sábado, 11 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21159: Os nossos seres, saberes e lazeres (401): Tapada da Ajuda: Obrigatório visitar e fruir (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
A Tapada da Ajuda é uma das espetacularidades que a cidade de Lisboa oferece, situa-se num ponto cimeiro, são cerca de cem hectares com hortas, cultivo de cereais, minas de água, uma portentosa alameda de oliveiras, uma pequena aldeia, há cavalos garranos, uma pateira, pomares, um parque botânico, isto para não falar já no belíssimo edifício principal da conceção do arquiteto Adães Bermudes, o pavilhão de exposições, que data de 1884, o Observatório Astronómico de Lisboa, os jardins, e muito mais. Até temos o banco do Junot, o representante de Napoleão, ao que consta, sentava-se num determinado banco, os franceses portaram-se como aves rapinas, até levaram material que hoje se encontra no Jardim Botânico de Paris. Um jardim cheio de história, não é por acaso que ele está entalado entre o Palácio Nacional da Ajuda e Alcântara.
O conjunto intramuros da Tapada está classificado como imóvel de interesse público.

Um abraço do
Mário


Tapada da Ajuda: Obrigatório visitar e fruir (1)

Beja Santos

Entalada entre o Palácio da Ajuda e Alcântara, ocupando cerca de cem hectares, com soberbos edifícios, áreas florestais, hortícolas e agrícolas, uma flora de espécies domésticas e silvestres e com uma fauna diversificada, temos a Tapada da Ajuda onde funciona o Instituto Superior de Agronomia e onde qualquer cidadão pode percorrer um espaço admirável e respirar o ar do campo no meio da cidade de Lisboa. Era este o apelo ou convite proveniente de um artigo publicado na Revista da Universidade de Lisboa, ULisboa, número de outubro de 2019. É um espaço cheio de história e memórias. Em 1645, o rei D. João IV decretou a criação da Tapada Real de Alcântara, usada como parque de caça e de criação de gado da família real. Quando esta mudou de residência para o Alto da Ajuda, a Tapada Real de Alcântara passou a denominar-se Tapada Real da Ajuda. O ensino agrícola em Portugal foi criado em 1852, no reinado de D. Maria II. O Instituto Superior de Agronomia foi fundado em 1910 e está, desde 1917, sediado na Tapada da Ajuda. O seu edifício principal foi projetado pelo arquiteto Adães Bermudes.

Uma das escadarias do belo edifício.

Um pátio interior devidamente arborizado.

Um corredor de ligação de edifícios.

Fachada principal.

Quem por aqui passeia desfruta de plantações de citrinos, de hortas onde se inserem vários projetos de interesse para estes estudos universitários, há uma impressionante avenida das oliveiras, e muito mais. Mas além deste património natural, a Tapada possui um património edificado muito rico: o Chalé da Rainha D.ª Amélia, o Pavilhão de Exposições, o Jardim da Parada e o Jardim da Rainha.

Chalé da Rainha D.ª Amélia.



Azulejaria do Jardim da Parada, de autoria de Jorge Colaço.

Pormenor da vegetação do jardim

Busto do professor Motta Prego

Estes belíssimos dragoeiros estão implantados nas proximidades do Observatório Astronómico de Lisboa, mandado criar por D. Pedro V, meteu arquiteto francês e está hoje incorporado no Museu Nacional de História Natural e da Ciência


Duas imagens do Observatório Astronómico de Lisboa

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21139: Os nossos seres, saberes e lazeres (400): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (11) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21158: Tabanca Grande (497): José Maria da Silva Valente (1946-2020), natural de São Roque, Oliveira de Azeméis, ex-fur mil, CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69): senta-se, a título póstumo, à sombra do nosso poilão, no lugar nº 811


José Maria Silva Valente (1946-2020), fur mil,
CART 1689 / BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel 
e Canquelifá, 1967/69). 
Foto: José Ferreira da Silva (2020)


1. A notícia da sua morte chegou-nos ontem, por email de um amigo e camarada de armas, o José Ferreira da Silva:

Aconteceu hoje, pelas onze horas, no Hospital de Oliveira de Azeméis. Foi um dos seus filhos gémeos quem me deu a notícia. Fiquei chocado e um pouco desorientado, com a notícia deste desfecho inesperado.

Logo ele, aquele militar que eu tanto admirei na nossa guerra da Guiné! Logo ele, cuja acção e comportamento temerário suplantavam o apelido que teve por nascimento!

Pois, é esse mesmo, o José Maria da Silva Valente que tanto se dedicava à pesca e que há 4 anos caiu na Barragem de Castelo de Bode, de onde foi preciso tirá-lo quase inconsciente. Nunca mais ficou bem, devido ao ferimento sofrido na cabeça.

Para que conste no património das minhas memórias, caracterizei-o e registei-o no segundo livro que publiquei. E é esta pequena homenagem que lhe presto, através do texto que vai junto, pois quero recordá-lo na força da vida. (*)



2. Comentário de outros camaradas (*);

(i) Alberto Branquinho:

Não posso deixar de escrever duas ou três palavras porque o Valente foi um dos dois furriéis do meu pelotão [, o 1º Gr Comb / 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel  e Canquelifá, 1967/69).

O outro, também já falecido e também lembrado aqui pelo Silva, foi o António Pedro Carneiro de Miranda.

Pois o Valente era destemido, temerário até,  e arrastava com ele, agachado e aos berros, os soldados da secção que lhe estavam mais próximos, mesmo em situações de fogo frontal.

Tive, muitas vezes, que lhe moderar os ímpetos ou chamar-lhe, depois, a atenção, porque achava que se deveria, antes, fazer uma análise mínima das situações. Por essa razão (e outras,  de comportamento) as nossas relações não eram as melhores, ao contrário do que acontecia com o furriel Miranda.

Há que referir que, quando embarcámos para a Guiné, ele tinha acabado de ser pai de dois gémeos, só com alguns meses de vida.

A pesca era para ele uma paixão e, na parte final da sua vida, um descanso e uma fuga dos muitos problemas que teve na vida empresarial.

Deixa uma lembrança muito forte e muito grande. Adeus, Valente!


(ii) José Marcelino Martins:

Condolências à família e aos amigos.

Ocupa o teu lugar no poilão, Valente, o lugat dos combatentes da Guiné, também é neste local de encontro. Até sempre. 

(ii) Hélder Sousa:

O Valente já fez a sua última caminhada entre nós. Certamente outros se seguirão, pois é esse o nosso "destino comum".

No entanto a sua memória perdurará enquanto os amigos (e familiares, naturalmente) quiserem, com a preciosa ajuda deste tipo de homenagens em que o Zé Ferreira é um bom construtor.

Que descanse em paz.




3. Em 15 de janeiro de 2011,   o Hélder Sousa havia seguinte, em comentário a esta "história boa da minha memória",do José Ferreira,  o seguinte (*):

Caro camarigo J. Ferreira da Silva

Esta tua história, que pretende homenagear a valentia do Valente, faz ressaltar também outras coisas. Por exemplo, a necessidade de se ser firme ao enfrentar os superiores e demonstrar a justeza da nossa razão, quando caso disso.


E também ressalta a importância de se ter um bom relacionamento com os comandados para a partir daí se poder ir, como escreves, 'até ao inferno'.


4. O Silva  foi talvez o camarada mais próximo do Valente: embora tendo personalides diferentes e  pertencessem a grupos de combate diferentes,  eram amigos, iam sozinhos à caça e à pesca juntos,  gostavam de fazer os seus petiscos (, um caçava, o outro pescava), andavam juntos pelas tabancas... e  sobretudo conviveram bastante nos últimos anos. 

O Silva ganhou o gosto da pesca (nos rios e albufeiras) com o Valente, e nomeadamente a pesca do achigã. Além disso, eram vizinhos: o Valente, de São Roque, Oliveira de Azeméis,  o Silva, de Fiães, Vila da Feira...

Ao telefone, o Silva confidenciou-me que o Valente era um militar, como qualidades e defeitos, como qualquer um de nós, com uma deficente instrução militar, etc., mas inegavelmente destemido e um graduado capaz de galvanizar os homens da sua secção.

Depois na vida civil, procurava destacar-se em tudo o que fazia, deste o futebol e aos negócios e até na pesca. Tinha o gosto pela competição e subestimava os riscos. Foi um pequeno empresário da indústria de calcado, com relativo sucesso até à crise de 2008/09...  Um acidente na pesca há uns quatro anos afetou-o muito, o Silva ainda o trouxe a um convívio com os seus camaradas da CART 1689. Todavia a sua morte, mesmo esperada, não deixa de ser pesarosa, para os amigos e camaradas que o estimavam.

O Silva relembra ainda o Valente nestes termos (**):

(...) Foi dos últimos a integrar a nossa Companhia. Chegou a Viana do Castelo antes duas ou três semanas de partirmos para a Guiné. Era muito franzino, branquito e sem barba. Não pesava mais de 50 quilos e teria uns 155 centímetros de altura. 

Até metia pena, pensar que aquele imberbe, também iria para a guerra. Porém, conforme se veio a verificar, a aparência não condizia com a realidade. Curiosamente, alguns dias depois, já ele tinha “presa pela beiça” uma adolescente que trabalhava na nossa Pensão. Todavia, ele demarcou-se logo e fez questão de nos comunicar que era casado e que já tinha dois gémeos, (acabados de nascer). Inicialmente não acreditámos, mas viemos a confirmar que era verdade.

Pois o Furriel Valente, oriundo de Oliveira de Azeméis, foi um militar de primeira. Cumpridor, corajoso e abnegado, ele, temerariamente, surgia na frente de combate sempre que “elas” começavam a cantar. Foram vários os combates em que ele se destacou. Por isso era muito respeitado na CArt 1689, especialmente pelos seus soldados que o seguiriam até ao inferno, caso fosse preciso. (...)


5. Por proposta do nosso editor Luís Graça, o Valente passa a sentar-se, simbolicamente, à sombra do nosso poilão no lugar nº 811. (***)

O Valente foi um dos nossos, e vai continuar a sê-lo: graças ao Zé Ferreira da Silva e ao nosso blogue, não vai ficar na vala comun do esquecimento. 

Uma das suas paixões era a pesca. Como muitos outros camaradas, não tinh email pessoal, nem página no Facebook, nem muito menos terá visitado alguma vez o nosso blogue. Como ele haverá 99 em cada 100 dos homens que passaram pelo TO da Guiné entre 1961 e 1974.

Mais uma razão para o Valente passar a ser lembrado, aqui, ao nosso lado. 

Para mais morre em plena pandemia de COVID-19, sendo o seu funeral condicionado pelas restrições em vigor, e pela vontade expressa da família, não podendo contar por isso  com a presença  dos amigos e camaradas que gostariam de poder despedir-se dele.

Esta é, em alternativa,  a maneira dos seus camaradas da Guiné lhe dizeram adeus.  Nós, bem como os seus filhos e netos, e demais amigos, vamos continuar a ter orgulho nele e a recordá-lo,

Obrigado, Zé, pela singela, mas sentida e fraterna  homenagem que fazes ao Valente, que travou ontem o seu último combate: 'Logo ele, aquele militar que eu tanto admirei na nossa guerra da Guiné! Logo ele, cuja acção e comportamento temerário suplantavam o apelido que teve por nascimento!'

Um abraço de solidariedade na dor aos filhos e demais familiares do Valente, em nome de toda a Tabanca Grande.



S/d  ], anterior a 2016] > O Grande Valente, numa “bolanha do vale do Mondego”,  prepara-se para dar mais uma aula de bem pescar ao colega, amigo e vizinho Silva, companheiros de grandes lutas pela honra e dignidade dos militares da Cart 1689. Em 2016 sofreu um acidente grave, quando pescava na albufeira da barragem de Castelo Bode (****)


S/d  [, anteriror a 2016] > O Silva com o Valente nas pescarias do rio Douro, Porto Antigo, Cinfães




Guiné > Região de Tombali > Catió > CART 1689 > Convívio “meio balanta”, na messe de sargentos. O Valente está de cachimbo.



Guiné > Região de Tombali > Catió > CART 1689 >   Messe de sargentos. O Valente   é o sorridente de camisa branca. O Valente brilhou também como o melhor gerente da messe de sargentes. Durante um mês,  comeu-se bem e do melhor (manga de bom peixe fresco, pescado à granada).


Guiné > Bissau > CART 1689 > Grupo de furriéis, no fim da comissão. O Valente é o 3º, de pé, da esquerda para a dieita.

Fotos: Cortesia do José Ferreira (2020)



Vila Nova de Gaia > Crestuma > 10 de junho de 2016 > Da esquerda para a direita, o Valente, o Zé Ferreira, o Neves  e o Jorge Portojo. Os quatro passaram por Catió.  Recordes-se que o  o nosso querido e saudoso Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017) oi vur mil  do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió (1968/70). O Neves, por sua vez, pertencia à CCS/BART 1913 (Catió, 1967/69), tal como o Victor Condeço (1943-2010), furriel mecânico de armamento.  A CART 1689 também pertencia ao BART 1913.


 Foto do Jorge Teixeira (Portojo) (2016).




Vila Nova de Gaia  > Crestuma  >  17 de dezemrbo de 2016 >  Apresentação do 1º volume do livro do José Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra". O Valemte, de pé.


 Vila Nova de Gaia  > Crestuma  >  17 de dezemrbo de 2016 >  Apresentação do 1º volume do livro do José Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra" > O Valente, à esquerda.
As fotos são da autoria do nosso saudoso  Jorge Portojo (2016) (*****)





Gondomar > Fânzeres > Tabanca dos Melros > 2016 > O Valente, já debilitado junto do ex-Cap Manuel Maia (hoje General  reformado Manuel Maia), no almoço do pessoal da CART 1689.


Foto: Cortesia do José Ferreira (2020)

(***ª) Vd. poste de 9 de agosto de  2016 > Guiné 63/74 - P16374: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): Relatório de Operações do último almoço-convívio da CART 1689


(...) A certa altura, abeirei-me do Valente, que eu havia ido buscar a Oliveira de Azeméis e que já não pode conduzir viaturas em virtude de um acidente sofrido numa pescaria na Barragem de Castelo de Bode, e perguntei-lhe:
- Está tudo bem? Porque estás tão calado?
- Olha, Silva, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa Companhia? 153!... Sabes quantos estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias.

Logo o tentei animar:
- Deixa-te de merdas, a malta está contente, vê se pensas em coisas boas e se tratas do “isco especial”, para voltarmos a pescar. (...)

Guiné 61/74 - P21157: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui mais uma porção dos primeiros meses no Cuor, Annette Cantinaux insiste em saber mais pormenores, chegará mesmo ao requinte de pedir informações sobre a fauna e a flora, pede informações sobre Malam Soncó, aquele régulo do Cuor que não se deixou intimidar pelas ameaças do PAIGC, pede ao jovem alferes que lhe descreva o quotidiano, as obrigações, como subsiste a população, não hesita em perguntar a natureza da guerra, faz comentários em função do mapa do Cuor, das movimentações do autor daquelas linhas que ela recebe regularmente na Rua do Eclipse.
Da curiosidade em saber mais, a correspondência já não esconde que aquelas duas figuras da ficção que se acordara num almoço de cantina, na Rue Froissart, meses atrás, estão numa rota de aproximação, não há carta, não há telefonema que mate a sede de um reencontro em Bruxelas, e quanto mais cedo melhor.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, fiquei felicíssimo quando ontem à noite me disse que está a pôr num caderno estes primeiros meses da minha vida na Guiné. Já que pretende um registo pormenorizado do que a minha memória alcança, recapitulo e continuo, a todas as dúvidas que subsistirem, a minha querida amada belga de romance pede esclarecimento, que haja toda a transparência na Rua do Eclipse…
Entrei no Cuor em 4 de agosto de 1968, já contei a profunda inquietação de ter dois destacamentos com segurança precária, tanto Finete como Missirá, abrigos apodrecidos, infraestruturas como o refeitório ou o balneário num estado deplorável, não havia gerador de eletricidade, trabalhávamos com petromax para garantir uma curta visibilidade à volta dos aquartelamentos. O régulo do Cuor ofereceu-me uma morança de piso térreo, pôs-se brita, pintaram-se os ferros da cama que tinha pertencido a um eminente cartógrafo que por ali andara a trabalhar em plantações de palmeiras de Samatra, vi o fruto do seu trabalho dias depois de chegar a Missirá, patrulhámos a região de Gambiel e eu vi um palmar paradisíaco, árvores altíssimas, quase justapostas, uma natureza frondosa atravessada pelas águas murmurantes do rio Gambiel, nesse mesmo dia vi uma linda ponte de madeira destruída pelos guerrilheiros, assim se impedindo a possibilidade de circular entre Bafatá, Geba, Missirá, Enxalé, Porto Gole, até Bissau. Foram dias, semanas, direi sem hesitação que foi um período de adaptação que durou cerca de três meses até conhecer o Cuor, ficando a uma escassa dezena de quilómetros de Madina/Belel, região onde vivia um grupo significativo da população civil e, supunha-se, um contingente militar de pequena dimensão, 60 homens com espingardas metralhadoras, bazucas e morteiros. Ninguém me informava sobre itinerários percorridos pelas gentes do PAIGC, demorei esse tempo a encontrar provas que havia circulação para lá do Geba, para localidades que davam pelo nome de Mero e Nhabijões, encontrei trilhos, granadas e carregadores de armas perdidas, e a partir destas provas iria começar um sangrento confronto, com perdas para ambas as partes.

A Annette pergunta-me como é que eu me dava com a população e com os meus soldados. Começo por lhe falar do relacionamento com os meus militares. Como se recordará, o meu Pelotão de Caçadores Nativos e a responsabilidade pelos dois pelotões de milícias estava a cargo de um furriel, com muito boas provas dadas no campo militar, vim a verificar no terreno. Mas entre nós houve imediatamente uma grande tensão.
Zacarias Saiegh
Logo na primeira noite, Zacarias Saiegh convidou-me a visitar o seu abrigo, queria oferecer-me um uísque, eu estava com o estômago praticamente vazio, tinha simulado à hora de jantar uma indisposição, pura mentira, repugnara-me a galinha quase crua e o arroz espapaçado, comera avidamente uma papaia e comprara uma lata de leite achocolatado e um pacote de bolachas. No abrigo de Saiegh deparei-me com uns frascos que me lembraram os nossos laboratórios escolares de Ciências Naturais e de Física, e com o ar mais calmo deste mundo Saiegh explicou-me que gostava de trazer relíquias quando nas operações ficavam guerrilheiros mortos, trazia um dedo, uma orelha… Sem erguer a voz, mas falando-lhe com firmeza, dei-lhe conta que tais práticas tinham acabado neste dia, viera para comandar e combater segundo normas civilizadas, em circunstância alguma consentiria em comportamentos de barbárie. Iniciava-se aqui um estado de afrontamento, passámos a ter relações respeitosas e pouco mais. No final do ano, Saiegh pediu o fim da sua comissão, voltou para Bissau, confessou-me mais tarde que não se adaptara à vida civil, assim que soube que o Comandante-Chefe, Spínola, estava a preparar a criação de uma primeira Companhia de Comandos Africana ofereceu-se como voluntário, foi promovido a alferes, encontrámo-nos várias vezes em Bambadinca, em 1969, essa Companhia de Comandos estagiava em Fá.
A despeito de tudo o que nos separava, chorei amargamente a sua morte, quando soube que tinha sido fuzilado em Porto Gole, creio que em novembro de 1977.

Deslocação na bolanha de Finete, dia de abastecimento, Zacarias Saiegh sentado no capô do burrinho

Durante este período de adaptação, fora das obrigações inquestionáveis, quis conversar com todos os militares, fossem elementos dos caçadores nativos ou das milícias. Chamara-me a atenção alguém dizer que Paulo Semedo, considerado um exímio apontador de dilagrama, era cristão de Geba. Mordido pela curiosidade, chamei-o à minha morança e conversámos. O seu português era perfeitíssimo, era estudioso, revelava uma calma inquebrantável, uma voz ciciante, um olhar direto, alguém cheio de autoconfiança.

Eu quero que saiba, agora que a nossa intimidade vai crescendo, e dado o dever que assumi com a Annette que deve estar completamente informada de tudo quanto se passou, que jamais esquecerei o dia em que o Paulo Ribeiro Semedo se acidentou. A fotografia que tem aí presente é de alguém a quem a cirurgia plástica escondeu horríveis destruições, o que mais avulta na imagem é o olhar do Paulo, houve um milagre da Oftalmologia, um dos olhos perdeu-se irremediavelmente, é aquele olho de vidro que nos olha fixamente, o outro foi sendo recuperado, daquele globo ocular saíram até pedaços de metal. Então o que se passou para ter havido tão tremendo acidente?

1.º Cabo Paulo Ribeiro Semedo
Um dia, durante um patrulhamento de reconhecimento, na região de Chicri, pode ver no mapa que entreguei, não está muito longe de Mato de Cão, ainda por cima num outro local frondoso que lembra Gambiel, com um palmar parece caminhar para o rio Geba e mais à frente uma mata densíssima. Percorríamos um terreno alcantilado quando o meu guia, o Soldado Cibo Indjai, detetou um trilho, começámos a percorrê-lo, a mata a adensar-se, pouquíssima luz entrava naquela floresta de galeria, caminhámos cautelosamente, procurando sinais de vida, ouvir vozes, mas a quietude era total, nem pássaros, nem javalis, parecia mundo abandonado, e subitamente avisto um grupo que caminha em passo estugado, à frente alguém que traz cofió na cabeça e espingarda a tiracolo, fixei a imagem de alguém que veste uma djilaba amarelada, Cibo Indjai e José Jamanca, que seguiam à minha frente, atiram-se para o lado, eu e aquele homem puxamos pela arma, inicio a fuzilaria, outros elementos atrás de mim avançam prontamente, é um tiroteio atordoador, o grupo que viera porventura de Madina dispersou, deixou o chão cheio de esteiras e sacos de alimentos, procurei iniciar uma perseguição, apanhou-se a arma daquele homem que deve ter conseguido fugir, deixou poças de sangue, aguentou os seus ferimentos e é quando estamos a tentar capturar esse e outros feridos que houve um estrondo medonho, seguida de uma enorme algazarra. Paulo Ribeiro Semedo terá cometido a negligência de ter misturado no seu carregador balas reais com balas fulminantes, ao disparar com bala real o dilagrama, não teve morte instantânea por milagre. Não lhe vou contar por carta os momentos horríveis que se seguiram, deu para perceber o ódio visceral entre guineenses e cabo-verdianos, o que é importante agora contar-lhe é que se salvou a vida do Paulo, chegou todo retalhado, crivado de estilhaços a Bissau, perdeu os músculos do braço esquerdo, braço inerte, em Lisboa salvaram-lhe um olho, recompuseram-lhe os traços da face, iremo-nos encontrar muitas vezes, nunca, repito, nunca, iremos falar do que se passou naquela manhã em Chicri. Talvez porque quando atravessamos aquela linha vermelha entre cá e lá, emerge uma atitude de pudor e profundo respeito sobre a vitória à morte, deixou de ter razão debater os comos e os porquês.

José Jamanca
Uma palavra sobre um amigo muito querido, José Jamanca, um jovem ávido de ler, vinha-me pedir livros, queria conversar, aspirava ser professor, prometi-lhe enviar uma carta para Bissau para ele ser chamado para um curso do Magistério Primário, demorou bastante tempo a resposta, o que permitiu cimentarmos uma estima mútua. Com a independência, perdi o rasto das minhas gentes, mais tarde contarei à Annette o meu regresso, vinte anos depois. Concluídos os meus estudos em Lisboa, ingressei no Ministério da Economia e um dia tive a grata surpresa de ser chamado à entrada, o contínuo anunciava que um senhor chamado José Jamanca me queria ver. Que alegria este reencontro! Depois da independência, o Zé conseguira uma bolsa para tirar em Leninegrado um curso de eletricista, era a sua profissão, na Guiné tinha um baixíssimo rendimento, viera para Lisboa, agora emprego não lhe faltava. Visitava-me com regularidade, e um dia desapareceu. Falando deste meu desapontamento a um outro querido amigo que a Annette irá ouvir falar muitas vezes, Cherno Suane, que fora meu guarda-costas por decisão dele, com o ar mais natural do mundo ele disse-me que o Zé morrera tuberculoso no Hospital da Ajuda. Continuo a contemplar esta fotografia que está no meu escritório e só vejo um homem bom, afável, belíssimo conversador, falando comigo de igual para igual, que desejava singrar, estudando afincadamente, era tão pedagógico que me dava detalhes sobre a montagem de uma instalação elétrica de um prédio que estava em construção no fundo da Calçada de Carriche. Todos os nossos amigos são insubstituíveis, é um lugar comum, é por isso que dói muito esta perda de alguém que pausada mas entusiasticamente queria que eu soubesse como é que a eletricidade se instala nos nossos prédios.

Gostava que a Annette fixasse estas duas fotografias que agora deixo. Este homem que sobraça uma bazuca dos tempos da II Guerra Mundial chama-se Adulai Djaló, mas é conhecido por Campino, faz questão de passear nas horas vagas em Missirá com um barrete de campino que alguém lhe ofereceu. A cobiça por um sem-número de objetos extravasa tudo o que a Annette puser na sua imaginação. Um dia bateu-me à porta o Soldado Mamadu Camará que me disse placidamente que gostava muito de uns sapatos que eu ali tinha, já que eu tinha dois pares de sapatos e só usava botas de lona ou botas de cabedal, perguntava se me podia comprar o par de sapatos a prestações, via-se à légua que ambos tínhamos uma patorra enorme. Desatei a rir, levou o par de sapatos de borla.

Quanto à última fotografia, vou a caminho do Xime, não chega o que faço no Cuor, temos que participar em operações. Neste dia, partimos para chegar a um local que dá pelo nome de Burontoni, uma boa estopada, o guia perdeu-se, andámos meio dia debaixo de uma chuva diluviana, a meio da tarde lá da avioneta recebemos instruções para voltar à base. Pela primeira vez na minha vida, subi para a caixa de um Unimog, e mesmo com a viatura aos saltos dormi uma boa soneca.

Minha querida Annette, não sabe a felicidade que me dá perceber que me entende, me quer acompanhar e que tem muitas saudades minhas, em breve estarei aí, permita-me que não lhe diga quanta alegria sinto em estar consigo. Bien à toi, chère Annette, Paulo Guilherme

 Adulai Djaló, bazuqueiro e grande destroçador de corações das bajudas de Missirá

A caminho de uma operação na região do Xime

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21133: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21156: In Memoriam (366): José Maria da Silva Valente (1946-2020), ex-Fur Mil Art da CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) (José Ferreira da Silva)

 IN MEMORIAM

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de hoje, dia 9 de Julho de 2020, com a triste notícia do falecimento de mais um dos nossos camaradas que combateram na Guiné, desta vez o ex-Fur Mil José Maria da Silva Valente, camarada de Companhia do José Ferreira e seu amigo para o resto da vida.

Caros Camaradas
Faleceu o Valente!


Aconteceu hoje, pelas onze horas, no Hospital de Oliveira de Azeméis. Foi um dos seus filhos gémeos quem me deu a notícia. Fiquei chocado e um pouco desorientado, com a notícia deste desfecho inesperado.
Logo ele, aquele militar que eu tanto admirei na nossa guerra da Guiné!
Logo ele, cuja acção e comportamento temerário suplantavam o apelido que teve por nascimento!

Pois, é esse mesmo, o José Maria da Silva Valente que tanto se dedicava à pesca e que há 4 anos caiu na Barragem de Castelo de Bode, de onde foi preciso tirá-lo quase inconsciente. Nunca mais ficou bem, devido ao ferimento sofrido na cabeça.

Para que conste no património das minhas memórias, caracterizei-o e registei-o no segundo livro que publiquei. E é esta pequena homenagem que lhe presto, através do texto que vai junto, pois quero recordá-lo na força da vida.

Nota: A família aconselha a que não nos desloquemos, pois que o funeral terá lugar somente com a presença de familiares próximos.

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2. Recordemos então, em jeito de homenagem póstuma, o que escreveu o José Ferreira acerca do seu camarada e amigo, José Maria Valente, em 13 de Janeiro de 2011[*]:


Outras memórias da minha guerra (6)

O Valente era mesmo valente

Foi dos últimos a integrar a nossa Companhia. Chegou a Viana do Castelo antes duas ou três semanas de partirmos para a Guiné. Era muito franzino, branquito e sem barba. Não pesava mais de 50 quilos e teria uns 155 centímetros de altura. Até metia pena, pensar que aquele imberbe, também iria para a guerra. Porém, conforme se veio a verificar, a aparência não condizia com a realidade. Curiosamente, alguns dias depois, já ele tinha “presa pela beiça”, uma adolescente que trabalhava na nossa Pensão. Todavia, ele demarcou-se logo e fez questão de nos comunicar que era casado e que já tinha dois gémeos, (acabados de nascer). Inicialmente não acreditámos, mas viemos a confirmar que era verdade.

Pois o Furriel Valente, oriundo de Oliveira de Azeméis, foi um militar de primeira. Cumpridor, corajoso e abnegado, ele, temerariamente, surgia na frente de combate sempre que “elas” começavam a cantar. Foram vários os combates em que ele se destacou. Por isso era muito respeitado na Cart 1689, especialmente pelos seus soldados que o seguiriam até ao inferno, caso fosse preciso.

Silva, Valente, Faria e Jaime - Passeando na Av. de Bissau


Valente também era dançarino


Em Bissau, vindos de férias. O Valente triste no regresso a Catió

Em zona de combate era normal distribuírem-se rações de reforço, para as refeições. Eram diferentes das rações normais. Dizia-se que na contabilidade da Companhia as rações normais eram pagas como refeição normal e as outras não. Ora isto dava azo a um lucro jeitoso, mas isso não era tão mau para os militares que, como eu, até preferia as rações de reforço. O problema maior surgia quando, estando fora do quartel, tínhamos a percepção de que não regressaríamos mais cedo, para não reivindicarmos a refeição quente. Alguns barafustavam, em surdina, mas isso era perigoso.

Estávamos instalados no cruzamento de Camaiupa, perto de Cufar. A coluna auto de abastecimento a este quartel já havia terminado há mais de duas horas e, portanto, a segurança ao itinerário já não era necessária. Nós aguardávamos ali o regresso das viaturas que nos transportariam para Catió. Elas só sairiam ao nosso encontro, depois da ordem do nosso capitão, que estava ali sentado, segundo se suponha, a empatar o tempo. Era o período mais quente do dia e já passava das 14 horas. O Valente, como o alferes estava ausente, reclamava junto do capitão que estava muito calor e que deveríamos regressar. Porém, o capitão aconselhava a esperarmos mais um bocado.

- Meu capitão, saímos de madrugada, estamos cansados e o que queremos é ir embora, para tomar banho, refrescar e descansar – reclamava o Valente. – Pois todos nós também – refutava o capitão. E pouco tempo depois, voltava o Valente: - Mas, ó meu capitão, nós não queremos comer, porque já nem temos fome e não estamos aqui a fazer nada. Isto é que não tem jeito nenhum.

O capitão apercebeu-se, pelo apoio geral, de que o Valente estaria a mexer numa ferida sensível e não deixou agravar mais a situação. Virou-se para o Valente e disse-lhe num tom mais elevado: - Se Você está assim com tanta pressa, não quer ir andando? - pensando que o Valente se calaria.

- Pensa que temos medo, meu capitão? - Atenção à minha Secção – gritou logo o Valente - Formem aqui imediatamente. – E continuou: - Firme, Sê..ooope. Meu capitão dá licença? O capitão já estava de boca aberta ao ver a reacção, parecia não ter outra alternativa, e respondeu: - Sim. E o Valente ordena: - Esquerda, aaarche… E lá seguiram.

Do cruzamento de Camaiupa até ao quartel de Catió eram cerca de oito quilómetros, com perigo de emboscadas.

O capitão, já preocupado, accionou logo a mensagem para as viaturas começarem o movimento.
Todos nós ficámos também preocupados com a situação, embora existissem militares emboscados, ao longo da estrada, em alguns locais estratégicos e mais perigosos, para protecção à passagem das colunas auto.

Quando alcançámos o Valente já ele estava às portas de Priame, a povoação dos milícias comandados pelo João Bacar Jaló, encostada a Catió.

E quando os carros pararam junto deles para entrarem, tiveram a resposta: - Agora? F...-se!

Silva da Cart 1689

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À família e amigos do nosso malogrado camarada José Maria Valente, os editores e a tertúlia deste blogue endereçam as suas mais sentidas condolências.
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Notas do editor

[*] - Vd. poste de 13 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7609: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Valente era mesmo valente

Último poste da série de 5 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21042: In Memoriam (365): António Lúcio Vieira (1943-2020), ex-Fur Mil Cav da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67) (Carlos Pinheiro)

Guiné 61/74 - P21155: Da Suécia com saudade (76): A propósito dos 'elefantes brancos' da cooperação sueca com a Guiné-Bissau: o caso do laboratório de saúde pública... (José Belo)






Bandeiras da Guiné-Bissau e da Suécia



1. Mensagem de José 
 Belo, régulo da Tabanca da Lapónia:


Date: quinta, 9/07/2020 à(s) 08:31

Subject: A propósito do texto publicado na Tabanca do Centro.

O artigo lá publicado sobre a Guiné [, vd. ponto 2] é, infelizmente, mais um dos infindáveis que hoje se podem encontrar nos arquivos da imprensa sueca das últimas décadas.


Saúde Pública, Educação, Agricultura, Pescas, Transportes, Indústria Alimentar, Refrigerantes, Investimentos e outras actividades bancárias..., as conclusões das Comissões Estatais suecas que as analisaram (demasiadamente tarde!) são quase fotocópias nos seus negativismos.

Houve, nos anos sessenta e setenta, um genuíno interesse, por parte das sociedades escandinavas, em preencher os vácuos criados por seis séculos de Administração colonial.

Seria incapacidade? Seria não vontade?

A política spinolista "Por uma Guiné Melhor", surgida a contra corrente de todo o desinteresse anterior, apesar de tardia, limitada por uma situação de guerra então já bem implantada, não dispondo das muito avultadas verbas necessárias, ainda conseguiu por um curto espaço de tempo criar condições sociais únicas cujos resultados nos deixaram antever o que poderia ter sido se a política do governo colonial tivesse seguido o caminho do desenvolvimento.

"Quanto mais atrasados , educacional e socialmente, mais fáceis de governar": poderia ter sido a definição concisa da Administração Colonial. Princípios não só aplicáveis em África mas também em Portugal.

Em ambos os locais os resultados finais desta política de "Iluminismo saloio" falaram por si. 
Muito fácil, e limitativo, o apontarem-se como raízes de todos os erros (muitos e graves) os tempos pós-Abril de 74.

Mas está "bagunceira" final foi criada por uma longa e abrangente história de criminosas incompetências políticas, sendo Goa um bom exemplo das mesmas.

Alguns (!) dos "actores " deste histórico final de época em 74, fossem eles militares ou civis, mais não foram que pequenos palhaços de um vasto circo de interesses internacionais que em tudo os ultrapassava e...ultrapassou!

Apesar de todos os tão saudosistas "velhos do Restelo ", as gerações do nosso querido Portugal de hoje poderão cometer muitos erros e...certamente o fazem! Têm no entanto uma possibilidade não disponível a tantas e tão sacrificadas gerações anteriores: podem fazê-lo em LIBERDADE !

Um abraço do J. Belo.

PS - Aproveitando esta “janela” climatérica criada pelas curtíssimas semanas do Verão lapónica, vou arrancar este fim de semana, com a minha mochila e dois cães, para mais uma longa passeata (aqui chamada de “vandring”) pelos infindáveis rios, lagos e montanhas locais.

Um facto óbvio é o de não haver aqui em todas as árvores uma tomada elétrica para recarregar o telefone que (recomendavelmente!!!) deverá ser usado com prioridades bem escolhidas.

É um pequeno detalhe a acrescer ao facto de por aqui não haver nem casas nem gente, o que torna por vezes as coisas... complicadas... Enfim, é da natureza do Árctico ser “a modos que” imprevisível.

A haver alguns simpáticos “piropos” de alguns comentadores, tentarei, da minha parte e dentro destes condicionalismos, dar a sempre mui respeitosa mas devida resposta.

2. Tabanca do Centro > Quarta-feira, 8 de julho de 2020 > P1240: Desventuras dos Amigos Suecos > Elefante branco em história negra

[Reproduzido com a devida vénia...]
 

Após a independência,  a Guiné procurou obter avultados apoios económicos da Suécia para o sector da saúde. Um moderno laboratório clínico fazia parte prioritária da lista apresentada.

O Departamento Estatal Sueco para o auxílio aos países em desenvolvimento (SIDA) estava dividido entre consultores com opiniões díspares.


Deveria ser um laboratório de elevado nível internacional? Ou antes um laboratório adaptado às realidades guineenses, capaz de funcionar com pelo menos cinco paragens de electricidade diárias e pessoal não especializado?Como o auxílio a ser prestado deveria respeitar os desejos dos recebedores... ambas as sugestões foram apresentadas ao Presidente guineense [, Luís Cabral].

Este, sem o mínimo de dúvida, decidiu-se pelo modelo de laboratório mais avançado… e de custo mais do que duplo!

Argumentou o Presidente ser este o modelo que correspondia ao seu sonho de uma Guiné desenvolvida em futuro próximo.

As realidades vieram dar razão aos críticos:
  • O funcionamento parava continuamente;
  • Os cabos eléctricos e os compressores queimavam-se regularmente;
  • O sistema de refrigeração avariava-se;
  • O fornecimento de água era irregular devido a problemas da canalização...

O laboratório passou a ser conhecido como o elefante branco…

A SIDA.desejava acabar com os apoios mas, graças aos esforços e muita dedicação dos trabalhadores do laboratório, este lá se foi arrastando até 1998.

Dá-se a guerra civil e o laboratório acaba por ser atingido por algumas granadas, iniciando-se um importante fogo.

Como pode o laboratório sobreviver a todos estes incidentes Como são hoje analisados os resultados?

Todos os apoios aos mais variados sectores da Guiné acabaram por falhar, decidindo a SIDA terminar com a cooperação económica no início dos anos 2000. (2,2 mil milhões! Tendo sido a Guiné o país que recebeu maior auxílio económico per capita).

A cooperação por parte do Instituto Sueco da Saúde Pública também terminou então. O laboratório passou a ser financiado por diversos Institutos Suecos de Investigação.

A universidade sueca de Lunde, através de um grupo de investigadores e do laboratório, tem vindo a estudar um tipo especial de HIV/Sida  que existe na Guiné, chamado de hiv-2.

Os resultados foram já apresentados em publicações científicas, tendo gerado grande interesse quanto a vir a ser criada uma vacina.

Hoje considera-se terem sido estes apoios económicos contra-produtivos para o país, o qual, deste modo, não sentiu necessidade de mobilizar os seus recursos próprios.

Ao terminarem os apoios,  criou-se um vazio económico, agora preenchido pelas avultadas verbas do tráfego internacional da droga.

Excerto da revista “OmVärlden”
Texto: Mats Sundgren

UTVECKLINGSSAMTALET
Avsnitt 7: Det svenska biståndets vita elefant
Publicerad: den 31 maj 2015 Uppdaterad: den 31 maj 2015


[Tradução / adaptação livre: José Belo; revisão / fixação de texto para efeitos de publicação no nosso blogue: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de julho de 2020
Guiné 61/74 - P21145: Da Suécia com saudade (75): Pedagogias várias para proveito do macho-ibérico: as representações sociais das... suecas, "muito dadas" (José Belo)

Guiné 61/74 - P21154: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (14): Álbum fotográfico - Parte VII

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 8 de Julho de 2020:

Boa Noite Carlos Vinhal
Aqui estou a enviar-te o meu Álbum de Fotos Nº 7.
Aproveito para cumprimentar toda a malta desta Tabanca e enviar um abraço aos Chefes de Tabanca a quem fico grato por me aturarem.
Albino Silva



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Nota do editor

Último poste da série de 30 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21122: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (13): Álbum fotográfico - Parte VI

Guiné 61/74 - P21153: Parabéns a você (1836): Adriano Moreira, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 2412 (Guiné, 1968/70) e Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Meânico Auto (Guiné, 1968/70)


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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21149: Parabéns a você (1835): José Zeferino, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 4616 (Guiné, 1973/74)

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21152: Historiografia da presença portuguesa em África (217): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
É sempre bom descobrir um relato palpitante que não faz parte do rol das bibliografias institucionalizadas. O Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira fora nomeado comissário encarregado da delimitação das fronteiras, viaja para a Guiné no início de 1888.
É um relato assombroso, na carta que anteriormente escrevera ao seu amigo Luciano Cordeiro verificou-se que não era tíbio nem dado a meias verdades, estas escreviam-se com o rigor da verdade, em frases nuas e cruas. A viagem começa em Bolama, e não se esconde o que se encontrou. O governador cedera-lhe um tugúrio para habitar e receber a delegação francesa, a descrição é chocante. São só dificuldades nos preparativos da expedição, são medos e hesitações. A descrição que ele faz da força pública de Bolama arrepia os cabelos. E quando se embrenha no mato, na região de Cacine, dá-nos parágrafos de grande beleza, desenha os pormenores das travessias e das florestas com vibrante paleta. Bom, a viagem está a dar os primeiros passos, preparem-se para as próximas emoções.

Um abraço do
Mário


Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (1)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia, 8.ª Série, N.º 11 e 12, 1888-1889, traz um importantíssimo trabalho do Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira, sócio da Sociedade de Geografia e que fora o comissário português encarregado de estudar a demarcação das fronteiras à luz da Convenção Luso-Francesa. É um documento precioso, na minha modesta opinião, um dos mais valiosos sobre a época em referência. Como se poderá ver neste e textos subsequentes. Costa Oliveira fora nomeado para dar execução ao tratado assinado por Portugal e a França, parte com o adjunto, um antigo secretário-geral da Guiné, o Sr. Augusto César de Moura Cabral.
O seu primeiro punhado de observações dirige-se à ilha de Bolama, como se transcreve:
“Para o comércio e comodidade pública, seria proveitosa a construção de uma ponte-cais, não só para servir ao tráfego de mercadorias, mas também ao desembarque de viajantes e outros indivíduos que são forçados a exibir quotidianamente o grotesco espectáculo de atravessar uns cem metros da praia às costas dos pretos, vindo alguns de casaco e chapéu alto, ou de grande uniforme, como acontece aos comandantes dos navios nacionais e estrangeiros, quando vêm a terra.
Em toda a vila de Bolama há três ou quatro casas construídas de pedra, melhor, de tijolo e argamassa, e com primeiro andar; as demais são edificações abarracadas, construídas em adobe e cobertas de telha ordinária ou de tela de madeira.
Os quartéis, vastos, limpos, bem ventilados e de construção elegante; o hospital e a igreja estão situados num platô relativamente elevado.”

Fala na urgência em se mandar construir o Palácio do Governo a uns três quilómetros da praia, ao norte da povoação, deixando próximo da praia, para comodidade do comércio e navegação, a Alfândega, e deixa bem claro que a sede do governo devia estar em Bissau, que ele diz ser a capital natural da Guiné Portuguesa. A posição de Bolama tinha sido no passado uma boa escolha, não devia ter sido a capital da província, mas era um ótimo lugar para aí se estabelecerem instalações comerciais, isto quando Buba e as muitas feitorias espalhadas pelas margens do rio Grande exportavam a mancarra, o marfim, a borracha, a cera e outros produtos. Ora, estes pontos comerciais tinham sido abandonados e ele diz claramente que não existe um único comerciante em Buba, Bolama tinha perdido toda a sua importância comercial.
E descreve a capital:
“As ruas da vila são estreitas e sujas, não sendo empedradas nem macadamizadas, transformam-se na estação chuvosa em verdadeiros lodaçais. As praias imundas e malcheirosas, por se fazerem nelas todos os despejos, são, no dizer de muitos, uma das principais causas da insalubridade da ilha.
O interior de Bolama é pouco acidentado e ocupado por Brames, Fulas, Manjacos, etc. Aqui se produz milho, mancarra, arroz, feijão, batata-doce e outros géneros de menor valor”.

Fortim de Cacheu, gravura do século XIX, Arquivo Histórico Ultramarino, imagem retirada do site Fortalezas.org, com a devida vénia.

O que se segue é escrito com serenidade mas não ilude a crítica acerada, ele vai falar da casa onde ficou instalada a comissão que irá demarcar as fronteiras da Guiné:
“Era um primeiro andar de aspecto pouco asseado. Entrava-se por um quintal pouco limpo, cheio de fardos e caixotes, barris vazios, arcos velhos de pipa, etc., pertencentes ao inquilino da loja; subiam-se uns toscos degraus de madeira que terminavam num largo patim, onde se viam em pitoresca promiscuidade, colchões velhos, quinas velhíssimas, potes de barro, candeeiros partidos, etc.; aranhas enormes povoavam os tectos e paredes, e os mosquitos alvoraçados por tão inesperada visita vinham zumbir aos nossos ouvidos como que prevenindo-nos de que à noite seríamos mimoseados por estranho concerto… Abria-se uma porta e penetrava-se numa pequena sala alumiada por pequenas janelas sem portas de vidraça. Foi nesta casa tão própria e tão decentemente mobilada que recebemos a comissão francesa”.

É neste ambiente insólito que o Capitão-de-Fragata arregaça as mangas e planeia a viagem que se segue, procura completar o pessoal da expedição. Todos se furtam a colaborar, uns afirmavam que o grupo seria atacado à mão-armada e roubado pelo gentio, logo que se internasse no mato; outros diziam que o célebre potentado do Futa Djalon não iria consentir que as duas comissões entrassem nos seus domínios sem trazer valiosos presentes ou pagarem elevadas tributações. Sem desanimar, ele requisitou trinta praças, obteve vinte espingardas, mil cartuchos e um enfermeiro.
Enquanto descreve os preparativos da exposição revela o que era a força pública de Bolama: “Um único batalhão de caçadores, composto na sua grande totalidade de deportados e vadios de Angola, e uma bateria de artilharia com quatro peças. Os soldados do Batalhão de Caçadores n.º 1, na generalidade, portavam-se pessimamente: ladrões, bêbados, desordeiros e insubordinados, e também gente com os pés e pernas ulcerados e purulentos”. Mais adiante dirá que desertaram dezoito recrutas que levaram três espingardas.

Travessia do rio de Canjambari, imagem retirada do site WikiMilim, com a devida vénia 

Em finais de janeiro chegou a Bolama a comissão francesa, dividiram tarefas, e cada uma delas se pôs ao caminho. Se todo o relato desta viagem já é vigoroso e revelador da efemeridade da presença portuguesa, o que se segue é de uma vibração empolgante, do melhor da literatura de viagens. A delegação portuguesa ruma para a Ilha Tristão, o objetivo é atingir Kandiafara, era aí que estava a delegação francesa (observe-se que esta povoação hoje da Guiné Conacri foi de grande importância no período da luta contra os portugueses, o PAIGC tinha aqui um incontornável ponto de apoio a tropas e logística). Da Ilha Tristão caminham para Biquese, importante povoação dos Nalus, situada na margem esquerda do rio Cacine, a oito milhas da sua foz. É um relato pontuado de luz e cor, e assim chegam ao encontro de Talibé, que é o chefe do Cantanhez.
Neste momento, o Capitão-de-Fragata faz um comentário muito ácido:
“A riqueza de Cacine, para mim, é bastante duvidosa e parece confirmar esta nossa opinião a facilidade com que a França desistiu dos seus imaginários direitos sobre aquele enorme estuário e o abandono do posto militar muito antes da delimitação!”. E o seu olhar dirige-se para as perdas, a contrapartida exigida pelos franceses fora excessiva, na negociação o governo entregara toda a região do Casamansa, os franceses queriam apoderar-se de Zinguinchor e da margem esquerda daquele formoso rio.
E diz sem ambiguidades: “Tivemos que ceder perante a retórica da França, apoiada por um milhão de marionetas”.
E prossegue a viagem para Kandiafara.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21127: Historiografia da presença portuguesa em África (216): A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (2) (Mário Beja Santos)