sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

Capa do livro de Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta.

Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI,  2010, 110 pp.,  ilustrado. (Tradução do italiano:  Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso).


1. O autor, padre católico, missionário, do PIME (Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras, fundado em Itália em 1850), nasceu na Sicília, em 1939. Aos 29 anos foi para a antiga província portuguesa da Guiné (, hoje República da Guiné-Bissau). Estava-se então em plena guerra colonial e a Igreja Católica procurava adaptar-se aos novos tempos, e à nova geopolítica do mundo, com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e com o Papa Paulo VI (1963-1978).

As relações do PIME (ou de alguns dos seus missionários)  com as autoridades portuguesas da Guiné  nunca foram pacíficas… E em 1973, o autor terá tido problemas com a polícia política e as autoridades militares, acabando por ser expulso do território por ordem de Spínola. O que se pode ler na contracapa do livro: Salvatore Cammilleri escolheu um dos lados do conflito, o que o levou a “colaborar com o difícil processo de libertação do país” (sic).

Já anteriormente, no princípio da guerra, tinham sido expulsos dois missionários italianos do PIME: o Mário Faccioli (1922-2015), que estava em Catió; e o António Grillo (1925-2014), que estava em Bambadinca (*)

O Salvatore Cammilleri regressou em 1975, depois da independência. E é neste período, já com 36 anos, que terá decidido tornar-se “etnólogo”, passando a dedicar mais tempo ao estudo da cultura dos balantas, grupo étnico com o qual mais conviveu e trabalhou, nomeadamente em Tite, na região de Quínara, ao mesmo tempo que aqui desenvolvia atividades na área da saúde, incluindo a “construção de um hospital”. 

Vinte anos depois, em 1995, apresenta na Universidade de Génova o trabalho final da sua licenciatura (em filosofia, presumimos),   com o título “Essere Alante, essere Anin” (Ser Homem, ser Mulher). Foi feita, em livro,  a publicação parcial desse trabalho final de licenciatura apresentada na Universidade de Génova (Faculdade de Filosofia), no ano académico de 1994-95:  “Identità culturale dell’uomo africano atraverso i riti d’iniziazione presso il popolo 'Brasa', Guinea Bissau – Africa Occidentale". (O termo "tese" é para os doutoramentos; o termo "dissertação" é para os mestrados, dois graus académicos que correspondem hoje ao III e II Ciclos de Bolonha, respetivamente.)

O livro está traduzido e editado em português: Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta. Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI,  2010, 110 pp.,  ilustrado, ISBN: 9789896890377, brochado, preço de capa: 8,00 €. (Tradução do italiano:  Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso).

O livro está dividido em 4 partes, sendo a I, "o contexto histórico", e a II, "a situação económica e social", de resto as menos originais e menos interessantes. As partes III e IV é que têm a ver com o essencial do estudo, que não é filosófico mas etnográfico:  A integração social  da mulher e do homem,  balantas (pp. 37-98), segundo os respetivos ritos e etapas de iniciação. A obra é ilustradas com 20 fotos a cores.

 Na apresentação (pp. 7/8),  o autor faz duas prevenções ou levanta duas questões pertinentes:  (i) o que é ser "estrangeiro";  e (ii) o povo "brasa" e os seus segredos.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Luta balanta, entre dois "blufos", presenciada por militares destacados para protecção do reordenamento (à esquerda, o furriel miliciano Luís Manuel da Graça Henriques, da CCAÇ 12, de calções, tronco nu e óculos escuros, hoje editor deste blogue e autor desta nota de leitura)... Ao fundo, a nova tabanca, reordenada... Nhabijões deve ter sido o maior ou um dos maiores reordenamentos jamais feitos no tempo de Spínola. Foi um duro golpe para o PAIGC. Os reordenamentos são do tempo do BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72)... Uma equipa (técnica) da CCAÇ 12 foi destacada o reordenamento. 

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-Fur Mil At Inf, Op Esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


De resto, esses são sempre os constrangimentos (ou inibições) dos etnólogos: eu sou estrangeiro. mas quero conhecer-te, a ti e ao teu grupo; pertenço à cultura europeia ocidental (e, podia acrescentar: "sou homem, padre, católico, missionário, e os meus pares querem evangelizar-te", já que a religião católica é proselitista como a religião muçulmana e outras).  Por outro lado, o dono da casa que me acolhe, "vive  zelosamente a sua identidade cultural africana" (p. 7). Numa situação de "observação participante",  é impossível não comunicar, e não passar os valores de um e de outro grupo...

Põe-se aqui um questão ética, deontológica, até mesmo epistemológica: pode um cientista social fazer investigação independente, "ao mesmo tempo" que desempenha outros papéis sociais ou socioprofissionais ? Por exemplo, ser missionário, médico, arquiteto, gestor hospitalar, administrador, militar... Salvador Cammilleri é pároco de Tite, está a construir e a gerir um hospital, é admirador do povo balanta e...etnólogo (ou etnógrafo).

O caso não é virgem: António Carreira, o maior etnólogo (ou etnógrafo) da Guiné, era administrador colonial e depois administrador da Casa Gouveia (e a quem., de resto, é imputada a responsabilidade, pelo menos moral, do "massacre do Pigiguiti, ou Pindjiguiti, como se diz hoje em crioulo, no dia 3 de agosto de 1959, acontecimento habilmente explorado "a posteriori" pelo futuro PAIGC).

A resposta não é fácil. A verdade é que Salvatore Cammilleri acumulou ao longo de mais de 2 dezenas de anos um precioso conhecimento empírico da língua e dos usos e costumes do povo balanta, por quem tem uma especial predileção. De resto, o mesmo se passou com os padres Mário Faccioli, em Catió, e António Grillo, em Bambadinca, que sempre tiveram uma "relação especial" como os balantas.

A explicação pode ser esta: no grupo das etnias "animistas", os balantas serão, provavelmente, os mais "recetivos" à mensagem do cristianismo; por outro lado, os missionários católicos terão mais dificuldade em lidar com as populações que já são historicamente muçulmanas, como é o caso dos fulas e dos mandingas.

Na nota introdutória, o autor também evoca o "tornado histórico" (invasões, migrações, viagens, contactos com outros povos e religiões, esclavagismo, colonialismo, guerra colonial, guerra civil, imperialismo...) aque foi sujeito o continente africano, e em particular o território da Guiné (hoje bem mais pequeno do que no passado). Apesar disso, "a cultura africana em geral e a urasa [, balanta,] em particular tem resistido e conservado a sua identidade tradicional" (p. 7).

Infelizmente, não estamos tão seguros disso... De qualquer modo, o autor coloca-se na perspectiva mais etnográfica do que sociológica. Ficamos sem saber até que ponto  vai hoje a resistência do povo "brasa" à "aculturação" imposta do exterior, com o êxodo rural, a urbanização, a diáspora, a economia mercantil e a globalização (a par da cristianização e islamização de algumas minorias balantas).

O dilema do autor, que não é um académico, revela a sua "convição" de que "só a partir do conhecimento de um povo como tal, pode nascer outro projeto de confronto, de diálogo e de intervenção a seu favor" (p. 8).  O encontro de duas culturas tem um duplo risco; cair no erro de uma "exaltante superioridade" ou deixar-se  arrastar por uma "resignação interesseira".

Utilizando a metodologia da investigação etnológica, a "pesquisa no terreno", a observação participante, o objeto de estudo do autor foi "o sistema educativo em ação do povo brasa, isto é, das classes de idade e dos rituais de iniciação", e a partir dái "definir o perfil do homem e da mulher adultos", tal como são moldados pela "tradição ancestral" (p. 8).

O risco do autor é o de considerar o pov so brasa como "o bom selvagem", na esteira de resto de Amílcar Cabral... [Para ele, os balantas representavam a sociedade horizontal, tendencialmemte igualitária, "sem estratificação", embora gerontrática... No outro extermos, estavam os fulas, "sociedade semi-feudal" e, para mais, historicamente aliada dos colonialistas. Entre os balantas, era o  conselho dos anciãos da aldeia (ou de um conjunto de aldeias, em geral ribeirinhas e próximas) que tomava as decisões relativas à vida comunitária. A propriedade da terra era da aldeia.  Cada família recebia uma parcela para trabalhar. Os instrumentos de produção, por sua vez, pertenciam à família ou ao indivíduo. O balanta era monógamo, dizia Amílcar Cabral,, apesar de 'fortes tendências para a poligamia' (sic). A mulher teria mais liberdade e estatuto na aldeia balanta do que entre os fulas.  O que Cabral parecia omitir ou não valoirizar, nos seus escritos,  eram os seus rituais de passagem, a cultura da virilidade (o culto do "macho"), a conflitualidade com vizinhos, o tribalismo, o uso e o abuso do consumo do “vinho de palma” e das suas eventuais consequências (v.g., saúde mental, violência doméstica, comportamentos antissociais.] (**)

O "outro lado da lua dos balantas" também é ignorado por Salvatore Cammilleri que, algo estranhamente, faz questão de ocultar, nesta edição portuguesa (não conhecemos a italiana), certos pormenores da cultura brasa, por mor dos anciãos que os querem continuar a manter "secretos" aos olhos dos vizinhos e dos estrangeiros.

Por outro lado,  vejo que o autor, homem, padre católico, italiano, siciliano,  não se sente tão à vontade a falar da mulher balanta / brasa, daí o  recurso à colaboração da irmã missionária Maristella  De Marchi (p. 40).

O trabalho de campo foi feito na setor de Tite, em cinco aglomerados populacionais a seguir discriminados (entre parêntesis o número de famílias entrevistadas): Tite, centro urbano (4); Foia, a norte (8), Flak ndekte, a leste (6), Tite ni hãn, a oeste (6), e Bissassima, a oeste (8). Total de famílias: 32.

O autor faz questão de referir que todas as pessoas que foram os seus informantes privilegiados são adultos, anciãos, "em nada influenciados nem pela atividade escolar do Estado, nem pelas religiões importadas, Islão e Cristianismo" (p. 40)... As entrevistas foram gravadas e em parte traduzidas e transcritas em "língua crioula", com a ajuda de "alguns jovens iniciados", citados na p. 40. O que também é revelador das dificukdades e obstáculos com que se depara a investigação etnológica de grupos e populações sem escrita-

O autor tem, na p. 9, uma "nota linguística" sobre o modo como procedeu na transcrição dos fonemas da língua brasa: utilizou os signos gráficos da língua italiana e, complementarmente,  os símbolos do alfabeto internacional (sempre que não havia correspondência entre o italiano e o brasa)...E , como todas as línguas, há alguns sons especiais na língua balanta: por ex.,  N'h e n'h ("Consoante dupla: nasal velar e fricativa velar [h]") (p. 11): N'hala é o ser supremo, o deus criador, a origem de todos os seres... (p.99), embora o vocábulo seja polissémico, significando também a abóboda celeste,  o lugar da fecundidade donde vem a chuva, esposa de N'hala (...); é ainda a casa de N'hala (...); os conceitos de sorte, sucesso, destino dos homens e dos acontecimentos (...); razão universal ou justificação última de toda a realidade existente" (pp. 99/100).

Como dissemos a edição portuguesa tem a colaboração dos tradutores Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso (que, pela nota publicada no final, pp. 105/106, parecem-nos ser especialistas em linguística e etnologia, de qualquer modo profundos conhecedores do crioulo, da história e da cultura da Guiné-Bissau).

Numa primeira leitura, achamos que a tradução podia ser um pouco  mais cuidada, num ponto ou noutro, a começar pelo etnónimo "brasa" [que em português também já vi grafado como "braza" ou como "brassa", mas não constam ainda, estes três vocábulos, nos nossos dicionários: Priberam, Houaiss; noutras línguas já vi grafado como "brasa" (em francês) e "brassa" (em inglês)].  Enfim, outros casos de etnónimos, escreve-se biafada e beafada, manjaco e manjak...

A tradução segue o novo ortográfico. A edição portuguesa tem o apoio financeiro da Fondazione PIME ONLUS.


2. Numa pesquisa pela Net, descobrimos que Lino Bicari é um ex-padre, italiano, missionário do PIME que no início dos anos 70 descobriu outra vocação, levado pelo romantismo revolucionário de Che Guevara e Camilo Torres (também ele ex-padre).   Nascido em 1936, aos 23 anos,   Lino Bicaria aderiu à guerrilha do PAIGC e é o único estrangeiro que tem o estatuto de combatente da liberdade da Pátria. Viveu 23 anos na Guiné-Bissau. Radicou-se em Lisboa em 1990. Dele disse o jornalista João Paulo Guerra, no jornal Público,  de 24 de setembro de 1990:

(...) Não é um homem desiludido, mas um homem amargo quer hoje, à margem da Igreja e do Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e militante do PAIGC." (...)

É a primeira vez que ouço falar no nome deste Camilo Torres italiano (que, apesar de tudo, não acabou tragicamente como Che Guevara e Camilo Torres)... Fui saber mais, socorrendo-se da entrevista com ele, feita pelo João Paulo Guerra ("Crónica dos feitos da Guiné: A última missão do padre Lino").

(...) "O padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários.

Na Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros missionários, significava ouvir tiros Ao longe e viver num centro populacional sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.

(..) Foi em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do [Pontifício] Instituto para as Missões Estrangeiras [PIME]

(...) "No final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau, Lino Bicari entrou de novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional. 'Não era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso às tropas portuguesas', recorda Bicari." (...).

Mas voltemos ao nosso amigo do povo Balanta / Brasa, Salvatore Cammilleri (, apelido comum na Sicília) (***). E, já agora, porquê balanta, porquê brasa ?  São dois etnónimos curiosos que merecem uma explicação mais detalhada, na II parte da nossa nota de leitura. (****)

(Continua)
 ___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


22 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14065: (Ex)citações (256): Eu gostava de saber um pouco mais sobre esse missionário italiano, o padre António Grillo (1925-2014), que tinha um especial carinho pelos balantas de Samba Silate (e era respeitado por eles) (A. M. Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74)

(**)  Vd. poste de 30 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3000: Bibliografia (28): Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)

(***) Vd. também poste de 13 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10258: Notas de leitura (391): A Identidade Cultural do Povo Balanta, de Padre Salvatori Cammilleri (Mário Beja Santos)

(****) Último poste da série > 15 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19104: Notas de leitura (1110): Os oficiais milicianos paraquedistas da FAP, volume I: os que combateram em África (1955-1974)- Um trabalho sério, rigoroso e honesto de mais de 2 anos, de José da Fonseca Barbosa, em homenagem a uma geração de portugueses que ajudaram a escrever algumas das mais belas páginas de sacrifício e abnegação da nossa história contemporânea (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72)

10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

28 DE FEVEREIRO DE 2006
Guiné 63/74 - P577: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2006/02/guine-6374-dxciv-nhabijoes-quando-um.html

Escrevi no meu diário,

habijões, 20 de Dezembro de 1969

Nhabijões: um conjunto de tabancas, ao longo do Rio Geba, habitadas por balantas (uma delas por mandingas), sob duplo controlo (a expressão é das NT) e agora em fase de reordenamento (outro eufemismo: para mim, trata-se de puro etnocídio sociocultural, o que se está aqui a fazer, obrigando os pobres dos balantas e mandingas de Nhabijões a transferir-se da beira rio para uma zona de planalto, sobranceira ao Geba, e a viver em casas desenhadas e construídas por europeus)...

Há sempre um rosto (humano) por detrás da máscara mais impassível. Desespero, porém, de encontrá-lo nestes velhos e velhas, de sexo aliás indefinido, que carregam com todo o peso do tempo, e em que os próprios olhos perderam o seu brilho (humano).

Olhos de múmias que já não nos olham nem nos espiam. Fixam-nos, muito simplesmente. Se porventura existisse a eternidade, deveria ser este o olhar dos condenados (eternos). Já não são testemunhas de nada (mesmo mudas) porque a sua consciência individual se petrificou no tempo.

Nada têm de patético estes seres que já não são humanos. A única coisa que me inspiram é talvez um sentimento de abjecção. E, no entanto, eu deveria sentir uma profunda revolta pelas estruturas que criam esta inumanidade.

Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate (1) (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poidon (2) (regada a napalm pela força aérea) ainda despertam aqui trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (Tenho dificuldade em explicar aos meus soldados, que não falavam português quando os conheci em Contuboel, o que é isso, o que é essa sinistra polícia…).

Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

28 DE FEVEREIRO DE 2006
Guiné 63/74 - P577: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2006/02/guine-6374-dxciv-nhabijoes-quando-um.html

Escrevi no meu diário,

habijões, 20 de Dezembro de 1969

(Continuação)


A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…
Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…
Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…
Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas… (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mais um excerto:


28 DE FEVEREIRO DE 2006
Guiné 63/74 - P577: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2006/02/guine-6374-dxciv-nhabijoes-quando-um.html

Escrevi no meu diário,

habijões, 20 de Dezembro de 1969

(Continuação)

(...) Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação…
Sim, quem é – dos militares do quadro e dos milicianos de hoje – que sabe dessa história das guerras da pacificação da Guiné, do Teixeira Pinto, do Adbul Injai (3), etc. ? …
E no entanto, hoje, as NT sabem que podem ser responsabilizadas, disciplinar e criminalmente (por ironia, à face das leis de um país que assinou as convenções de Genebra, mas que considera os nacionalistas africanos como simples terroristas, bandidos, bandoleiros, turras…) por eventuais actos de violência física cometidos contra prisioneiros e população civil… O etnocídio dos reordenamentos, esse, não tem enquadramento jurídico...

Não se trata obviamente, em meu entender, de uma tentativa de redenção do colonialismo (que, de resto, não existiria, desde 1951, ano em que as nossas colónias passaram a chamar-se províncias ultramarinas…) mas de uma táctica defensiva, como o denunciou o secretário-geral do PAIGC, referindo-se a estas novas directivas do comando-chefe e governador-geral da Guiné, António de Spínola, que visam dissociar o binómio guerrilha-população…

Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha pelas armas… O que não deixa de ser irónico: retratando-se das suas anteriores posições militaristas, constata afinal o impasse a que tem nos conduzido o militaristismo e acaba por justificar, involuntariamente, a propaganda do IN. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...


... Atenção;

É um texto datado, eu era ainda "periquito", tinha ainda apenas 7 meses de Guiné... E via tudo a "preto e branco"... Um ano depois, em 13 de janeiro de 1971, podia ter morrido, às portas de Nhabijões, sob um apotente mina A/C, que rebentiou na minha GMC... Atrás, sob o rodado duplo traseiro... SE fosse à frente, não estaria aqui para criar e editar este blogue desde o dia 23 de abril de 2004...

Não amei nem odiei os balantas... Nunca consegui uma relação "empática" com eles... Os de Nhabijões só me conheceram como "militar"... Pobres balantas, "a carne para canhão" do Amílcar Cabral e os "bons selvagens" para os missionários católicos italianos...

Que estúpida de guerra!...LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... Gostaria ainda de poder voltar a Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Mandinga e Fá Balanta, e conhecer as tabancas "renascidas" de Samba Silate, Poindom, Ponta do Inglês...

Ou talvez não!... Talvez me fizesse muito mal, essa viagem ao um doloroso passado... Em 2008, só estive em Bamabdinca, e não me fez bem... LG

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Fui estudante do Ciclo Preparatorio e do Liceu Hoji-Ya-Henda em Bafata, de 1975 a 1979, onde o Padre Lino Bicari, um ex-Padre Italiano afiliado ao partido "libertador", era muito conhecido e Estimado. Mais tarde, viria a conhecer e casar-se com uma das filhas do antigo Régulo de Sancorla (Sambel Koio Baldé) e minha prima, de nome Francisca Ulé Baldé. O Sambel Coio Baldé foi fuzilado pelos esbirros do PAIGC em Bambadinca apos a independencia, destino que teriam mais 4 ou 5 dos seus irmaos, todos eles Principes de Sancorla e ex-Chefes de Milicias do lado Portugues e em defesa do seu sagrado chao. O "Padre" Lino é que foi o detentor da tese em como a mae verdadeira de Amilcar Cabral era uma mulher fula do Geba com laços de parentesco com a familia régia de Ganadu (a familia do Famoso rei M'bucu ou Umbucu do tempo do Tenente Marques Geraldes de Geba).
Actualmente, vivem em Portugal, mas desconheço se continuam ou nao juntos.


Segundo as fontes orais a que tivemos acesso, o termo ou étnonimo Brassa vem do termo mandinga Birassu, Brassu, Buraçu ou Braçu conforme as fontes em Mandinga ou Fula, Portugués ou Francés, que era a provincia occidental do reino mandinga de Gabu ou Kaabu e que viria a tomar varias formas nas diferentes linguas dos povos que ai viviam antes e apos o fim do imperio, na sua grande maioria mandingas, fulas, balantas, Djolas etc.

Assim, toda a zona norte da Guiné e parte da regiao de Casamança, no Senegal, se encontravam dentro desta antiga provincia, com epicentro no corredor de Farim/Mansoa que seria a Capital provincial e, donde os Brassas/Balantas sairam para depois se expandir mais ao sul do pais, até as regioes de Quinara e Tombali.


Partindo deste ponto de vista analitico, na Guiné, os Balantas nao seriam os unicos "Birassu" ou "Brassa" pois, também entre os fulas existem grupos, pouco conhecidos ou estudados, mas que seriam desta origem historica, os chamados fulas Birassunka Braçunka (em mandinga: Fulas de Biraçu), com especificidades proprias da lingua e cultura ainda hoje existentes, alias muito parecidas com as dos seus historicos vizinhos mandingas e balantas do norte.


Com um abraço amigo,


Cherno Baldé

Cherno Baldé disse...

Cont.

Em resumo, quando um Balanta ou Djola ou Fula identifica a si mesmo como "Brassa" ou "Birassu", isto queria dizer que se identificava com as suas raizes ou origens geograficas, em estreita ligaçao ao territorio/reino com o qual, para todos os efeitos, se identifica em relaçao aos outros.

Nao esquecer que em Africa, os processos de formaçao das identidades com base em determinados teritorios ou estados naçao iniciados no periodo pré-colonial, foram interrompidos e violentamente substituidos por relacoes comerciais e outras baseadas no trafico de armas e de seres humanos impostas de fora para dentro ou vice-versa a que nenhum povo africano, para poder sobreviver, podia ignorar ou dispensar em meados sec. XVI/XIX.


Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

O professor Cherno Baldé já nos ensinou mais coisas em meia dúzia de comentários, do que aprendemos em 24 meses de comissão na "Guerra do Ultramar".

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, Rosinha, é sempre com grande prazer, curiosidade, apreço e respeito que lemos os postes e os comentários do nosso professor Cherno Baldé.

CHermo, o mundo de facto é pequeno e a nossa Tabanca é... Grande! Não conheço o Lino Bicari mas gostaria ainda de o encontrar em Lisboa... Espero que estejoa bem de saúde, com os seus 80 e picos anos. Gostaria que ele nos pudesse ler e saber que tem aqui, entre os colaboradores permanentes do nosso blogue, um seu aluno, no liceu de Bafatá. o hoje dr.Cherno Baldé, um filho da Guiné, quadro superior, que optou, corajosamente, por viver e trabalhar na sua terra.

Prometo ao Cherno que vou tentar descobrir o seu paradeiro. Mantenhas para um irmãozinho Cherno Baldé. Luís Graça

Anónimo disse...

Caro amigo Luis Graça,

É pouco provável que o Lino Bicari que conheci sendo uma criança do Ciclo preparatório e mais tarde em Bissau, no inicio dos anos 80, se lembre de mim. Em contrapartida a sua esposa fula, minha prima Francisca Baldé assim como a Dra. Fernanda Dâmaso que foi minha conhecida e colega do curso de mestrado no ISCTE (1993/95), poderao lembrar-se porque privei mais com eles.

Um grande abraço para ti e ao mais velho Rosinha.

PS: Viver e trabalhar no meu país, para mim, não é nenhum sacrificio. Grande sacrificio seria se tivesse que viver no estrangeiro, mormente na Europa, onde o stress da vida e medo do estrangeiro vao de par. Eu nunca consegui perceber as motivações das pessoas, sobretudo dos nacionalistas do PAIGC, que depois de uma longa guerra de "libertação" para expulsar os "colonialistas", hoje queiram viver em Portugal ou passar a maior parte do seu tempo a viajar entre Bissau e Lisboa, carregando mulheres, filhos, enteados e tudo o mais. Sinceramente nunca percebi este estranho comportamento. Ontem lutaram e morreram para expulsar os Portugueses e, hoje, querem, a todo o custo, que os filhos tenham a nacionalidade portuguesa.

Cherno Baldé