Mostrar mensagens com a etiqueta Missionários. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Missionários. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25904: Notas de leitura (1723): Breve história da evangelização da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Estamos chegados ao Estado Novo e os autores dão-nos conta das atividades desenvolvidas desde a Missão da Guiné, constituída em 1940, até praticamente aos finais do século XX. Esta Missão foi desafetada do bispado de Cabo Verde, começaram grandes desafios para Franciscanos e para as Franciscanas Hospitaleiras, estas ficaram à frente dos Asilos de Bor e Bafatá. Logo a seguir vieram os missionários italianos de duas ordens, dinamizou-se o trabalho na leprosaria de Cumura. Dinamizou-se a atividade educativa que, evidentemente, foi fustigada pela guerra de libertação, e que levou ao encerramento de muitas escolas missionárias. Com a libertação, Roma decide criar a diocese de Bissau, aumentaram as vocações sacerdotais e religiosas, nasceram novas missões, a evangelização abriu as causas da saúde, educação e da promoção da mulher, uma evangelização que abarca hospitais, uma leprosaria, um liceu diocesano e duas escolas profissionais médias. Esta monografia tem o mérito de atualizar o trabalho de referência do padre Henrique Pinto Rema.

Um abraço do
Mário



Breve história da evangelização da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Já aqui se deu amplo acolhimento à obra magna do Padre Henrique Pinto Rema, "História das Missões Católicas na Guiné", dela até coligi um resumo para um livro que tenho em preparação sobre os textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. Mas também não se pode descurar outras iniciativas como esta "Breve História da Evangelização da Guiné", da autoria de dois franciscanos devotados a estudos guineenses. Trata-se de uma edição do Secretariado Nacional das Comemorações dos 5 Séculos, datada de maio de 1997. Os autores explicam o significado daquele ano jubilar, tem a ver com a deslocação de D. Frei Victoriano Portuense, há precisamente 300 anos, saiu da sua sede de diocese, na Cidade Velha, na ilha de Santiago, e foi visitar as comunidades cristãs da Guiné; o significado também abrange os 20 anos de existência da Diocese de Bissau.

Já estamos em plenos anos 1940 e 1950. Viviam-se tempos anteriores ao Concilio Vaticano II, a tolerância dialogante sobre valores existentes em todas as religiões eram palavras desconhecidas. A evangelização na Guiné não escapava à regra – religião única era apenas a cristã. Com boa vontade, talvez possamos encontrar duas pequenas exceções a esta regra: o interesse dos Franciscanos no século XVIII em conhecer os usos e costumes dos Pepéis da ilha de Bissau (o desejo de conhecer é o primeiro passo para o respeito e pelo diálogo subsequentes); na morte de Becampolo Có em Bissau, em finais do século XVII, como era cristão o corpo do rei foi sepultado na capela do hospício franciscano em Bissau – os pepéis condescenderam, mas exigiram e conseguiram obter dos frades que nas cerimónias do choro que se pudessem matar vacas, bem como beber e comer à vontade.

Falemos agora da Missão da Guiné, 1940. Em 4 de setembro desse ano, o Papa Pio XII separou definitivamente a Missão da Guiné do bispado de Cabo Verde, ao qual estivera ligado desde 1533. Autónoma nos seus destinos, já com duas congregações religiosas permanentes (Franciscanos portugueses e Franciscanas Hospitaleiras portuguesas) e com a perspetiva de se poder abrir a outras congregações, com uma nova organização missionária voltada para a evangelização e promoção social, a Missão da Guiné trazia amplas expetativas.

Em 1932, os Franciscanos portugueses foram quase obrigados a regressar onde, nos séculos anteriores tinham estado mais de 170 anos seguidos. Regressaram e estabeleceram quartel-general em Bula, sendo durante alguns anos os únicos missionários presentes no território. Mas “arrastaram” consigo as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras portuguesas (logo em 1933), primeiramente em Bula e depois nos Asilos de Bor e Bafatá e no Hospital Central de Bissau. A seguir chegaram os missionários estrangeiros, os primeiros foram os missionários do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, e com o seu precioso auxílio foi possível garantir melhor a assistência religiosa permanente a Geba-Bafatá, Bambadinca, Catió, Farim e Suzana. Em 1955, juntaram-se também à missionação os Franciscanos da província de Santo António de Veneza. Deste grupo faziam parte D. Settimio A. Ferrazzetta, o primeiro bispo de Bissau, e Frei Epifânio Cardin, que trabalhou na missão de Cumura. Em 1969, assumiram a direção da leprosaria. Mais tarde estenderiam a sua ação de bem fazer e de evangelização até Bolama, Biombo, Nhacra e Bissau. Também os Franciscanos italianos virão a “arrastar” consigo as Irmãs Franciscanas do Coração Imaculado de Maria, que chegarão à Guiné em 1970, trabalhando primeiro na leprosaria de Cumura e posteriormente em Quinhamel. Em 1969, chegavam à Prefeitura Apostólica da Guiné as Irmãs do Instituto do Santo Nome de Deus, italianas, que se instalaram em Suzana e em Bubaque até 1993.

A ação educativa missionária ir-se-á revelar do maior interesse. A partir da entrega do ensino primário não-oficial às Missões, muitas escolas espalharam-se pelo interior da Guiné. Para o regular funcionamento das aulas, os missionários socorreram-se de professores catequistas, formados sobretudo das escolas das missões de Bula e Bafatá.

Na assistência social e sanitária, foi igualmente relevante o papel das missões católicas em Bor, Bafatá, Bula, Bissau, sem esquecer os internatos menores de Bubaque, Mansoa, Quinhamel e Cumura. A guerra de libertação, como é facilmente compreensível, causou uma enorme perturbação da atividade missionária da Guiné. Muitas escolas missionárias tiveram de fechar as portas por falta de gente que as fizesse funcionar.

E assim chegamos à Diocese de Bissau (1977-1996). Pela Bula Rerum Catholicorum, de 21 de março de 1977, o Papa Paulo VI elevou a Prefeitura Apostólica da Guiné à dignidade de diocese. A sede ficou em Bissau, o seu templo principal é a igreja catedral de Nossa Senhora da Candelária.

Houve um fomento claro e decidido de vocações sacerdotais e religiosas no país. Em 1977 não havia um sacerdote autóctone, em 1997 eram 15. Após 1977 abriram-se mais 6 paróquias em Bissau e novas missões em Tite, Buba, Empada, Bedanda, Ingoré, Cacheu, Caió, Bajob, Betenta, Bigene, Nhoma, Bissorã, entre outras. É uma evangelização que não esquece a promoção social: na saúde, educação e promoção da mulher. Além de 3 hospitais de maiores proporções e de uma leprosaria, há uma trintena de pequenos centros onde diariamente as pessoas acorrem e onde bebés desnutridos ou adultos com toda a sorte de doenças ou problemas vêm procurar alívio.

Por fim, os autores resumem as atividades da educação e da promoção da mulher. A diocese possuiu já um liceu diocesano e duas escolas profissionais médias. Mais de 200 guineenses estudaram fora da Guiné com bolsas obtidas pela diocese, graças aos Amigos das Missões. Hoje as bolsas continuam a ser dadas, mas para estudos dentro do país, no liceu João XXIII e nas faculdades de Medicina e Direito em Bissau.

Trata-se pois de uma monografia que reatualiza o indispensável trabalho do padre Henrique Pinto Rema.


Igreja de Catió, agosto de 1973. Imagem retirada do blogue Arquivo Digital, com a devida vénia
Festa religiosa de Nossa Senhora de Fátima, Padroeira de Catió, 2014
Igreja de Nova Lamego (hoje Gabu), imagem retirada do nosso blogue
Imagem tirada durante a celebração de uma missa no Gabu, 2014
Administração do Crisma a jovens da Paróquia de Santa Isabel de Gabu
Cerimónia presidida pelo segundo bispo de Bissau, D. José Lampra Cá
_____________

Notas do editor:

Vd. post anterior de 26 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25882: Notas de leitura (1721): Breve história da evangelização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25896: Notas de leitura (1722): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25859: Notas de leitura (1719): Breve história da evangelização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continua-se a dar cumprimento a fazer reportório de toda a literatura para que seja alusiva à presença portuguesa na Guiné, a dimensão missionária não podia ser descurada. Recordo ao leitor que a obra magna continua a ser o memorável trabalho do Padre Henrique Pinto Rema intitulado a História das Missões Católicas na Guiné, mas mais recentemente um escol de franciscanos tem vindo a publicar obras, e delas temos feito referência. Mas há investigação espúria, recordo também que já aqui se aludiu em recensão o percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira, um jesuíta que deixou cartas relativas à missão de Cabo Verde entre os anos de 1604 e 1612.

Um abraço do
Mário



Breve história da evangelização da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Já aqui se deu amplo acolhimento à obra magna do Padre Henrique Pinto Rema, História das Missões Católicas na Guiné, dela até preparei um resumo para um livro que tenho em preparação sobre os textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. Mas também não se pode descurar outras iniciativas como esta Breve História da Evangelização da Guiné, da autoria de dois franciscanos devotados a estudos guineenses. Trata-se de uma edição do Secretariado Nacional das Comemorações dos 5 Séculos, datada de maio de 1997. Os autores explicam o significado daquele ano jubilar, tem a ver com a deslocação de D. Frei Victoriano Portuense, há precisamente 300 anos, saiu da sua sede de diocese, na Cidade Velha, na ilha de Santiago, e foi visitar as comunidades cristãs da Guiné; o significado também abrange os 20 anos de existência da Diocese de Bissau.

Começam os autores por elencar as primeiras tentativas de evangelização, mesmo antes da criação da Diocese, em 1533, há prova de que alguém levou a mensagem evangélica a estes povos. Com efeito, o Papa Pio II nomeou Frei Afonso de Bolonho, franciscano, como primeiro responsável do grupo de missionários que partiram para a missão de Guiné. As dificuldades foram inúmeras, estava aceso o conflito entre Portugal e Castela por causa da administração das ilhas Canárias, um problema que só foi solucionado com a celebração do Tratado de Toledo, em março de 1480. Sobre a atividade deste religioso e dos seus 16 companheiros em terras da Guiné nada em concreto se sabe, a documentação é inexistente.

O território dos rios de Guiné foram demarcados a partir da fundação da Diocese da Guiné e Cabo Verde. Pela Bula Pro Excellenti, de 1533, foi criada a Diocese, englobando, além das ilhas de Cabo Verde “o espaço de 350 léguas de terra firme, a começar no rio Gâmbia, junto ao promontório ou lugar de Cabo Verde, continuando até ao promontório ou lugar chamado Cabo de Palmas e rio de Santo André”. Os autores fazem uma descrição dos povos e das regiões da Guiné ao tempo, recordam que os animistas creem no Irã, para eles a verdadeira força espiritual; os muçulmanos estendiam-se principalmente pelo interior, o que facilitou o contacto dos portugueses com as etnias animistas da costa. Contactos que se estabeleceram com os Balantas, Brames, Felupes e Papeis, a um nível comercial. Nesta época os comerciantes portugueses foram-se fixando sucessivamente em Arguim, na ilha de Goreia, Ziguinchor, Cacheu, Bissau e Buba. O nativo africano entendia bem a linguagem do comércio, mas de modo algum aceitava o estatuto de submissão.

No capítulo subsequente, os autores dão conta do que foi a evangelização entre a data da presumível chegada portuguesa à região (1446) até à criação da Diocese, em 1553. Apareciam esporadicamente os padres de visitadores que alimentavam a fé dos cristãos mas diz-se claramente que ao longo de mais de dois séculos a missionação da Costa da Guiné não foi preocupação da Igreja Católica. E daqui os autores transitam para a narrativa das atividades da diocese até à criação da missão contemporânea em 1941. Alertam o leitor para a efémera presença portuguesa em toda a faixa da África Ocidental, explanam as primeiras tentativas de fixação de missionários nas terras da Guiné, recordam os clérigos seculares, os capuchinos franceses e espanhóis e os jesuítas. Alguns pontos são controversos, veja-se este exemplo. Não há notícias da estadia dos Carmelitas Descalços na Guiné, em todo o século XVI, escreve o Padre António Brásio; mas o jesuíta Padre Fernão Guerreiro assegura que nessa época houve missionação na região do Rio Grande de Buba. À cautela, mantém-se a dúvida. É também referido o nome do Padre João Pinto, designado por Padre Jalofo, terá sido o primeiro sacerdote nativo da Guiné. Depois de se fazer referência aos franciscanos, capuchinhos franceses e espanhóis, seguem-se comentários à missão dos padres jesuítas e depois dá-se nota dos franciscanos na Guiné nos séculos XVII e XVIII. Com alguma propriedade, pode falar-se das cristandades de Cacheu, Farim e Geba a partir do século XVII e também está documentada, à época, a comunidade de Bissau e dos Bijagós. É neste contexto que ganha destaque a visita pastoral de D. Frei Victoriano Portuense, ainda no século XVII (recorda-se que ele chegou à diocese em 1688) fez duas viagens ao continente.

O século XVII foi o século da expansão missionária mas o mesmo não se poderá dizer do século XVIII, os autores avançam as hipóteses sobre este decréscimo missionário destacando as ideias do iluminismo. Impõe-se agora uma referência ao clero secular, os autores fazem uma apreciação até aos meados do século XX e dão uma especial ênfase àquele que foi o Vigário-Geral da Guiné, dela nativo, o Padre Marcelino Marques de Barros, iremos de seguida falar desse período.

Encontrou-se num documento um quadro histórico desta fase da missionação e terminamos hoje com este conjunto de datas que podem ajudar o leitor a melhor entender os eventos fundamentais da evangelização:
“Embora desde 1533 esteja criada a Diocese de Cabo Verde, deverá dizer-se, no entanto, que é sobretudo a partir de 1660 (fixação dos Franciscanos portuguese em Cacheu, e posteriormente em Bissau) que a evangelização da Guiné se começa a processar com caráter de suficiente regularidade.
Essa evangelização desenvolveu-se em estilo notoriamente itinerante, ou seja, com alguns poucos pontos de fixação (sobretudo nos hospícios de Cacheu e Bissau), e daí irradiando depois para diferentes pontos do território, com a agravante de que, até meados do século XVIII, a itinerância dos frades se espalhava muito para lá da Guiné-Bissau atual, atingindo a sul as costas da Serra Leoa e a norte as do Senegal. Os inícios da evangelização no Senegal, Guiné-Conacri, Serra Leoa, etc., devem bastante a estes primeiros missionários itinerantes, partindo da atual Guiné-Bissau.
O número dos missionários franciscanos da primeira missão franciscana (1660-1834) foi sempre reduzido, embora permanente, raramente ultrapassando a dezena de frades, espalhados por Cacheu, Farim, Geba, Bissau, Ziguinchor.”

Esta referência foi retirada do blogue Intelectuais Balantas na Diáspora, com a devida vénia.

D. Settimio Ferrazzetta (1924-1999), 1.º Bispo da Guiné-Bissau
Imagem de uma reunião da Associação das Mulheres Católicas Guineenses, em tempos de pandemia
Jovens cristãos e a sua catequista

(continua)
_____________

Nota do editor

Último post da série de 16 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25847: Notas de leitura (1718): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1870 a 1872) (16) (Mário Beja Santos)

domingo, 26 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25564: In Memoriam (503): Lino Bicari (1935-2024) foi a sepultar ontem, no Alvito, Alentejo... "Senti a partida deste bom amigo, que encontrei na Guiné, e desejo-lhe o descanso eterno" (Arsénio Puim, ex-alf grad capelão, BART 2917, Bambadinca, mai 70/mai71)


Recorte do jornal "Público", de  24 de setembro de 1990... Do Lino Bicari, depois de o entrevistar em Lisboa (onde se fixou em 1990, para uma "última missão"),  disse o jornalista João Paulo Guerra: (...) "Não é um homem desiludido, mas um homem amargo que hoje, à margem da Igreja e do Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e militante do PAIGC." (...)


1, Mensagem do Arsénio Puim:

Lino e Arsénio, em maio de 2019,  na ilha de
São Miguel, Açores. Um reencontro ao fim de 48 anos.
Conheceram-se em Bafatá, em 1971.
Foto (e legenda): © Arsénio Puim  (2019).
Todos os direitos reservados.
 [Edição e legendagem complementar:
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Data - sábado, 25/05/2024, 22:46 
Assunto - Lino Bicari

Caro amigo Luís

Primeiramente, dou-te a saber - talvez já saibas - que o Lino Bicari faleceu, como já se esperava. Sepultou-se ontem em Alvito, onde tinha residência.

Falei com a Fernanda acerca 
do texto publicado no blogue (*), prontificando-me para lho enviar por email. Ela disse-me que podia ter acesso ao mesmo indo diretamente ao blogue. Missão cumprida, portanto.

Posso também dizer-te que o jornalista  
António Marujo está a preparar 
uma reportagem sobre  o Lino, a publicar muito em breve.

Digo-te que senti a partida deste bom amigo, que encontrei na Guiné. 
E desejo-lhe o descanso eterno. (**)

Um grande abraço. Arsénio Puim

2. O jornalista António Marujo, no jornal diário digital "7Margens" já  deu  a notícia da morte do amigo do Arsénio Puim, nestes termos:

Missionário e médico da guerrilha, padre e professor

António Marujo | 25 Mai 2024


(...) O antigo missionário italiano e depois militante do PAIGC, na Guiné-Bissau, Lino Bicari, morreu na última quinta-feira no Alvito (Alentejo), onde residia desde 1990. Era “um homem bom, simples, de altos ideais humanos e com um currículo rico, corajoso e autêntico”, diz dele o amigo Arsénio Puim, também antigo padre, que o conheceu na Guiné quando foi capelão militar em Bambadinca, no início da década de 1970. Tinha 88 anos.(...)


3. Descobrimos este amigo do nosso Arsénio Puim só em 2018, numa pesquisa pela Net (**). Nunca o conhecemos pessoalmente. Falámos uma vez ao telefone, trocámos alguns mails por causa dos nossos capelães, expulsos do CTIG, o Mário de Oliveira e o Arsénio Puim (de quem ele ficou amigo, na Guiné; nunca conheceu o Mário de Oliveira) .  

Nascido em 1935, na Sicília, viveu  23 anos na Guiné, primeiro, como missionário católico (1967-71)  e depois, mais tarde, a partir de 1973, como militante do PAIGC: era  o único estrangeiro que tinha o estatuto de "combatente da liberdade da Pátria" (sic), mas nunca pegou em armas. Serviu o PAIGC e a Guiné-Bissau nas áreas onde se sentia competente e útil: a educação e a saúde. Radicou-se em Lisboa em 1990. Tinha como "última missão" criar uma espécie de "Casa do Estudante" pós-colonial...

O jornalista João Paulo Guerra fez, na altura, uma nota biográfica deste homem: 

(...) "O padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários.

"Na Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros missionários, significava ouvir tiros ao longe e viver num centro populacional sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.

(..) "Foi em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do [Pontifício] Instituto para as Missões Estrangeiras [PIME]

(...) "No final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau, Lino Bicari entrou de novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional. 'Não era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso às tropas portuguesas', recorda Bicari." (...).

O Lino Bicari e a Maria Fernanda Dâmaso traduziram do italiano o livro do Salvatore Cammilleri, "A identidade cultural dos balantas" (***). 
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 22 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25548: Banco do Afeto contra a Solidão (29): Hospitalizado em Beja, o luso-italiano Lino Bicari, de 88 anos, antigo missionário do PIME (Bafatá, 1967-1971), professor do nosso Cherno Baldé, grande amigo e companheiro do nosso capelão Arsénio Puim

(**) Último poste da série > 22 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25424: In Memoriam (503): Agradecimento a René Pélissier (1935-2024) que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador (Mário Beja Santos)

(***) Vd. poste de 19 de outubro de 2018 > 
19 DE OUTUBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25556: Timor-Leste, passado e presente (3): cerca de 70% dos nomes próprios e 98% dos apelidos dos timorenses... continuam a serportugueses!

 

Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes (1935). Dicionário Tétum-Português. Macau: N.T. Fernandes & Filhos. (Disponível em formato digital na BNP - Biblioteca Nacional de Portugal.)


1. Não é por acaso que os ocupantes, invasores e ditadores como o Suharto ou o Franco proibem ou proibíam as línguas dos povos dominados e vencidos:   o português e o tétum, em Timor; o basco, o galego, o catalão, em Espanha, etc. A língua é a verdadeira pátria, a identidade de cada povo...

O tétum e o português ajudaram os timorenses a resistir à ocupação indonésia. tétum é a língua nacional e cooficial de Timor-Leste, a par do português.   Em 1981, a Igreja católica adotou, corajosamente, o tétum como língua da liturgia, em detrimento da língua indonésia. E esse facto foi relevante para o reforço da identidade cultural e nacional dos timorenses e da sua determinação para se tornarem livres e independentes.

Nós, portugueses, temos a obrigação histórica de dar o máximo apoio ao ensino e à promoção das duas línguas oficiais de Timor-Leste. E, por outro lado, temos de estar gratos aos missionários católicos que se interessaram, desde cedo, pelo ensino e divulgação das duas línguas, na época colonial.

Recordamos de novo, aqui hoje,  o trabalho de Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes (1935). Dicionário Tétum-Português. Macau: N.T. Fernandes & Filhos.

2. A título de mera curiosidade, selecionamos  algumas das palavras do tétum que, segundo Mendes e Laranjeira (1935), foram "importadas" do português... Hoje há muito mais vocábulos de origem portuguesa, ligados à(s) ciência(s),  à tecnologia, à política, à economia, à sociologia, etc.: basta ver o sítio do Governo de Timor-Leste (em tétum, português e inglês)... A começar pela saudação: Benvindu ba portal online Governu Timor-Leste ni-nian! 

Veja-se, por exemplo, este excerto de um comunicado de imprensa, do dia 2 de maio de 2024, em tétum e em português:
 
TT > Komunikadus > 22 maiu 2024 > 
Sorumutuk Konsellu Ministrus nian iha loron 22 fulan-maiu tinan 2024

Prezidénsia Konsellu Ministrus
Portavós Governu Timor-Leste
IX Governu Konstitusionál

(...) Konsellu Ministrus hala’o sorumutuk iha Palásiu Governu, Dili, no aprova Rezolusaun Governu nian ne’ebé aprezenta husi Vise-Primeiru-Ministru, Ministru Koordenadór Asuntus Ekonómikus no Ministru Turizmu Ambiente, reprezenta Primeiru-Ministru, relasiona ho konsesaun donativu ida ba Repúblika Federativa Brazíl, hodi apoia intervensaun tanba inundasaun ne’ebé destroi Estadu Rio Grande Súl ho valór dolar amerikanu millaun 4.

Governu manifesta ninia solidariedade no fraternidade ho povu maun-alin brazileiru no liu-liu ho populasaun Estadu Rio Grande Súl, ne’ebé akontese udan boot hodi hamosu inundasaun no rai monu, ne’ebé kauza ema 157 mate, kanek 800 no besik 80 maka lakon, no mós ema rihun 77resin evakua ba fatin temporáriu.

PT > Comunicados > 22 de maio de 2024

Reunião do Conselho de Ministros de 22 de maio de 2024
Presidência do Conselho de Ministros
Porta-Voz do Governo de Timor-Leste

(...) O Conselho de Ministros reuniu-se no Palácio do Governo, em Díli, e aprovou a Resolução do Governo apresentada pelo Vice-Primeiro-Ministro, Ministro Coordenador dos Assuntos Económicos e Ministro do Turismo e Ambiente, em substituição do Primeiro-Ministro, relativa à concessão de um donativo à República Federativa do Brasil, para apoio à intervenção em resultado das cheias que assolaram o Estado de Rio Grande do Sul no valor de USD 4 milhões.

O Governo manifesta a sua solidariedade e fraternidade com o povo irmão brasileiro e especialmente com a população do Estado de Rio Grande do Sul, que foi devastado por fortes chuvas que causaram cheias e deslizamento de terras, que provocaram cerca de 157 mortes, 800 feridos, o desaparecimento de cerca de 80 pessoas e deixaram mais de 77 mil pessoas em abrigos temporários. (...)

3. A par do português, o tétum-praça (em tétum,  tetun prasa) é a língua oficial de Timor-Leste ao lado: foi (e continua a ser) a  língua franca entre os diferentes grupos etnolinguísticos do território. 

Este tétum-praça é a variedade oficial da língua, usada na administração e nas escolas, a par do português. Ao longo dos séculos, o tétum foi muito influenciado pelo português, o qual  passou, entretanto, a ser probido pela Indonésia, a partir de finais de 1975 e durante 24 anos.  Toda  uma geração de timorenses cresceu a falar e a escrever a  língua indonésia. O português passou a ser uma língua de resistência e de identidade nacional.
 
Apesar de alguma resistência dos mais novos, educados na (e pela) Indonésia, é um facto indesmetível que o português tem uma larga aceitação por parte do povo: 70% dos apelidos e 98% dos nomes próprios dos timorenses continuam, ainda hoje, a ser portugueses, mesmo que só um terço fale o português, na melhor das hipóteses...

Mais uma razão para darmos visibilidade a Timor, à sua gente e ao seu apego a Portugal e à lusofonia...

 
Apresentamos a seguir mais uma lista de palavras, de P a V,  que  ao longo dos séculos foram "encorporadas" no tétum... Mendes e Laranjeira (1935) identificam mais de  uma centena e meia (numa recolha de cerca de 8 mil vocábulos, feita nos anos de 1920/30).  Hoje são muitas mais...  

pasíar, v. Passear, vaguear; do português.

pára, v. Parar, terminar, deixar de...; udan pára, deixar de chover, estiar; do português.

parti, s. Participação; v. participar, dar parte; do português.

péça, s. Peça de artelharia, canhão; peça fuan, projéctil de peça, granada etc.; do português.

perdán, s. O m. q. perdua.

perdua, s. Perdão, desculpa; v. perdoar, desculpar; do português.

pinór, s. (t. h.) Penhor; do português.

pobos, s. O povo, a plebe; do português.

rabéca, s. Rabeca, violino; co'a rabeca, tocar rabeca; do português.

ramáta, v. Rematar, acabar, findar-se, terminar, completar; do português.

rarúut, s. Ai rarúut, uma planta das amomáceas, araruta; o m. q. labúta; do português.

rásta, v. Arrastar, levar de rastos; do português.

réal, réar, adj. Muitos, em multidão; ema réar, grande aglomeração de gente; do português arraial (?).

rebísta, v. Passar revista, revistar; do português.

recádo, s. Recados, cumprimentos; presentes que os noivos oferecem um ao outro antes do
casamento; do português.

reçán, réçan, s. Razões, motivos; la liatenc reçan ida, não motivos; la liatenc reçan ida, não saber explicar-se, não saber defender-se; ração, farnel; do português.

rêdi, s. Rede de arrasto, tresmalho; do português.

reformadu, adj. Reformado; do português.

rèinu, s. Reino. Em Timor o reino consiste numa certa extensão de terras cujos povos são governados por um régulo sob a dependência da autoridade portuguesa; divide-se em sucos governados por um chefo (dáto) e estes em povoações governadas por um catuas. Do português.

rekérè, v. Reclamar, exigir, requerer; do português.

réza, v. Rezar, orar, fazer oração; do português.

rícu, adj. Rico, abastado; s.n riqueza, fortuna, haveres; do português.

róda, rodan, rônda, s. Cordão que prende a rede do camaroeiro (clahat) ao aro; corda que retesa as peles nos tambores etc.; roda, aro, volante; do português.

román, romao, s. Romanzeira, romã; do português.

rônda, v. Rondar, vigiar; s. ronda; veja roda; do português.

rósa, s. Rosa, roseira (ai funan rosa); do português.

róta, s. Bengala, chibata, vergasta ; do português.

sáas, v. (Alas) Ser suficiente, chegar, bastar; do português, assaz (?).

sában, s. Chávena, chícara; do português; hudi saban (t.h.) (?).

sabán, s. Sabão; sabân mourin, sabonete; do português.

salga, v. Salgar, deitar sal; do português.

samána, s. (t. h.) Semana; do português.

sanbíla, s. Plaina, cepilho; v. aplainar, acepilhar; do português.

santantóni (ai), s. Uma árvore de flores brancas odoríferas (árvore de Santo António); do português.

santo, s. Santo, justo, bem-aventuado, as almas dos justos; estátua ou estampa religiosa; do português.

santolínu, s. Objectos religiosos antigos que os timorenses conservam em grande veneração
julgando conterem relíquias do Santo Lenho; do português.

sapéu, s. (t. h.) Chapéu; do português.

sapátu, s. Sapato, bota; ai sapatu, uma planta de cujas flores se extrai tinta preta; do português.

sarútu, s. Charuto; do português.

sébi, s. Chefe; do português.

secréta, s. (Uma secreta) Secreta, retrete; do português.

séla, v. Selar, pôr a sela ou selim; do português.

sélan, s. Sela, selim, coxim, albarda; do português.

selín, s. (t. h.) Selim, sela; do português.

sentídu, v. Acautelar-se, ter cuidado, tomar sentido; s. cuidado, sentido; do português.

sentinéla, s. Sentinela, vigia; v. estar àlerta, estar de sentinela; do português.

sepedéra, adj. Háas sepedera, uma variedade de mangas; do português "chupadeira" (?).

serbí, v. Servir, obedecer, estar na dependência de; ami haçara de' it serbi ba Ita-Boot, nós queremos somente ser súbditos; do português.

serbíçu, v. Serviço, trabalho ; do português.

séri, adj. Sério, sisudo, sossegado (oin seri); do português,

 sêrun, s. (Samoro) Cheiro; do português (?).

sicôru, s. O m. q. sicouru.

sicóuru, s. Socorro, auxilio, ajuda; v. socorrer, auxiliar, ajudar ; do português.

 sinál, s. Sinal, marca, distintivo ; do português.

sinár, s. O m. q. sinal.

sinór, s. Senhor; do português.

sinora, s. Senhora; cenoura (planta); do português.

sínti, v. Sentir; do português.

sintídu, (t. h.) O m. q. sentida.

sínu, s. Sino, sineta; dere sinu, tocar o sino; sinu lian, o som do sino; do português.

sírzi, v. Serzir, arremendar; sin. ca'ut; do português.

sita, v. Chita; adj. de chita; do português.

soldadu, s. Soldado; do português.

sôldu, s. Sôldo, ordenado; sin. cole; do português.

sombréru, s. Guarda-ehuva, ombreiro, sombrinha; do português.

sorti, s. Sorte, ventura, fortuna;  do português.

strúbi, v. Destruir; do português.

suàngui, s. Lobisomem etc., o m. q. buan; a palavra suángui não é usada em tétum, parece ser o aportuguesamento da palavra malaia suang à qual corresponde a buan em tétum.

subêru, adj. (Luca) Atrevido, arrogante, soberbo; do português.

Sucé, s. pr. José; do português.

suceder, s. Desgraça, infortúnio, calamidade; v. suceder uma desgraça; do português.

súci, v. (Dili) Acompanhar, associar-se; s. companhia, súcia; do português.

suma, v. Suma uè, abrir covas no leito da ribeira para aproveitar a água filtrada através da
areia; fumar (corrupção da palavra portuguesa).

sumáçu, s. Chumaço, travesseiro, almofada; do português,

tabácu, s. Tabaco; tabacu rahun, rapé; do português.

táçu, s. Tacho, caçoila; do português.

tamáti, s. Tomateiro, tomate; do português.

taráta, tarátar, v. Insultar, injuriar, tratai mal de palavras; do português.

tênda, s. Barraca ligeira, tenda;do português.

ténpar, s. Temperos, adubos; v. temperar, adubar; do português.

tenta, v. Tentar, induzir ao mal; do português.

tentaçán, s. Tentação; do português.

térmu, s. Tèrmo, documento, acta; do português.

tiia, tían, s. Tia ou tio; do português:

tímur, adj. De Timor, timorense, natural, oriundo ou produzido em Timor (em oposição a
maldè que se refere a coisas importadas, ou produzidas fora da ilha); haas timur, manga nativa (de inferior qualidade); cabas timur, algodão indígena da Timor;

tinta, s. Tinta; do português,

tíntu, túa tíntu, s. Vinho tinto,vinho; do português.
tíru, s. Tiro; v. apontar, fazer pontaria; ir em direcção a, ir direito a (la'o tiru ba...); do português.

titia, s. Tia, minha tia: do português.

tíu, tíun, s. Tio materno; do português.

trúca, v. Trocar, mudar, substituir; s. substituto, sucessor; do português,
 
uáca, s. Boi ou vaca; carau uaca avian, boi; carau uaca inan, vaca; o m. q. baca; do português.

úbas,  s. Videira, uvas; do português.

úvas, s. Videira, uva, cacho de uvas, o m. q. ubas; do português.

vadíu, s. e adj. Vàdio, o m. q. badíu; do português.

verónic, s. Medalha religiosa; do português "Verónica".
 
Obsrevações -  (t. h.)—Tétum da parte holandesa (do vocabulário tétum dos
missionários de Timor holandês)

Fonte: Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes (1935). Dicionário Tétum-Português. Macau: N.T. Fernandes & Filhos. (Disponível em formato digital na BNP - Biblioteca Nacional de Portugal.)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG) (Atenção: não somos linguistas nem estamos a seguir a ortografia oficial do tétum)

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 15 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25426: Timor-Leste, passado e presente (2): Exorcizando fantasmas da história: reparações... ou reconciliações ?... Apostemos, isso, sim, no ensino e promoção do tétum e do português

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25548: Banco do Afeto contra a Solidão (29): Hospitalizado em Beja, o luso-italiano Lino Bicari, de 88 anos, antigo missionário do PIME (Bafatá, 1967-1971), professor do nosso Cherno Baldé, grande amigo e companheiro do nosso capelão Arsénio Puim


Guiné-Bissau > s/d (c. 1975/80) > Bafatá > O professor Lino Bicari e um grupo de alunos que praticavam futebol. Ele foi professor tam
bém do nosso amigo Cherno Baldé,  quando este frequentou o Ciclo Preparatorio e o Liceu Hoji-Ya-Henda,  em Bafatá, de 1975 a 1979  (*), Fotograma de vídeo da RTP, que passou no Telejornal, no dia 17 de abril de 2024. (Com a devida vénia...)


Região Autónoma dos Açores > Ilha de São Miguel >  Maio de 2019  > O reencontro de dois amigos da Guiné, ao fim de 48 anos: à esquerda,  o ex-missionário italiano Lino Bicari (casado com uma portuguesa, vivendo hoje no Alvito, no Alentejo);  e, à direita, o Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), expulso depois do exército e do CTGI, em maio de 1971 (deixou o sacerdócio em finais dos anos 70; e dedicou-se à profissão de enfermagem).

Lino Bicari  é da mesma idade: nasceu em 1935, na Sicília, Itália. Missionário do PIME - Pontifício Instituto para as Missões Exteriores,  chegou à Guiné em maio de 1967.  Além da teologia, tinha formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e em etnologia. 

Assumiu logo o cargo de Diretor do Internato da Missão Católica em Bafatá. (Será responsável pela formação dos professores das escolas das missões de Catió, Bubaque, Biombo, Comura, Suzana, Farim, Bambadinca e Bafatá.)

(...) "Nesta primeira passagem pela Guiné, estabelece uma relação próxima com o capelão militar de Bambadinca, o Padre Arsénio Puim, que acabará por ser preso e expulso do Exército pelas suas posições de denúncia da guerra, nomeadamente numa homilia realizada em 1971 que marcara Bicari de forma perene." (...)

Volta à Itália em 1971, desvincula-se do PIME e, já depois da declaração unilateral de independência da Guiné-Bissai, em 24 de setembro de 1973, adere ao PAIGC (em cujas fileiras milita até 1987). Tornou-se responsável pelo Hospital Regional do Boké, na Guiné-Conacri,  e, além da saúde, trabalhou também na área da educação  e da cultura. Radicou-s em Portugal em 1990. Afirmou-se sempre como um militante político, não guerrilheiro.

Foto (e legenda): © Arsénio Puim (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Por mensagem de anteontem, 20 do corrente, às 23:26, o nosso grão-tabanqueiro Arsénio Puim agradeceu, a todos nós, as referências que lhe fizemos por ocasião do seu 88º aniversáro natalício (**):

 (...) "A ti e a todos quantos me recordaram e se me referiram com amizade, um enorme obrigado muito sentido. Recordo ainda muitas vezes os nossos tempos da Guiné e os nossos companheiros, com quem tive sempre uma convivência amiga e correta." (...)

Por outro lado, deu-nos notícias tristes do seu amigo Lino Bicari, que em 1970/71 era missionário do PIME (Pontifício Instituto das MIssões  Exterioes), em Bafatá.

(...) "Luís, recebi, talvez há duas horas, um telefonema da esposa do Lino Bicari, que só sei que se chama Fernanda [Maria Fernanda Dâmaso] , mas que conheço bem. Transmitiu-me que o Lino está internado no Hospital de Beja devido a doença oncológica e se encontra em estado muito grave, com uma perspectiva de vida muito curta. Fiquei triste, pois trata-se de um grande amigo, desde os tempos da Guiné e até ao presente. Lino Bicari é um homem extraordinário, raro sobre a face da terra." (...) 
 
O Arsénio Puim, ao tempo alferes graduado capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), sempre teve um grande apreço pelo Lino Bicari (e vice-versa):

(...) "Conhecemo-nos na Guiné em 1970 – era eu capelão militar em Bambadinca e ele era padre missionário em Bafatá – numa altura em que o capelão chefe, pe. Gamboa [, Pedro Maria da Costa de Sousa Melo de Gamboa Bandeira de Melo, ] promoveu um encontro durante dois dias dos capelães da Zona Leste – Bafatá, Bambadinca, Galomaro, Nova Lamego e Piche – precisamente na Casa dos Padres Missionários Italianos de Bafatá.

"Mais tarde voltei duas ou três vezes à Casa dos simpáticos missionários italianos, aproveitando sempre esta estadia para um reconfortante convívio sacerdotal e um renovar de forças no exercício da minha missão de capelão.

"Na sua simplicidade, Lino Bicari é sem dúvida um homem de altos ideais humanos e dum currículo muito rico, corajoso e autêntico. Desenvolveu uma acção profunda e muito válida ao serviço do povo da Guiné (e não só) concretamente na área do ensino e educação e da saúde, quer enquanto missionário quer, depois, sob a vigência do Partido e do Governo do PAIGC. Uma história de vida rara! " (...) 

2. O Arsénio e o Lino voltaram a encontrar-se quase meio século depois, ... nos Açores (***)

Há tempos o nosso camarada e amigo Abílio Machado  mandou-nos um link com uma pequena reportagem da RTP sobre a história de vida deste homem, luso-italiano, que vive em Alvito, Alentejo, desde 2015 (vídeo: 5' 03'')

https://www.rtp.pt/noticias/pais/padre-lino-bicari-professor-e-convertido-ao-paigc_v1565214

Sabemos que ele também doou ao Museu da Resistência e da Liberdade, no Aljube, o seu espólio (Fundo Lino Bicari)... onde tem documentação diversa, correspondência, publicações, recortes de jornais, etc.  

Andamos a ver e se encontramos algo de mais pessoal... que possamos publicar (temos a sua autorização).  E falta-nos, seguramente, testemunhos sobre a vida na Guiné-Bissau ao tempo do partido único. Mas também antes, da parte dos missionários estrangeiros, que passaram pela antiga Guiné portuguesa.

De qualquer modo,  o papel dos missionários italianos do PIME na Guiné tem já algum  destaque no nosso blogue... Sabemos que infelizmente não tiveram as "melhores relações" com as autoridades portuguesas, à época da guerra colonial na Guiné: três deles foram expulsos, Mário Faccioli, de Catió; António Grillo, de Bambadinca; e Salvatore Cammilleri, de Tite;  e eu deles, o Antonio Grillo, esteve inclusive preso durante 4 meses em Bissau e em Lisboa, acusado de "atividades subversivas".

O Lino Bicari e a sua família merecem, entretanto,  a nossa solidariedade neste transe difícil por que estão a passar (****)... Só podemos desejar o melhor para ele, esperançados também que no hospital de Beja, do Serviço Nacional de Saúde, se possam fazer milagres.

Obrigado, Arsénio, pelas tuas palavras amigas e solidárias. Continuarás sempre a ter a nossa estima, consideração, amizade e camaradagem. Tenho pena que o Lino Bicari já não tenha saúde para poder partilhar connosco os tempos que viveu, na Guiné, quer como  missionário (1967-1971) e depois como militante (não guerrilheiro) do PAIGC (1973-1987). Transmite à sua companheira as nossas melhores saudações.

_______________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 20 de outubro de  2018 > Guiné 61/74 - P19120: (De)Caras (121): O ex-padre italiano LIno Bicari foi meu professor em Bafatá, depois da independência, e casou com uma prima minha, Francisca Ulé Baldé, filha do antigo régulo de Sancorlã, Sambel Koio Baldé, fuzilado pelo PAIGC (Cherno Baldé, Bissau)

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25459: Notas de leitura (1686): O islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, edição de 1961 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
José Júlio Gonçalves escreve este ensaio dardejando um sem número de advertências quanto aos riscos da islamização na Guiné Portuguesa. Não houve trabalho de campo, é uma escrita oficinal de quem conhece bem as publicações do Centro Cultural da Guiné Portuguesa. Compreende-se, no entanto, como a obra se tornou incómoda logo a seguir à sua publicação, foram sobretudo as hostes muçulmanas quem deram maior apoio às forças portuguesas durante a luta armada, a natureza dos perigos que o autor julga estar a visionar diluiu-se completamente, nem o animismo definhou nem o cristianismo colapsou, pelo contrário, tornou-se no quadro das práticas religiosas a força mais atuante pela sua credibilidade no campo da saúde, da educação e até da cultura - veja-se o caso dos dicionários de crioulo e do estudo das lendas e tradições guineenses. Ironias que o pós-Império tece...

Um abraço do
Mário



O islamismo na Guiné Portuguesa, um olhar de há mais de 60 anos

Mário Beja Santos

A obra intitula-se O Islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, a edição é de 1961 e mal se começa a ler percebe-se logo como se tornou obra incómoda para a política do Estado Novo, é uma cartilha de doutrinação para fazer recuar o islamismo na Guiné, encontrando adeptos “civilizados” para lhe fazer frente na linha do catolicismo. É uma obra feita de leituras, embora o autor fale em ensaio sociomissionológico, não há trabalho de campo, baseia-se em doutrina alheia, leu atentamente o que se publicou no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e outros trabalhos alusivos à presença muçulmana na região subsariana. Identifica os métodos catequéticos islâmicos: as escolas corânicas, a pregação através das confrarias religiosas, as prédicas dos chefes religiosos, a identidade dada pela indumentária, o uso da rádio e da imprensa, o aproveitamento da quase completa ausência de missionários europeus, a exploração dos erros da administração europeia.

Falando da indumentária, tece os seguintes comentários:
“Como é que um pobre afro-negro não há-de sentir ganas de se desenraizar, mandar os filhos à mesquita e à escola e tornar-se membro de uma religião que lhe trará elevação social. São impressionantes estes negros atraídos pelo prestígio do balandrau. É vê-los acorrer aos povoados através dos matagais limítrofes; quando se aproximam da povoação aperaltam-se cuidadosamente. Depois entram com solenidade, falsamente aprumados! Lembram algum tanto o ingénuo camponês europeu, quando vai à cidade!”

Adverte quem o lê para os perigos da rádio, a difusão do credo de Mafoma é feita pela rádio Cairo, no fundo estas mensagens acicatam para o nacionalismo, para combater o branco, aguardar a libertação… Estes agentes difusores do Islão infiltram-se através de países fortemente islamizados; e há um inteligente aproveitamento das rivalidades entre os missionários católicos e protestantes; deplora, em linguagem cuidada, a colonização feita por gente iletrada, a sua incapacidade para promover a ocidentalização dos negros-africanos; e, quanto aos erros da administração, elenca a discriminação racial, a manutenção de alguns chefes muçulmanos tendenciosos e a preferência pelos islamizados para servir nas forças públicas.

Procura contextualizar como se tem processado a islamização dos guineenses, faz um enquadramento histórico através do reino de Gana, o império Mandinga e os impérios Songoi e dá seguidamente a relação dos grupos étnicos diferenciados para depois os enquadrar em animistas, animistas ligeiramente islamizados, bastante ou quase completamente islamizados, mostra as resistências dos preponderantes grupos animistas, desde os Felupes aos Bijagós. Temos igualmente um relance sobre a presença do catolicismo a ao papel positivo desempenhado pelos franciscanos a partir de 1932. Diz claramente que não se tem prestado a devida atenção aos problemas religiosos da Guiné Portuguesa, que a presença cabo-verdiana tem sido mal utilizada, eles deviam ser os elementos difusores da cultura portuguesa e do catolicismo. Acha que se devia recorrer a missionários católicos com conhecimentos médicos e outros de idêntica utilidade para os guineenses. Citando Rogado Quintino, acha que é necessário estabelecer um cordão de missões católicas ao longo da linha que separa nitidamente os muçulmanos e os animistas. E não deixa de relevar que cristianizar deve significar aportuguesar. Há para ele um grave perigo com as missões protestantes. A missão que existia ao tempo era anglo-americana, dispondo de amplos fundos e observa que promove uma verdadeira assimilação tecnológica que não se traduz num aportuguesamento. Suspeita dos mouros, vagabundos e comerciantes ambulatórios que percorrem a Guiné Portuguesa, o rosário numa mão, o livro sagrado na outra, infundem respeito e temor, criando em seu proveito uma auréola de prestigiosa admiração. E pior que tudo, mostram-se inimigos irredutíveis da evolução dos guineenses no sentido ocidental.

Discorre com alguma minúcia sobre a ação missionários dos marabus, mouros, jilas, tchernos, almamis, arafãs, entre outros, o papel das confrarias, o trabalho catequético de Fulas e Mandingas, como se desenvolve o seu proselitismo, quando necessário o uso da força, como o Corão influencia as culturas tradicionais, intrometendo-se no próprio direito. É profundamente crítico sobre a influência muçulmana nas artes plásticas guineenses: “O Corão desempenhou um papel preponderante no aviltamento das atividades plásticas dos guineenses, proibiu a representação da figura humana na escultura, até de animais, a escultura é meramente decorativa. Talvez este seja um dos mais evidentes motivos por que a pujante escultura de certos grupos étnicos ditos animistas esmaeceu e só em certos pontos inóspitos ou nas faixas litorálicas e dos arquipélagos costeiros se manteve um pouco mais ao abrigo da forte e operante influência mourisca”. No fundo, as grandes exceções às proibições muçulmanas ainda eram as esculturas Bijagó e Nalu. Mas mesmo assim, observa o autor, a escultura dos Nalus estava em regressão devido à influência dos Fulas e dos Sossos islamizados.

Um tanto fora do contexto, mas sempre com o ar de quem alerta e aconselha os próceres da política ultramarina, lembra os países independentes à volta da Guiné, os apelos do Gana à subversão das elites e das massas da Guiné Portuguesa, enfim, era preciso estar muito atento às provocações e à agitação que estes países independentes iriam suscitar no futuro.

Em jeito de conclusão, parece ao autor que o animismo corre o risco de desaparecer mais cedo ou mais tarde sobre o impacto do Islão; se não houver oposição do cristianismo, o islamismo irá absorver a quase totalidade dos guineenses; impõe-se, pois, ao cristianismo a premência de aumentar a sua ação catequética junto dos animistas. E há delicados problemas políticos, que aparecem aqui enquadrados um tanto paradoxalmente, já que no ensaio não se fez outra coisa do que mostrar os perigos do islamismo na Guiné e agora vem dizer-se que esta corrente pró-muçulmanos colabora amplamente com a administração portuguesa e que o fenómeno independentista não tem tradições na Guiné, não passa de uma inovação de cultura francesa e anglo-saxónica. E como para atenuar o caudal de advertências quanto aos perigos presentes e futuros, parece finalizar com frases tranquilizadoras, dizendo que “O movimento pró-português é, pode dizer-se, desde o século XV, o movimento tradicional das tribos da Guiné Portuguesa que desejaríamos não ver perturbado.”

O rol de contradições que se seguiu à publicação deste ensaio terá contribuído para o relegar às estantes, tais e tantos eram os incómodos que ele poderia suscitar num templo em que as forças islâmicas foram inegavelmente os grandes sustentáculos à luta contra o PAIGC.


Natural de Pampilhosa da Serra, José Júlio Gonçalves nasceu a 19 de janeiro de 1929. Esteve ligado, em 1984, à elaboração da moção da Nova Esperança (de um grupo de figuras do PSD, com Marcelo Rebelo de Sousa, Santana Lopes e Durão Barroso), de alternativa ao grupo de Pinto Balsemão e Mota Amaral. Fez parte do grupo de professores que saíram em divergências com a Universidade Livre e de cuja iniciativa partiu, em 1986 a criação da Universidade Moderna, da qual foi nomeado reitor, tendo sido vogal da Direção no triénio 1991-1993 e Presidente da Direção, no triénio 1997-1999.
Muçulmanos guineenses na reza do Tabaski
Uma mesquita em Bissau
_____________

Nota do editor

Último post da série de 28 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25454: Notas de leitura (1686): Timor Leste, que já foi lugar de desterro e encarceramento (Luís Graça)

sábado, 30 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25318: Um conto de António Graça de Abeu: "Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" (2018) - Parte II

Retrato do artista quando jovem... António Graça de Abreu, 
nascido no Porto, em 1947, licenciado em línguas germànicas 
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 
trabalhou na China, como tradutor, na Editora Pequim 
em Línguas Estrangeiras.  Viveu em Pequim 
e Xangai de 1977 a 1983. Esteve no  CTIG como alf mil, 
CAOP1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar,  1972/74). 
Escritor, poeta, tradutor, professor universitário...
e "globe-trotter", tem mais de 20 títulos publicados,


Capa do livro. 
Contacto do autor:
abreuchina@netcabo.pt
1. Segunda  parte do  conto, " Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" extraído do livro "Lay-Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Póvoa de Santa Iria,  Lua de Marfim Editora, 2018, pp. 36-57) (capa â direita).

É uma gentileza do autor e nosso camarada, a quem agradecemos. É uma história de encontro e separação de duas culturas,  e de amores efémeros de um homem (Bernardo, português, com formação universitária, e já na casa dos 30 e tal, claramente um "alter ego" do escritor) e uma jovem chinesa de Cantão e Macau,  de 24 anos,   Lay Yong.

Estamos em 1981 em  Cantão  e em Macau (território ainda sob administração portuguesa,  até 1999). 

Lay Yong e Bernardo conheceram-se quando  viajaram juntos, em 1981. na "ferry-boat" que fazia a viagem, de 120 quilómetros, entre  Cantão e Macau, ao longo do rio das Pérolas (*)

 

Lai Yong e Bernardo, uma História Simples - Parte II

por António Graça de Abreu (*)


 II


Monsenhor Manuel Teixeira
 (1912-2003),
figura proeminente da comunidade
 macaense e da cultura luso-chinesa.
Foto: Cortesia de Jornal Tribuna
 de Macau (2018)
Bernardo decide, com alguma originalidade e ousadia, levar Lai Yong na visita ao padre Manuel Teixeira e ao Seminário de S. José.

Conhecera o velho missionário na primeira vinda à cidade do Nome de Deus
na
hina, em 1979, num jantar em casa de um engenheiro português da CEM (Companhia de Electricidade de Macau). 

No fim do repasto, enriquecido com iguarias luso-chinesas, e uns olorosos tintos de excelsa cepa portuguesa, o bom sacerdote despediu-se dos convivas e regressou ao seu Seminário de S. José sobraçando uma garrafa de bom whisky velho. 

Informaram Bernardo que uma garrafinha do depurado néctar escocês, domelhor, trinta anos de casco, rótulo não sei de qual cor, era  a normal recompensa para se poder contar  com a presença do nosso clérigo em jantares, com gente importante (ou tida como tal!).

O padre Manuel Teixeira haveria de me confirmar que, para combater o calor nestas terras subtropicais do sul da China, nada melhor do que uns valentes copázios de “chá da Escócia” ou seja, de bom whisky, com umas pedrinhas de gelo.

O excelente sacerdote, nascido na transmontana Freixo de Espada à Cinta, chegara a Macau em 1924, com apenas 12 anos de idade. Aqui havia estudado no Seminário de S. José, aqui havia sido ordenado padre e, para além de uma passagem pelas missões de Malaca e Singapura, a Macau dedicara quase toda a sua longa vida.

Conhecia, como ninguém, as singularidades da fascinante História de Macau. Eescrevia, escrevia dezenas e dezenas de volumes sobre a presença portuguesa em terras do Extremo Oriente.

Inconfundível na sua batina branca, umas longas barbas também brancas, meão de altura, os olhos curiosos a cintilar por detrás de uns óculos pequenos, de aros pretos, o sacerdote simpatizara com Bernardo, a quem chamava “o homem de Pequim”, esse estranho rapaz português, habitante lá das paragens do norte da China que nunca deixava de o visitar, cada vez que vinha a Macau.

Era tempo do falsamente denominado pequinense ir ao encontro do padre Manuel Teixeira levando a Lai Yong como companhia. A menina de Cantão, como quase toda a gente chinesa, macaense e portuguesa desta zona sul da cidade, conhecia oreligioso de vista, pousara os olhos na sua figura única atravessando as ruas de Macau, sabia das longas caminhadas que fazia cruzando a ponte Nobre de Carvalho. 

A caminho de casa, na Praia do Manduco, a Lai Yong passara incontáveis vezes pelo largo de Santo Agostinho, descera, subira mil vezes a ladeira e calçada anexa ao seminário de S. José. Mas jamais sonhara entrar um dia naquele vasto espaço fechado onde residia o padre Teixeira.

Toquei à campainha da escola religiosa e um empregado, já idoso, veio abrir. Mandou avançar o português e a chinesa. Rapidamente subimos as escadas e entrámos no seminário. À esquerda, cruzámos um longo corredor ladeado por pinturas religiosas dos séculos XVII e XVIII, que conduzia aos aposentos do sacerdote, situados ao fundo, à direita, num quarto que eu já conhecia de visitas anteriores. A porta estava entreaberta,   espreitei para o interior. O padre Teixeira sentava-se à sua secretária onde se montoavam papéis desordenados e muitos livros antigos. Vestia umas calças brancas emuma simples t-shirt colorida, com a imagem de uma praia e os dizeres I love California.

Ao dar pela inesperada chegada dos visitantes, levantou-se célere, rodou no quarto, foi ao cabide e vestiu apressadamente a batina branca, de velho missionário, por cima damsua original t-shirt. Estava pronto para nos receber.

Alguma surpresa ao ver Bernardo acompanhado por uma formosa mulher chinesa. Os cumprimentos de circunstância e logo quis saber quem era a moçoila. Uma amiga, uma jovem de Cantão enraizada em Macau, a viver com os pais ali na rua da Praia do Manduco, quase paredes meias com o seminário de S. José. Conhecia o padre e o admirava-o.

– Sim, mas onde é que foi buscar esta mulher, Dr. Bernardo? – perguntou o sacerdote.

O “homem de Pequim” lá desbobinou a história do encontro recente no barco da carreira Cantão-Macau e a descoberta da simpática Lai Yong.

–  A rapariga é muito bonita. Então, porque é que não fica cá por Macau? Até pode casar com ela, e ela pode dar à luz uma data de macaenses que tanta falta fazem nesta nossa terra.

– Vou pensar, meu caro amigo, vou pensar nisso.

O padre Manuel Teixeira conta-nos então a história de um casamento recente que fez ali na igreja do seminário de S. José.

– Sabe,  Dr. Bernardo, aqui ao lado no Teatro D. Pedro V, temos, todas as noites, o espectáculo do Crazy Horse Club Show. São umas bonitas bailarinas francesas que dançam todas nuas. Já me convidaram a assistir, mas eu sou padre, não posso ir a essas coisas. Uma das moças fala muito comigo, é devota a Deus, e pediu-me ajuda para a casar com um dos rapazes, também bailarino. Há duas semanas fizemos um bonito casamento aqui na igreja de S. José, com a presença destas lindas mulheres francesas, todas muito bem vestidas.

Pois, o fluir das vidas, os insondáveis mistérios da fé e as damas “pecadoras” que se despem todos os dias, com engenho e arte, para agradar aos olhos gulosos dos homens. Tudo ao de leve, passageiro. Ou talvez não.

Num outro contexto, ou talvez não, num dos muitos artigos que escreveu para osjornais de Macau, o padre Manuel Teixeira, investigador, historiador e sacerdote,conclui a sua prosa nos seguintes termos: 

“O homem é pó. A fama é fumo e o fim é cinza (…) Só os meus livros permanecerão (…) essa é a minha consolação.”


IV

Lai Yong e Bernardo vão esta noite jantar a uma espécie de taberna chinesa situada num recanto do Porto Interior. Foi decisão da menina que conhece todos os esconsos do quarteirão, cresceu ali ao lado, na Praia do Manduco. Esta mulher gosta de jogar, de ludibriar os enredos simples e complexos do quotidiano. Faz-se agora acompanhar de um português bem parecido, que vive em Pequim, e que até fala um pouco de mandarim, coisa raríssima em Macau.

 No meio do seu povo, mostra o rapaz e mostra também o distanciamento que convém, nem mão na mão, nem uma carícia, nem um olhar mais quente, ou simplesmente tépido. Apenas amigos, ou conhecidos, hoje para um jantar de negócios, com sopa de fitas, peixe frito, legumes e camarão.

No tasco, aparece e mete conversa um sujeito chinês, nascido em Macau que a Lai Yong me diz ser “o rei do camarão”, comerciante de peixe e dono de não sei quantos barcos de pesca. O empresário, especialista em moluscos e crustáceos, esteve ecentemente em Pequim, pela primeira vez na vida, e num mandarim das docas, quase tão mau como o de Bernardo, fala na capital da China como sendo “tudo em grande”, as normes e largas avenidas onde cabia, com facilidade, toda a cidade de Macau. Pois, mas na opinião de Bernardo, as cidades são muito diferentes, uma é a enorme capital do velho Império do Meio, outra um pequenino abcesso exótico, com portugueses lá dentro, no sul da excêntrica província de Guangdong.

A minha amiga Lai Yong nunca foi a Pequim, nem a Xangai. Em toda a sua vida na China quedou-se sempre por estas terras do sul, Macau, Hong Kong e Cantão. Não conhece mais nada. Digo-lhe que talvez um dia seja possível partirmos os dois pela China dentro, eu a servir de cicerone, a mostrar-lhe os recantos do Império a que ela pertence. Eu, a fingir que sou especialista em cultura chinesa, que conheço razoavelmente o mundo chinês, e ela a duvidar, o sorriso outra vez a bailar nas frestas dos olhos, na comissura dos lábios.

Bem comidos, é tempo de devolver a Lai Yong ao seu lar, logo ali ao lado do Porto Interior. Mas fazemos uma caminhada mais longa até à Barra, e regresso. O braço de Bernardo sobre os ombros da mulher chinesa, apertando-a na carícia do humilde e mais do que humano desejo. Ela, na aparência sempre meio tímida e surpreendida, aconchega o seu corpo no meu. 

Pergunto-lhe se tem, ou tem tido namorados. Sim, dois ou três, mas nada de importante, não confia muito nos homens, não prestam, agora não tem namorado nenhum. Então e eu, o Bernardo, o homem de Pequim? Não és meu namorado, apenas um português que conheci no barco da Cantão para Macau. És muito kind (Lai Yong utiliza o adjectivo inglês!) para comigo. Gosto de te conhecer e de, pela primeira vez na minha vida ter, conversando comigo, um homem de Putaoya 葡萄牙 (Portugal), o país lá do Ocidente.

Bernardo responde dizendo, tu também és a primeira mulher chinesa que eu tenho, a sério, por isso, todo este prazer em te agasalhar nos meus braços, de te beber como um manancial de vida, de te beijar a testa, a boca, o colo, de desejar a viagem pelom teu corpo inteiro, da cabeça aos pés, dos pés à cabeça.

V

Para a menina de Guangdong, chegada de surpresa no apogeu do dia:


Vieste, branca e pura
como a água de um regato escondido
nos requebros e esconsos da montanha.
O teu corpo aberto como um prado
no resplandecer do sol nos meus olhos.
Fazia calor,
a humidade escorria pelas paredes da tarde,
mas toda a frescura nascia no lótus do teu sorriso.
As minhas mãos correndo na tua pele de seda,
a tua cintura deslizando como uma serpente num lago.
Houve regatos chilreantes, gritos de pássaros,
ocarinas, timbales e gongos.
Depois, uma taça de caldo de peixe.

VI

Hoje, depois de uma grande volta, de mão dada, pela fortaleza do Monte e pelo jardim de Lou Lim Ioc, voltámos a jantar no restaurante do Hotel Metrópole, com aquelas meninas cantoras de Hong Kong de voz delicodoce, bem timbrada, mais os petiscos luso-chineses, e vinho verde. Ao lado, a companhia da Lai Yong, do infindável sorriso e do corpo perfumado a pó de pérolas. 

Ah, Macau, Macau! Bernardo que vem de três anos de quotidianos em Pequim, a capital do Império, austera e fria, puritana e falsa, já não sabe o que dizer.

Faltam dois dias para o seu regresso à capital chinesa. Lai Yong tem uma pequena oferta para o seu amigo português. Escreveu sobre um tecido de seda, usando cuidadosamente o pincel e a tinta da China -- na sua caligrafia arredondada e insinuante --, um poema de Du Fu (712-770), com Li Bai, os maiores poetas de toda a história literária da China. São três dezenas de versos sobre a amizade entre letrados, sobre o respeito, a admiração entre pessoas que se querem bem. Diz-me que o poema terá mais a ver comigo do que com ela.

Lê-me o poema, mas são tantas as palavras, os caracteres que eu não conheço! Peço-lhe ajuda. Meio em mandarim, meio em inglês, lá vamos desbravando os versos.

Continua a haver tanta coisa que eu não entendo! Não faz mal. Lai Yong diz-me para eu levar o poema de Du Fu e, para em Pequim, com a ajuda dos meus companheiros de trabalho chineses, tentar traduzi-lo para a minha língua.

Sentados num recanto do jardim de Lou Lim Ioc, a menina chinesa pega na mão direita de Bernardo, levanta-a e passa-a, acariciante, pelo jade do seu rosto. Pousa depois a mão do rapaz português na polpa da sua perna, e deixa-a ficar.

O poema do grande Du Fu é assim:

醉時歌

諸公袞袞登臺省

廣文先生官獨冷

甲第紛紛厭粱肉

廣文先生飯不足

先生有道出羲皇

先生有才過屈宋

德尊一代常轗軻

名垂萬古知何用

杜陵野客人更嗤

被褐短窄鬢如絲

日糴太倉五升米

時赴鄭老同襟期

得錢即相覓

沽酒不復疑

忘形到爾汝

痛飲真吾師

清夜沈沈動春酌

燈前細雨檐花落

但覺高歌有鬼神

焉知餓死填溝壑

相如逸才親滌器

子雲識字終投閣

先生早賦歸去來

石田茅屋荒蒼苔

儒術於我何有哉

孔丘盜跖俱塵埃

不須聞此意慘愴

生前相遇且銜杯



Ébrio, uma canção

Muitos ascenderam ao topo da hierarquia,
tu, meu amigo, continuas a padecer ao frio.
Nas grandes mansões, empanturrados com iguarias,
tu, meu amigo, mal consegues uma malga de arroz.
A tua filosofia, um coração cristalino, pouca ambição,
o teu talento, superior ao dos letrados do passado.
Respeitado pela tua virtude, condenado, sem glória,
a deixar o teu nome para além dos séculos.

Sou um rústico que não é desta terra,
de cabelos finos, motivo de mofa e zombaria.
Quero arroz, vou ao celeiro imperial,
obtenho ainda cinco colheres por dia,
mas se quero abrir o coração,
vou ter contigo, meu amigo.
Quando ganho umas tantas moedas,
cuidamos de nós, vamos gastá-las em vinho.
Que nos interessa a pompa, o luxo, as cortesias,
somos gente simples, descuidada e livre!...

Meu mestre, enchemos, bebemos as taças até ao fim,
no silêncio da noite da Primavera.
Lá fora, a chuva fina como flores
caindo dos telhados, apagando as lanternas.
Entoamos cânticos, animados, iluminados
por espíritos a montante, a jusante do rio.
Para quê pensar tanto no destino?
Sim, a fome, e por túmulo, uma vala qualquer.

Outrora, um grande poeta lavava canecas e pratos,
um ilustre letrado lançou-se de um torreão.
Quem somos nós, no fim de tudo?
Melhor retirarmo-nos cedo, voltar a lavrar a terra,
cuidar dos telhados de colmo, dos caminhos, do musgo.
Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem?
Sábio, salteador de estradas, todos regressam ao pó.

Para quê tanta tristeza, tanto queixume?
Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho. (#)

António  Graça de Abreu

(#) Nota do autor: Numa posterior revisão à tradução do poema, procurei substituir a sobrecarga de nomes e apelidos que Du Fu usa  conhecidos de qualquer cidadão chinês medianamente culto , por palavras e títulos semelhantes, sem o nome em chinês, o que creio, ajuda o fluir da tradução para língua portuguesa. 

Assim, o “amigo” de Du Fu é o mandarim Zheng Qian, seu contemporâneo, os “letrados do passado” são o imperador mitológico Fuxi (sec. XXVIII a.C.), mais os poetas Qu Yuan e Song Yu (sec. III a.C.). 

“rústico que não é desta terra” é o próprio Du Fu, habitante do lugar de Duling, nos arredores de Chang’an.

O “poeta que lavava canecas e pratos” e o letrado que se “lançou de um torreão”, são respectivamente Sima Xiangru (179 a.C. – 117 a.C.) e Yang Xiong (53 a.C.- 18 d.C.). 

Por último, Du Fu fala de Confúcio (551 a.C. – 479 a.C.) e de Zhi, o “salteador de estradas.”

_____________

 (Continua) 

(Seleção,  revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste poste: LG)

_______________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25305: Notas de leitura (1678): "Lay Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Lua de Marfim Editora, 2018, 90 pp.) (Luís Graça)