sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

Ruína da antiga filial do BNU e Hotel Turismo

Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições tinta-da-china, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Tenho para mim que este acervo documental referente ao BNU da Guiné, constante do Arquivo Histórico, onde procedo ao possível levantamento do que pode ser tido como relevante das linhas gerais do processo socioeconómico, político e cultural, permitirá doravante aos investigadores um indispensável olhar sobre o funcionamento económico e financeiro da colónia, a mentalidade dos administradores, os marcos das mudanças, os sinais do desenvolvimento.
Os gerentes, como aqui aparece sublinhado por uma observação do administrador em Lisboa responsável pelo pelouro da Guiné, tinha o estrito dever de relatar as ocorrências pelo seu modo de ver, o governo do Banco precisava de ter informações em primeira mão. É o lado fascinante deste acervo, é o que escapa aos jornais e às briosas tiradas governamentais, pois claro.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56)

Beja Santos

No acervo documental avulso existente no Arquivo Histórico do BNU não há qualquer referência a 1948, em 1949 aparecem dois documentos que se podem revelar úteis. O primeiro relaciona-se com a situação da praça, presume-se que esteja assinado por Virgolino Pimenta, é dirigido ao governador do BNU em 23 de fevereiro, dele extraímos elementos com inegável expressão:
“Tem sido exagerado o movimento de letras protestadas, vindas do exterior.
São dois os factores a contribuir para tal.
O primeiro resulta de que, antigamente, só poucas firmas importavam e vendiam depois, ao pequeno comércio. De há tempo a esta parte, todo o comerciante, grande ou pequeno, se arvorou em importador.
O segundo, talvez o pior, é que as firmas vendedoras, da Metrópole, ou por falta de compradores ou por outra qualquer razão, põem a vender na Guiné, a torto e a direito, parecendo nem olhar à dimensão da cidade ou à garantia dos compradores. Assim, os de cá compraram em demasia e os de lá venderam com enorme exagero. Entre todos, excedeu-se imenso a firma dessa praça Coelho e Castro & Alves, cujas vendas para esta colónia foram a uns quinze mil contos, senão mais, no ano passado.
O volume dos negócios, na colónia, ficou aquém do volume das importações. O resultado foi o comércio estar abarrotado de mercadorias mas, não as vendendo com a desejada pressa, não realizou os fundos para pagar os seus encargos.
Chovem os protestos; as prorrogações; as conversões das letras em livranças, que outra coisa não representa senão delongas nos prazos de pagamento, etc. É justo dizer-se que, salvo pequenas excepções, todos procuram pagar.”

E conclui que a colónia está saturada de mercadorias, impõe-se, para segurança do Banco, reduzir na Metrópole o desconto de letras sob a Guiné. Aliás, observa igualmente o gerente, o Banco deve evitar encargos em novas e grandes remessas de mercadorias por uma razão essencialmente logística:
“A Alfândega não tem armazéns. Já estão em plena rua milhares de contos de fazendas que os que as encomendaram não levantam. As chuvas vêm em Maio e parte destas e de outras que vierem ficarão expostas à chuva e daí resultarão prejuízos que não vale a pena salientar”.

E passa a expor o que se passa com os negócios no tempo presente:
“Decorre a campanha da mancarra com relativa calma. O comércio exportador combina os preços de compra, tendo assegurado o preço de venda, na Metrópole. Bom sistema, que terminou a louca concorrência antiga. No entanto, os processos passados deram lugar a desconfianças presentes e os exportadores, para firmarem a sua honestidade de processos, tomaram entre si o compromisso de pagarem uma multa de cem contos, se algum for apanhado em desrespeito do que foi ajustado. Escolheram o gerente do Banco para depositário de cinco cheques de cem contos cada que constituem a garantia. Tem havido respeito pelos preços. Mas o que se não sabe – ou antes, se diz que se não sabe – é que pode haver alguns que, de facto não desrespeitem esses preços mas em conluio com vendedores podem oferecer facilidades de transporte, de pagamentos, etc., que vão, no fim, causar melhor preço.
Não se deve esquecer que isto aqui, nessa matéria é a Guiné. A Société Commerciale Africaine nem quis entrar em acordo de preços e entrou a comprar a mancarra por preço elevadíssimo, indo oferecer mais dinheiro aos clientes das outras casas. Isto produziu uma perturbação tremenda. O comerciante pequeno, vende uma casa a comprar tão caro, entendeu que as outras tinham que ir para aquele preço. E retraiu-se. Os que venderam aquela casa mais caro puderam comprar mais caro que os outros compradores pagavam ao indígena. E o indígena, passou a exigir de todos aquele mais alto preço e, como o não obtinha, não vendia a mancarra. Foi um alarme enorme e uma paralisação geral de negócios. Felizmente que aquela casa estrangeira não tinha recursos de armazéns e embarcações para um grande volume de compra da mancarra, pelo que parou a sua estranha e condenável atitude logo que comprou o que queria.

Quanto à campanha do arroz, decorre naturalmente, tendo-se chegado a um bom acordo quanto a preços e quanto a tabelas relativas ao preço do arroz a vender pelos industriais de descasque.

Para terminar, uma referência à existência de moeda estranha, na colónia.
Há cerca de 4 meses, pelas informações que procurámos, existiam uns 50 milhões de francos senegaleses na Guiné. A maior parte em mãos de comerciantes libaneses das regiões fronteiriças, sobretudo dos lados de Bafatá e Gabú. Tirando couros do Senegal, nada nos vem senão ouro em pó, trazido por indígenas de lá.
Rarearam as vindas desse ouro, devido a qualquer medida das autoridades francesas e os possuidores de francos estavam em grave embaraço. Porém, de há três meses a esta parte, tornou a aparecer o ouro”.

E dá conta minuciosamente dos valores de troca, terminando a sua exposição sobre a citação da praça nos seguintes termos:
“O indígena do Senegal, onde tudo falta, traz ouro e leva fazendas que deixaram lucro na Alfândega. Talvez seja esta uma razão por que nenhuma autoridade combate tal modo de negociar. Terminando, apraz-nos fazer uma referência à Sociedade Comercial Ultramarina. Está fazendo óptimo negócio dentro da máxima prudência. Os lucros de 1947 foram bons. Os de 1948 já se podem anunciar, serão melhores. Os do ano corrente, pelo que já se esboça e pelo que já se apurou, vão, talvez, duplicar”.

O segundo documento tem a ver com o relatório de entrega da gerência da filial de Bissau por Virgolino Pimenta ao novo gerente, Clarence Abílio do Quental Mendes, estamos em 15 de agosto de 1949. A prosa, incontestavelmente, saiu do punho de Virgolino Pimenta:
“Quase sem excepção, e contrariando o hábito antigo, raro é o comerciante da colónia que não se arvorou em importador directo, mesmo sem posses para se manter em tal posição. O pequeno comerciante, regra geral, tem pouco ou nenhum capital. Estabeleceu-se, auxiliado pelas casas maiores que lhe forneceram fazendas a crédito, geralmente, obrigando-se a pagar com produtos da agricultura.
Na altura da intensificação das chamadas campanhas dos produtos, tal ajuda foi ampliada com dinheiro. Assim, estava estabelecido um roulement de auxílio de fazendas e dinheiro de contra produtos.
Tudo corria dentro de uma normalidade só alterada quando a moral do beneficiado falhava ou uma má administração de negócios a perturbava.
Como consequência imediata da última guerra, este sistema modificou-se. O pequeno comerciante, não repudiou os auxílios atrás referidos e entrou a importar directamente. Era encargo superior às suas forças o obrigar-se a pagamentos, em prazos certos, das letras relativas às importações que fazia. As suas dívidas ao comércio maior tinham prazos de arrumação. Mas havia sempre transigências.
Protelavam-se liquidações, por vezes, de um ano para o outro mas essas demoras, por assim dizer, não apareciam à vista.
Não assim quanto às liquidações das suas importações directas porque, vencidas e não pagas as letras relativas, surgiam as más posições, avolumando-se o protesto. Apareceu a situação que está trazendo a nu os maus pagadores. Mas o procedimento descrito não trouxe só má posição aos pequenos. Trouxe-a aos maiores também. Entre eles: A. V. d’Oliveira & Cª., Aly Souleiman & Cª., António Romenos Dieb, António da Silva Gouveia, Lda., Barbosas & Ctª., Compagnie Française de l’Afrique Occidentale, Luiz António de Oliveira, Mário Lima, Nouvelle Société Commerciale Africaine, Nunes & Irmão, Sociedade Comercial Ultramarina e Société Commerciale de l’Ouest Africain. Todos eles faziam as suas importações contando com as necessidades próprias e as daqueles de quem eram, praticamente, fornecedores.
Tirando a Sociedade Comercial Ultramarina, que se abastece com precaução, não acumulando grandes stocks de fazendas, todos os outros foram apanhados, por assim dizer, de surpresa pois, chegada a altura de abastecer os seus clientes viram que estes se tinham abastecido directamente, quase todos. Surgiu assim o exagero de stocks de fazendas na colónia.
A colónia inundou-se de fazendas e nesta situação surgiu simultaneamente o abastecimento de fazendas ao Senegal e à Gâmbia, consequência imediata dos benefícios que o chamado Plano Marshall lhes trouxe. Fechou-se assim, quase de repente, a venda das nossas fazendas para aquelas colónias. Ao mesmo tempo, o nosso indígena, cujo poder de compra está muito aumentado devido às altas cotações de produtos, retraiu-se em comprar. As mercadorias não se vendem. As letras relativas deixaram de ser pagas. Os vendedores metropolitanos estão alarmados porque não lhes pagam o que forneceram.
Tudo somado, as casas grandes deixarão de ter dinheiro em caixa e as pequenas muito menos".

E deixa no relatório a situação das notas e de caixa, é um relato muito bem elaborado:
“As notas da Emissão Teixeira Pinto são de qualidade inferior às da antiga ‘Emissão Chamiço’ sobretudo nos tipos de Esc. 20$00 e inferiores, razão porque a sua duração não será tão grande como foi a daquelas. Temos, no entanto, uma reserva apreciável. Mas se o indígena continuar a amealhar é assunto que pode causar apreensões pois não haverá notas que cheguem.
O movimento da caixa tem dois ciclos.
Um começa na altura do fim do ano, quando principia a campanha da mancarra e como esta quase se conjuga com a do arroz os levantamentos atingem proporções consideráveis, aumentando-se a circulação a uma altura que atinge o limite legalmente fixado. Receio que, pelas circunstâncias atrás apontadas, este limite não chegue, na próxima campanha.
O segundo ciclo do movimento de caixa é regulado pelo início da cobrança do imposto indígena.
À medida que vai sendo cobrado, vão sendo feitos os respectivos depósitos pelas autoridades competentes, o que influi bastante na baixa do montante de circulação. Por vezes, convém solicitar que estas entregas sejam feitas sem demora, por dois motivos. Primeiro, o de fazer baixar a circulação e reverter à caixa as notas que nos fazem falta. Segundo, evitar que as administrações guardem avultadas quantias e as tragam de uma só vez pois isso traz graves complicações ao serviço de caixa, cujo tesoureiro levará dias e dias a contar só o dinheiro dessas elevadas entregas e não pode dar expediente ao restante serviço a seu cargo.
É por vezes difícil conseguir-se isto porque é agradável aos funcionários do mato, que trazem o dinheiro, permanecer em Bissau, ganhando ajudas de custo”.

E assim chegamos à década de 1950 que culminará com o chamado massacre do Pidjiquiti, objeto do importante documento enviado em 5 de agosto de 1959 com o título “Acontecimentos anormais”. Vai começar uma documentação preciosíssima de pré-anúncio da luta armada, até 1964 o gerente enviará informações fundamentais que em certos pontos reveem considerações sobre o evoluir dos acontecimentos. Reforça o nosso ponto de vista de que os gerentes do BNU desde longa data têm luz verde para relatar tudo aquilo que pode ir mais longe do que as informações oficiais, quase sempre censuradas.
Veja-se o que em 15 de julho de 1959 o responsável pela administração do BNU envia à gerência em Bissau:
“Vem-se verificando que nem sempre os senhores gerentes têm o cuidado de informar o governo do Banco das ocorrências de certa montra que se dão na área da sua Dependência.
Queremos acreditar que em muito isso é devido à convicção de que o ocorrido não é de maior interesse.
Estamos atravessando uma época de evolução satisfatória mas também de convolução perturbadora pelo que temos de acompanhar de muito perto tudo quanto se passa nas nossas províncias ultramarinas.
Nestes termos, ainda que a um senhor gerente pareça que determinado facto não deve interessar-nos, convém dar-nos dele imediato conhecimento mais ou menos detalhado, enfim, consoante a importância que o ocorrido lhe possa mostrar.”

(Continua)

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.

Receção ao Subsecretário do Ultramar, Raul Ventura, na sua visita à Guiné, na Praça Teixeira Pinto, Bissau

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.
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Notas do editor:

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Último poste da série de 19 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

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