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terça-feira, 19 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24674: Manuscrito(s) (Luís Graça) (232): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte III: de herói patuleia a perseguido e fora-da-lei



Capa e contracapa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")


1. Aos 19 anos, por volta de 1836/37, José Teixeira da Silva (nascido em 22 de junho de 1818, no concelho de Penafiel), vai cumprir o serviço militar, no regimento de lanceiros nº 2, os "Lanceiros da Rainha", na Ajuda, em Lisboa. (*)

 Eis, a seguir,  como o Camilo Castelo Branco, a partir das confidências do Zé do Telhado na prisão do Tribunal da Relação do Porto (por volta de 1860/61), relata a sua vida na tropa e depois a sua participação na “Revolta dos Marechais” em julho de 1837, e mais tarde, em 1846/47 na revolta da “Maria da Fonte” (primavera de 1846) e na guerra da “Patuleia (novembro de 1846/junho de 1847). No primeiro caso, indo integrado nas forças do duque de Saldanha (que estava do lado dos “cartistas”) e no segundo caso como ordenança do general Sá da Bandeira, "setembrista", que tinha tomado o partido da Junta do Porto. 

Em 15 de novembro de 1846, num combate de Valpaços, Trás-os-Montes, José Teixeira da Silva (por alcunha, "Zé do Telhado") ganha por atos de excecional bravura a condecoração da Torre e Espada, grau de cavaleiro.  

Aos 19 anos, o Zé do Telhado trabalhava, como "capador" ou "castrador",  com o tio materno, no concelho vizinho de Lousada, e pretendia casar-se com a sua prima, Ana Lentina  de Campos, já órfã de mãe. O Camilo diz que este tio era de origem francesa, facto que está por comprovar. O pai da moça recusou-lhe a pretensão. Desgostoso, o rapaz alista-se no exército.

(…) Foi o moço para Lisboa, e jurou bandeira no segundo Regimento de Lanceiros, denominado o da Rainha [Dona Maria II] . A esbelta figura de José Teixeira era o encanto dos oficiais. Nenhum camarada caía tão airoso na sela, nem meneava mais garboso a lança. O cavalo entendia-lhe o mais ligeiro tremor de pernas, e enfeitava-se orgulhoso do possante e galhardo moço, que lhe embridava os ímpetos para realçar-lhe as soberbas graças.

Na conhecida revolta dos Marechais, em 1837 [1] saiu José Teixeira na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou quem era nos combates do Chão da Feira [2] e Ruivães [3]

“Lá ouvi” − me dizia ele – “a cantiga das primeiras balas e algumas me queimaram o cabelo, e vinham dizer-me ao ouvido que estivesse sossegado. O barão de Setúbal [4]  disse-me uma vez que choviam balas; e eu mostrei-lhe a lança, e disse: “Cá está o guarda-chuva, meu general; deixe chover!”.

Não esqueceu o valente Schwalback 
[4] o afoito gracejo, quando a derrota lhe desordenava as filas. Como, em remate de luta, tivesse de emigrar para Espanha, o barão de Setúbal levou consigo, como sua ordenança, José do Telhado.

Fez-se a Convenção de Chaves [5] a tempo que o lanceiro recebia a Carta da sua prima, chamando-o a toda a pressa para se casarem com o consentimento do pai. Requereu o soldado a baixa, e obteve-a do barão de Vilar de Turpin, comandante da Terceira Divisão Militar. Recebeu o francês [seu tio materno e futuro sogro, que vivia na Lousada] em braços paternais e dotou a filha com abundantes bens para mediania aldeã. (…)

Seguiu-se a revolução popular de 1846 [5]. A populaça carecia de um chefe, e rejeitava os ilustres caudilhos, que saíram de suas casas nobres a especular com o braço do povo. Conclamaram à uma José Teixeira, e quase forçaram a comandá-los.

O chefe, conhecendo-se obscuro de mais para aceitar a responsabilidade e prestígio de cabecilha guerrilheiro, convenceu os seus amigos da precisão de se ajuntarem, sob outro chefe, às legiões populares que confluíam para a cidade heróica [o Porto].

Entrou José do Telhado ao serviço de Junta [do Porto] na arma de cavalaria. Comprou cavalo, e fardou se à sua custa a todo o primor. Repartia do seu dinheiro com os camaradas carecidos, e recebia as migalhas do cofre da Junta para valer aos que de sua casa nada tinham.

José Teixeira empenhou-se grandemente para satisfazer o que em parte era capricho e em parte largueza de alma.

Acompanhou a expedição a Valpaços, e foi dado como ordenança ao senhor visconde de Sá da Bandeira. As proezas cometidas nessa temerosa e mal sortida batalha, estão escritas na condecoração de Torre-e-Espada que o general, por sua própria mão, lhe apresilhou na farda.

Fora o caso que do cômoro duma ribanceira alguns soldados do regimento traidor [leais aos Cabrais] apontavam as armas ao general, conturbado pela fumaça das descargas, José Teixeira arranca do cavalo a toda a brida, toma as rédeas do cavalo do general, e obrigou a assaltar um valado. Mal deram o saldo, passaram as balas poucas polegadas acima da cabeça de ambos.

A este tempo três soldados de cavalaria avançaram desapoderados sobre o visconde de Sá. José Teixeira embarga-lhes a arremetida, desarma o primeiro de um golpe, fere mortalmente o segundo, e persegue o terceiro, que fugia, até lhe arrancar a vida pelas costas.

Quando voltou da fação, já o general tinha suspensa a medalha, que o valente recebeu com mais delicadeza que entusiasmo de honras.

Feito com o convênio de Gramido, José Teixeira arrancou as divisas de sargento e foi para casa, onde o esperavam a saudosa e atribulada mulher com os seus cinco filhos.

Como se disse, a casa estava onerada de dívidas, os credores perseguiam-no e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam disfarces para o 

afligirem. (…)

(Excertos: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862), pp. 87-91. Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor LG:

[1] De 12 de julho até 7 de outubro de 1837

[2] Chão da Feira: perto da Batalha (28 de agosto de 1837)

[3] Ruiváes, Chaves (15 de setembro de 1837)

[4] João Schwalbach (1774-1847), barão de Setúbal

[5] Maria da Fonte e Patuleia (1846/47)
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Nota do editor:

sábado, 4 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11526: Tabanca Grande (397): Luciana Saraiva, sobrinha do ex-cap comando Maurício Leonel de Sousa Saraiva, nova tabanqueira, nº 616 (a viver em Floripa, Brasil)

1. Mensagem de Luciana Saraiva Andrade Guerra, sobrinha do ex-cap comando Maurício Saraiva, já falecido (com o posto de coronel), e de que foi dado conhecimento ao Virgínio Briote, nosso coeditor (jubilado) e um dos nossos camaradas da Tabanca Grande que mais privou com Maurício Saraiva, nos anos de 1965/67:

Data: 29 de Abril de 2013, 19:57

Assunto:  P11485 (*):

Prezado Luís Graça,

Que bom saber que tem amigos e familiares em Floripa. Logo vou abrir conta no Google e fazer parte da Tabanca Grande. Parabéns pelo vosso Blog (**).

Obrigado, vossas saudações serão entregues a meu pai. Eu ainda não lhe contei a novidade. Tenho pena de não ter tido a oportunidade de ter convivido mais com meu tio.

Gostaria ainda de agradecer muito a resposta de Virgínio Briote. Espero que se recupere em breve e tudo corra bem. Entrarei de novo em contato para conversarmos sobre este livro que estou fazendo. Tenho a certeza, que o senhor será uma ajuda e tanto quando nos podermos encontrar para analisar toda essa documentação que tem consigo, acrescentando os testemunhos pessoais.

Vou marcar minha passagem para o Porto talvez lá para o dia 23 de maio. Caso nessa altura seja possível o Virgínio Briote se encontrar comigo, ficarei contente. Hoje felizmente podemos digitalizar algumas fotos e documentos, o que facilita muito nosso trabalho, principalmente devido às distancias. Se achar melhor pode me enviar seu endereço de e-mail para eu poder saber mais sobre o tio Maurício.

Mas apesar de todo o oceano que temos a separar estes dois países, Portugal está sempre no meu coração, principalmente as pessoas.

Como o Luís deve saber, Florianópolis é uma cidade muito bonita, tem as 4 estações e assim o clima é um pouco mais parecido com o europeu.

Por hoje é tudo, vou então entrar no vosso Blog,

um abraço a todos


2. Resposta do Virgínio Briote, com data de 29 de abril

Minha Cara Luciana,

Gostei muito de ver a sua mensagem, dizendo quem era e o que queria. E, apesar de estar algo afastado das lides bloguistas, senti-me na obrigação de dizer Presente quando o Professor Luís Graça ma reencaminhou.

De facto, fui um dos Camaradas do seu Tio e tenho muito gosto em ter privado de muito perto com ele. Infelizmente, depois de regressar a Lisboa, vindo da Guiné-Bissau, só voltei a encontrar-me com o então Capitão Saraiva, duas a três semanas depois da minha chegada. Depois sabe como são as coisas. Naqueles anos 65 a 67, éramos meninos, eu tinha feito 23 anos no navio do regresso. A Guiné, para nós, foi um inferno e, como muitos outros, a partir de uma certa altura, resolvi enterrar o assunto e fazer de conta que nunca lá tinha estado. Casei, comecei a trabalhar, fui estudando, nasceram-me filhos e fiz a minha carreira profissional até me reformar.

Ao longo dos tempos fui tendo notícias dele. Soube, é claro, que tinha sido ferido gravemente em Moçambique e, curiosamente, 40 e poucos anos depois reencontrei em Viana do Castelo (aqui no Minho, no Norte de Portugal) um antigo soldado meu na Guiné que fez parte da Companhia de  Comandos do Capitão Saraiva e que assistiu ao rebentamento da mina que o atingiu. Depois veio o 25 Abril, o seu tio saiu de Portugal e fui tendo algumas notícias dele até que soube que já tinha morrido, quando o procurei.

O capitão Saraiva, mais tarde reintegrado, não a seu pedido mas por diligências efectuadas por vários Camaradas, e promovido a Coronel, foi uma pessoa que me deixou saudades e que me marcou profundamente e, sem dúvida, foi um dos militares portugueses que mais se distinguiram na guerra colonial, tendo por isso sido louvado e condecorado numerosas vezes [e em 1970, com o grau de oficial da Ordem Miitar da Torre e Espada].

E pronto, Luciana, acho que já me apresentei o suficiente por hoje. É claro que estarmos a falar do "Capitão" Saraiva levava-nos uma noite ou duas, com os Camaradas vivos que combateram com ele e as recordações iriam surgindo naturalmente. O que lhe posso dizer, para terminar, é que quem com ele contactou na Guiné ainda hoje fala dele como se fosse, e foi, uma figura lendária.

Contacte quando quiser, Luciana. Terei sempre tempo e, julgo, força suficiente para conversarmos e arranjar gente que com ele conviveu.

Cumprimentos daqui!

V Briote


3. Comentário de L.G.:

Querida amiga: Obrigado por ter aceite o nosso convite para integrar a Tabanca Grande, ou seja, a comunidade virtual de amigos e camaradas da Guiné que se reúne à sombra de um mágico, secular, fraterno, mágico poilão (como se diz no Brasil ?)... Costumamos dizer, aqui,  que os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são... Pensando em pessoas como você (e temos mais "sobrinhos" no nosso blogue), poderíamos acrescentar:  os/as sobrinhos/as dos nossos camaradas nossos/as sobrinhos/as são...

A Luciana passa a ser a "tabanqueira" nº 616 (**) A sua presença muito nos honra, a todos nós, ex-combatentes da Guiné.  Vamos publicar a mensagem que mandou ao Virgínio Briote e em que acrescenta mais informação sobre o seu tio, e nosso camarada, Maurício Saraiva. Pessoalmente,. não o conheci. Sou mais "pira", mais novo, do que ele e o Briote, estive na Guiné na  época de 1969/71, sob o comando do gen  Spínola.

Quanto a Floripa,. tenho lá amigos e parentes. Também em Itapema (onde vive um velho amigo, o Zeca Ferreira Cardoso) Mas não conheço o Brasil. Há uns anos estive para ir a um Congresso Mundial da Medicina do Trabalho, em Iguassu, mas acabou por não ir. Sei que é um belo estado, Santa Catarina. E que Floripa foi fundado por açorianos... Pode ser que um belo dia destes a gente se encontre em Floripa. Mas o mais provável aqui, no "Puto", um dia destes... Vá dando notícias, nomeadamente do seu livro e das suas pesquisas sobre o tio Maurício.

PS - O Brasil é, a seguir a Portugal, o país onde temos mais leitores/visitantes do nosso blogue. Vários "tabanqueiros" nossos, antigos combatentes da Guiné, vivem no Brasil, há décadas...Obrigado por estar a seguir o nosso blogue que passa também a ser seu. Entre camaradas, tratamo-nos por "tu" e não por "você".  Faz parte das nossas regras. Mas os/as amigos/as têm direito a maior defeência... Ah!, não se esqueça de nos mandar um foto com melhor resolução do que aquela que publicamos acima. E diga-nos como quer ser conhecida aqui, na Tabanca Grande: Luciana Saraiva ?  Luciana Saraiva Andrade ?  Luciana Saraiva Andrade Guerra ?

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 27 de abril de 2013 >  Guiné 63/74 - P11485: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (68): Luciana Saraiva Guerra, sobrinha do cor comando, já falecido, Maurício Saraiva, está a escrever um livro sobre a família, natural de Valpaços, e o tio paterno, nascido em Angola

(**) Último poste da série > 25 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11464: Tabanca Grande (396 ): Novo membro, o nº 615: Mário Vasconcelos (ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro; COT 9, Mansoa, CCS/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973/74)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3432: Efemérides (13): A Ordem Militar da Torre e Espada faz 200 anos (José Martins)

O distintivo da antiga Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito é formado por uma estrela de cinco pontas de esmalte branco, perfilada de ouro, assente sobre uma coroa de carvalho, de esmalte verde, perfilada e frutada de ouro, tendo entre as duas pontas superiores uma torre, de ouro e iluminada de azul, sendo a estrela carregada, ao centro, de um circulo de ouro com uma espada de esmalte azul, posta em faixa sobre uma coroa de carvalho de esmalte verde e realçada de ouro, tudo envolvido por coroa circular de esmalte azul, filetada de ouro, com a legenda « Valor, Lealdade e Mérito », em letras maiúsculas de ouro; no reverso, ao centro e em campo de esmalte azul, o escudo nacional, circundado da legenda «República Portuguesa», em letras maiúsculas, de ouro.


Os 200 anos da Ordem Militar da Torre e Espada
de Valor, Lealdade e Mérito

por José Martins
(Ex- Fur Mil Trms,
CCA5, Canjadude, 1968/70)


Considera-se que foi criada em 1808, ano da chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em virtude da ameaça, concretizada, da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão, comandadas, na que ficou conhecida como a primeira Invasão Francesa, pelo General Junot.

Mas, a origem, ainda que não oficial desta condecoração, remonta segundo relatos e documentos, ao tempo de D. Afonso V, que reinou de 1438 a 1481, cujo cognome era o Africano, devido ás expedições que organizou ao Norte de África, passando, inclusivamente, a intitular-se “Rei de Portugal e dos Algarves de aquém e alem mar em África”.

À condecoração a que se alude, teria atribuído o nome de “Ordem da Espada”, “Ordem da Espada e Torre” ou “Ordem da Espada de Sant’Iago”, baseado numa lenda em que, o príncipe cristão que retirasse uma espada da Torre de Menagem do Castelo de Fez, faria terminar o domínio árabe em África, passando este para os cristãos.

Esta condecoração e mesmo a lenda, comparável com as lendas dos antigos cavaleiros medievais, queria incentivar os portugueses a partirem para África, não só na busca de novas terras, mas também de glória pessoal, já que esta condecoração lhes traria as honras e privilégios atribuídos, outrora, aos membros das Ordens Militares.

Voltando a 1808 e á viagem da família real para o Brasil, foram os diversos navios que constituíam a frota portuguesa, acompanhados e protegidos por uma esquadra da Marinha de Guerra Britânica, a quem havia que agradecer, galardoando os mais proeminentes dos seus membros: o Almirante e os Oficiais.

Como estes não eram católicos, não lhes era possível, pelas disposições que regulavam as Ordens Nacionais, serem galardoados por qualquer das existentes, que eram provenientes das Antigas Ordens Militares Portuguesas. Desta forma, só criando uma nova condecoração, que não tivesse as restrições apontadas, pudesse ser atribuída a cidadãos não nacionais e de credo diferente.

No entanto, no decreto de criação da Ordem da Torre e Espada, com a legenda “Valor e Lealdade” refere a sua origem na mítica Ordem da Espada, criada em 1439, e cujos primeiro galardoados foram o Almirante e Oficiais da esquadra britânica.

Em 1832, a 28 de Julho, D. Pedro, regente em nome da sua filha a rainha D. Maria II, reforma a condecoração, atribuindo-lhe o nome de “Antiga e Muito Nobre Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito”, passando também a galardoar o mérito pessoal, feitos de armas, coragem e abnegação cívica, ou serviços prestados na carreira pública, com destaque para a carreira militar.

Foram-lhe atribuídos quatro graus: Grã-cruz, Comendador, Oficial e Cavaleiro. Passou a ser considerada a maior condecoração portuguesa, com precedência sobre todas as outras, estatuto que ainda hoje mantém. O grau de Grande Oficial, foi introduzido mais tarde, em segundo lugar na ordem decrescente.

Com a abolição da Monarquia em 1910, foram também extintas as Antigas Ordens, com excepção para a Ordem da Torre e Espada.

Em 1917, com a entrada oficial de Portugal na Grande Guerra, já que nos encontrávamos envolvidos nela desde 1914 nas colónias, assim chamadas na altura, cujas fronteiras confinavam com as possessões alemãs, foi decidido restabelecer as Antigas Ordens como ordens de mérito civil e/ou militar.

A remodelação efectuada em 1917, que considerava como passível da atribuição desta Ordem a feitos praticados no campo de batalha, actos de coragem e abnegação cívica, bem como altos e assinalados serviços prestados à Humanidade, à Pátria ou à República, passou, a partir de 1919, a ser extensiva a serviços prestados no comando de tropas em campanha.

Actualmente, a Ordem pode ser atribuída para galardoar méritos excepcionalmente relevantes na chefia da Nação, pelo que é atribuído o Grande-colar aos Presidentes da República eleitos e no final do mandato ou no comando de tropas em campanha; feitos heróicos, militares ou cívicos; abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade.

Além do Grande Colar, a Ordem da Torre e Espada tem cinco graus, que conferem equiparação a postos militares, cujos agraciados não disponham de uma patente igual ou superior, sendo a Grã-cruz (Oficial General), Grande Oficial (Coronel) Comendador (Tenente-coronel), Oficial (Major) e Cavaleiro (Alferes).

A condecoração é concedida “com palma”, quando se destina a galardoar feitos heróicos em campanha militar.




Durante as Campanhas Militares de África, de 1961 a 1974, foram condecorados por feitos nas Campanhas, os seguintes militares (ver nota), por ordem do ano de atribuição:

1962


Carlos Miguel Lopes da Silva Freire, General do Exército, comandante da Região Militar de Angola, Grau de Comendador, atribuída a título póstumo. Faleceu em acidente em 10 de Novembro de 1961. Teatro de operações: Angola.

Venâncio Augusto Deslandes, General PilAv da Força Aérea, grau de Comendador. Teatro de operações: Angola.

1963

Francisco Holbeche Fino, General do Exercito, comandante da Região Militar de Angola, grau de Comendador. Teatro de Operações: Angola.


José Paulo dos Santos, 2º Sargento de Infantaria da Companhia de Caçadores nº 165, Grau de Cavaleiro com palma, atribuída a título póstumo. Faleceu em combate em 16 de Abril de 1963. Teatro de operações: Angola.

1964

João Nunes Redondo, Furriel Miliciano de Infantaria do Batalhão de Caçadores nº 356, Grau de Cavaleiro com palma, atribuída a título póstumo. Faleceu em combate em 16 de Junho de 1963. Teatro de operações: Guiné.

1965

Ângelo dos Santos Rodrigues, Furriel Miliciano do Pelotão de Caçadores nº 965, Grau de Cavaleiro com palma. Teatro de operações: Angola.

Manuel Marques Sardão, Furriel Miliciano Enfermeiro do Batalhão de Caçadores nº 664, Grau de Cavaleiro com palma, atribuída a título póstumo. Faleceu em combate em 22 de Outubro de 1965. Teatro de operações: Angola.

1966

Alberto Andrade e Silva, General do Exército, Comandante-chefe das Forças Armadas de Angola, Grau de Comendador. Teatro de operações: Angola.

Duarte Manuel de Amarante Rocha Pamplona, Capitão de Cavalaria da Companhia de Cavalaria nº 1505, Grau de Oficial com palma. Teatro de operações: Moçambique.

1968

Arnaldo Schulz, General do Exército, Comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, Grau de Comendador. Teatro de Operações: Guiné.

Horácio Francisco Martins Valente, Capitão Miliciano de Artilharia Comando, Grau de Oficial (atribuída a título póstumo, nota do editor). Teatro de Operações: Moçambique.

1969

António Fernão Magalhães Osório, Major de Infantaria do CAOP (Comando de Agrupamento Operacional), Grau de Oficial, atribuída a título póstumo. Faleceu em combate em 20 de Abril de 1970. Teatro de operações: Guiné.

António Augusto dos Santos, General do Exército, Comandante-chefe das Forças Armadas de Moçambique, Grau de Comendador. Teatro de Operações: Moçambique.

Jaime Rodolfo de Abreu Cardoso, Capitão Miliciano de Infantaria Comando da 7ª Companhia de Comandos, Grau de Oficial. Teatro de Operações: Moçambique.

José Manuel Ferreira Gaspar, 2º Sargento de Infantaria Comando, Grau de Cavaleiro. Teatro de Operações: Guiné.

José Manuel Garcia Ramos Lousada, Capitão Pára-quedista da Força Aérea, Grau de Oficial. Teatro de Operações: Moçambique.

Marcelino da Mata, 2º Sargento de Engenharia Comando do Batalhão de Comandos Africanos, Grau de Cavaleiro. Teatro de Operações: Guiné.

1970

Cherno Sissé, Furriel de Infantaria Comando do Batalhão de Comandos Africanos, Grau de Cavaleiro. Teatro de Operações: Guiné.

Guilherme Almor Alpoim Calvão, Capitão-Tenente Fuzileiro Especial da Marinha, Grau de Oficial com palma. Teatro de Operações: Guiné.

Hélio Augusto Esteves Felgas, Coronel de Infantaria, do Exercito, comandante do sector L. Grau de Oficial. Teatro de Operações: Guiné.

João Bacar Jaló, Capitão Graduado de Infantaria Comando, comandante das milícias fulas, Grau de Oficial atribuída a título póstumo. Faleceu em combate em 16 de Abril de 1971. Teatro de Operações: Guiné.

José Augusto Nogueira Ribeiro, Tenente Miliciano de Infantaria, da 2ª Companhia do Batalhão de Caçadores nº 14, Grau de Oficial. Teatro de Operações: Moçambique.

Manuel Diogo Neto, Coronel PilAv da Força Aérea, da Base Aérea nº 12, Grau não referido. Teatro de Operações: Guiné.

Maurício Leonel de Sousa Saraiva, Capitão de Infantaria Comando da 9ª Companhia de Comandos, Grau de Oficial. Teatro de Operações: Moçambique.

1971

Manuel Isaías Pires, 2º Sargento de Infantaria Comando do Centro de Instrução de Comandos, Grau de Cavaleiro. Teatro de Operações: Angola.

Manuel Martins Teixeira, 2º Sargento Fuzileiro Especial da Marinha, Grau de Cavaleiro com palma. Teatro de Operações: Angola.

1972

António Ribeiro Pais, 2º Sargento Fuzileiro Especial da Marinha, Grau não especificado. Teatro de Operações: Moçambique.

Francisco da Costa Gomes, General do Exército, Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola, Grau de Comendador. Teatro de Operações: Angola.

Orlando José Saraiva Gomes de Andrade, Coronel PilAv da Força Aérea, da Base Aérea nº 12, Grau não referido. Teatro de Operações: Guiné

1973

Álvaro Manuel Alves Cardoso, Capitão Miliciano de Cavalaria Comando, comandante da 3ªCCmds na Guiné, comandante dos "Flechas" em Angola, Grau de Oficial. Teatro de Operações: Angola.

António Alves Ribeiro da Fonseca, Capitão Miliciano de Infantaria Comando da 35ª Companhia de Comandos, Grau de Oficial com palma. Teatro de Operações: Guiné.

António Sebastião Ribeiro de Spínola, General do Exército, Comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, Grau de Grande Oficial com palma. Teatro de Operações: Guiné.

Fernando Gil Lobato Faria, Capitão de Infantaria Comando, comandante da 31ª Companhia de Comandos, Grau de Oficial com palma. Teatro de Operações: Angola.

João de Almeida Bruno, Major de Cavalaria Comando, comandante do Batalhão de Comandos Africanos, Grau de Oficial com palma. Teatro de Operações: Guiné.

José Fernando de Almeida Brito, Tenente-coronel PilAv da Força Aérea, da Base Aérea nº 12, Grau não especificado, atribuída a título póstumo. Faleceu em combate em 28 de Março de 1971. Teatro de Operações: Guiné.

Apesar de não ter sido atribuída no período a que anteriormente aludimos, é de realçar a atribuição da Ordem da Torre e Espada a um civil, HELDER COSTA ALMEIDA, que comandava o navio "Ponta de Sagres" da Marinha Mercante Portuguesa, por ter retirado do cais do porto de Bissau, na Guiné-Bissau, cerca de duas mil e quinhentas pessoas, no inicio de Junho de 1998, enquanto se davam combates na cidade, entre as tropas do Presidente João Bernardo “Nino” Vieira e Ansumane Mané que comandava os militares revoltosos.


Em boa hora a Liga dos Combatentes, também ela galardoada com o grau de Comendador da Ordem Militar da Torre e Espada, quando ainda se denominava Liga dos Combatentes da Grande Guerra, tomou a seu cargo a organização da comemoração do duplo centenário, onde estarão presentes os estandartes das unidades militares, paramilitares, humanitárias, autárquicas e outras entidades civis agraciadas com esta condecoração, homenageando desta forma, não só os agraciados que ainda se encontram entre nós, mas sobretudo aqueles que a receberam a título póstumo, porque a mereceram no momento em que à Pátria entregaram a própria vida.

José Martins

Sócio LC nº 80.393/C
8 de Novembro de 2008


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Notas:
1. A lista está certamente incompleta, pelo que se depreende da imagem abaixo. Assim vamos procurar saber quem foram os condecorados com a TE durante a Guerra Colonial/Ultramar, as datas de atribuição e os TO.
2. Em 2007, a Assembleia-Geral da Liga dos Combatentes, antecipando-se à comemoração, decidiu atribuir no ano do bi-centenário, o estatuto de Sócios Honorários a todos os condecorados, ainda vivos, com a Ordem da Torre e Espada. Associou-se à cerimónia, o Presidente da República, Grão-Mestre das Ordens Honoríficas Nacionais. que conferiu pessoalmente o título de Sócios vitalícios da Liga aos 15 condecorados presentes.


Da esquerda para a direita, Gen José Lemos Ferreira, Cor. José Nogueira Ribeiro, Sarg.-Mor Fuzileiro Manuel Martins Teixeira, Ten-Gen. Joaquim Chito Rodrigues (não Torre Espada, e Presidente da LC), Sarg.-Mor Fuzileiro António Ribeiro Pais, Gen. Ramalho Eanes, Prof. Cavaco Silva (não T Esp e PR actual), Cor. "Comando" António Ribeiro da Fonseca, Dr. Jorge Sampaio, Cor."Comando" Fernando Lobato Faria, Maj-Gen. José Ramos Lousada, Cor."Comando" Jaime Neves, Gen. "Comando" João de Almeida Bruno, Ten-Cor. "Comando" Marcelino da Mata e Gen. Gabriel Espirito Santo.
Agradecemos ao Cor. Manuel A. Bernardo, que prontamente nos deu a identificação dos nomes bem assim como a informação que a seguir amavelmente nos prestou: "Na revista de Set 2008, no verso da contra-capa está anunciado um livro feito por mulheres que estiveram nos territórios ultramarinos (caso da minha), ou apoiaram os maridos de outra maneira, assim como mulheres actualmente nos efectivos das FA. O Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, no seu programa de ontem já o difundiu. " Manuel Bernardo.
A Liga dos Combatentes comemora os duzentos anos da Ordem, o 90º aniversário do Armistício e o 85º da Liga. A cerimónia realiza-se no dia 15 de Novembro próximo, pelas 14h30, junto ao Monumento aos Combatentes Por Portugal em Belém.
3. Artigos da série em

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?


Capa do livro de Carmo Vicente - Gadamael: memórias da guerra colonial. 2ª ed. Lisboa: Caso. 1985. 110 pp. Prefácio de Manuel Geraldo.


Foto: ©
Jorge Santos (2007). Direitos reservados.


1. Continuação da publicação de um excerto do livro Gadamael (Edições Ré: Cacém, 1982), de Carmo Vicente (*), ex-1º sargento paraquedista da CCP 122/BCP 12, destacado para Gadamael em Junho de 1973 (**):


1. Extracto de VICENTE, Carmo - Gadamael. Cacém: Edições Ró. 1982. pp. 97-105. 

Excerto enviado pelo historiador guineense Leopoldo Amado. De acordo com a nossa orientação editorial, optámos por não publicar as passagens em que o autor faz críticas ao comportamento humano, disciplinar ou operacional de camaradas seus... As passagens omitidas (incluindo aquelas em que o autor indentifica pelo apelido camaradas que tê, direito à reserva de privacidade e ao anonimato] vêm assinaladas com parênteses rectos: [...].

 Com devida vénia ao autor e à editora. Revisão e fixação do texto, comentários e subtítulos: LG.




(Continuação)


(ix) Mais de duas dezenas de mortos já tinham ido para as salgadeiras


O dia da chegada [a Gadamael], gastámo-lo abrindo novas valas para nos enterrarmos e aprofundando as já existentes a fim de melhorar aqueles abrigos rudimentares. Foi um trabalho difícil. Tivemos que cavar de rastos, com granadas e foguetões rebentando por todo o lado, por vezes às seis e sete de cada vez, o que não deixava dívidas sobre o poder de fogo que o PAIGC tinha no local e estava disposto a empregar contra aquele objectivo.

Encolhidos dentro das valas, procurávamos não deixar nenhuma parcela do corpo à vista, pois todo o terreno no exterior era zona de morte. Viam-se por todo o lado, animais mortos, que pertenciam à população e que deambulavam por ali, indiferentes à metralha. Mas não eram só os animais que morriam. Dentro das valas, caíam granadas que matavam homens.

Mais de duas dezenas de mortos tinham já ocupado outros tantos caixões, os mesmos que nessa manhã tinham viajado connosco de Bissau. Havia também vários feridos graves que foram evacuados para Cacine em botes de borracha ou sintex (barcos de fibra semelhantes a banheiras completamente inadequados a qualquer tipo de evacuação e só usados por ser um material extremamente barato, concebidos por alguém incapaz de pensar no bem-estar do seu semelhante), onde os esperava o helicóptero que os transportaria ao hospital Militar de Bissau.

O trajecto Gadamael-Cacine em tal transporte devia de ser terrível para os feridos. Eram mais de vinte quilómetros aos saltos pela crista das ondas. Nunca cheguei a saber se algum dos feridos graves morreu devido à maneira como fora evacuado. A nossa missão terminava no momento em que o metíamos no bote. A partir daí perdíamos-lhe completamente o rasto.

Os bombardeamentos continuavam. Os guerrilheiros faziam alguns intervales de dez, quinze minutos, começando e acabando quando menos se esperava, mantendo-nos numa tensão permanente. Era uma táctica desgastante utilizada em qualquer luta de guerrilha, que os combatentes do PAIGC muito bem conheciam, tentando tirar dela o maior partido possível.

O local que calhou ao meu pelotão era o pior de todo o quartel. Junto de nós caiam granadas de perfuração e superfície, à direita e à esquerda da vala, com as primeiras a enterrarem-se profundamente no solo para depois rebentarem, levantando aluviões de terra que nos ia cair em cima, deixando-nos parcialmente soterrados.

É difícil explicar, a quem nunca viveu a guerra, o que significa estar dentro de uma vala e por vezes fora dela, ouvindo cair granadas de morteiro de cento e vinte milímetros, sem poder evitar de pensar que a próxima nos vai cair em cima da cabeça. Só quem viveu esses momentos pode avaliar o medo que se sente a aproximação de um desses projécteis, caindo de uma altura superior a dois mil e quinhentos metros: é uma granada de dezoito quilos que ao cair produz um som agudo e prolongado que se vai acentuando à medida que se aproxima do solo. Só o autodomínio e a experiência evitam que nos levantemos e fujamos para outro local, o que poderia ser fatal. Foi assim que pereceram a maior parte dos soldados, mortos em Gadamael.

Pior do que aguentar dentro das valas, eram porém, as saídas que a companhia tinha de efectuar para patrulhar a zona. A qualquer passo, podíamos rebentar uma mina ou tropeçar numa armadilha e, o que era bem pior, apanhar com um grande grupo de guerrilheiros do PAIGC pela frente, superior a nós em número e armamento.



(x) Sem helicópteros para evacuações, e o apoio dos Fiat só acima dos seis mil pés



Por essa altura, não se fazia a evacuação de feridos através de héli. Era perigoso arriscar uma máquina que custava alguns milhares de contos, sabendo nós que a juntar a isso havia o medo do piloto que não estava disposto a entrar naquele vespeiro para livrar da morte um indivíduo qualquer. Era uma troca de que não estava disposto a fazer, mesmo só no campo das hipóteses.

Assim qualquer de nós que fosse ferido gravemente, apenas lhe restava morrer, já que o único transporte que podia contar para a sua evacuação, eram as costas dos seus companheiros até ao quartel e daí o bote de borracha dos fuzileiros até Cacine e pelo qual tinha de esperar, o que chegava a levar várias horas. Foi desta maneira que o Martins, quase morreu, apesar de ter sido ferido ligeiramente numa perna. Não era um ferimento grave, mas levou um tempo infinito para chegar ao hospital.

O apoio aéreo era quase nulo e de nenhum efeito. Os pilotos de jactos, na sua grande maioria de patente elevada, não arriscavam a descida para baixo dos seis mil pés (dois mil metros, aproximadamente). Altura que tornava o bombardeamento ineficaz, sem outro efeito para além do barulho com o qual os guerrilheiros do PAIGC não se impressionavam mesmo nada, continuando impávidos e serenos o ataque ao quartel enquanto os seis G-91 se afadigavam a largar bombas ou a metralhar lá do alto. [...] 


(xi) Uma tremenda emboscada de 45 minutos, com 18 feridos graves


Chegávamos dos patrulhamentos completamente arrasados de cansaço e com os nervos a estoirar, para de seguida metermo-nos nas valas. Era um verdadeiro inferno. Os bombardeamentos eram cada vez mais intensos e já não podíamos sair da vala para fazer as nossas necessidades fisiológicas sem correr o risco de levar com algum estilhaço ou, na melhor das hipóteses, ter de fugir para a vala com as calças na mão. A maioria adoptava então o sistema menos perigoso: fazia tudo dentro da vala e mandava depois pela borda fora, até ter possibilidade de fazer desaparecer, definitivamente, os detritos.


Um RPG-2, com o respectivo porta-granadas. Em russo: Ruchnoi Protivotankovii Granatomet (RPG-2). Uma arma temível que data do princípio dos anos 50. Deixou, entretanto, de ser usada pelo exército russo. Mas foi muito popular entre os exércitos de guerrilha em todo o mundo. Era a bazuca dos pobres... É uma arma muito leve (tubo= 2,86kg.; tubo + granada= 4,48 kg.) e de fácil manobra, ideal tanto para a guerrilha urbana como para o combate no mato. Alcance efectivo= 100 metros (LG).

Fonte: ©
The Sword of Motherland Foundation (2005), com a devida vénia.


Foi num desses patrulhamentos, quando já estávamos a menos de duzentos metros do arame farpado do quartel, que sofremos uma grande emboscada, em que a companhia ficou toda dentro da zona de morte. O contacto deu-se paralelo à coluna e a menos de vinte metros. Foi tremendo. Os guerrilheiros com armamento mais sofisticado e em maior quantidade. Os RPG-7, os RPG-2, as Degtyarev com tambores de cento e vinte munições (que nunca encravavam), os morteiros de sessenta milímetros, batiam-nos com uma precisão incrível.

No que diz respeito a esta última arma, era verdadeiramente fenomenal. Só um perito muito bem treinado poderia fazer fogo certeiro a tão curta distância, sem correr o risco de a granada cair na sua posição. Foi no entanto, o RPG-2 (***) que mais feridos nos provocaram.

Durou cerca de quarenta e cinco minutos este dilúvio de fogo e metralha. De repente a batalha acabou deixando de se ouvir qualquer ruído. Como se nunca por ali tivessem passado, os guerrilheiros retiraram em boa ordem, cumprindo à risca os princípios da guerrilha de Mao: atacar, ter o melhor êxito possível com o menor número de baixas e retirar sem deixar rasto.

Para nós, o rescaldo da emboscada foi terrivelmente desanimador: dezoito feridos graves. E só não tivemos nenhum morto por um desses simples acasos da sorte que, por vezes, acontecem em combate.

O PAIGC deve ter exultado com esta vitória, conseguida em pleno dia, quase dentro de uma base inimiga com um efectivo de mais de quatrocentos homens, entre os quais duas companhias de tipo especiais. Isto tudo sem sofrerem qualquer baixa. Esta última certeza advém do facto de, dois dias depois destes acontecimentos, termos passado pelo local e não virmos o mais leve indício de sangue, coisa que deixa sempre marcas no solo ou nas folhas inferiores dos arbustos, por mais que se deseje ocultar a sua existência.


(xii) Enfiados nas valas, com o moral em baixo


Os feridos resultantes da emboscada foram evacuados para Cacine, nos tais botes de borracha e daí para o Hospital Militar de Bissau. Nós ficámos outra vez dentro das valas com o moral ainda mais em baixo. A emboscada tinha actuado também nesse sentido, nenhum de nós acreditou até aquela dia que os guerrilheiros se atrevessem a atacar uma coluna nossa, em pleno dia, e a tão pequena distância do quartel onde nos encontrávamos.

No dia seguinte, sentado na vala como de costume, preparava-me para comer mais uma vez as habituais sardinhas em lata, quando ouvi, vindo da mata, o forte crepitar de varias espingardas metralhadoras e o rebentar de granadas. Achei estranho, porque não tinha conhecimento de haver qualquer força a patrulhar a zona. Estava a comentar o facto com um dos meus camaradas que se encontrava perto de mim, quando chegou o comandante de companhia que me disse para preparar rapidamente o meu grupo e ir socorrer um pelotão do exército que tinha sido atacado e sofridos vários mortos.

[...] Saímos rapidamente das valas e correndo dirigimo-nos para o local (guiados por um dos fugitivos), que ficava a pouco mais de um quilómetro do quartel.


(xiii) Quarto mortos do exército, três soldados e um alferes, terrivelmente desfigurados


O espectáculo que se nos deparou era deveras terrificante. No solo três soldados e um alferes jaziam mortos e irreconhecíveis com os rostos parcialmente desfeitos por rajadas disparadas à queima-roupa. Havia ossos e tecidos sangrentos espalhados pelo chão. Um dos soldados enrolara-se nos seus próprios intestinos estando os restantes parcialmente queimados pelo fogo que, acidentalmente, por acção das balas incendiárias, ou deliberadamente fora ateado ao capim.

Eu conhecia o alferes. Chegara a Gadamael três ou quatro dias antes, ido directamente da Metrópole e eu encontrara-o por acaso e estivera a falar com ele. Com os olhos dilatados pelo medo havia-me dito que abominava a guerra, que estava aterrorizado e iria fugir para longe da guerra o mais depressa possível, fosse para onde fosse, pois não podia aguentar por mais tempo aquele inferno. Agora, ao vê-lo morto pensei: «Afinal conseguiste o que querias, alferes.... Vais sair daqui... da única maneira que o recusarias fazer, se te tivesse sido dado escolher, enquanto vivo».

Carregámos com os mortos às costas e regressámos ao quartel. Ao chegarmos começou novo bombardeamento e toda a gente se atirou para o chão tentando encontrar abrigo. O soldado C [...]  que carregava o cadáver do alferes, seguindo o exemplo dos outros ou obedecendo ao seu instinto de conservação, também se atirou para o chão ficando com o morto em cima, que, por ter caído a capa impermeável onde o tínhamos embrulhado, o cobriu de sangue. Levantou-se como se tivesse sido picado por uma cobra e ficou a olhar-me de olhos esgazeados. O seu aspecto era terrível. O sangue do morto cobria-o da cabeça aos pés: tinha sangue na boca e nos olhos. Pastas de sangue coagulado caiam do camuflado. Olhou as mãos e vendo-as ensanguentadas entrou em pânico. [...]

Havia que evacuar os mortos e um ferido muito grave com um estilhaço num pulmão, que apanhara dentro do quartel. E o meu pelotão foi encarregado desse trabalho. Atirámos com os mortos para cima de uma «Berliet», única viatura que ainda funcionava em toda a Unidade e arrumámos o ferido o melhor que pudemos junto dos mortos. A altura era má para nos prendermos com ninharias e não podíamos transportá-lo de outra maneira. Imaginem o que terá sentido aquele homem ferido gravemente, mas consciente, ao ver-se no meio de quatro mortos horrivelmente desfigurados.





Cópia do título (e da primeira página) do trabalho de investigação jornalística da autoria de Eduardo Dâmaso, publicado no Público, sobre a batalha de Gadamael , em princípios de Junho de 1973, e o papel da LFG Orion, cujo imediato era então o nosso camarada Pedro Lauret, hoje capitão de mar e guerra na situação de reforma o > "A naves dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos: a história secreta do navio Orion, que há 32 anos salvou centenas de soldados na Guiné contra as ordens de Spínola" (****).

Fotos: ©
Pedro Lauret (2006). Direitos reservados.


(xiv) Os fuzileiros, com botes de borracho, vêm fazer as evacuações de mortos e feridos


Partimos para o cais de recurso a cerca de quatro quilómetros do quartel a toda a velocidade que a picada cheia de calhaus e buracos dos rebentamentos nos permitia, debaixo de um bombardeamento intenso de foguetões [,de 122 mm,] que caíam à direita e à esquerda da picada e que só por sorte não nos atingiram.

Chegámos ao cais mesmo a tempo de ver os botes de borracha dos fuzileiros que vinham proceder à evacuação, darem meia volta e desaparecerem pelo mesmo caminho em direcção a Cacine. Isto transtornou-me de tal modo que desatei a chamar  nomes [...] .


Mas que podiam fazer os fuzileiros? O bombardeamento era muito forte e o medo de serem atingidos era ainda maior. Talvez que eu no lugar deles tivesse feito precisamente o mesmo. Porém, naquela altura eu queria ver-me livre dos quatro mortos e do ferido grave já quase moribundo. Por isso toda a minha revolta, o meu fechar de punhos que infelizmente não fizeram voltar os botes dos fuzileiros [...].

Pela rádio entrei em contacto com o comandante da Companhia e contei-lhe o sucedido. Este, no entanto, nada podia fazer, o problema transcendia-o em absoluto. Restava-me pois esperar e foi o que fiz, enchendo-me de uma grande dose de paciência. Passadas duas horas, os fuzileiros apareceram com dois botes.

A maré tinha baixado, entretanto, deixando a descoberto um lamaçal de mais de seiscentos metros por onde, enterrando-nos até a cintura, tivemos de carregar com os mortos e o ferido. Este esforço durou mais de meia hora e quando finalmente chegámos junto dos fuzos metemos dentro dos botes cinco mortos e não os quatro iniciais. O ferido morrera ali mesmo, a meia dúzia de metros dos botes que o deviam transportar ao hospital.


(xv) Desertores do exército tomam de assalto os zebros


Os botes que evacuaram os mortos foram literalmente assaltados por uma avalanche de desertores que começaram a aparecer de todos os lados e que tentavam fugir àquele inferno. Alguns conseguiram o seu intento pois os tripulantes dos zebros foram impotentes para se livrar de imediato de toda aquela gente que sobre eles se precipitou. Valeu-lhes sair rapidamente dali, de contrário não sei o que poderia ter acontecido aos barcos e mesmo aos próprios tripulantes.

Todos estes factos vieram fazer transbordar a taça e, se já havia muitos de nós com os nervos a estoirar, a partir destes acontecimentos, ficaram ainda pior. Os soldados já não queriam sair do quartel. Preferiam ficar ali dentro das valas, aguentando os bombardeamentos mas onde sabiam ter algumas probabilidades de escapar, a ir para o mato onde a incógnita do que poderia acontecer era demasiado grande. O medo tomou pouco a pouco conta de alguns espíritos e tornou-se mais forte do que qualquer outro sentimento.[...]

 (xvi) Proibido aos paraquedistas adoecer...


Em dada altura o meu pelotão recebeu ordem de marchar para uma missão de patrulhamento em que iria estar envolvida toda a companhia. Tínhamos de dormir no mato e regressar no dia seguinte. Transmiti as ordens do capitão aos meus homens e alguns deles disseram-me que não podiam ir para o mato porque se encontravam doentes, o que na realidade acontecia com alguns deles, e um pouco com todos nós. Que havia mais de um mês comíamos sardinhas e atum em lata e dormíamos enrolados dentro das valas, quase sem pregar olho.

Naquela porca guerra era, no entanto, proibido aos soldados adoecer. Tinham de marchar para o mato de qualquer maneira. [...] 


Segui para junto do meu pelotão e limitei-me a informar que, por ordem do capitão, toda a gente iria para o mato e, sem esperar qualquer resposta, equipei-me e mandei equipar o pelotão.

A companhia possuía quatro pelotões e o meu recebeu ordem de tomar o último lugar na coluna. Coloquei-me à frente dos meus homens e iniciei a marcha sem olhar para trás, confiante que todos me seguiriam, como lhes ordenara. Penetrámos na mata cerrada e ao olhar para trás verifiquei que nem todos me tinham acompanhado. Fiz a contagem e faltavam-me quatro homens, aqueles mesmos que, antes de partir, me tinham informado, estarem doentes. Como não podia deixar de ser, transmiti essas faltas ao comandante que, como resposta, me disse para mandar esses homens comparecer na sua presença, mal terminasse a operação. [...]


 (xviii) Quase meia centena de mortos em Gadamael em quarenta dias


E a guerra de Gadamael continuou. Foram mais de trinta dias de bombardeamentos, com muitos mortos e feridos. Os soldados aguentavam como podiam, uns com maior ou menor coragem, outros entrando em pânico e que fugiam para o cais e tentavam meter-se nos barcos que nos vinham trazer víveres e munições.

Foram quarenta longos dias, quase sem comida, deitados nas valas sem dormir mais que uma ou duas horas por noite, batendo-nos contra um adversário invencível que nos matava sem sofrer uma única baixa.

Mas Gadamael foi também a certeza de que jamais poderíamos vencer os guerrilheiros do PAIGC. Gadamael serviu sobretudo para a tomada de consciência de muitos de nós, e não me desviarei da verdade se afirmar que em Gadamael o PAIGC travou a batalha decisiva na sua luta pela independência, que quer tivesse havido ou não o 25 de Abril teria conduzido o povo da Guiné a uma rápida vitória.

Em Gadamael tombaram, para sempre, quase cinquenta irmãos nossos, que não queriam combater e que abominavam a guerra. Quase cinquenta homens que, se o pudessem ter feito, teriam gritado antes de morrer:
-Entreguem a Guiné aos Guineenses!...


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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)

(...) "1º Sargento Paraquedista Carmo Vicente (...) participou em três comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique.

"O testemunho do Sargento Carmo Vicente [sobre os tristes acontecimentos de Bissau, em Janeiro de 1968,] consta na obra Gadamael de sua autoria, das Edições Caso (2ª edição), de Julho de 1985 (páginas 25 a 30).

"Para além da referida obra, Carmo Vicente é também autor de Grades de Novembro, Gritos de Guerra, A Sentença, Era uma vez... 3 guerras em África, entre outras.

Na badana do livro pode ler-se:

"Carmo Vicente é 1º sargento paraquedista, tem 38 anos, e participou em 3 comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique. Gadamael é uma narrativa apaixonada, mas profundamente crítica, dessa experiência, constituindo mais uma achega importante para a construção histórica do itinerário colonial de parte significativa da juventude portuguesa, entre 1961 e 1975.

"Sobre Carmo Vicente escreve em prefácio Manuel Geraldo: Ao contrário de vários autores que até agora se debruçaram sobre o mesmo tema, Carmo Vicente possui a vantagem de ter sido mobilizado pela 1ª vez como soldado, acabando por chegar a 1973 na situação de 1º sargento, no comando de um pelotão, precisamente em Gadamael. Logo, viveu o conflito em toda a sua plenitude, como 'actor' em escalões progressivos e com graus de sensibilidade diversa. Embarcado para a Guiné em 1966, com a mentalidade de 'cruzado', Carmo Vicente acabaria por descobrir a verdadeira face dos interesses em jogo e do papel que lhe tinham reservado no palco das operações.

(**) Vd. poste anterior de 4 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname


(***) Certamente por lapso ou gralha, no texto (digitalizado) que recebemos do Leopoldo Amado, vem RPG 3 quando, na minha opinião, deve ler-se RPG 2... Mas não tenho a certeza: no meu tempo (1969/71), na zona leste, nunca ouvi falar do RPG 3... Só havia o RPG 2 e o RPG7.  No blogue já apareceram mais referências ao RPG 3 (Nuno Rubim, Manuel Lema Santos). Será gralha ? É também possível que seja uma versão superior do RPG 2, existente em 1973. Possivelmente com mais alcance, fiabilidade e poder destrutivo... Se alguém puder esclarecer, agradeço.


(****) Vd. poste de 14 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73


(*****) A Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito é a mais alta condecoração portuguesa, podendo ser conferida em três casos: (i) Por méritos excepcionalmente relevantes demonstrados no exercício de funções dos cargos supremos que exprimem a actividade dos órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha; (ii) Por feitos de heroísmo militar e cívico; ou (iii) Por actos excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade.