Vigésimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Glória, Lola, a Ruça (4)
Hoje, fomos à pesca na praia, uma cadeira, duas canas
de pesca e uns calções já um pouco usados, mesmo quase
rotos, mas são os nossos preferidos. Estava um pouco de
nevoeiro, não havia peixe, ou se havia andava farto, não
pegava na isca, era quase como se as canas de pesca
estivessem no nosso quintal, já havia dificuldade em ver
a ponta das canas de de tanto olhar. Tirámos a t-shirt
para apanhar algum sol no corpo, quando o
nevoeiro desaparecia por algum tempo. Começámos por
ler um livrito, só para entreter, a Glória aparece, cedemos-
lhe a cadeira, sentando-nos num pequeno balde que
sempre nos acompanha quando vamos à pesca, que
virámos ao contrário. Ela, com aqueles cabelos já
grisalhos, mantendo aquele sorriso jovem, apesar de já
andar há umas dezenas de anos os tais “entas”, continua
a contar-nos a sua história. Cá vai.
Se ainda estão lembrados, o Jorge e a Glória iam a
caminho da fronteira com os USA, para a atravessarem
clandestinamente, os mensageiros que os
acompanhavam, no local que entendiam que era o certo,
pararam, explicaram as últimas instruções, a porta da
pequena camioneta, abriu-se, já era noite, saíram todos
ao mesmo tempo, com a ordem de correrem o mais que
podiam naquela direcção, pois do lado de lá daquelas
pequenas montanhas era os Estados Unidos, onde
alguém os ia contactar. Boa sorte.
A Glória e o Jorge correram abaixados, o Jorge tropeçou
numa pedra e caiu, a Glória parou, vem para trás, ajuda o
marido a levantar-se, pega-lhe na mão e arrasta-o atrás
de si, como fazia aos irmãos em pequenos, e diz-lhe:
- Anda Jorge, esta é a oportunidade da nossa vida.
Dando-lhe coragem, correram e caminharam por mais de
uma hora, com os jovens brasileiros sempre atrás, os
outros companheiros deixaram de se ver, não sabem se
tomaram outra direcção, ou se foram parados pela polícia
de fronteira. Contavam truques de passarem a fronteira,
em que alguns eram as “cobaias”. Essas “cobaias” iam
só para manterem a polícia de fronteira ocupada,
enquanto outros passavam livres. Eram “cobaias”
profissionais, eram pagos para isso, sabiam que depois
de uns dias presos eram mandados para o seu país, sem
nada lhes acontecer.
De súbito, dois homens surgem na sua frente e lhes
comunicam numa linguagem entre o espanhol e o
português, mas com sotaque brasileiro:
- Ok, já estão nos Estados Unidos, venham atrás de
nós.
Tanto a Glória como o Jorge, assim como os jovens
brasileiros, ficaram assustados, a Glória, apertou mesmo
a faca, que trazia embrulhada num lenço na mão, quase
que se cortava a si mesmo, tal era o medo. Viram a cara
dos homens, traziam duas espingardas caçadeiras de
canos serrados, usavam calções, pareciam mesmo
“passadores”. Seguiram-nos.
Tinham uma carrinha aberta atrás, escondida alguns
metros à frente, onde seguiram, os dois homens na frente,
a Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, atrás. Andaram
umas horas em direcção ao norte, por estradas de terra,
levantando muito pó. Abriram as sacas, puseram qualquer
coisa a encobrir a boca e o nariz, para puderem respirar
por causa do pó. Era quase madrugada quando pararam. Os dois homens pedem cinquenta dólares a cada um
e que sigam naquela direcção onde alguém os espera,
terminando com os desejos de boa sorte.
A Glória pensou logo que esta atitude dos cinquenta
dólares era um roubo, pois já tinham pago à organização
do “passador” o exigido no contrato. Depois de andarem
alguns quilómetros, muito próximo da estrada rápida
número 10, que atravessa todo o continente desde Los
Angeles, no estado da Califórnia, até Jacksonville, no
estado da Flórida, surge um riacho, seguido de uma
povoação, onde aproveitam para se lavarem do pó, bebendo
alguma água, entrando de novo em contacto nessa
povoação, com alguém que os esperava e encaminhou.
Aqui, com a ajuda desse alguém, compram nova roupa, já
com outro aspecto, telefonam a amigos dos pais dos
jovens brasileiros, pois eles vinham com a recomendação
de se dirigirem à Florida, onde essas pessoas lhe deram
todas as indicações de como deviam de proceder.
Seguem tudo à risca, sempre orientados pelo instinto da
Glória, algumas vezes por estradas secundárias, andam
de táxi, de camioneta e tomam o comboio. Passados cinco
dias, aparecem, não duas mas sim quatro pessoas, em
Miami. A Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, cansados,
com um aspecto terrível, vão bater à porta dos amigos
brasileiros.
A colónia brasileira, naquela região da Florida, é muito
grande, os amigos tinham muitos contactos, a Glória,
passados uns dias, vai trabalhar com uma senhora
também brasileira, nas limpezas de casas de famílias com
algumas posses financeiras, que vivem nas praias. Uma
dessas famílias tinha filhos pequenos e precisava de
alguém que os cuidasse em casa. Depois de verem a
maneira como a Glória lidava com crianças, decidem
contratá-la para trabalhar lá em casa e, deste modo, a
legalizariam assim como ao Jorge, se este aceitasse ser
algumas vezes o motorista, limpar e cuidar do enorme
barco, trabalhar nos jardins, além de outras ocupações no
exterior da casa.
Foram sempre dedicados, passados três anos e pouco, já
legalizados, com toda a documentação para poderem residir e
trabalhar nos Estados Unidos, decidem continuar ao serviço destes senhores, mas vivendo numa sua
casa, que entretanto alugaram no meio da comunidade
brasileira. Iam economizando algum dinheiro,
principalmente nos primeiros anos, em que trabalhando
dentro da enorme casa de seus patrões, não tinham
qualquer despesa. Quando entenderam que já podiam
olhar novos horizontes, decidiram comprar uma oficina onde se faziam gradeamentos em ferro, que estava à venda, propriedade de
umas pessoas já idosas, oriundas do Chile, que se
queriam reformar e regressar ao país de origem.
Tony Borie, Julho de 2015
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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