; tenho ideia de ter visto algum em Bafatá; logo, não dependeu (???) do 25 de abril a sua existência na Zona Leste, se algum camarada me poder esclarecer ou comentar, eu ficaria muito agradecido;
(iii) a estrada entre Xime e Bafatá e mesmo Nova Lamego (Gabu) era toda alcatroada em 1972/74 (e recentemente, a julgar pelo bom estado do piso), daí que os camaradas que estiveram lá pouco antes, estranhem a facilidade com que se viajava nessa estrada;
(iv) em termos de segurança, o único ponto vulnerável era a Ponta Coli (entre Xime e a tabanca de Amedalai); mas, para ultrapassar esse problema, estava lá todos os dias do ano, quer houvesse barco ou não, um pelotão da CCaç 12 (ou da milícia de Amedalai, no caso de impedimento desta) desde manhã (8 ou 9 horas ???) até ao fim da tarde;
Por tudo isto continuo a manter a data provável da foto para março ou abril de 74, embora sem poder dar uma garantia absoluta.
Estas fotos foram digitaizadas a partir de slides.Os slides da Agfa vinham encaixilhados com caixilhos de plástico e esses não têm data da revelação marcada, Os slides da Kodak vinham encaixilhados com caixilhos de papelão e esses trazem as datas da revelação, que ainda são visíveis. Logo por azar este, de onde foi retirada a foto, era da Agfa.
Fico a aguardar esclarecimentos de algum camarada que possa trazer luz nesta matéria.
Um abraço
Sucena Rodrigues
[ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74]
Assunto: Os autocarros no Xime
Olá, Luís,
(ii) o cais do Xime, conforme já referi antes, era a única ligação terrestre com o resto do mundo; concluo daí que já lá existiam estes autocarros há bem mais de um ano; tenho ideia de ter visto algum em Bafatá; logo, não dependeu (???) do 25 de abril a sua existência na Zona Leste, se algum camarada me poder esclarecer ou comentar, eu ficaria muito agradecido;
(iv) em termos de segurança, o único ponto vulnerável era a Ponta Coli (entre Xime e a tabanca de Amedalai); mas, para ultrapassar esse problema, estava lá todos os dias do ano, quer houvesse barco ou não, um pelotão da CCaç 12 (ou da milícia de Amedalai, no caso de impedimento desta) desde manhã (8 ou 9 horas ???) até ao fim da tarde;
(v) além disso, para mim, e certamente para todos os camaradas que estiveram comigo nessa época, não me lembro que a presença destes autocarros tenha alguma vez sido uma surpresa, isto leva-me a concluir que se tratava de um cenário algo habitual, embora admita que fosse relativamente recente.
Um abraço
Sucena Rodrigues
[ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74]
2. Comentário de L.G.:
Como comentei (ª), "estas fotos são preciosas e deliciosas", daí eu ter-te pedido um "esforço de memória"... Obrigado pelo teu esforço... A verdade é que não tens "elementos objetivos" para conmfirmar a data... Continuo a pensar que podem não ser de março de 1974... "E mesmo abril de 1974 parece-me cedo"...
Como sabes, em Bissau, os primeiros vivas ao 25 de Abril, ao MFA, ao Spínola, os primeiros abaixo a PIDE/DGS, as primeiras manifestações de regozijo "popular" (e já de contestação....) são de 27 de abril de 1974, depois da prisão de Bettencourt Rodrigues em 26... O Carlos Matos Gomes, que era do MFA da Guiné, e com quem falei ao telefone, diz-me que os autocarros podem ter vindo do Senegal... Se sim, eu apontaria mais para maio/junho de 1974 o seu aparecimento no TO da Guiné... Mas tu ainda não me disseste quando saiste do Xime... Pergunto-te se tu aguentaste até ao fim, até à extinção da CCAÇ 12, em agosto de 1974 ? Ou se acabaste mais cedo a comissão, já que eras de rendição individual ? Essa data pode ser a chave para esclarecer este pequeno mistério dos autocarros...
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Nota do editor:
Nota do editor:
sexta-feira, 3 de julho de 2015
Guiné 63/74 - P14831: Memória dos lugares (302): os meus dois rios, o Cagopère (Cachil, no sul) e o Geba (Bafatá, no leste) (José Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)
Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > A lancha no cais do Cachil, responsável pelo transporte dos géneros de Catió para o Cachil... A ligação de Cachil (na margem esquerda do Rio Cobade) a Catió fazia-se de barco, pelo Rio Cobade e depois pelo seu afluente, o Rio Cagopère (em cuja margem direita se situava o porto exterior de Catió)]
Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]
1. Mensagem de José Colaço, com data de 2 do corrente:
Assunto: Sondagem sobre ss nossos rios da Guiné > 20 horas para votar...
Caríssimo Luís
Sem querer ser vidente parece-me que esta sondagem tem à partida um vencedor absoluto, pela sua grandiosidade, beleza inconfundível, o macaréu, as suas águas cristalinas a partir do macaréu, mas essas águas genuínas, puras, tépidas, também têm os seu reveses, foram elas que em Bafatá abraçaram para sempre a vida do soldado da CCAÇ 557, Domingos Gomes Nabais [, em 13 de abril de 1965]
Além disso quase todos os militares navegaram nas suas águas, saída quase obrigatória para as companhias seguirem para os aquartelamentos no mato ou mesmo as companhias especiais de combate para qualquer operação militar [, no leste].
O meu voto não é secreto e foi para o rio que corria no local onde estive em quadricula, a maior parte do tempo de comissão o rio Cagopere. uma beleza medieval ver os jacarés no seu vai e vem atravessar de margem para margem e toda a fauna e flora no seu estado primitivo, aqui a intervenção humana ainda não tinha acontecido.
Mas sem querer votei clandestinamente no rio que, como disse, me parece ser o vencedor absoluto, primeiro corria para o local onde estive, Bissau, 40 dias no início da comissão e mais 180 dias quando fomos rendidos no Cachil, a seguir o rio corria em Bafatá local onde terminei a comissão cerca de 180 dias.
O meu voto não é secreto e foi para o rio que corria no local onde estive em quadricula, a maior parte do tempo de comissão o rio Cagopere. uma beleza medieval ver os jacarés no seu vai e vem atravessar de margem para margem e toda a fauna e flora no seu estado primitivo, aqui a intervenção humana ainda não tinha acontecido.
Mas sem querer votei clandestinamente no rio que, como disse, me parece ser o vencedor absoluto, primeiro corria para o local onde estive, Bissau, 40 dias no início da comissão e mais 180 dias quando fomos rendidos no Cachil, a seguir o rio corria em Bafatá local onde terminei a comissão cerca de 180 dias.
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Nota do editor:
Último poste da série > 3 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14829: Memória dos lugares (299): Rio Corubal: Já o atravessei a nado, duas vezes, com óculos e barbatanas, vasculhando o fundo, junto à jangada do Ché Ché, de tão má memória... (Patrício Ribeiro, Bissau)
Guiné 63/74 - P14830: Notas de leitura (733): “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2014:
Queridos amigos,
“Sagal, um herói feito em África”, de António Brito, não aguenta a comparação com um livro que é uma gema literária, “Olhos de Caçador”, a viagem de um Fernão Mendes Pinto não aos mares da China mas ao Planalto dos Macondes.
Sagal tem um arranque muito feliz, talvez haja naquele jovem paraquedista traços autobiográficos, já que António Brito se alistou aos 18 anos nas tropas paraquedistas e combateu em Moçambique. Mas a certa altura há um nítido destrambelho, sente-se que toda aquela vibração é produto de muitas leituras, do cruzamento de outros heróis, é uma ação que já vimos e lemos noutros sítios.
Seja como for, Sagal é um livro que prende a atenção e merece ser conhecido.
Um abraço do
Mário
Sagal, um herói feito em África
Beja Santos
A memória dos combatentes, com o passar dos anos, desloca-se desses primitivos teatros de guerra e espraia-se pela vida contemporânea. Os primeiros relatos de combatentes, nos anos 60, eram evocações de gesta heróica, apresentavam-se como testemunhos que a guerra não devia ser esquecida. Com o 25 de Abril e a independência das colónias, a agulha da escrita mudou de rumo, tornou-se denunciante, hipercrítica, assumiu até formas chocarreiras de derrisão; nos anos 80, já com a temperança, começaram a surgir obras literárias de cariz memorial, os combatentes começavam a perder inibição e a contar a sua verdade dos acontecimentos, a testemunhar; e esta paixão pelo relato tem conhecido franco desenvolvimento, nunca as memórias foram tão repletas e agora o relator não precisa de esquivas nem de ajustes de contas, o que há a pôr em memória ganhou em sinceridade. Isto para enfatizar que a literatura memorial se tem revelado o subgénero mais auspicioso da literatura da guerra que travámos em África. No entanto, a ficção não está adormecida e muito menos menorizada. É neste contexto que vale a pena considerar o significado do romance “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012.
No seu arranque, e num registo que absorve completamente o leitor, vamos saber que o futuro herói de África foi acolhido, recém-nascido, num bordel ali para os lados da Mouraria, descreve-se o bordel, as suas profissionais e a clientela, isto a par de uma maratona de recordações que o narrador vai percorrer no tempo em que dura o romance, vertente que trata a um ritmo excelente e na cadência certa: “Tempo de inocência, as raparigas ocupavam-no a abrir as pernas e a cuidar de mim. Entre a ociosidade das mulheres e a subida aos quartos com os clientes, parecia haver tempo para tudo, até para escutar os conselhos do doutor Rosado, o médico que vinha ao bordel verificar a saúde das raparigas. - A criança não pode andar por aí sem cuidados - avisava o bom doutor, examinando-me os ouvidos depois de perscrutar a genitália das rameiras”.
Sagal fora abandonado pela mãe numa caixa de margarina Vaqueiro na paragem do autocarro, na Praça do Martim Moniz. A criança foi batizada e puseram-lhe o nome de Emiliano Salgado. Emiliano, lembrança do rapaz que desflorou a Lola e Salgado em homenagem ao homem que lhe montou o bordel. Um batizado de arromba na igreja da Senhora da Saúde. Emiliano vai crescendo até que apareceu um polícia da esquadra da Mouraria e o levou para a reclusão num orfanato público, a Casa Pia. Seguem-se descrições cruentas, admiráveis, sobre o funcionamento da instituição: as alcunhas, as cenas de brutalidade, as retaliações, os vícios, os mecanismos da mente dos predadores de crianças. Desanca um pedófilo, segue-se uma fuga para a marginalidade mas antes há uma destruição vingativa de um carro de estimação do seu algoz.
“Larguei o ninho da Casa Pia. Ninho de ovos podres, ninho de ovos bons. De uns e outros nasceram gansos. Muitos saíram a voar; alguns, feridos nas asas, arrastaram-se pelo chão sem um olhar para as estrelas”. Começa a trabalhar com o After-Shave, um intermediário de roubos. Emiliano bate à porta dos paraquedistas, passa em todas as provas e descobre uma nova excitação no risco: “Então o paraquedismo é isto? Andar com o coração num alvoroço? Gemer com o estômago colado às costas? Atirar o corpo para o vazio como se aquilo não fosse nosso?”
Modelaram-lhe a cabeça, espremeram-lhe o corpo, aprendeu a matar e levaram-no para África, mais concretamente Moçambique. Em Nacala vai conhecer o Educador, um obcecado pela superioridade da raça branca. O autor apresenta por alcunhas alguns dos camaradas paras: o Povoador, o Casto, o Trovador, o Mandarim, o Proletário, o Justiceiro, o Magnânimo, o Barbeiro de Sevilha, entre outros. A máquina de guerra está em ação. E nasce a lenda do Leão do Sagal, a operação tem todos os ingredientes da brutalidade e do arrojo. E assim chegamos ao 25 de Abril. Continuamos numa tessitura literária de originalidade, é uma bruteza exequível toda esta prosódia que acompanha a descolonização.
A partir de agora, se bem que a cadência não tenha perdido o empolgamento, sentem-se influências alheias neste Sagal mercenário dos sul-africanos, toda a operação à volta do rio Cunene mete Indiana Jones, Bruce Willis, OSS 117 criado por Jean Bruce, mas há muitas mais reminiscências que se podem exibir. O que deixa o leitor embaraçado, a originalidade com que toda a trama arrancou esvaiu-se em lembranças de obras alheias. Sagal regressa do Cunene muito mal tratado. Em 1977 chega a Lisboa onde se sente uma atmosfera pós revolucionária, surge uma crise de identidade, vai reencontrando camaradas paras, há gente a viver muito mal, desce à valeta, torna-se mendigo ou sem abrigo: “Para comer, passei a usar um truque que aprendi com os desabrigados mais antigos. Uns minutos antes de um comboio partir da gare, vou até à cafetaria e ao snack-bar e vigio os passageiros que estão a comer. Quando o altifalante anuncia a partida, os passageiros atrasados pagam rapidamente e abalam a correr, a mastigar, deixando no prato o resto da sanduiche, às vezes o resto da cerveja ou o sumo no copo. Nesse momento eu avanço e despejo o prato para o saco de plástico, antecipando-me à recolha do empregado”.
Sagal torna-se um D. Quixote da noite, velando por desgraçados sem garra, por humilhados sem defesa, perdedores de condição. Mário Chow-Lin e o irmão vão buscá-lo à valeta, começa a ressurreição, é levado para um mosteiro para os lados da serra do Caldeirão, entra em retiro (tratamento do corpo e da mente, descoberta dos limites, aprendizagem da meditação). E vai entrar em conflito aberto com os gangues que assaltam o Pão de Açúcar, primeiro trabalha como repositor, depois vai para o supermercado da Venda Nova, é aqui que vai ter lugar o confronto contra as tramoias de um grupelho intitulado Frente Nacionalista Popular por acaso altissimamente influente no mundo sindical. Sagal muda de pele, tem sempre uma frase apropriada para responder a todos os gestores, impõe-se e passa a chefe.
Sagal, o antigo para destemido, é agora um condutor dentro do supermercado, motiva a sua equipa, chama antigos paras, vê-se que é um homem de cultura, para além de ter uma inteligência fulminante. Os seus discursos são inflamados, a canalha revanchista vai perdendo espaço, e descontrola-se. E como no Alien, chega-se ao confronto final. É escusado dizer que aquele Educador que era racista, agora, qual camaleão, anda a incitar o grupelho revanchista. Surge entretanto uma mulher digna dos sentimentos de Sagal, de nome Angelina. É mesmo questão para perguntar: o que seria um romance de ação envolvendo um ex-paraquedista educado num bordel e na Casa Pia em que não aparecesse uma mulher digna desse justiceiro? A maratona vibrante, qual bom filme de aventuras da série B está praticamente no fim, o grupelho foi desfeiteado mas o Educador está sedento de vingança, já foi desmontado um golpe escabroso que envolvia dirigentes do Pão de Açúcar que tinham interesses imobiliários na Venda Nova. O Educador tenta matar o herói dos supermercados, temos aqui uma cena tirada dos livros de Mickey Spillane, um excelente escritor norte-americano que se impôs nos anos 50 do século passado, pelos seus romances negros:
“O vulto emergiu por entre os carros estacionados no parque. Avançou agachado para as minhas costas. Enquanto eu rodava, levei a mão ao 38 entalado no sinto das calças. Quando o vulto disparou, eu disparei. A bala do cabrão entrou pela antiga cicatriz da coxa, furando a perna e a chapa do Honda Civic. A minha bala acertou-lhe no pescoço. Um tiro de sorte. Levou as mãos ao rasgão nas goelas por onde fervilhava sangue a espirrar para os lados. Deixou-se tombar entre os carros, escorregando até ao chão, sem pressa”.
O que pressagiava ser uma obra de primeiríssima água vai resvalando para um produto acabado de entretenimento puro. É pena, António Brito prova ter um estilo pessoal, não precisava desta tragicomédia de ação e rebentamentos cinematográficos. Apesar da frustração, António Brito é um nome a reter, escreveu um livro assombroso, “Olhos de Caçador”. Esperava-se mais, paciência, oportunidades não vão faltar para quem já tem créditos firmados.
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14807: Notas de leitura (732): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (3) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
“Sagal, um herói feito em África”, de António Brito, não aguenta a comparação com um livro que é uma gema literária, “Olhos de Caçador”, a viagem de um Fernão Mendes Pinto não aos mares da China mas ao Planalto dos Macondes.
Sagal tem um arranque muito feliz, talvez haja naquele jovem paraquedista traços autobiográficos, já que António Brito se alistou aos 18 anos nas tropas paraquedistas e combateu em Moçambique. Mas a certa altura há um nítido destrambelho, sente-se que toda aquela vibração é produto de muitas leituras, do cruzamento de outros heróis, é uma ação que já vimos e lemos noutros sítios.
Seja como for, Sagal é um livro que prende a atenção e merece ser conhecido.
Um abraço do
Mário
Sagal, um herói feito em África
Beja Santos
A memória dos combatentes, com o passar dos anos, desloca-se desses primitivos teatros de guerra e espraia-se pela vida contemporânea. Os primeiros relatos de combatentes, nos anos 60, eram evocações de gesta heróica, apresentavam-se como testemunhos que a guerra não devia ser esquecida. Com o 25 de Abril e a independência das colónias, a agulha da escrita mudou de rumo, tornou-se denunciante, hipercrítica, assumiu até formas chocarreiras de derrisão; nos anos 80, já com a temperança, começaram a surgir obras literárias de cariz memorial, os combatentes começavam a perder inibição e a contar a sua verdade dos acontecimentos, a testemunhar; e esta paixão pelo relato tem conhecido franco desenvolvimento, nunca as memórias foram tão repletas e agora o relator não precisa de esquivas nem de ajustes de contas, o que há a pôr em memória ganhou em sinceridade. Isto para enfatizar que a literatura memorial se tem revelado o subgénero mais auspicioso da literatura da guerra que travámos em África. No entanto, a ficção não está adormecida e muito menos menorizada. É neste contexto que vale a pena considerar o significado do romance “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012.
No seu arranque, e num registo que absorve completamente o leitor, vamos saber que o futuro herói de África foi acolhido, recém-nascido, num bordel ali para os lados da Mouraria, descreve-se o bordel, as suas profissionais e a clientela, isto a par de uma maratona de recordações que o narrador vai percorrer no tempo em que dura o romance, vertente que trata a um ritmo excelente e na cadência certa: “Tempo de inocência, as raparigas ocupavam-no a abrir as pernas e a cuidar de mim. Entre a ociosidade das mulheres e a subida aos quartos com os clientes, parecia haver tempo para tudo, até para escutar os conselhos do doutor Rosado, o médico que vinha ao bordel verificar a saúde das raparigas. - A criança não pode andar por aí sem cuidados - avisava o bom doutor, examinando-me os ouvidos depois de perscrutar a genitália das rameiras”.
Sagal fora abandonado pela mãe numa caixa de margarina Vaqueiro na paragem do autocarro, na Praça do Martim Moniz. A criança foi batizada e puseram-lhe o nome de Emiliano Salgado. Emiliano, lembrança do rapaz que desflorou a Lola e Salgado em homenagem ao homem que lhe montou o bordel. Um batizado de arromba na igreja da Senhora da Saúde. Emiliano vai crescendo até que apareceu um polícia da esquadra da Mouraria e o levou para a reclusão num orfanato público, a Casa Pia. Seguem-se descrições cruentas, admiráveis, sobre o funcionamento da instituição: as alcunhas, as cenas de brutalidade, as retaliações, os vícios, os mecanismos da mente dos predadores de crianças. Desanca um pedófilo, segue-se uma fuga para a marginalidade mas antes há uma destruição vingativa de um carro de estimação do seu algoz.
“Larguei o ninho da Casa Pia. Ninho de ovos podres, ninho de ovos bons. De uns e outros nasceram gansos. Muitos saíram a voar; alguns, feridos nas asas, arrastaram-se pelo chão sem um olhar para as estrelas”. Começa a trabalhar com o After-Shave, um intermediário de roubos. Emiliano bate à porta dos paraquedistas, passa em todas as provas e descobre uma nova excitação no risco: “Então o paraquedismo é isto? Andar com o coração num alvoroço? Gemer com o estômago colado às costas? Atirar o corpo para o vazio como se aquilo não fosse nosso?”
Modelaram-lhe a cabeça, espremeram-lhe o corpo, aprendeu a matar e levaram-no para África, mais concretamente Moçambique. Em Nacala vai conhecer o Educador, um obcecado pela superioridade da raça branca. O autor apresenta por alcunhas alguns dos camaradas paras: o Povoador, o Casto, o Trovador, o Mandarim, o Proletário, o Justiceiro, o Magnânimo, o Barbeiro de Sevilha, entre outros. A máquina de guerra está em ação. E nasce a lenda do Leão do Sagal, a operação tem todos os ingredientes da brutalidade e do arrojo. E assim chegamos ao 25 de Abril. Continuamos numa tessitura literária de originalidade, é uma bruteza exequível toda esta prosódia que acompanha a descolonização.
A partir de agora, se bem que a cadência não tenha perdido o empolgamento, sentem-se influências alheias neste Sagal mercenário dos sul-africanos, toda a operação à volta do rio Cunene mete Indiana Jones, Bruce Willis, OSS 117 criado por Jean Bruce, mas há muitas mais reminiscências que se podem exibir. O que deixa o leitor embaraçado, a originalidade com que toda a trama arrancou esvaiu-se em lembranças de obras alheias. Sagal regressa do Cunene muito mal tratado. Em 1977 chega a Lisboa onde se sente uma atmosfera pós revolucionária, surge uma crise de identidade, vai reencontrando camaradas paras, há gente a viver muito mal, desce à valeta, torna-se mendigo ou sem abrigo: “Para comer, passei a usar um truque que aprendi com os desabrigados mais antigos. Uns minutos antes de um comboio partir da gare, vou até à cafetaria e ao snack-bar e vigio os passageiros que estão a comer. Quando o altifalante anuncia a partida, os passageiros atrasados pagam rapidamente e abalam a correr, a mastigar, deixando no prato o resto da sanduiche, às vezes o resto da cerveja ou o sumo no copo. Nesse momento eu avanço e despejo o prato para o saco de plástico, antecipando-me à recolha do empregado”.
Sagal torna-se um D. Quixote da noite, velando por desgraçados sem garra, por humilhados sem defesa, perdedores de condição. Mário Chow-Lin e o irmão vão buscá-lo à valeta, começa a ressurreição, é levado para um mosteiro para os lados da serra do Caldeirão, entra em retiro (tratamento do corpo e da mente, descoberta dos limites, aprendizagem da meditação). E vai entrar em conflito aberto com os gangues que assaltam o Pão de Açúcar, primeiro trabalha como repositor, depois vai para o supermercado da Venda Nova, é aqui que vai ter lugar o confronto contra as tramoias de um grupelho intitulado Frente Nacionalista Popular por acaso altissimamente influente no mundo sindical. Sagal muda de pele, tem sempre uma frase apropriada para responder a todos os gestores, impõe-se e passa a chefe.
Sagal, o antigo para destemido, é agora um condutor dentro do supermercado, motiva a sua equipa, chama antigos paras, vê-se que é um homem de cultura, para além de ter uma inteligência fulminante. Os seus discursos são inflamados, a canalha revanchista vai perdendo espaço, e descontrola-se. E como no Alien, chega-se ao confronto final. É escusado dizer que aquele Educador que era racista, agora, qual camaleão, anda a incitar o grupelho revanchista. Surge entretanto uma mulher digna dos sentimentos de Sagal, de nome Angelina. É mesmo questão para perguntar: o que seria um romance de ação envolvendo um ex-paraquedista educado num bordel e na Casa Pia em que não aparecesse uma mulher digna desse justiceiro? A maratona vibrante, qual bom filme de aventuras da série B está praticamente no fim, o grupelho foi desfeiteado mas o Educador está sedento de vingança, já foi desmontado um golpe escabroso que envolvia dirigentes do Pão de Açúcar que tinham interesses imobiliários na Venda Nova. O Educador tenta matar o herói dos supermercados, temos aqui uma cena tirada dos livros de Mickey Spillane, um excelente escritor norte-americano que se impôs nos anos 50 do século passado, pelos seus romances negros:
“O vulto emergiu por entre os carros estacionados no parque. Avançou agachado para as minhas costas. Enquanto eu rodava, levei a mão ao 38 entalado no sinto das calças. Quando o vulto disparou, eu disparei. A bala do cabrão entrou pela antiga cicatriz da coxa, furando a perna e a chapa do Honda Civic. A minha bala acertou-lhe no pescoço. Um tiro de sorte. Levou as mãos ao rasgão nas goelas por onde fervilhava sangue a espirrar para os lados. Deixou-se tombar entre os carros, escorregando até ao chão, sem pressa”.
O que pressagiava ser uma obra de primeiríssima água vai resvalando para um produto acabado de entretenimento puro. É pena, António Brito prova ter um estilo pessoal, não precisava desta tragicomédia de ação e rebentamentos cinematográficos. Apesar da frustração, António Brito é um nome a reter, escreveu um livro assombroso, “Olhos de Caçador”. Esperava-se mais, paciência, oportunidades não vão faltar para quem já tem créditos firmados.
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14807: Notas de leitura (732): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (3) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P14829: Memória dos lugares (301): Rio Corubal: Já o atravessei a nado, duas vezes, com óculos e barbatanas, vasculhando o fundo, junto à jangada do Ché Ché, de tão má memória... (Patrício Ribeiro, Bissau)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho... Doces e trágicas memórias, a deste rio... O único e verdadeiro rio da Guiné, já lá dizia o Amílcar Cabral, porque todos os demais são de água salgada, são rias, são braços de mar... É provavelmente o mais belo rio da Guiné, digo eu, que só conheço este, o Geba, o Mansoa e mais alguns rios mais pequenos, afluentes...
Um dia destes, os novos senhores de África decidem construir aqui uma monstruosa barragem, hidroelétrica, à revelia dos verdadeiros interesses do povo guineense... É sonho antigo que vem da independência... E com isso destruir o recurso mais precioso que tem a Guiné-Bissau, para além do seu povo, que é a sua biodiversidade... Não sei se este projeto tem viabilidade (do ponto de vista técnico, financeiro, económico, ambiental e político)... Mas já vimos tanto coisa, em todo o lado (a começar pelo nosso país)...
Enfim, o que eu quero sublinhar é que sem biodiversidade não há futuro, não há desenvolvimento sustentado e partilhado, não há esperança... Oxalá que este projeto nunca se chegue a concretizar... Para bem da Guiné-Bissau e de todos nós, incluindo o povo chinês cujo dinheiro está a ser fortemente investido em África, e não só... Porque a terra não nos pertence, é a nossa casa comum, e temos a obrigação de a deixar, melhor, mais habitável e sustentável, aos que hão-de vir depois de nós, os nossos filhos, netos e bisnetos, europeus, africanos, asiáticos, americanos, australianos...
Também me parece que há hoje um sério risco de "pesca selvagem" no Rio Corubal, a avaliar pelas fotos de alguns "sites" de caça e pesca, internacionais, que promovem, descaradamente, quase pornograficamente, o saque dos recursos piscícolas do Rio Corubal... Vejam aqui.
O mar da minha terra também era rico de vida marinha, lançavam-se cem covos, apanhavam-se cem lagostas. E pescador que não apanhasse à linha uma garoupa do seu tamanho era uma merda de pescador... Estou a falar de há 60/70 anos atrás... Hoje até a sardinha foge de nós... En Peniche o número de traineiras deve ter sido reduzido na ordem das 80 para 10... O atum desapareceu do mediterrâneo. E, claro, do Algarve.
No passado, nunca aprendemos com os erros uns dos outros... Tem sido a ganância de uns poucos que nos empobrece e mata a todos... Aqui, e em toda a parte... Infelizmente a Guiné-Bissau é um dos países mais ameaçados do mundo, em consequência das alterações climáticas... Não sei se os nossos bisnetos poderão chegar a conhecer o Rio Corubal, os rápidos do Saltinho e de Cusselinta (e não "Cussilinta", como já tenho visto grafado...) ou o arquipélago dos Bijagós... Todavia, a consciência ecológica está a chegar também à Guiné-Bissau: o povo bijagó, por exemplo, está-se a mobilizar para defender e proteger os seus recursos marinhos e florestais, sem os quais corre o risco de perder o seu modo de vida e a sua forte identidade cultural... E são as mulheres que lideram essa luta... Vejam aqui o sítio da ONGD, de base comunitária, Tiniguena. (LG)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas. Todos os direitos reservados
1. Mensagem do Patrício Ribeiro:
[Foto à esquerda: Patrício Riubeiro, português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bssau desde 1984, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda; também conhecido carinhosamente como "pai dos tugas"]
Data: 2 de julho de 2015 às 11:38
Assunto: Sondagem sobre ss nossos rios da Guiné
Boas,
Ainda recentemente, estive a fazer caça submarina, com uns amigos no Corubal, em Cusselinta.
Todos os anos, vou dar lá uns mergulhos e matar uns peixes, assim como no Saltinho, águas com mais de 5 metros de profundidade, doce, com 3 metros ou mais, de visibilidade.
Normalmente apanhamos percas do Nilo (garoupas do rio) que chegam a pesar, algumas, mais de 5 kg.
São bons fins de semana e passeios, mergulhos, javalis, com campismo á mistura.
Já atravessei o rio Corubal duas vezes a nado, com óculos e barbatanas, vasculhando o fundo, junto à jangada do Ché Ché, de tão má memória...
Nesta jangada no Ché Ché a funcionar, lá vão passando com frequência, as professoras portuguesas da ONG FEC, que estão a morar em Gabú, levar a língua portuguesa até Beli, no Boé.
Para informação do António Rosinha, a estrada entre Gabú e o Ché-Ché, onde estive a semana passada, está a reparada por uma empresa portuguesa, penso que depois da reparação há 30 anos pelo Rosinha, ele volta a ter manutenção.
Abraço
Ainda recentemente, estive a fazer caça submarina, com uns amigos no Corubal, em Cusselinta.
Todos os anos, vou dar lá uns mergulhos e matar uns peixes, assim como no Saltinho, águas com mais de 5 metros de profundidade, doce, com 3 metros ou mais, de visibilidade.
Normalmente apanhamos percas do Nilo (garoupas do rio) que chegam a pesar, algumas, mais de 5 kg.
São bons fins de semana e passeios, mergulhos, javalis, com campismo á mistura.
Já atravessei o rio Corubal duas vezes a nado, com óculos e barbatanas, vasculhando o fundo, junto à jangada do Ché Ché, de tão má memória...
Nesta jangada no Ché Ché a funcionar, lá vão passando com frequência, as professoras portuguesas da ONG FEC, que estão a morar em Gabú, levar a língua portuguesa até Beli, no Boé.
Para informação do António Rosinha, a estrada entre Gabú e o Ché-Ché, onde estive a semana passada, está a reparada por uma empresa portuguesa, penso que depois da reparação há 30 anos pelo Rosinha, ele volta a ter manutenção.
Abraço
Patricio Ribeiro
IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Tel / Fax 00 245 3214385, 6623168, 7202645, Guiné Bissau
Tel / Fax 00 351 218966014 Lisboa
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www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com
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Nota do editor:
Último poste da série > 2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14825: Memória dos lugares (298): Rio Cacheu, o meu rio...Ia-me engolindo, em 1964, mas continuei sempre a gostar dele. (António Bastos, 1.º cabo do Pel Caç Ind 953, Cacheu, Farim, Canjambari, Jumbembem, 1964/66)
impar_bissau@hotmail.com
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Nota do editor:
Último poste da série > 2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14825: Memória dos lugares (298): Rio Cacheu, o meu rio...Ia-me engolindo, em 1964, mas continuei sempre a gostar dele. (António Bastos, 1.º cabo do Pel Caç Ind 953, Cacheu, Farim, Canjambari, Jumbembem, 1964/66)
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Guiné 63/74 - P14828: Parabéns a você (931): António Nobre, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969/70)
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14818: Parabéns a você (930): Silvério Lobo, ex-Soldado Mecânico Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)
Nota do editor
Último poste da série de 1 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14818: Parabéns a você (930): Silvério Lobo, ex-Soldado Mecânico Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)
quinta-feira, 2 de julho de 2015
Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem
1. III Parte de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 27
de Junho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da
CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de
Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).
GUINÉ, IR E VOLTAR - III
Morreu-me um gajo ontem
Dói-te um dente, aonde, ora deixa ver.
Nada que eu possa fazer aqui, vocês pensam que vêm para aqui tratar os dentes, mal vai a guerra quando já mandam pessoal com defeito, rosnou o doutor. Só em Farim! Quando for dia de dentista, sei lá quando!
Dias depois, sentado debaixo de um enorme poilão1, em Farim, à espera da vez, o cabo enfermeiro percorria a fila dos sofredores, picando este e aquele enquanto o médico dentista, mais atrás, ia arrancando os dentes. Quando chegou a vez dele, o dentista de alicate na mão mandou-o abrir mais a boca. Dói-lhe aqui, é? Grande abcesso! Não posso fazer isto aqui, só em Bissau. E tem que tomar um antibiótico, primeiro.
Em Bissau outra vez, com menos um dente, à porta da 1.ª Rep, no QG, esperava pela guia de marcha de regresso a Farim.
Nisto, vê um jeep estacionar com estardalhaço, pó no ar, dois tipos a saltarem, um alferes e um tenente com um saco de serapilheira na mão, escadas acima. Farda de terylene amarela, lenços no pescoço, “comandos” nos ombros, no jeep também.
Então estes é que são os “comandos”!
Minutos depois vê-os descer, sorridentes.
Eu sou do BCav 490, da CCav 489, apresenta-se. Uma informação. Comandos, que tropa é a vossa, que tipo de trabalho fazem?
O que quer saber, camarada? Pormenores? Quer mesmo saber? Quer subir?
E subiu, para o banco de trás, curvado para a frente, a ouvir as respostas. Golpes de mão, guia, turra de preferência, é só o que precisamos. Operações curtas, surpresa, bater e fugir, castigá-los nas costas, fazer a guerra deles, mas melhor que eles, claro. Regressar a Bissau, dormir, banho, um frango assado no Fonseca, uma gaja boa e um banho a seguir. Que a guerra tem que ser limpa, não é?
Quer concorrer? Convém que se decida depressa, ainda ontem morreu-nos um gajo, o curso começa para o mês que vem, temos 4 vagas para comandantes de grupo e ainda só temos 9 inscritos já aprovados.
Na formação vai sempre alguém abaixo, temos que ter mais pessoal no curso. Decida-se, tem as provas de selecção para fazer, físicas e psíquicas. Psíquicas é conversa com o psiquiatra do Hospital, blá-blá, claro.
Material sempre às costas, mil metros, 20 flexões de braços, 20 suspensões da barra, 100 metros velocidade, abdominais, cangurus, provas de tiro, tudo seguido sem intervalos, que mais pá, coisas assim, vamos a isso?
Vai pensar? Interessa-nos. Porquê? Porque pensa! Pensar é também uma forma de selecção, desde que não pense demais, claro. Encontramo-nos então amanhã em Brá, 9 horas é uma hora boa.
Flexões, abdominais, 100 metros em ziguezague, elevações na barra, 4 metros de corda a pulso, salto a pés juntos em altura e em comprimento, tiro instintivo contra latas e garrafas de cerveja, vazias é claro, está quase tudo, falta pouco.
Uns minutos para respirar, já só faltam os 1000 metros, mais um pequeno esforço, meu alferes, disse o Moita, o furriel instrutor.
Como contamos a distância? Fácil, o meu alferes corre, nós vamos atrás no jeep a dar-lhe gás, quando passar 1 quilómetro no conta-quilómetros, corta a meta. Menos de 4 minutos, ganha uma cerveja, menos de 3 minutos e meio uma grade, menos de 1 minuto a fábrica, que tal? Nos comandos é assim, o Moita e o Miranda, bem dispostos, à gargalhada.
Não, não me recordo, estou aqui desde a abertura do Centro de Instrução, nunca ninguém ganhou a grade, que me lembre, pois não ó Miranda?
Pois então preparem-se. A correr por ali fora, para os lados do aeroporto, a força do calor na estrada, botas a colarem-se ao alcatrão, 1, 2, 3 quilómetros, sabia lá!
Então quantos metros ainda faltam para o quilómetro? Quantos faltam não sei, o conta-quilómetros não funciona!
Sentado na berma da estrada, esforçava-se por manter os pulmões dentro da caixa. Ainda não foi desta vez que alguém conseguiu ganhar a grade.
De regresso a Brá, apresentado ao Major Correia Dinis2, respondeu a algumas perguntas e assinou os papéis que lhe puseram à frente dos olhos. Almoçou lá, passou o resto do dia com eles e à noite, largaram-no na Amura, mais morto que vivo.
Na outra manhã quando tomava o café na messe da Amura, o subalterno de dia da PM sentou-se na mesa dele.
Eh, pá, grande guerreiro, coisa e tal. O alferes já sabia, os tambores tinham sido mais rápidos que ele. Porquê os comandos, o PM curioso. Dentro de 3 ou 4 meses o 490 vem para Bissau, o Cavaleiro vai colocar o pessoal no ar condicionado, a aguardar, tranquilo, os meses que faltam. Porquê os comandos, pá?
Difícil explicar. Nem ele sabia bem porquê. Também não tinha muito tempo para conversas, o jipe para o aeroporto estava à espera.
Ao princípio da tarde estava em Cuntima.
Encontraram-se todos na pista e foram até ao bar, para a sombra, beber uma cerveja, gozar a calmaria do resto da tarde. Meia hora depois, talvez, uma explosão forte, para os lados da estrada para Jumbembem, interrompeu as conversas, parou tudo, ficou o silêncio.
Foi para os lados de Jumbembem, não foi?
Um macaco que pisou uma anti-pessoal, se calhar, diz o Didi.
Ou uma mina numa viatura, arrisca outro. É melhor alguém sair e ir ver o que se passou.
Lá estás tu, pá, para quê, a esta hora, não tarda é noite!
Uma coluna que vinha de Farim, uma mina numa Daimler3 ou numa Fox, aqui perto, na estrada de Jumbembem para aqui, perto da curva da morte, parece que há feridos, o capitão a correr para eles, aos berros, não sei se devemos ir ao encontro, ou se será melhor esperar por mais informações.
Depressa, uma coluna para lá, ao encontro deles, antes que seja noite, meu capitão, um logo.
Melhor esperar, arrancar já, porquê? Sabemos lá o que se está a passar, insiste outro.
É pá, não podemos ficar aqui a ver passar os comboios, o rebentamento foi aqui perto, temos que ir ver o que se passa, prestar auxílio.
Depois de alguma hesitação, o capitão decide-se, arranque com o seu pelotão.
Cuidado, tenha atenção, nada de loucuras por aí fora, sempre a abrir, ouviu?
Pique a estrada. Tome-me conta desta rapaziada, falta-lhes pouco tempo! Conte com uma emboscada no caminho, talvez até uma mina, está a ouvir?
Bem pensado, a mina na auto-metralhadora, a viatura destruída, a maralha embrulhada com os feridos à espera de socorros, estes a irem em socorro, de Cuntima no caso, outra mina à espera destes na picada e uma emboscada, é, se for assim é bem pensado.
Cuidados redobrados, picadores à frente, todo o pessoal a pé, as viaturas cheias de sacos de areia só com os motoristas, demoraram quase duas horas a encontrarem a coluna. Lixados com tamanho atraso, receberam-nos como se estivessem a vê-los regressar da praia.
Até que enfim, porra! Se não fosse a malta de Jumbembem, os feridos já tinham morrido, que caraças!
Realmente, Jumbembem também estava próximo, mas compreende-se o desespero do comandante da coluna.
Esta estava em marcha para Cuntima, sem conhecimento do comandante da companhia e, veio-se a saber depois, escoltava um grupo de comandos4 chefiado pelo sargento Mário Dias que naquela noite iria executar um golpe de mão a um acampamento da guerrilha na área da companhia lá aquartelada.
O Tenente-Coronel Cavaleiro é que não tinha achado graça nenhuma, mandou um rádio ao capitão, a exigir explicações. A coluna ficara imobilizada, pedira apoio a Cuntima e Jumbembem, porque é que a sua companhia só chegou quase duas horas depois da ocorrência? Explique-se, estou no posto de rádio à espera da sua resposta.
Que fora só o tempo de preparar um pelotão, mais o tempo da deslocação, as precauções que exigira do comandante do pelotão, até nem fora demasiado.
Com o copo a deitar por fora há muito, o Comandante do Batalhão deve ter dito borda fora com o tipo, é agora que o vou mandar pregar para outra freguesia.
Foi o que fez, um auto de averiguações, corpo de delito a seguir, uns dias de prisão. Que tomasse a Dornier para o QG, que este, certamente, lhe arranjaria um destino mais conveniente.
O capitão, desesperado, bem se defendeu por escrito, meteu como testemunha o alferes que foi socorrer a coluna, mas de nada valeu a solidariedade deste.
A demora podia ter sido menor, se pusesse as viaturas a esgalhar. No caso, não deu por qualquer perda de tempo, não se puseram a jogar as cartas, tinham percorrido a estrada com cuidado, mas nada de excessivo.
Na noite da mina, depois do jantar, a saída de mais um alferes foi assunto de conversa. Com uma garrafa de uísque em cima da mesa, cada um falou, do mais novo ao mais antigo. Esta companhia anda com galo até com os alferes, mas anda mesmo! Um ferido com mina, outro evacuado por doença grave, agora este gajo que chegou há meia dúzia de meses está de saída para os comandos!
Desaprovo totalmente, protesto contra esse pessoal! Vi-os no Como, uns tipos horríveis, sem maneiras de lidar com as pessoas, quanto mais com a população! Só querem saber da guerra, como dar tiro no coitado do negrão, mais nada! Vou-me retirar, chau, o Didi.
Até ao nosso regresso a Bissau, despediram-se oficialmente, digamos assim.
O Tenente-Coronel Cavaleiro não gostava, nem dos atrasos dos outros nem dos dele. Na primeira oportunidade, mandou preparar uma coluna e pôs-se à frente, rumo a Cuntima.
Mal viu o alferes por perto chamou-o. O alferes está cá há quanto tempo, pouco, não é? Não teve ainda tempo de reparar que não tinha um comandante, mas apenas um capitão? E assinou por baixo?
Passou uns dias à espera que o Coronel desse o ok à sua saída, o que aconteceu logo após a chegada do novo Comandante da CCav 489, um capitão miliciano, pele muito branca, suor a escorrer cara abaixo.
No dia seguinte foi a apresentação à companhia que, para o efeito, formou na picada que atravessava a povoação e, dois dias depois, o novo capitão quis tomar contacto com a mata aproveitando a saída de um pelotão em Cuntima num patrulhamento até às inevitáveis Faquinas.
Foi a primeira saída do capitão e a última do alferes na companhia que, dois dias depois arrancava para Bissau para frequentar o curso de Comandos.
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Notas:
1 - Árvore de grande porte
2 - Comandante do Centro de Instrução de Comandos em Brá, Guiné.
3 - A auto-metralhadora Daimler equipava os pelotões de reconhecimento e frequentemente abriam as colunas. Foram fabricadas no Reino Unido durante a segunda guerra mundial e, tal como as auto-metralhadoras Fox, estavam frequentemente inoperacionais devido a problemas mecânicos. A guarnição era composta por dois homens e estava armada com uma metralhadora ligeira.
4 - Grupo de Comandos “Camaleões”
Dornier ferido
Campo de aviação de Cuntima. O Do 27 aterrara há pouco mais de meia hora numa nuvem de pó. Negros e brancos, soldados, cabos, furriéis e alferes, num grande alvoroço à volta da avioneta, apalpam-lhe as asas, festas na fuselagem, um tira fotos a um grupo e o homem do bar, o ‘Fininho’ a passar para as mãos do piloto uma cerveja gelada.
Saco do correio, grades de cerveja, caixa de uísque, medicamentos, o que trazia a Dornier, tudo cá para fora.
Minutos depois, abraços e mais abraços, pista desimpedida, motor a trabalhar, portas fechadas. A Dornier a dar a volta devagar para o topo do campo, a roncar com mais força, na cabeça do alferes a imagem, não sabe a que propósito lhe apareceu, do touro a raspar as patas, para os forcados.
De repente aí vai o aviãosinho, a tremer todo, aos saltinhos, a ganhar velocidade, gás no máximo, campo de futebol fora, manobra apertada a evitar as balizas e as árvores.
Não ouvira a salva de palmas mas vira da janela, não foi golo mas quase. E, pronto, adeus Cuntima, levo-te no coração, até um dia, quem sabe?
Acabados de pousar em Farim, a mesma cerimónia mas com militares mais graduados. Um alvoroço na pista, o Tenente-Cor. Cavaleiro, o Major Paixão Ribeiro, 2.º comandante, e o estado-maior do Batalhão, a trocarem impressões sobre a guerra em Canjambari5.
Então o alferes já vai para Bissau? Safa-se de boa, a boca do Tenente-Coronel, enquanto falava sobre as contínuas flagelações a que as NT continuavam a sofrer em Canjambari.
A guerrilha, nem à lei da bala, se conformava com a perda daquele santuário.
No caminho para o interior do Oio, uma autêntica auto-estrada, para todo o tipo de reabastecimentos da guerrilha. Canjambari Morocunda, um quilómetro ou nem isso para o interior e Canjambari porto, junto ao rio.
As NT foram muito bem até Canjambari Morocunda, para entrarem em Canjambari porto foi o caraças. Levantam a cabeça para lá, lá vem prémio de morteiro. Às 6 da matina, nem precisam de corneteiro, duas morteiradas em cima para lhes abrirem os olhos, ponham-se a pé, tugas preguiçosos. E no final do dia não se esquecem, também mandam tocar a recolher com mais umas morteiradas.
Isto nunca mais chega ao fim. A comissão, que é que havia de ser? Oio, K3, Como, o Como, pá, e agora o Cavaleiro com esta merda de Canjambari, a cinco meses do fim?
Em finais de Março, quando progredíamos para Canjambari, o capitão de uma das Companhias, pela rádio, disse ao Cavaleiro que não conseguia passar a ponte. Não é que no dia logo a seguir pela manhã, o comandante se apresentou em Jumbembem, integrado no Pelotão de auto-metralhadoras do Corte-Real, virou-se para o capitão, vamos ver a ponte.
Claro, na picada de Jumbembem para Canjambari, quando chegaram à ponte, aí vai aço, morteirada para cima da maralha. O pessoal todo deitado, fogachal danado, o capitão agachado também e o Coronel de pé, encostado ao tronco de uma árvore. Capitão, vê de onde vem o fogo dos tipos aí deitado? Estou a falar consigo, ponha-se a pé, está a falar com o seu comandante! Dezanove meses de comissão! Tás a ver, pá, o Mealha todo suado de suor e cerveja.
O avião estava com a carga no limite, o capelão, com um saco de pão fresco em cima das pernas, sentara-se à frente, ao lado do piloto. Atrás, encostado à janela, um cabo enfermeiro segurava um frasco de vidro com um líquido a escorrer às gotas para o braço de um guineense, com uma perna toda entrapada. Do outro lado, o alferes proveniente de Cuntima, com o saco do correio na mão.
Tudo ok, o piloto, tenente Lemos de auscultadores. Que no trajecto para Bissau faria um desvio para a área de Canjambari, a pedido do Coronel Cavaleiro, largar os dois sacos às nossas tropas e que, quando baixasse o polegar, e repetira, só quando voltasse o polegar para baixo, deveriam lançá-los pelas janelas.
Dornier no ar, fumos aqui e ali a subir das matas, charcos de água a espelharem. O ferido, medo estampado nos olhos muito abertos, a farda nova ainda, verde azeitona, seria do PAIGC? O cabo maqueiro, a fazer ginástica com o frasco e com a cabeça a dizer que sim.
O capelão à frente, suor a escorrer, cara muito branca, mãos amarradas ao saco com o pão quente. Sol ainda alto, o piloto a falar com a base, olho num lado e noutro.
Estavam na zona, em cima de Canjambari, iriam baixar. A planar, quase parado, como um milhafre, a descer lentamente, os olhos deles arregalados para a mata.
Onde é que está a nossa malta? Mais uma volta. Estão ali, debaixo daquela árvore, não? O tenente Lemos não estava certo.
Desceram mais, até alguns metros acima das copas das árvores, são eles, não são? Os outros não responderam, não paravam de olhar. São eles ou não?
Vou dar mais uma volta, força, abrir janelas, mãos nos sacos, como se já não se sentisse uma corrente de ar danada lá dentro. Nova passagem, agora é mesmo, olhem para a minha mão, atenção, polegar para baixo, agora, sacos fora já, o piloto.
O alferes num segundo viu a árvore, viu-os lá em baixo a correr, àquela altura as fardas deles pareceram-lhe iguais à do ferido que ia com eles. Quando o piloto levantou o polegar, hesitou, ficou com o saco do correio na mão.
Mesmo mais tarde, tentando rever a sucessão dos acontecimentos, não era capaz de dizer o que sentiu primeiro. Pareceu-lhe tudo ao mesmo tempo, uma rajada longa, gritos dentro da avioneta, um ciclone lá dentro, um barulho como uma câmara de ar imensa a esvaziar-se, a Dornier a balançar para cima e para baixo, para a esquerda, para a direita.
No voo para Bissau, o guerrilheiro ferido gritou o tempo todo, atingido na mesma perna, mais um tiro, soube-se dias depois, o Dornier dançou sempre, a turbulência aumentou e um cheiro a cocó borrou-os a todos.
Na pista, finalmente, deitado de costas, o alferes viu os buracos das balas que entraram pela barriga da Dornier. Dos de saída não tinha tirado os olhos, a viagem toda.
E reparou também numa grande roda escura nas calças de um dos felizes companheiros e viagem.
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Nota:
5 - A ocupação de Canjambari, operação "Ebro" foi iniciada em 22 de Março de 1965.
“Os relatórios referem terem sido feitas várias acções no itinerário Jumbembem-Canjambari e na própria região de Canjambari. Apesar de levantadas numerosas abatizes, o referido itinerário ainda se encontra com algumas árvores de pequeno porte nas imediações da bolanha que dá acesso ao pontão danificado sobre o rio Tufili (dados obtidos através do reconhecimento aéreo de 17Mar65). Parece, este pontão, de fácil transposição desde que se utilizem pranchas adequadas.
Dos contactos com o IN a reacção deste tem-se limitado a flagelações de longe, não sendo de desprezar a possibilidade de o mesmo dispor, na região, de forças importantes e, eventualmente, colocar minas nos itinerários de acesso.
O objectivo das NT é proceder à ocupação permanente de Canjambari. Elaborado o plano para a acção, foram constituídas as forças executantes, comandadas pelo próprio Cmdt do BCav 490, Ten. Cor. Cavaleiro. Às 03H00 de 22Mar65 iniciou-se o movimento, a partir de Farim. Atingido Jumbembem às 04H20, a força executante prosseguiu, rumo a Canjambari.
À passagem por Sare Tenen, um GrComb da CCav 488 apeou-se, emboscando-se de seguida junto ao caminho que cruza o itinerário. A partir daqui a equipa de sapadores encarregada da detecção de minas passou a picar a estrada nos locais mais suspeitos. Apesar das precauções, às 06H15 e a cerca de 9 kms de Jumbembem, a GMC da frente da coluna calcou um engenho explosivo, ficando a parte posterior da viatura enfiada na cratera aberta pelo engenho. Os dois homens que nela se deslocavam foram projectados, não tendo sofrido ferimentos de maior.
Passados cerca de 500 metros encontrou-se a 1.ª de uma série de cerca de 30 abatizes, algumas de grande porte, que se espalhavam numa extensão de quase 4 kms, até 1km e meio de Canjambari Morocunda, que só foi atingida já passava das 12H00. O esgotante trabalho de levantamento de abatizes durou cerca de 5 horas e meia, sob constantes flagelações do IN, que utilizou metralhadoras pesadas e morteiros. As medidas de segurança adoptadas, apesar da extensão da coluna de 30 viaturas pesadas, revelaram-se eficazes, porquanto o IN nunca conseguiu aproximar-se de modo a causar baixas às NT”. (…). Ultrapassada a zona das abatizes, a coluna prosseguiu deixando um GrCombate emboscado a dois quilómetros do cruzamento de Canjambari Morocunda. Atingiu-se a povoação de Canjambari, com o IN a assinalar a entrada das NT com tiros à distância, disparados da margem sul do rio Canjambari. Tabanca revistada, os indícios apontavam para uma retirada apressada. As casas comerciais deixaram indícios de movimento recente, praticamente até momentos antes da entrada das NT. Pelas 15H00, a coluna regressou ao cruzamento de Canjambari Morocunda. Deu-se então início aos trabalhos de instalação e organização do terreno em volta do edifício do Posto de Socorros aí existente.
Informações posteriores revelaram que o IN tivera conhecimento antecipado da acção e que tivera mesmo tempo para receber reforços de Morés e de Mansodé, que se mantiveram na zona dois dias à espera das NT, regressando mais tarde às suas bases, por coincidência no mesmo dia do início da operação das NT.”
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIb Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)
GUINÉ, IR E VOLTAR - III
Morreu-me um gajo ontem
Dói-te um dente, aonde, ora deixa ver.
Nada que eu possa fazer aqui, vocês pensam que vêm para aqui tratar os dentes, mal vai a guerra quando já mandam pessoal com defeito, rosnou o doutor. Só em Farim! Quando for dia de dentista, sei lá quando!
Dias depois, sentado debaixo de um enorme poilão1, em Farim, à espera da vez, o cabo enfermeiro percorria a fila dos sofredores, picando este e aquele enquanto o médico dentista, mais atrás, ia arrancando os dentes. Quando chegou a vez dele, o dentista de alicate na mão mandou-o abrir mais a boca. Dói-lhe aqui, é? Grande abcesso! Não posso fazer isto aqui, só em Bissau. E tem que tomar um antibiótico, primeiro.
Em Bissau outra vez, com menos um dente, à porta da 1.ª Rep, no QG, esperava pela guia de marcha de regresso a Farim.
Nisto, vê um jeep estacionar com estardalhaço, pó no ar, dois tipos a saltarem, um alferes e um tenente com um saco de serapilheira na mão, escadas acima. Farda de terylene amarela, lenços no pescoço, “comandos” nos ombros, no jeep também.
Então estes é que são os “comandos”!
Minutos depois vê-os descer, sorridentes.
Eu sou do BCav 490, da CCav 489, apresenta-se. Uma informação. Comandos, que tropa é a vossa, que tipo de trabalho fazem?
O que quer saber, camarada? Pormenores? Quer mesmo saber? Quer subir?
E subiu, para o banco de trás, curvado para a frente, a ouvir as respostas. Golpes de mão, guia, turra de preferência, é só o que precisamos. Operações curtas, surpresa, bater e fugir, castigá-los nas costas, fazer a guerra deles, mas melhor que eles, claro. Regressar a Bissau, dormir, banho, um frango assado no Fonseca, uma gaja boa e um banho a seguir. Que a guerra tem que ser limpa, não é?
Quer concorrer? Convém que se decida depressa, ainda ontem morreu-nos um gajo, o curso começa para o mês que vem, temos 4 vagas para comandantes de grupo e ainda só temos 9 inscritos já aprovados.
Na formação vai sempre alguém abaixo, temos que ter mais pessoal no curso. Decida-se, tem as provas de selecção para fazer, físicas e psíquicas. Psíquicas é conversa com o psiquiatra do Hospital, blá-blá, claro.
Material sempre às costas, mil metros, 20 flexões de braços, 20 suspensões da barra, 100 metros velocidade, abdominais, cangurus, provas de tiro, tudo seguido sem intervalos, que mais pá, coisas assim, vamos a isso?
Vai pensar? Interessa-nos. Porquê? Porque pensa! Pensar é também uma forma de selecção, desde que não pense demais, claro. Encontramo-nos então amanhã em Brá, 9 horas é uma hora boa.
Flexões, abdominais, 100 metros em ziguezague, elevações na barra, 4 metros de corda a pulso, salto a pés juntos em altura e em comprimento, tiro instintivo contra latas e garrafas de cerveja, vazias é claro, está quase tudo, falta pouco.
Uns minutos para respirar, já só faltam os 1000 metros, mais um pequeno esforço, meu alferes, disse o Moita, o furriel instrutor.
Como contamos a distância? Fácil, o meu alferes corre, nós vamos atrás no jeep a dar-lhe gás, quando passar 1 quilómetro no conta-quilómetros, corta a meta. Menos de 4 minutos, ganha uma cerveja, menos de 3 minutos e meio uma grade, menos de 1 minuto a fábrica, que tal? Nos comandos é assim, o Moita e o Miranda, bem dispostos, à gargalhada.
Não, não me recordo, estou aqui desde a abertura do Centro de Instrução, nunca ninguém ganhou a grade, que me lembre, pois não ó Miranda?
Pois então preparem-se. A correr por ali fora, para os lados do aeroporto, a força do calor na estrada, botas a colarem-se ao alcatrão, 1, 2, 3 quilómetros, sabia lá!
Então quantos metros ainda faltam para o quilómetro? Quantos faltam não sei, o conta-quilómetros não funciona!
Sentado na berma da estrada, esforçava-se por manter os pulmões dentro da caixa. Ainda não foi desta vez que alguém conseguiu ganhar a grade.
De regresso a Brá, apresentado ao Major Correia Dinis2, respondeu a algumas perguntas e assinou os papéis que lhe puseram à frente dos olhos. Almoçou lá, passou o resto do dia com eles e à noite, largaram-no na Amura, mais morto que vivo.
Na outra manhã quando tomava o café na messe da Amura, o subalterno de dia da PM sentou-se na mesa dele.
Eh, pá, grande guerreiro, coisa e tal. O alferes já sabia, os tambores tinham sido mais rápidos que ele. Porquê os comandos, o PM curioso. Dentro de 3 ou 4 meses o 490 vem para Bissau, o Cavaleiro vai colocar o pessoal no ar condicionado, a aguardar, tranquilo, os meses que faltam. Porquê os comandos, pá?
Difícil explicar. Nem ele sabia bem porquê. Também não tinha muito tempo para conversas, o jipe para o aeroporto estava à espera.
Ao princípio da tarde estava em Cuntima.
Casa que servia de messe e de bar
Encontraram-se todos na pista e foram até ao bar, para a sombra, beber uma cerveja, gozar a calmaria do resto da tarde. Meia hora depois, talvez, uma explosão forte, para os lados da estrada para Jumbembem, interrompeu as conversas, parou tudo, ficou o silêncio.
Foi para os lados de Jumbembem, não foi?
Um macaco que pisou uma anti-pessoal, se calhar, diz o Didi.
Ou uma mina numa viatura, arrisca outro. É melhor alguém sair e ir ver o que se passou.
Lá estás tu, pá, para quê, a esta hora, não tarda é noite!
De Colina do Norte (Cuntima) a Farim com Jumbembem a meio do percurso
Uma coluna que vinha de Farim, uma mina numa Daimler3 ou numa Fox, aqui perto, na estrada de Jumbembem para aqui, perto da curva da morte, parece que há feridos, o capitão a correr para eles, aos berros, não sei se devemos ir ao encontro, ou se será melhor esperar por mais informações.
Depressa, uma coluna para lá, ao encontro deles, antes que seja noite, meu capitão, um logo.
Melhor esperar, arrancar já, porquê? Sabemos lá o que se está a passar, insiste outro.
É pá, não podemos ficar aqui a ver passar os comboios, o rebentamento foi aqui perto, temos que ir ver o que se passa, prestar auxílio.
Depois de alguma hesitação, o capitão decide-se, arranque com o seu pelotão.
Cuidado, tenha atenção, nada de loucuras por aí fora, sempre a abrir, ouviu?
Pique a estrada. Tome-me conta desta rapaziada, falta-lhes pouco tempo! Conte com uma emboscada no caminho, talvez até uma mina, está a ouvir?
Bem pensado, a mina na auto-metralhadora, a viatura destruída, a maralha embrulhada com os feridos à espera de socorros, estes a irem em socorro, de Cuntima no caso, outra mina à espera destes na picada e uma emboscada, é, se for assim é bem pensado.
Pessoal da CCav 489, apeado na tal curva da picada para Jumbembem
Cuidados redobrados, picadores à frente, todo o pessoal a pé, as viaturas cheias de sacos de areia só com os motoristas, demoraram quase duas horas a encontrarem a coluna. Lixados com tamanho atraso, receberam-nos como se estivessem a vê-los regressar da praia.
Até que enfim, porra! Se não fosse a malta de Jumbembem, os feridos já tinham morrido, que caraças!
Realmente, Jumbembem também estava próximo, mas compreende-se o desespero do comandante da coluna.
Esta estava em marcha para Cuntima, sem conhecimento do comandante da companhia e, veio-se a saber depois, escoltava um grupo de comandos4 chefiado pelo sargento Mário Dias que naquela noite iria executar um golpe de mão a um acampamento da guerrilha na área da companhia lá aquartelada.
O Tenente-Coronel Cavaleiro é que não tinha achado graça nenhuma, mandou um rádio ao capitão, a exigir explicações. A coluna ficara imobilizada, pedira apoio a Cuntima e Jumbembem, porque é que a sua companhia só chegou quase duas horas depois da ocorrência? Explique-se, estou no posto de rádio à espera da sua resposta.
Que fora só o tempo de preparar um pelotão, mais o tempo da deslocação, as precauções que exigira do comandante do pelotão, até nem fora demasiado.
Com o copo a deitar por fora há muito, o Comandante do Batalhão deve ter dito borda fora com o tipo, é agora que o vou mandar pregar para outra freguesia.
Foi o que fez, um auto de averiguações, corpo de delito a seguir, uns dias de prisão. Que tomasse a Dornier para o QG, que este, certamente, lhe arranjaria um destino mais conveniente.
O capitão, desesperado, bem se defendeu por escrito, meteu como testemunha o alferes que foi socorrer a coluna, mas de nada valeu a solidariedade deste.
A demora podia ter sido menor, se pusesse as viaturas a esgalhar. No caso, não deu por qualquer perda de tempo, não se puseram a jogar as cartas, tinham percorrido a estrada com cuidado, mas nada de excessivo.
Na noite da mina, depois do jantar, a saída de mais um alferes foi assunto de conversa. Com uma garrafa de uísque em cima da mesa, cada um falou, do mais novo ao mais antigo. Esta companhia anda com galo até com os alferes, mas anda mesmo! Um ferido com mina, outro evacuado por doença grave, agora este gajo que chegou há meia dúzia de meses está de saída para os comandos!
Desaprovo totalmente, protesto contra esse pessoal! Vi-os no Como, uns tipos horríveis, sem maneiras de lidar com as pessoas, quanto mais com a população! Só querem saber da guerra, como dar tiro no coitado do negrão, mais nada! Vou-me retirar, chau, o Didi.
Até ao nosso regresso a Bissau, despediram-se oficialmente, digamos assim.
O Tenente-Coronel Cavaleiro não gostava, nem dos atrasos dos outros nem dos dele. Na primeira oportunidade, mandou preparar uma coluna e pôs-se à frente, rumo a Cuntima.
Mal viu o alferes por perto chamou-o. O alferes está cá há quanto tempo, pouco, não é? Não teve ainda tempo de reparar que não tinha um comandante, mas apenas um capitão? E assinou por baixo?
Passou uns dias à espera que o Coronel desse o ok à sua saída, o que aconteceu logo após a chegada do novo Comandante da CCav 489, um capitão miliciano, pele muito branca, suor a escorrer cara abaixo.
Apresentação da CCav 489 ao novo Comandante
No dia seguinte foi a apresentação à companhia que, para o efeito, formou na picada que atravessava a povoação e, dois dias depois, o novo capitão quis tomar contacto com a mata aproveitando a saída de um pelotão em Cuntima num patrulhamento até às inevitáveis Faquinas.
A corta mato, rumo a Faquina Fula e Faquina Mandinga
Foi a primeira saída do capitão e a última do alferes na companhia que, dois dias depois arrancava para Bissau para frequentar o curso de Comandos.
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Notas:
1 - Árvore de grande porte
2 - Comandante do Centro de Instrução de Comandos em Brá, Guiné.
3 - A auto-metralhadora Daimler equipava os pelotões de reconhecimento e frequentemente abriam as colunas. Foram fabricadas no Reino Unido durante a segunda guerra mundial e, tal como as auto-metralhadoras Fox, estavam frequentemente inoperacionais devido a problemas mecânicos. A guarnição era composta por dois homens e estava armada com uma metralhadora ligeira.
4 - Grupo de Comandos “Camaleões”
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Dornier ferido
Campo de aviação de Cuntima. O Do 27 aterrara há pouco mais de meia hora numa nuvem de pó. Negros e brancos, soldados, cabos, furriéis e alferes, num grande alvoroço à volta da avioneta, apalpam-lhe as asas, festas na fuselagem, um tira fotos a um grupo e o homem do bar, o ‘Fininho’ a passar para as mãos do piloto uma cerveja gelada.
Saco do correio, grades de cerveja, caixa de uísque, medicamentos, o que trazia a Dornier, tudo cá para fora.
Minutos depois, abraços e mais abraços, pista desimpedida, motor a trabalhar, portas fechadas. A Dornier a dar a volta devagar para o topo do campo, a roncar com mais força, na cabeça do alferes a imagem, não sabe a que propósito lhe apareceu, do touro a raspar as patas, para os forcados.
De repente aí vai o aviãosinho, a tremer todo, aos saltinhos, a ganhar velocidade, gás no máximo, campo de futebol fora, manobra apertada a evitar as balizas e as árvores.
Adeus Cuntima, até um dia, se calhar
Não ouvira a salva de palmas mas vira da janela, não foi golo mas quase. E, pronto, adeus Cuntima, levo-te no coração, até um dia, quem sabe?
Acabados de pousar em Farim, a mesma cerimónia mas com militares mais graduados. Um alvoroço na pista, o Tenente-Cor. Cavaleiro, o Major Paixão Ribeiro, 2.º comandante, e o estado-maior do Batalhão, a trocarem impressões sobre a guerra em Canjambari5.
Então o alferes já vai para Bissau? Safa-se de boa, a boca do Tenente-Coronel, enquanto falava sobre as contínuas flagelações a que as NT continuavam a sofrer em Canjambari.
A guerrilha, nem à lei da bala, se conformava com a perda daquele santuário.
As NT imobilizadas por emboscada entre Jumbembem e Canjambari.
Com a devida vénia ao pessoal do BCav 490.
Com a devida vénia ao pessoal do BCav 490.
No caminho para o interior do Oio, uma autêntica auto-estrada, para todo o tipo de reabastecimentos da guerrilha. Canjambari Morocunda, um quilómetro ou nem isso para o interior e Canjambari porto, junto ao rio.
As NT foram muito bem até Canjambari Morocunda, para entrarem em Canjambari porto foi o caraças. Levantam a cabeça para lá, lá vem prémio de morteiro. Às 6 da matina, nem precisam de corneteiro, duas morteiradas em cima para lhes abrirem os olhos, ponham-se a pé, tugas preguiçosos. E no final do dia não se esquecem, também mandam tocar a recolher com mais umas morteiradas.
Isto nunca mais chega ao fim. A comissão, que é que havia de ser? Oio, K3, Como, o Como, pá, e agora o Cavaleiro com esta merda de Canjambari, a cinco meses do fim?
Em finais de Março, quando progredíamos para Canjambari, o capitão de uma das Companhias, pela rádio, disse ao Cavaleiro que não conseguia passar a ponte. Não é que no dia logo a seguir pela manhã, o comandante se apresentou em Jumbembem, integrado no Pelotão de auto-metralhadoras do Corte-Real, virou-se para o capitão, vamos ver a ponte.
Claro, na picada de Jumbembem para Canjambari, quando chegaram à ponte, aí vai aço, morteirada para cima da maralha. O pessoal todo deitado, fogachal danado, o capitão agachado também e o Coronel de pé, encostado ao tronco de uma árvore. Capitão, vê de onde vem o fogo dos tipos aí deitado? Estou a falar consigo, ponha-se a pé, está a falar com o seu comandante! Dezanove meses de comissão! Tás a ver, pá, o Mealha todo suado de suor e cerveja.
O avião estava com a carga no limite, o capelão, com um saco de pão fresco em cima das pernas, sentara-se à frente, ao lado do piloto. Atrás, encostado à janela, um cabo enfermeiro segurava um frasco de vidro com um líquido a escorrer às gotas para o braço de um guineense, com uma perna toda entrapada. Do outro lado, o alferes proveniente de Cuntima, com o saco do correio na mão.
Tudo ok, o piloto, tenente Lemos de auscultadores. Que no trajecto para Bissau faria um desvio para a área de Canjambari, a pedido do Coronel Cavaleiro, largar os dois sacos às nossas tropas e que, quando baixasse o polegar, e repetira, só quando voltasse o polegar para baixo, deveriam lançá-los pelas janelas.
Descolagem de Farim
Dornier no ar, fumos aqui e ali a subir das matas, charcos de água a espelharem. O ferido, medo estampado nos olhos muito abertos, a farda nova ainda, verde azeitona, seria do PAIGC? O cabo maqueiro, a fazer ginástica com o frasco e com a cabeça a dizer que sim.
O capelão à frente, suor a escorrer, cara muito branca, mãos amarradas ao saco com o pão quente. Sol ainda alto, o piloto a falar com a base, olho num lado e noutro.
Rio Canjambari
Estavam na zona, em cima de Canjambari, iriam baixar. A planar, quase parado, como um milhafre, a descer lentamente, os olhos deles arregalados para a mata.
Onde é que está a nossa malta? Mais uma volta. Estão ali, debaixo daquela árvore, não? O tenente Lemos não estava certo.
Desceram mais, até alguns metros acima das copas das árvores, são eles, não são? Os outros não responderam, não paravam de olhar. São eles ou não?
Vou dar mais uma volta, força, abrir janelas, mãos nos sacos, como se já não se sentisse uma corrente de ar danada lá dentro. Nova passagem, agora é mesmo, olhem para a minha mão, atenção, polegar para baixo, agora, sacos fora já, o piloto.
O alferes num segundo viu a árvore, viu-os lá em baixo a correr, àquela altura as fardas deles pareceram-lhe iguais à do ferido que ia com eles. Quando o piloto levantou o polegar, hesitou, ficou com o saco do correio na mão.
Mesmo mais tarde, tentando rever a sucessão dos acontecimentos, não era capaz de dizer o que sentiu primeiro. Pareceu-lhe tudo ao mesmo tempo, uma rajada longa, gritos dentro da avioneta, um ciclone lá dentro, um barulho como uma câmara de ar imensa a esvaziar-se, a Dornier a balançar para cima e para baixo, para a esquerda, para a direita.
No voo para Bissau, o guerrilheiro ferido gritou o tempo todo, atingido na mesma perna, mais um tiro, soube-se dias depois, o Dornier dançou sempre, a turbulência aumentou e um cheiro a cocó borrou-os a todos.
Na pista, finalmente, deitado de costas, o alferes viu os buracos das balas que entraram pela barriga da Dornier. Dos de saída não tinha tirado os olhos, a viagem toda.
E reparou também numa grande roda escura nas calças de um dos felizes companheiros e viagem.
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Nota:
5 - A ocupação de Canjambari, operação "Ebro" foi iniciada em 22 de Março de 1965.
“Os relatórios referem terem sido feitas várias acções no itinerário Jumbembem-Canjambari e na própria região de Canjambari. Apesar de levantadas numerosas abatizes, o referido itinerário ainda se encontra com algumas árvores de pequeno porte nas imediações da bolanha que dá acesso ao pontão danificado sobre o rio Tufili (dados obtidos através do reconhecimento aéreo de 17Mar65). Parece, este pontão, de fácil transposição desde que se utilizem pranchas adequadas.
Dos contactos com o IN a reacção deste tem-se limitado a flagelações de longe, não sendo de desprezar a possibilidade de o mesmo dispor, na região, de forças importantes e, eventualmente, colocar minas nos itinerários de acesso.
O objectivo das NT é proceder à ocupação permanente de Canjambari. Elaborado o plano para a acção, foram constituídas as forças executantes, comandadas pelo próprio Cmdt do BCav 490, Ten. Cor. Cavaleiro. Às 03H00 de 22Mar65 iniciou-se o movimento, a partir de Farim. Atingido Jumbembem às 04H20, a força executante prosseguiu, rumo a Canjambari.
À passagem por Sare Tenen, um GrComb da CCav 488 apeou-se, emboscando-se de seguida junto ao caminho que cruza o itinerário. A partir daqui a equipa de sapadores encarregada da detecção de minas passou a picar a estrada nos locais mais suspeitos. Apesar das precauções, às 06H15 e a cerca de 9 kms de Jumbembem, a GMC da frente da coluna calcou um engenho explosivo, ficando a parte posterior da viatura enfiada na cratera aberta pelo engenho. Os dois homens que nela se deslocavam foram projectados, não tendo sofrido ferimentos de maior.
Passados cerca de 500 metros encontrou-se a 1.ª de uma série de cerca de 30 abatizes, algumas de grande porte, que se espalhavam numa extensão de quase 4 kms, até 1km e meio de Canjambari Morocunda, que só foi atingida já passava das 12H00. O esgotante trabalho de levantamento de abatizes durou cerca de 5 horas e meia, sob constantes flagelações do IN, que utilizou metralhadoras pesadas e morteiros. As medidas de segurança adoptadas, apesar da extensão da coluna de 30 viaturas pesadas, revelaram-se eficazes, porquanto o IN nunca conseguiu aproximar-se de modo a causar baixas às NT”. (…). Ultrapassada a zona das abatizes, a coluna prosseguiu deixando um GrCombate emboscado a dois quilómetros do cruzamento de Canjambari Morocunda. Atingiu-se a povoação de Canjambari, com o IN a assinalar a entrada das NT com tiros à distância, disparados da margem sul do rio Canjambari. Tabanca revistada, os indícios apontavam para uma retirada apressada. As casas comerciais deixaram indícios de movimento recente, praticamente até momentos antes da entrada das NT. Pelas 15H00, a coluna regressou ao cruzamento de Canjambari Morocunda. Deu-se então início aos trabalhos de instalação e organização do terreno em volta do edifício do Posto de Socorros aí existente.
Informações posteriores revelaram que o IN tivera conhecimento antecipado da acção e que tivera mesmo tempo para receber reforços de Morés e de Mansodé, que se mantiveram na zona dois dias à espera das NT, regressando mais tarde às suas bases, por coincidência no mesmo dia do início da operação das NT.”
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIb Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)
Guiné 63/74 - P14826: Convívios (694): II Almoço do pessoal da Tabanca de Setúbal, Praia de Albarquel, no ido dia 27 de Junho de 2015 (Hélder Valério de Sousa)
1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de hoje 1 de Julho de 2015:
Caros camaradas
Finalmente!
Finalmente realizou-se o 2.º Almoço da “Tabanca de Setúbal”!
Conforme já vos tinha dito antes, durante algum tempo fui inquirido, ‘massacrado’, ‘perseguido’, pelos camaradas que queriam saber quando se realizaria este propalado 2.º Almoço. Houve até quem, com aquele seu jeito de humor cáustico, estilo “pantera cor-de-rosa”, me tivesse chegado a perguntar quando seria o “almoço comemorativo do 10.º aniversário do 1.º almoço”….
Mas finalmente conseguiram ‘reunir-se as condições’ (como em certa época se costumava dizer) para que o desejo se transformasse em realidade.
Sei que “Almoços” e “Encontros” do pessoal só costumam interessar normalmente aos participantes, mas atrevo-me a levar ao vosso conhecimento este evento porque pode de facto ter sido o precursor de um novo ‘local de encontro’ de camaradas da Guiné, a “Tabanca de Setúbal” (ou da “Arrábida”, logo se verá melhor).
Assim, ultrapassadas as dificuldades habituais para materializar este género de coisas (quem se mete nisto sabe do que falo), com a preciosa ajuda do Benjamim Durães, ocorreu então, como anunciado, no passado sábado dia 27 de Junho, num restaurante de praia, o All-Barquel na praia de Albarquel, logo à saída de Setúbal para a Arrábida, esse desejado almoço.
Para o seu êxito, já que estiveram 34 comensais, dos quais 6 acompanhantes, houve contributos significativos dos camaradas que se acolhem normalmente na “Tabanca da Linha” e isso não pode deixar de ser realçado.
Residentes, ou com moradia no Distrito, estiveram Miguel Pessoa, Giselda, Nair Antunes, Maria Arminda, Benjamim Durães, Hélder Sousa, José Silvério e esposa, José Sanchez Antunes, Lino Rei, Jorge Abreu Batista, Mário Salgado, Jorge Canhão, João Sousa, António Faneco, Fernando Sousa e José Silva.
Os ‘reforços’ foram António Maria Silva, António Marques e Gina, Jorge Pinto, António Santos e esposa, José Dinis, Jorge Rosales, Armando Pires, Manuel Resende, Manuel Joaquim e Deonilde, José (Zé) Rodrigues e Maria de Lurdes, Luís Moreira, Joaquim Vieira e João pereira da Costa.
O que se pode dizer do evento?
Que ‘correu bem’, ou seja, as pessoas ficaram contentes pelos encontros, reencontros e até descobertas, que as houve. Por exemplo, o Jorge Canhão tem casa em Setúbal e veio a descobrir que no seu prédio, dois vizinhos, o João Sousa e o José Silva eram “camaradas da Guiné”. Que o Jorge Canhão e o Armando Pires descobriram uma amizade comum.
Como foi divulgado, o almoço consistiu num rodízio de peixe, que não envergonhou ninguém, mas permito-me sublinhar o “carapau manteiga” que estava soberbo e que motivou algumas repetições…. No início (e no fim, porque ficou em ‘bar aberto’…) houve um ‘moscatel de honra’ que soube muito bem.
De salientar que o calor nesse dia originava cerca de 37ºC ali na praia com a areia a cerca de 5 metros e foi de facto heroica a presença de tantos amigos.
Ficou no ar a ideia (e o mandato) para que se possam fazer mais encontros da “Tabanca de Setúbal”, que conta agora com uma “carteira” de membros capaz de dar vida a tais eventos sendo que muitos há que ainda podem corresponder. Estavam pessoas de Sesimbra, Setúbal, Pinhal Novo, Baixa da Banheira, Barreiro e Montijo sendo que também há camaradas de Azeitão, Seixal, Almada, Caparica, etc., que podem vir a querer participar.
Vamos deitar mãos à obra e depois daremos conta.
Entretanto aqui envio algumas fotos que podem servir para ilustrar o texto.
Abraços
Hélder Sousa
Nota do editor
Último poste da série de 23 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14786: Convívios (693): 30º Encontro da CART 3494, 13 de Junho de 2015, RA-5 (Sousa de Castro)
Caros camaradas
Finalmente!
Finalmente realizou-se o 2.º Almoço da “Tabanca de Setúbal”!
Conforme já vos tinha dito antes, durante algum tempo fui inquirido, ‘massacrado’, ‘perseguido’, pelos camaradas que queriam saber quando se realizaria este propalado 2.º Almoço. Houve até quem, com aquele seu jeito de humor cáustico, estilo “pantera cor-de-rosa”, me tivesse chegado a perguntar quando seria o “almoço comemorativo do 10.º aniversário do 1.º almoço”….
Mas finalmente conseguiram ‘reunir-se as condições’ (como em certa época se costumava dizer) para que o desejo se transformasse em realidade.
Sei que “Almoços” e “Encontros” do pessoal só costumam interessar normalmente aos participantes, mas atrevo-me a levar ao vosso conhecimento este evento porque pode de facto ter sido o precursor de um novo ‘local de encontro’ de camaradas da Guiné, a “Tabanca de Setúbal” (ou da “Arrábida”, logo se verá melhor).
Assim, ultrapassadas as dificuldades habituais para materializar este género de coisas (quem se mete nisto sabe do que falo), com a preciosa ajuda do Benjamim Durães, ocorreu então, como anunciado, no passado sábado dia 27 de Junho, num restaurante de praia, o All-Barquel na praia de Albarquel, logo à saída de Setúbal para a Arrábida, esse desejado almoço.
Para o seu êxito, já que estiveram 34 comensais, dos quais 6 acompanhantes, houve contributos significativos dos camaradas que se acolhem normalmente na “Tabanca da Linha” e isso não pode deixar de ser realçado.
Residentes, ou com moradia no Distrito, estiveram Miguel Pessoa, Giselda, Nair Antunes, Maria Arminda, Benjamim Durães, Hélder Sousa, José Silvério e esposa, José Sanchez Antunes, Lino Rei, Jorge Abreu Batista, Mário Salgado, Jorge Canhão, João Sousa, António Faneco, Fernando Sousa e José Silva.
Os ‘reforços’ foram António Maria Silva, António Marques e Gina, Jorge Pinto, António Santos e esposa, José Dinis, Jorge Rosales, Armando Pires, Manuel Resende, Manuel Joaquim e Deonilde, José (Zé) Rodrigues e Maria de Lurdes, Luís Moreira, Joaquim Vieira e João pereira da Costa.
O que se pode dizer do evento?
Que ‘correu bem’, ou seja, as pessoas ficaram contentes pelos encontros, reencontros e até descobertas, que as houve. Por exemplo, o Jorge Canhão tem casa em Setúbal e veio a descobrir que no seu prédio, dois vizinhos, o João Sousa e o José Silva eram “camaradas da Guiné”. Que o Jorge Canhão e o Armando Pires descobriram uma amizade comum.
Como foi divulgado, o almoço consistiu num rodízio de peixe, que não envergonhou ninguém, mas permito-me sublinhar o “carapau manteiga” que estava soberbo e que motivou algumas repetições…. No início (e no fim, porque ficou em ‘bar aberto’…) houve um ‘moscatel de honra’ que soube muito bem.
De salientar que o calor nesse dia originava cerca de 37ºC ali na praia com a areia a cerca de 5 metros e foi de facto heroica a presença de tantos amigos.
Ficou no ar a ideia (e o mandato) para que se possam fazer mais encontros da “Tabanca de Setúbal”, que conta agora com uma “carteira” de membros capaz de dar vida a tais eventos sendo que muitos há que ainda podem corresponder. Estavam pessoas de Sesimbra, Setúbal, Pinhal Novo, Baixa da Banheira, Barreiro e Montijo sendo que também há camaradas de Azeitão, Seixal, Almada, Caparica, etc., que podem vir a querer participar.
Vamos deitar mãos à obra e depois daremos conta.
Entretanto aqui envio algumas fotos que podem servir para ilustrar o texto.
Abraços
Hélder Sousa
À espera
A preparar
A sala em reflexo
As nossas enfermeiras
Aspecto geral
Caras novas
Comissão de arranque
Conhecem este par?
Cumplicidades, Armando Pires e José Rodrigues
Os vizinhos desconhecidos
Parecem satisfeitos
Vamos à água
Vão-se chegando
____________Nota do editor
Último poste da série de 23 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14786: Convívios (693): 30º Encontro da CART 3494, 13 de Junho de 2015, RA-5 (Sousa de Castro)
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