sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19094: Notas de leitura (1108): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55) (Mário Beja Santos)

Guarda de honra no cais de Bolama durante a visita do Subsecretário do Ultramar, Raul Ventura
Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Nunca me passou pela cabeça que o gerente Virgolino José Pimenta se transformasse num dos atores principais de todas estas peripécias que aqui se descrevem, relativas ao desempenho do BNU na Guiné.
No texto que ora vos deixo em mãos, o gerente pede ao Sr. Governador do BNU uma compensação pecuniária por dar comida e guarida aos ilustres hóspedes e visitantes que acorrem a Bissau para as comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, acrescendo intelectuais e jornalistas que vêm para outros certames, muitos deles convidados de Sarmento Rodrigues, hospedagem irrecusável. Mas o ponto alto é o documento que ele deixa ao seu substituto, é percetível que muita coisa mudou na colónia com Sarmento Rodrigues, disseca a natureza dos negócios e como funciona a área produtiva e exportadora. Dá-nos, em consequência, um quadro elucidativo do que era a economia no pós-guerra.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55)

Beja Santos

Nesta documentação avulsa que se está a convulsar, damos por terminado a análise da documentação do período da II Guerra Mundial.
Não há qualquer documentação relevante quanto a 1946, mas em 28 de janeiro de 1947, o gerente Virgolino Pimenta dirige-se nos seguintes termos ao governador do BNU:
“O desenvolvimento que Bissau tem tido não foi acompanhado pela indústria hoteleira.
Assim, por motivo das festas do V Centenário, já aqui têm vindo algumas individualidades e outras virão, que não encontram alojamento. O Governo da Colónia pede esse alojamento aos particulares e o Banco não é esquecido.
Não se tem podido negar atenção a tais pedidos que, passada esta quadra de festas, devem cessar.
Há pouco, o Banco teve de hospedar o Chefe de Estado-Maior Naval de Dakar e o gerente dar alimentação a este e aos oficiais do hidroavião francês que aqui os trouxe para estudo de uma carreira aérea. Dentro de dias, terá que se dar hospedagem a dois ou três cientistas que vêm ao congresso dos cientistas das colónias ocidentais de África.
As atenções do Sr. Governador pelo Banco e pelo seu gerente são tantas que seria incorrecção enorme desatender estes pedidos.
No entanto, como é fácil de calcular, a satisfação dele arrasa a fraca economia do gerente.
Tratando-se de um caso especial, próprio desta época das festividades do V Centenário, parece-nos que V. Ex.ª poderia fazer o favor grande de ponderar a situação do gerente de Bissau, concedendo-lhe a título especial uma remuneração que o compensasse das despesas já feitas e a fazer, as quais não devem ir além de 4 a 5 contos.
Supomos que não é caso virgem uma concessão desta natureza e em casos especiais como aquele em que estamos”.

Virgolino Pimenta está no seu posto há bastante tempo e não surpreende o documento que seguidamente se fará referência, trata-se do relatório referente à entrega da gerência da filial de Bissau ao gerente José Henrique Gomes, sai do punho de Virgolino Pimenta, a data é 28 de julho de 1947, começa em tom muito prazenteiro:
“Sendo esta a sua primeira gerência, pode considerar-se que é em feliz momento que a vai assumir. Os serviços da filial estão em ordem. Praticamente, não há problemas a resolver que sejam de molde a causar apreensões. As relações com a clientela são positivamente boas. As relações com as autoridades são as melhores, por toda a colónia. As relações com Sua Ex.ª o Governador são óptimas. É uma pessoa estruturalmente honesta e bem-intencionada que merece toda a nossa consideração.”

E chegou o momento de Virgolino Pimenta desembainhar a espada, se até agora se conteve, vem fazer recomendações ao seu sucessor:
“A Guiné é colónia com as características de ‘exploração’ se bem que melhorada sob o aspecto de condições necessárias à permanência de europeus, não deixa entrever uma transição próxima para o tipo de ‘fixação’. Os que vivem aqui e despendem as suas actividades não podem fugir à característica fundamental que norteia os seus interesses. É resultante imediata e natural destes a luta intensa em que vivem e as dissensões que por vezes surgem, agravados pela má preparação inicial de alguns, sob o aspecto de cultura, educação e preparação moral.
Viver o gerente do Banco em campo neutro é a posição que temos conseguido e a única que convém ao interesse do Banco e ao sossego do próprio gerente.
Temos vivido bem com todos. É claro, impossível evitar-se, de longe em longe, sobretudo quando o meio é envenenado por algumas dessas tremendas rajadas de imoralidade um ou outro aborrecimento. E, caso curioso, tais aborrecimentos nascem exactamente porque o gerente da filial não acamarada com certas coisas que são desonestas.
Não ficam mal aqui estas considerações feitas por quem tem onze anos de vida da Guiné, entrou limpo e limpo sai.
Até neste capítulo é feliz o colega que nos substitui porque o ambiente moral do meio é, presentemente, tão bom que até parece milagre o registar-se”.

E postas estas considerações, Virgolino Pimenta traça um quadro do mundo dos negócios que o seu sucessor tem pela frente:
“A vida da colónia intensifica-se quando começa a campanha da mancarra. Por meados de Dezembro já se não fala em mais nada senão na abertura da campanha. Em princípios de Janeiro e durante todo mês e o de Fevereiro, a luta é tremenda. Todos querem comprar o mais possível. Não se olha a meios. Compra-se mancarra má com mancarra boa. Compra-se terra. Compram-se cascas, com tanto que se compre mais que o vizinho do lado. E a loucura sobe tanto que se faz cair em desuso uma lei que manda limpar a mancarra, em tararas, antes de se pesar e se paga por preços que de antemão se sabe não serem cobertos pelos preços que será paga no exterior da colónia.
Joga-se com a mancarra como se joga com uma lotaria.
Decresce a campanha a partir de Março e pode-se considerar extinta por fins de Maio. Na região do Quinara e Cubisseco, a campanha da mancarra começa mais tarde, principiando em Fevereiro, intensifica-se em Março e já está terminada em Abril ou Maio, o mais tardar. Têm ganho dinheiro os que assim jogam porque há miséria no mundo. Os lá de fora que compram o produto também não se mostram exigentes quanto à qualidade. Regateiam preços, a princípio. Mas, depois, precisados dele, alteiam preços e acabam por pagar bem. O produto chega-lhes às mãos melhor do que entrou em casa dos compradores locais. Muita casca, muita terra; muito bago chocho ficou pelos armazéns, pelos camiões, pelos batelões e pelos navios por onde a mancarra passou. E as quebras são cobertas!
Mas, vindo a normalidade, a Guiné não pode mais trabalhar assim porque o risco será tremendo. E o Banco, fornecedor de capitais, chegada essa altura, terá que agir com prudência enorme, se não quiser suportar todas as consequências das loucuras dos outros. Não deve repetir-se o caso Victor Pereira, de Bolama e, para tal se não dar, todo o cuidado do gerente de Bissau é pouco.

Mal começada a campanha da mancarra, já desponta a do arroz. E começada em fins de Dezembro ativa em Janeiro, Fevereiro e Março. Começa a esbater-se em fins de Junho mas prolonga-se em transacções fracas até Agosto.
Praticamente as duas campanhas coincidem, e isto, se por um lado é bom porque nos origina um período de captação de operações e, consequentemente, de lucros, traz ao gerente da filial um período de desassossego e enervamento.
Apesar dos sucessivos aumentos do limite da circulação fiduciária, esta não chega para as necessidades das duas campanhas juntas.
Chovem as ordens de pagamento vindas da sede, expressas em milhares de contos. Esgotam-se os milhares de contos dos saldos das contas de ‘Depósitos’ e Devedores e Credores e, por vezes, estas duas últimas contas, esgotadas, bastam para provocar o excesso do limite fixado. Para a liquidação das ordens recebidas, geralmente provenientes de depósitos feitos em Lisboa, para cobrir cambiais da exportação, depósitos estes cuja aceitação não pode ser negada, ainda temos a defesa de retardar pagamentos convertendo os escudos metropolitanos em escudos da Guiné só depois das exportações feitas.
Mas se este proceder nos traz a consequência de retardar elevações no excesso do limite da circulação, traz-nos reclamações formidáveis por parte da clientela.

As casas-mãe, na Metrópole, depositam estes dinheiros na nossa sede contando que seja imediatamente pago às suas filiais, na Guiné, pois é com eles que contam para a compra dos produtos. Se lhe negamos o dinheiro paramos-lhe o negócio e é escusado contar o que, por essa razão, tem que ouvir, de pedidos e protestos o gerente de Bissau.
Quanto aos depósitos, que fazer? Nada. Só uma suspensão de pagamento de cheques sobre as respectivas contas, o que se não pode fazer.
 É inevitável, portanto, todos os anos, enquanto os preços dos géneros coloniais não baixarem muitíssimo, em relação aos preços actuais, evitar-se o aumento do limite da circulação. Pior que tudo é o verificar-se que exactamente na quadra em que a filial é mais assediada com pedidos de crédito ser forçada a restringir operações, para evitar saídas de dinheiro e o consequente excesso da circulação.
Tem o gerente desta filial tido um trabalho duro para realizar, em tal quadra, um programa que, servindo o Banco, sirva os clientes. Tem a certeza de que o Banco ficou bem servido pois os lucros realizados são bem interessantes e, quanto aos clientes, com mais explicação, menos explicação, demorando uns mais pacientes, resolvendo os casos dos mais apressados, lá tem levado tudo a bom fim e sente o agrado geral”.

Até agora Virgolino Pimenta, depois de ter caraterizado o ambiente em que se labora e os dois principais negócios, e como são tratáveis, expõe os negócios restantes:
“A campanha do coconote, intimamente ligada à do óleo de palma, começa a esboçar-se no fim de Abril e vai durando até Agosto e mesmo Setembro. Campanha lenta, sem as características violentas das da mancarra e do arroz, já não produz as consequências daquelas e, por assim dizer, quase se não sente, se bem que, ainda por momentos, pese na circulação de notas durante os períodos em que se acumula com elas.
Mais tarde, vêm as colheitas do milho e do funde, produtos que são consumidos totalmente pelo indígena, que se não exportam e pelos quais o comércio não se interessa.
De Maio a Agosto corre a campanha da seda, lentamente e sem pesar também grandemente na circulação. O negócio dos couros corre durante todo o ano. Como a maior quantidade deles vem do ‘chão francês’, é paga, em parte, com francos senegaleses nas regiões fronteiriças onde este franco corre como se fosse moeda da colónia, não nos parecendo fácil acabar-se com tal sistema nas regiões fronteiriças. O negócio da borracha está morto pois desde que o comerciante a não pague aos indígenas por preços altos, estes não a têm”.

O gerente debruça-se agora sobre operações financeiras, aborda os negócios dos pequenos comerciantes, as casas nacionais e estrangeiras, as letras e o regime de conta-correntes, é, como sempre, de grande clareza:
“A parte importante do comércio da Guiné é formada por casas cujas sedes estão no exterior da colónia, sendo estas que as abastece de dinheiro.
Assim, as operações de desconto da praça são raras, porque as transacções entre os pequenos e os grandes comerciantes são liquidadas a dinheiro ou por permuta de géneros coloniais por fazendas. É raro, portanto, o papel com a característica pura de comercial. Letras de favor que podem merecer a aceitação pelo Banco conforme a confiança que merecerem os intervenientes. De uma maneira geral, todo o pequeno comerciante vende os géneros que compra ao grande comerciante e este remete-o às suas sedes que ajustam as colocações no exterior e recebem as liquidações.
Assim, raro é também o aparecimento de letras sacadas sobre o exterior da colónia.
Antigamente, as casas nacionais e estrangeiras vendiam a mancarra para o estrangeiro e daí resultava o aparecimento de letras sobre diversos países, sobretudo do norte da Europa. Hoje, como ainda não foi permitida a exportação para o estrangeiro, não aparecem tais letras.
Tem a filial trabalhado em regime de conta-correntes caucionadas com alguns clientes com bons resultados, sendo uma operação que agrada à clientela, apesar de ser um tanto pesada quanto aos seus encargos.
Mais se poderia desenvolver se o Banco tivesse armazéns capazes para guardar as cauções que, sempre que possível, deviam entrar nos armazéns do Banco”. 

Segue-se a análise de casos especiais, neste contexto pouco relevantes.
Estava-se nesta fase de leitura quando os papéis trazem nova surpresa: é o relatório da entrega da gerência da filial de Bissau feita novamente por Virgolino José Pimenta desta feita a um novo gerente, de nome Clarence Abílio do Quental Mendes, tem a data de 15 de agosto de 1949. Fica-se ainda por saber se o gerente Virgolino voltou à gerência por sua iniciativa, se correu mal a vida ao gerente José Henrique Gomes, o que interessa é que ele voltou à Guiné, é indubitavelmente o gerente que tem o palmarés da mais prolongada estadia, é um dos cronistas desconhecidos mais importantes no canal do Geba.

(Continua)

Chegada dos Capas-Negras a Bissau, receção na “Real República dos Cágados”
Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.

Imprensa Nacional em Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Vista do interior do Palácio do Governador
Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições tinta-da-china, 2016, com a devida vénia.
____________

Notas do editor

Poste anterior de 5 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19073: Notas de leitura (1106): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (54) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 8 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: