terça-feira, 16 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19105: Estórias avulsas (92): Triste memória de guerra (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)



 

1. Em mensagem do dia 11 de Outubro de 2018, o nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos esta memória da sua passagem por terras da Guiné.




Triste Memória da Guerra

O Luís sentiu o impacto do projéctil que lhe rasgou a carne, com o corpo a sangrar, fez um esforço e rastejou até ao sulco da picada; sem se dar conta da gravidade da lesão, fez um sinal ao Vilaça mostrando o ombro ensanguentado. Mas o Vilaça, percebendo que que o não podia safar do sofrimento, faz dois tiros certeiros sobre os três guerrilheiros que tentavam aproximar-se perigosamente, reduzindo o seu potencial de fogo sobre os companheiros que ficaram mais expostos às balas das armas inimigas. O Luís continua resignado à sua sorte, deitado de costas, sentindo o corpo perder a seiva… começa a ver sombras no ar como se fossem grandes pássaros a desafiá-lo para voar.

Ao olhar na sua direcção, vejo o camuflado encharcado com o sangue que brota do ombro esquerdo e da barriga, Uma saliva espumosa sai-lhe pelos cantos da boca. Olha-me com a certeza de que não escapará desta… no meio do capim silencioso, sente a vida a escapulir-se sem que eu nada possa fazer para a segurar.

A secção do Ventura foi no encalço dos inimigos e conseguiu desalojá-los do esconderijo que nos foi fatal. Terminados os disparos, os socorristas apressam-se a estancar as hemorragias e a tapar as feridas com compressas. O Armindo injecta coagulantes e coraminas nos dois corpos perfurados pelas balas. É uma luta tenaz contra a morte… e começa a ser desesperante o nosso desassossego. As compressas já não conseguem segurar o sangue que se esvai irremediavelmente… até à última gota!

Ainda tive tempo de olhar na direcção do Pintinho… mas só vi os restos mortais dum corpo esfrangalhado, ali encostado ao tronco do cajueiro! E balbuciei:  
“ Não posso esquecer que foram os teus olhos e a tua destreza que me livraram das balas mortíferas. A tua morte foi trágica, o teu espírito brincalhão já não está entre nós… mas lá, onde te encontres, também poderás apanhar galinhas… até que um dia nos encontremos na eternidade, nem que seja para saborear o churrasco que prometeste. Entre as sombras do cajueiro, já não podes olhar em profundidade para dentro da alma dos que se riam como o teu jeito de palhaço. Olho o teu corpo disforme e vejo um vazio incrível dentro do camuflado! Em breve serás devolvido ao pó da terra e os teus pais já não vão poder dar-te mais rebuçados. Só tenho medo que te promovam a herói e te abandonem em qualquer campa desta terra que não é a tua”.

Com esta maneira de movimentar os neurónios, tento arejar a mente dos combatentes desprezados, para que não definhem com o abandono…

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18897: Estórias avulsas (91): "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... Lembranças da praia de Mil Fontes, onde passei as férias de agosto de 1983 a 1999... (Valdemar Queiroz)

12 comentários:

Valdemar Silva disse...

Abel, mesmo triste que seja convém lembrar que estivemos na guerra.
Ab.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Abel, lido às 4,30 da manhã, é um murro no estômago. Li e emocionei-me. Não é apenas grande sensibilidade, a tua, é preciso também muito talento para, em poucos parágrafos, descrever uma situação-limite como esta, a dos últimos minutos de vida de um camarada. Acho que merecia outro título o teu poste. É uma grande homenagem a um amigo e camarada que tu viste morrer, e que terá salvo a vida. Mesmo contigo ao lado, morreu sozinho, o Pintinho. Abel, tiraste-me o sono, em "flash back", revivi cenas parecidas... Não é triste a guerra, é uma grandíssima filha da puta... LG

Anónimo disse...

Caro Abel, li com bastante emoção este relato e não tenho palavras. Dizem que era a Guerra!
É verdade, a 2ª guerra mundial fez mais de 50 milhões - É uma estatística como dizia Staline.
Mas esta era a nossa guerra, e é isso que nos interessa.
Eu sou de 67/69, Nova Lamego. do Bat Caç 1933, que fazia o comando da zona L3, que incluía Buruntuma, e se chegava lá passando por Piche.
Pelo ardor da mensagem, acho que é uma data a rondar os 50 anos de história. ou 67 ou 68.
Eu era o Chefe do Conselho Administrativo do Batalhão, pouca gente conhecia esta especialidade única, por isso não devo ser um cara conhecido.
A vossa companhia a CART1742 era na altura em que lá chegamos, Set/67, a unidade que fazia a segurança a Nova Lamego.
Confirma por favor

Virgilio Teixeira

Alf mil do SAM

Anónimo disse...

Relato fiel de casos que vimos. Parabéns, Abel!

V Briote

Valdemar Silva disse...

Virgílio
Em Maio/Junho de 1969, quando a minha CART2479, depois CART11, chegou a Nova Lamego
ficou mas instalações do Quartel de Baixo, traseiras do edifício do Chefe de Posto,
que tinham sido da CART1742 e ainda lá encontramos vasos (fundo de meio barril)com
as cores/inscrições da CART1742 que foi a Companhia do Abel Santos.

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Obrigado Valdemar,
Realmente eu conheci essas instalações, talvez não ligasse muito aos números, só depois mais tarde tudo veio à memória, e também com a ajuda da HU.
O Abel Santos deve ter estado na mesma altura que eu, era só por curiosidade, pois eu não contactava muito com a malta da Companhia de baixo, a CART1742.
Esses vasos, fundo de barril, proliferavam por toda a parte, já era o inicio da época das reciclagens! Tudo se aproveitava, até as cascas de ostra, para fazer abrigos com os bidões de gasolina vazios.
Vamos ver se o Abel Santos responde à chamada.
Virgilio Teixeira

Juvenal Amado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Juvenal Amado disse...

Abel é triste, é dramático mas é preciso contar para que nunca sejam esquecidos.

Muito bem descrito que até arrepia e mesmo tantos anos depois do fim da guerra ainda somos subjugados por ela.

Um abraço

Abel Santos disse...

Camarada Virgílio boa tarde, confirmo o que o Valdemar descreveu, a minha CART era a companhia que estava sitiada no chamado quartel de baixo isto já em Setembro de 1967.

Um abraço.

Anónimo disse...

Caro Camarada Abel Santos,

Lamentavelmente, só agora dei conta desta tua narrativa.

Por favor, diz-me quando e onde foram tiradas estas duas fotos?

E quem morreu?

Antecipadamente grato pela tua resposta,

Um abraço, Jorge Araújo.

Abel Santos disse...

Meu caro camarada Jorge Araújo.

Estas duas fotos não estão relacionadas com o texto atrás descrito, são fotos do meu baú de recordações do qual me socorri para ilustrar a publicação apresentada.

As fotos são minhas, e foram tiradas na estrada para Béli na zona de Madina de Boé, aquando dos reabastecimentos aos camaradas lá sediados, e reportam-se ao ano Fevereiro de 1968. São viaturas de uma outra companhia que não sei precisar o nome, e se algum camarada faleceu.

Sem mais, atenciosamente.

Um abraço, Abel Santos.

Anónimo disse...

Caro Camarada Abel Santos,

Obrigado pelas informações supra. Vou investigar... depois dou notícias.

No entanto, creio tratar-se do episódio ocorrido no dia 12 de Fevereiro de 1968, onde morreu o camarada Paulo Lima, do PRecD 1129. Pode ser... mas também pode não ser.

Um abraço, Jorge Araújo.