Em nossa opinião esta afirmação é válida mesmo no momento actual em que parece nítida a tendência para duplicar ou substituir a guerrilha rural pela guerrilha urbana.
Afinal, esta tendência não é mais do que a confirmação de que a guerrilha tem absoluta necessidade de terreno apropriado. E este terreno tanto pode ser a selva e o mato, como as cidades superpovoadas. O que a guerrilha precisa, quanto a terreno, é de bons esconderijos, boas possibilidades de deslocamento, bons terrenos de culturas alimentares, boas condições para defesa própria e para reacção aos ataques das forças da ordem.
É evidente que estas características não se encontram nem nos desertos, nem nas selvas impenetráveis, nem nas áreas desabitadas ou improdutivas. Mas tanto se podem encontrar em regiões rurais como nas grandes cidades.
Na Guiné as condições ideais para a guerra de guerrilha encontram-se no mato da quase totalidade da Província.
Terra plana e baixa, que na maré cheia o mar invade em um oitavo da sua superfície, a Guiné portuguesa é um território «sui generis» mas com certas semelhanças com o Vietname. As áreas alagadiças e pantanosas onde os nativos cultivam o arroz − as traiçoeiras «bolanhas» já hoje tão conhecidas dos nossos soldados − alternam com as matas fechadas onde o inimigo tem os seus refúgios e cujos escassos trilhos ele armadilha ou disfarça ardilosamente.
É nas «bolanhas» que os mil rios da Guiné se espraiam em fantasiosos meandros, tornando fatigante e extremamente longo o mais pequeno percurso. Para se avançar um escasso quilómetro é preciso por vezes andar dez ou mais. Ou então há que prosseguir com água e lodo não raro até ao pescoço.
O rendilhado destas margens lodosas e cobertas de tarrafo é substituído na zona interior por um mato espesso que se despenha sobre as estradas e quase sufoca os trilhos, facilitando a emboscada.
Junte-se a este esboço panorâmico um calor tórrido e uma humidade quase limite, e ter-se-á uma ideia das condições da luta na Guiné − favoráveis para um inimigo habituado ao clima e conhecedor do terreno, e desfavoráveis para o soldado acabado de chegar da Metrópole.
2-0 Inimigo
A partir de 1955, as autoridades inglesas e francesas dos territórios africanos, sob sua administração, começaram a permitir a formação de partidos políticos pelos nativos daqueles
territórios. Assim sucedeu na Guiné Francesa de então e no Senegal, territórios que confinam com a nossa Guiné, respectivamente a sul e leste e a norte.
Compreende-se fàcilmente que os nossos nativos residentes naqueles territórios se sentissem também inclinados a formar partidos políticos. Mas enquanto na República da Guiné só um vingou (o PAIGC), no Senegal constituíram-se vários que rivalizaram uns com os outros durante anos até que se fundiram num só (a FLING).
O PAIGC ou «Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde» é constituído por guineenses e cabo-verdianos, embora estes sejam em minoria numérica. No entanto, o seu chefe é o engenheiro agrónomo cabo-verdiano Amílcar Cabral que se fez rodear de diversos conterrâneos.
Há conhecimento de rivalidades no seio do partido entre cabo-verdianos e guineenses − o que não admira pois tais rivalidades são seculares, Em regra os guineenses queixam-se de ser colocados em posições subalternas.
No entanto, o indiscutível tacto político de Amílcar Cabral tem evitado dissidências importantes − o que, como se sabe, não tem acontecido nos partidos angolanos e moçambicanos cujos dirigentes andam sempre envolvidos em disputas mútuas. Inclusivamente o PAIGC ainda hoje não formou oficialmente qualquer governo provisório, porque Amílcar Cabral deseja evitar invejas e descontentamentos que poderiam enfraquecer o partido.
Quanto à FLING, é constituída apenas por guineenses. Uma das pedras da sua propaganda para desacreditar o PAIGC, é mesmo fazer acreditar que os guineenses do PAIGC são dominados pelos cabo-verdianos.
Ambos os partidos declaram desejar a independência da Guiné Portuguesa e a transferência do poder para os nativos, sem que isso signifique a abolição da língua portuguesa ou a expulsão dos brancos. Mas enquanto a FLING pretende alcançar este objectivo por negociações, o PAIGC pôs de lado os meios pacíficos e escolheu a luta armada.
Uma outra diferença é que a FLING apenas deseja a independência da nossa Guiné. Mas o PAIGC pretende também a de Cabo Verde, constituindo a independência da Guiné apenas uma primeira fase da sua luta que deve conduzir à constituição de um Estado (talvez federal) englobando as duas Províncias.
O PAIGC é um movimento revolucionário de tendências sociocomunistas. A sua estrutura, imitada da do regime guineense de Seku Turé, baseia-se no sistema soviético da preponderância do partido sobre o governo.
Pelo contrário, a FLING é de tendência moderada ocidental e por isso teve o apoio, ainda que muito limitado, do governo senegalês de Leopoldo Senghor.
Desde o princípio que o governo de Conakry deu total apoio ao PAIGC − o que não deve admirar pois trata-se de ideologias políticas idênticas. Aliás foi a mesma identidade que levou o governo de Dakar a admitir a FLING.
Simplesmente a FLING não conseguiu projecção alguma, dentro ou fora da nossa Guiné. E o PAIGC, há que admiti-lo, conseguiu. Não só a partir de 1964 passou a ser o único movimento armado actuando naquela Província, como o seu prestígio se foi cimentando no âmbito internacional e a tal ponto que o seu chefe já tem em conferências internacionais representado não só o seu partido como todo o movimento emancipalista africano.
Claro que a projecção alcançada pelo PAIGC não podia deixar indiferente o presidente senegalês Senghor, por um lado, pensou que, se acaso um dia o PAIGC viesse a tomar conta da vizinha Guiné Portuguesa, as relações com o Senegal seriam péssimas caso este país não tivesse ajudado o PAIGC na sua luta pela independência.
Por outro lado, o presidente senegalês, apesar de todo o seu evidente ocidentalismo, sentiu que a sua própria posição pessoal estaria ameaçada, caso não mostrasse interesse pela luta de emancipação levada a cabo pelo PAIGC e apoiada por quase toda a Africa negra e árabe.
Estes condicionalismos políticos levaram Senghor, talvez até contra sua vontade, a prestar auxílio ao PAIGC, partido em quem o presidente senegalês não tinha muita confiança, primeiro por ser apoiado pelo governo de Conakry (cujas relações com Dakar nunca foram boas), e depois porque Senghor receava possíveis ligações entre o PAIGC e os elementos da oposição política senegalesa.
Foi então estabelecido o acordo de 1966 que «legalizou» a permanência e o deslocamento dos grupos armados do PAIGC em todo o Sul do Senegal, fronteiriço com a nossa Guiné. Embora sem dar inteira liberdade ao PAIGC, este acordo facilitou enormemente o reabastecimento dos grupos actuando em toda a fronteira Norte da nossa Guiné e permitiu- lhes um refúgio seguro sempre que se sentiam mais apertados pelas nossas tropas.
Compreende-se que o aumento do apoio senegalês ao PAIGC correspondeu a uma ainda maior diminuição do interesse pela FLING cuja actividade cessou quase por completo.
Desta forma o PAIGC encontrou-se em condições ideais para prosseguir na sua actividade pois passou a contar com o apoio de ambos os Estados vizinhos da nossa Guiné. Além disso foi reconhecido pela Organização da Unidade Africana como o único movimento representativo daquela Província, sendo-lhe atribuída boa parte dos fundos do respectivo Comité de Libertação.
Continuou a receber auxílio financeiro em armamento e munições, não só da Rússia e seus satélites, como da China Popular. Aceitou médicos e quadros militares de Cuba e enviou centenas de guineenses para estágios e cursos em diversos países comunistas e socialistas.
Recebeu auxílio financeiro de certos Estados nórdicos com destaque para a Suécia. Finalmente, estabeleceu intercâmbio com a própria Frente de Libertação do Vietname, sabendo-se que vários vietcongs já têm estado na nossa Guiné exercitando os grupos armados do PAIGC.
Em face de todos estes auxílios e apoios, a única coisa que nos parece que deve admirar é a relativa ineficácia da actividade militar do PAIGC. De facto na Guiné encontram-se trocadas determinadas características da guerra de guerrilhas. Quer em número quer em armamento, o inimigo apresenta-se muito mais forte e desenvolvido do que é vulgar atribuir-se a simples guerrilheiros.
Em especial o armamento, dos mais recentes modelos russos, checos e chineses, chega mesmo a levar vantagem sobre alguns tipos nossos, com destaque para os canhões sem recuo, morteiros e bazucas. Qualquer pequeno grupo inimigo dispõe destas armas em abundância e não faz a menor economia em munições.
Felizmente, porém, a eficiência pessoal dos combatentes é que é muito pequena. Falta-lhes treino, decisão, quadros. Armas esplêndidas como eles têm, são mal apontadas tornando o seu rendimento nulo ou quase. Não é raro o inimigo atacar um aquartelamento com canhões e morteiros disparando centenas de projécteis dos quais só dois ou três acertam no alvo. E já se têm apreendido aparelhos de pontaria isolados, simplesmente porque o inimigo desconhece a sua utilização e prefere apontar os canhões e os morteiros à vista.
Convém, no entanto, esclarecer dois pontos. O primeiro que não podemos confiar em uma eterna inaptidão do inimigo para o combate. E o segundo é que, apesar do que dissemos, o PAIGC sabe perfeitamente o que está fazendo. Embora dentro das linhas gerais características da guerra revolucionária, o PAIGC actua de acordo com as condições peculiares da África e dos africanos.
Aliás, consideramos erro grave julgar que todas as guerras revolucionárias são idênticas quer na sua essência quer na sua concretização prática. Os dirigentes do PAIGC, embora ligados ao castrismo, ao sovietismo e ao maoismo, têm demonstrado uma originalidade própria que nos parece do maior interesse conhecer, para melhor lhe podermos fazer frente.
Dentro desta originalidade, o inimigo não deixa de dedicar a maior atenção à acção psicológica que é levada a cabo com notável sobreposição de meios.
Esta acção exerce-se entre a população nativa por meio de agentes especializados. Exerce-se por meio de uma estação emissora que, em algumas áreas da Guiné, se ouve melhor do que a nossa Emissora de Bissau. Exerce-se por via diplomática nos diversos países africanos e não-africanos, chegando fàcilmente à ONU onde, como se sabe, tem a maís favorável audição.
3 - A População
A variedade étnica da população guineense é bem conhecida. Num espaço restrito encontram-se doze ou quinze tribos tão diferentes umas das outras como os espanhois o podem ser dos franceses, dos italianos ou mesmo dos ingleses.
Estas tribos são idênticas apenas na sua aparência física e no seu atraso socioeconómico. Mas são diferentes nos seus usos e costumes, na sua língua, na sua religião, nos seus trajes e, até, na forma como reagiram à subversão e ao terrorismo.
De facto, enquanto Balantas, Sossos, Nalús e Biafadas se deixaram aliciar com certa facilidade, Felupes, Baíotes, Banhuns, Papéis e Fulas repeliram energicamente toda e qualquer ideia subversiva. E enquanto os Bijagós se mantêm alheios à luta, os Mandingas, os Mancanhas e os Manjacos dividiram-se, colaborando uns com o inimigo e outros connosco.
Aliás esta diferenciação não é taxativa. Há, por exemplo, inúmeros Balantas que nos continuam fiéis e com eles formámos até excelentes grupos de contra-guerrilha.
Cada uma das tribos citadas atrás ("raças» como lhes chamamos na Guiné) tem o seu «chão», isto é, a região onde habitam em maioria. O «chão» felupe, por exemplo, é a noroeste, na área fronteiriça com o Senegal, ao lado dos Baiotes e dos Banhuns. Os Papéis têm o seu «chão» na ilha de Bissau. Os Balantas − a raça mais numerosa da Guiné − estendem-se numa faixa central, desde a fronteira com o Senegal, ao norte, à fronteira com a República da Guiné, ao sul.
A grande mancha continental do leste é essencialmente povoada por Fulas, embora aqui e além surjam núcleos de Mandingas que, no entanto, vivem em maior número na faixa ao norte do Rio Geba separando Balantas de Fulas.
A localização das «raças» corresponde aproximadamente à área de actividade do inimigo. Por isso a região ao sul do Rio Geba, «chão» de Balantas, Biafadas, Nalus e Sossos, está afectada pela guerrilha. O mesmo se pode dizer da faixa central, povoada por Balantas e Mandingas.
Mas as ilhas atlânticas, a orla marítima ao norte do Geba e todo o leste estão por completo sob o nosso controle, o mesmo podendo afirmar-se da totalidade das povoações e seus arredores.
A fidelidade dos Fulas, já tradicional, é bem conhecida. Injustos seríamos, porém, com outras «raças» se, neste, aspecto, não as colocássemos ao mesmo nível dos Fulas. Há dezenas de aldeias (tabancas) que se defendem sozinhas ontra os ataques dos grupos inimigos. E há milhares de nativos encorporados voluntariamente nas forças armadas e batendo-se com o mesmo ardor e a mesma valentia dos soldados metropolitanos.
É esta participação voluntária da maioria dos nativos guineenses na luta contra o PAIGC, que confirma a inexistência de qualquer sentimento nacionalista verdadeiramente partidário da independência do território.
Não é difícil compreender que, se não tivéssemos do nosso lado a maior parte da população guineense, a nossa situação na Guiné seria hoje insustentável.
A única dificuldade com que deparamos na Guiné, no que se refere a recrutamento de militares e militarizados, é exactamente não podermos aceitar todos os que se oferecem. Os voluntários excedem de longe os contingentes necessários. Se são precisos 500 homens, aparecem 4 ou 5 vezes mais e os excluídos deploram vivamente a sua exclusão.
Homens já idosos metem empenhos para ir para a tropa ou para a ela voltarem. Se o inimigo ataca uma tabanca desarmada, a população foge e apresenta-s sistematicamente na unidade militar mais próxima pedindo armas para se defender.
Poder-se-a perguntar: mas então como conseguiu o inimigo aliciar e levar ou ter consigo alguns milhares de nativos?
O PAIGC conseguiu isso inicialmente, empregando o terror, a promessa sedutora ou o rapto. Além disso, nós não tínhamos o dispositivo militar que hoje temos e os nativos, sentindo-se desprotegidos, não tinham outra solução que não fosse seguirem os grupos armados inimigos.
Mas hoje a situação está praticamente estabilizada. Os nativos preferem até acolher-se à nossa protecção. E aqueles que foram com o inimigo para as matas ou para os países vizinhos, não voltam porque o PAIGC não os deixa, chegando a matar os que tentam regressar.
4 - As Nossas Tropas
Contam-se por muitos milhares os nativos guineenses que participam na luta contra o terrorismo, constituindo Companhias e Pelotões de Caçadores, Pelotões de Milícias e grupos de combate especiais, além de guarnecerem as tabancas em autodefesa e de servirem de guias.
As Companhias e os Pelotões nativos de Caçadores têm enquadramento metropolitano e são utilizados como quaisquer outras subunidades do mesmo tipo.
Os Pelotões de Milícias são constituídos por nativos a quem se dá uma instrução reduzida e que depois vão guarnecer determinadas posições e tabancas.
Os grupos de combate especiais actuam ou como os elementos dos Comandos ou como o próprio inimigo.
Os homens válidos das tabancas, mais ameaçadas pelas infiltrações ou ataques inimigos, são por nós armados mas não têm uniforme nem recebem vencimento algum. São volutários que defendem o que é seu e que não são em geral empregues fora das suas tabancas.
Com esta variedade de elementos obtém-se uma apertada malha ofensiva-defensiva cuja eficiência parece aumentar cada vez mais. Talvez para isso contribua o facto de os melhores elementos irem sempre percorrendo uma escala hierárquica que cada vez lhes concede maiores privilégios e garantias. Um nativo de uma tabanca que se distinga pode passar a milícia, daqui a soldado e por fim ingressar nos Comandos onde até mesmo os oficiais são guineenses sem necessidade de habilitações literárias especiais.
Compreende-se fàcilmente que desta forma os elementos africanos dos Comandos sejam nativos realmente bons no combate.
Claro que a envergadura do PAIGC não permite, pelo menos por agora, entregar a defesa da nossa Guiné apenas aos nativos guineenses. Daí que a Guiné disponha hoje de um certo número de unidades metropolitanas em reforço à sua guarnição normal.
A eficiência de combate destas unidades tem confirmado as tradicionais virtudes do nosso soldado, em especial no que respeita a coragem, poder de adaptação e espírito de sacrifício.
É evidente que nem todas as unidades apresentam a mesma rentabilidade. Posso porém afirmar que esta rentabilidade é melhor naquelas onde o espírito ofensivo está mais desenvolvido.
Uma norma que adoptei e com a qual não me dei mal, foi exactamente ir ao encontro do inimigo em vez de o esperar enterrado nos abrigos. Ficamos com certeza fisicamente mais cansados mas mais vale viver cansado que morrer repousado.
E é curioso que o espírito atávico do nosso soldado leva-o em tempo de guerra a preferir a actividade ofensiva a um repouso enganador e perigoso. Vi muitas vezes a satisfação no rosto dos soldados que conduzi ao encontro do inimigo, que obriguei a montar fatigantes emboscadas nocturnas quase consecutivas, que levei a regiões consideradas na posse do inimigo desde o princípio da guerra.
A verdade é que, neste ou em qualquer outro tipo de guerra, só a ofensiva recompensa. E mal de quem pense o contrário. Inclusive as baixas são sempre menos numerosas nas unidades que procuram o inimigo do que naquelas que se limitam a aguardá-lo.
Evidentemente que este espírito ofensivo não pode ser conduzido com imprudência. Há que calcular o risco que se corre. Há que ter imaginação no desenvolvimento das operações. Não se trata de ir pura e simplesmente para a frente pois não só o inimigo é numeroso e está bem armado, como o próprio meio é hostil.
De facto, em muitas operações, são mais as baixas causadas pela insolação, pela sede, pelas abelhas e pelos rios, que as causadas pelo fogo inimigo. Há que preparar bem as acções, dando aos nossos soldados o maior número possível de condições e sem esquecer que eles são por vezes desleixados e imprevidentes.
Inúmeros pormenores têm que ser pensados antes de se lançar uma acção, seja pequena ou grande. A fase da Lua, a altura das marés, a verificação do armamento e do equipamento, o cálculo das rações de combate, tudo isto é apenas uma parte do que um comandante, seja qual for a hierarquia, tem de tomar directamente a seu cargo.
Não poucas vezes deparei com soldados que, por inconsciência ou por comodismo, não levavam o cantil cheio, se esqueciam das redes contra as abelhas, ou tentavam aligeirar-se transportando poucas munições ou pouca comida.
Em outras ocasiões notei a tendência para abrandar a atenção e a vigilância só porque já se estava próximo do quartel, no regresso de uma acção; ou para seguir pelas picadas e trilhos (que em regra estão armadilhados) em vez de progredir a corta-mato (que é mais cansativo mas mais seguro); ou para não sintonizar os postos-rádio antes da partida; enfim, para uma série de pequenos cuidados de que dependem muitas vezes o êxito ou o insucesso.
De uma forma geral, porém, o nosso soldado torna-se motivo da nossa maior admiração e da nossa maior estima. Quem tem a honra de o comandar em combate, é insensívelmente levado a reconhecer que Napoleão tinha razão ao classificar o soldado português como o melhor do mundo.
Convém salientar que as unidades metropolitanas de reforço não se limitam a combater. Elas contribuiram para a melhoria que, em todos os campos, se nota hoje na Guiné.
Após quatro anos de permanência na Guiné, sempre no mato que é onde se conhecem melhor os nativos, sou levado a chegar à conclusão que a Guiné progrediu mais nestes últimos 8 ou 9 anos que nos anteriores 5 séculos.
E empenho nesta afirmação um pouco do meu orgulho de militar pois é exactamente à presença dos militares que a nossa Guiné deve o seu actual impulso.
No campo sanitário, por exemplo, a cobertura hoje existente deve ser das mais completas de toda a África. Diariamente, os médicos e enfermeiros militares observam e tratam milhares de nativos civis. Os casos mais graves são transportados de avião ou helicóptero para Bissau, sistema que talvez em nenhum dos novos Estados africanos seja ainda usado.
A eficiência da assistência sanitária na nossa Guiné tornou-se rapidamente conhecida nos países limítrofes, sendo normal a afluência aos nossos Postos Sanitários fronteiriços de muitos nativos senegaleses e até da República da Guiné.
Sob o aspecto educacional, também a tropa tem desenvolvido muito favorável actividade não só devido às muitas escolas que tem montado e mantido no interior da Província, como também porque oficiais e até seus familiares preenchem hoje lugares de professor no Liceu e nas Escolas Técnicas de Bissau.
As unidades de Engenharia estão dando também o seu contributo à Província, construindo pontes, estradas e edifícios.
E os serviços próprios do Comando-Chefe, secundando o esforço do Comando Militar e em colaboração com o Governo da Guiné, estão reordenando as populações, criando-lhes novas e mais adequadas condições de vida.
5 - O desenrolar da luta
O terrorismo na Guiné começou em meados de 1961, no noroeste, junto à fronteira do Senegal. Foi porém uma actuação esporádica, a cargo do Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Renovada em 1963, esta actuação acabou no princípio do ano seguinte devido não só à eficiente actuação das forças armadas, corno também à falta de receptividade da população nativa composta por F'elupes, Batotes e Banhuns.
Em Janeiro de 1963, o PAIGC iniciou a sua actuação armada no sul da Província, conseguindo infiltrar os seus grupos até ao Rio Geba. Em Julho desse ano passou o rio e levou a insurreição à região florestal do Oio. No princípio de 1964 chegou a Farim e atingiu a fronteira norte.
No final de 1964 grupos inimigos lançaram o pânico entre as populações do nordeste e começaram a actuar no Boé. No princípio de 1965 tentaram passar do Oio para o ector dos Manjacos, a oeste, mas foram mal sucedidos.
É curioso que as características da actuação militar inimiga na Guiné foram distintas das observadas em Angola. Nesta última província o inimigo levou a cabo actos terroristas de extrema crueldade mas os seus grupos quase não dispunham de armas aperfeiçoadas. Só anos depois do início é que apareceram as metralhadoras e os morteiros; ainda hoje as bazucas e em especial os canhões sem recuo são raros.
Na Guiné não houve a crueldade de Angola. Ninguém cortou pessoas aos pedaços. Quando muito, algumas orelhas decepadas a um ou outro nativo que se recusou a deixar-se aliciar.
Em compensação os grupos inimigos nunca utilizaram catanas ou canhangulos ("longas» como se chamam na Guiné) mas, logo desde o início, pistolas-metralhadoras, granadas e espingardas de guerra. Sucessivamente e em ritmo acelerado foram aparecendo metralhadoras, morteiros, bazucas, espingardas automáticas, canhões sem recuo, etc., tudo em número excepcionalmente elevado.
E tão elevado que em algumas apreensões de armamento feitas na Guiné como consequência de operações militares, chega-se a apanhar mais material do que em Angola se apanha num ano.
Convém esclarecer que o alastramento da actividade inimiga atrás citado não correspondeu ao movimento ofensivo característico da guerra clássica. Traduziu-se sim por simples infiltrações de grupos armados que depois de realizadas umas tantas acções, recuavam novamente para as bases de partida em território estrangeiro para se reabastecerem e descansarem.
Deixavam porém o vírus da subversão encontrando facilitada a sua actuação dada a falta de efectivos com que lutávamos. As populações nativas eram levadas a acreditar no PAlGC e, quando resistiam, eram compelidas a acompanhá-lo já que nós ainda não lhes podíamos prestar a devida protecção.
A partir de 1966, porém, a nossa malha militar apertou-se e a situação tendeu a estabilizar-se apesar do constante reforço do inimigo em homens e em armamento, e apesar do PAIGC ter passado a utilizar também o Senegal como base para os seus ataques.
Esta utilização facilitou, aliás, o alastramento da actividade inimiga para oeste, isto é, na direcção do importante sector dos Manjacos, e em toda a faixa fronteiriça do norte, desde Suzana até Cuntima.
É, no entanto, curioso que a faixa fronteiriça da metade leste da Guiné tem vivido em completa calma - o que se deve ao facto das populações senegalesas fronteiriças serem também da raça Fula, não consentindo na presença dos grupos armados do PAIGC. Já as da faixa central são compostas por Balantas e Mandingas, favoráveis ou pelo menos permeáveis à propaganda inimiga.
Já em 1968 os grupos do PAIGC vindos do Sul e Sudeste procuraram infiltrar-se até à estrada Bambadinca-Bafatá-Nova Lamego-Piche mas foram repelidos. Mantiveram, porém, a pressão sobre a cintura de tabancas organizadas em auto-defesa, flagelando-as periodicamente mas nunca se atrevendo a ultrapassá-las com receio de lhes ser cortada a retirada.
6 - A situação actual
Por motivos vários entre os quais avulta a deficiência de informação pública, a situação na Guiné é em geral mal avaliada na Metrópole, havendo a tendência para se considerar muito pior do que na realidade está.
De facto, na maior parte da Guiné as populações fazem a sua vida normal não havendo sinais visíveis da guerra. É o que acontece em todas as ilhas atlânticas (incluindo a de Bissau), em grande parte do «chão» dos Manjacos e na quase totalidade da massa continental do Leste.
No resto do território o inimigo faz as suas incursões de surpresa mas regressa logo ou às bases que tem no Senegal e na República da Guiné, ou aos refúgios das matas mais espessas.
Dentro da política que resolvemos seguir, as bases exteriores do PAIGC são verdadeiros santuários pois nós não as atacamos visto estarem em país estrangeiro. Mas os refúgios inimigos no interior da Província andam sempre a mudar pois as nossas tropas procuram-nos constantemente , quando os detectam, atacam-nos e destroiem-nos sistemàticamente.
Desta forma, é totalmente falso que o PAIGC ocupe realmente e em permanência qualquer parcela da Guiné. Nós vamos a qualquer ponto da província e só em pequenas áreas precisamos, para lá ir, de mais de uma Companhia.
Sem dúvida que o inimigo dispõe de numerosos grupos todos excelentemente armados. Sem dúvida também que a sua actividade é grande, especialmente em flagelações nocturnas a aquartelamentos e povoações, em colocação de minas anti-pessoal e anti-carro e em emboscadas contra as nossas forças, utilizando nestas acções um considerável potencial de fogo.
A verdade, porém, é que, como dissemos, a eficiência militar do inimigo é felizmente muito pequena - isto apesar de já ir possuindo um treino de sete ou oito anos. Regra geral o inimigo debanda após as suas acções, não conseguindo explorar qualquer sucesso inicial obtido pela surpresa. Casos há em que as nossas guarnições, depois de suportarem flagelações de duas e mais horas, ficam sem munições à espera de um assalto inimigo que, afinal, quase nunca se dá.
Por outro lado, os nossos soldados, pretos e brancos, adaptam-se fàcilmente à situação.
Não vamos aqui afirmar que a vida na Guiné de hoje, nas áreas contaminadas, seja boa. Tenho 4 anos dessa vida. Mas se uma unidade adoptar sistemàticamente um espírito ofensivo, as suas possibilidades de viver relativamente sossegada são grandes pois o inimigo passa a receá-la.
Se quisessem os resumir a actual situação militar na Guiné diríamos que o Inimigo:
a) Executa incursões de surpresa em quase todo o Sul, na faixa fronteiriça entre Suzana e Cuntima, e em parte da região entre os rios Cacheu e Geba;
b) Esforça-se por se infiltrar no enorme sector dos Fulas, exercendo pressão em especial a partir do Sul Sudeste, mas sem que até agora tenha obtido qualquer êxito pois as populações, armadas em auto-defesa e reforçadas pelas nossas tropas, opõem-se abertamente aos seus desígnios;
c) Fazendo base em território estrangeiro, flagela as nossas povoações e aquartelamentos fronteiriços,embora quase sem nos causar baixas, dada a falta de eficácia dos seus fogos.
Quanto às nossas tropas:
a) Ocupam todas as povoações da Guiné e seus arredores;
b) Repelem com relativa facilidade todas as acções inimigas;
c) Impedem o alastramento da subversão e da actividade militar inimiga para fora das zonas inicialmente contaminadas;
d) Executam acções e operações ofensivas em toda a província.
7 - Perspectivas
Em face do que dissemos atrás, quais são então as perspectivas que antevemos para a luta na nossa Guiné?
Em nossa opinião, o PAIGC já deve ter compreendido que, a não ser que empregue meios, forças e tácticas diferentes, jamais poderá ganhar militarmente a guerra.
Por outro lado, nós também temos de compreender que, enquanto o Senegal e a República da Guiné constituirem santuários para o inimigo, nunca mais poderemos acabar com a guerrilha. Ainda que empurrássemos o PAIGC até às fronteiras, não poderíamos depois impedir que ele se infiltrassem novamente dada a característica especial dos grupos de guerrilheiros.
Portanto, no que nos respeita, o problema não é só militar, é também político: desde que consigamos levar os governos de Dakar e de Conakry a alterar a sua política de protecção ao PAIGC, este não terá quaisquer possibilidades militares de se manter.
O difícil está porém em conseguir alterar a política do Senegal e da República da Guiné, países que estão solidamente integrados na engrenagem internacional de apoio aos movimentos subversivos.
Quanto ao PAIGC, ele sabe que conta com largo apoio internacional quer no campo político quer no auxílio financeiro, social e militar.
Sucede porém que, apesar de todo este auxílio, o PAIGC não pode, sem grave risco próprio, prolongar muito mais tempo a luta. As condições em que actuam os seus grupos armados são duríssimas, mesmo para nativos africanos habituados a poucas ou nenhumas comodidades. Falta-lhes comida, roupa, alojamento e remédios. Só o armamento e as munições são abundantes, embora sempre mal conservados.
Além disso quer os guerrilheiros quer a população que está sob seu controle, começam a dar sinais de saturação e de desilusão. Começam a não acreditar em Amílcar Cabral que todos os anos lhes promete ganhar a guerra, sem nunca o conseguir.
Com o cansaço físico e moral, surge mais nítida a secular rivalidade entre os guineenses e os cabo-verdianos que militam no PAIGC. Mais difícil se torna portanto a direcção do partido que tende a perder coesão.
Ora Amílcar Cabral sabe tudo isto. E sabe que ou acelera a luta ou a perde.
Admitimos por isso que o PAIGC esteja realizando ou vá realizar novos e mais profundos esforços no sentido de tornar insustentável a nossa posição na Província.
Estes novos esforços serão desenvolvidos em todos os campos desde o diplomátíco ao militar. O colapso repentino do Biafra não pode deixar de favorecer o PAIGC, em especial quanto a armamento. Outro tanto sucederá se a guerra do Vietname acabar pois os contactos entre o PAIGC e o Vietcong já se encontram estabelecidos, como dissemos,
No entanto, se por um lado temos obrigação de admitir o reforço da actividade geral do inimigo - tanto mais que sabemos ele estar sendo apoiado pela OUA e por grande
parte dos países membros da ONU -, por outro lado não podemos deixar de reconhecer as tremendas dificuldades com que o PAIGC vai continuar a deparar se insistir em cumprir o programa que se propôs.
De facto, em primeiro lugar, há que contar com a nossa determinação em defendermos o solo cinco vezes centenário da Guiné Portuguesa. Em segundo lugar, é natural que a um esforço maior do inimigo respondamos com outro esforço também maior. E em terceiro lugar, não vemos como, nos anos mais próximos, o PAIGC terá possibilidade de levar a Cabo Verde a guerra que nos move na Guiné, dadas as características para nós favoráveis que o arquipélago apresenta.