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terça-feira, 20 de novembro de 2018

Guiné 61/74 – P19212: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (41): O Cama 16 que afinal não estava internado e uma G3 desaparecida no Cacheu

1. Em mensagem do dia 18 de Novembro de 2018, o nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO) (ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos duas histórias, uma passada no HMP e outra já na Guiné, relacionadas com estranhos desaparecimentos.


O CAMA 16

A caminho dos 90 anos de idade – já fiz 78 – continuam-me a vir à memória os meus tempos da vida militar. Foram 4 anos que “nunca mais me largam”…
Confesso que estas tristes e recentes histórias de Tancos e Chamusca me “tocaram” desagradavelmente mas não é sobre isso que vou “falar” hoje.

Em termos militares fiz a minha recruta na EPC (Escola Prática de Cavalaria), de Santarém, em Agosto e Setembro de 1962 e nos 2 anos seguintes vi a “Estrela” quase todos os dias, pois era nessa zona de Lisboa que se situava o Hospital Militar Principal.

Nos meus tempos no HMP estive em Dermatologia cerca de um ano (entre Junho de 63 e Maio de 64) como Chefe de Enfermaria. Era caso singular no Hospital pois era o único militar fora do “quadro” (era “miliciano”), que desempenhava esse tipo de funções. Tinha ficado em 1.º lugar no meu curso do CSM e “calhou-me a sorte” dessas funções de chefia para as quais não estava minimente preparado.

Passei meia dúzia de dias junto do militar do “quadro” que ia substituir (por ter sido mobilizado para a guerra do Ultramar) e fui assinando “papéis” comprovativos da “carga hospitalar”, de que iria ser responsável nos tempos mais próximos.
A Enfermaria tinha 70 camas, o que correspondia em termos de “carga” a 70 colchões, 140 lençóis, travesseiros, almofadas, mesas de cabeceira, montes de seringas, instrumentos diversos para tratamentos e muito mais “coisas” que me dispenso de descrever para não fatigar o leitor.

Havia ainda uma sala de tratamentos e outra para as consultas de dermatologia, onde se sentavam o médico-chefe e um médico-estagiário para as consultas externas dos civis ligados a instituições militares (Manutenção Militar, Oficinas Gerais de Fardamento, etc). Era então director do HMP o Dr. Ricardo Horta Júnior.

Além destas responsabilidades tinha comigo uma equipa de cabos milicianos e alguns soldados que era suposto ajudarem-me no meu desempenho. Em poucos dias percebi que os meus camaradas milicianos era uns “sornas”, que entravam sempre tarde porque o ”chefe” era “miliciano” e não os iria castigar.
Entrava às 8 da manhã – estava “desarranchado” e dormia (por minha conta) num quarto de uma casa particular na zona de Campo de Ourique – e não tinha horas de saída…

No final do primeiro mês de “chefe” comecei a dar por falta de “coisas” que estavam descritas na “carga da enfermaria”, mas que só existiam no papel. Como é que eu me ia desenrascar!?
Depois de algumas noites mal dormidas lembrei-me de consultar o Sargento Enfermeiro Sineiro, que era meu conterrâneo. Já o tinha visto no Hospital e fui ter com ele e apresentei-me, dizendo quem era e a que família de Alcobaça pertencia.
Não podia ter tido melhor sorte.
Disse-me como me desenrascar pois já tinha muitos anos de vida hospitalar.
Se tivesse na “carga” 6 seringas e só tivesse uma em condições “partia” essa em 6 bocados e fazia um ”auto de aniquilamento”, descrevendo a “existência” de seis “avariadas”, e pedindo o seu abatimento na carga. Depois de deferido o seu “aniquilamento” tinha apenas que fazer a requisição de 6 novas seringas.
Desde que houvesse algum “bocado” do material em falta era só fazer o auto para apresentar os “bocados” do total do material a substituir.

Assim fiz e resultou inteiramente.
Respirei fundo e guardei para mim estes novos “saberes”. Passados alguns meses estava tudo em ordem no que respeita a material.
Mas surpresas das surpresas faltava-me um doente: o “cama 16”.
Fiquei para morrer. Como é que isso podia acontecer?
O encarregado anterior da Enfermaria já estava no Ultramar (julgo que em Angola) e ainda não havia telemóveis!!!
Encontrei o registo do “faltoso” e soube onde era a sua morada em Lisboa. Com diversas ajudas consegui contactá-lo através de telefone fixo e fui ao seu encontro. Ao vivo e a cores…

Era um rapaz de “famílias bem” que tinha “comprado” a sua estadia em casa ao anterior responsável da Dermatologia.
Ofereceu-me umas “massas” para manter o seu anterior estatuto. Mas não teve sorte nenhuma.
No dia seguinte queria-o na Enfermaria junto da sua “cama 16”. E assim aconteceu. Finalmente “carga completa”.

O tempo passou e já estava um mestre em gestão hospitalar quando fui mobilizado para a guerra. Tinha 2 anos de vida militar e pensava que regressaria a Alcobaça dentro em breve, como eu julgava que merecia.
Puro engano.
Fiz as malas sim mas foi para seguir para o RI 16 (Regimento de Infantaria 16), de Évora e em 8 de Maio de 1964 embarcava no “Uíge” a caminho da Guiné como Furriel Enfermeiro Miliciano da CCAÇ 675.
E mal sabia eu que os meus conhecimentos em fazer “autos de aniquilamento” iriam ajudar muita gente. Fora e dentro da minha Companhia.


UMA G3 DESAPARECIDA NO CACHEU

Mas para terminar o tema só vou contar mais uma história que, julgo eu, nunca foi contada e terá sido esquecida pelos seus principais intervenientes há muito tempo.
Não garanto todos os pormenores porque estão passados muitos anos mas penso que o que descrevo seguidamente estará muito próximo dessa realidade de há mais de meio século!
Quando faltava apenas um mês para terminar a nossa comissão e regressarmos a casa um soldado do tipo “Chico esperto” pediu emprestado a um nativo uma canoa e meteu-se no Rio Cacheu para caçar um crocodilo, cuja pele serviria para fazer uma mala e um par de sapatos para depois do regresso oferecer à sua namorada.

Está claro que se fez acompanhar da sua espingarda “G3”, porque os crocodilos não se apanham à mão. Deu umas remadas e nem ao meio do rio chegou.
A canoa virou-se e quando o “caçador de jacarés” veio ao de cima a sua “G3” estava desaparecida. Nadou para terra e algumas horas depois confidenciou aos camaradas o que lhe tinha acontecido.

Perder a arma de combate que lhe estava distribuída queria dizer que era candidato a algum tempo de prisão, que lhe faria perder o regresso a casa que estava tão próximo.
Por sorte o Comandante de Companhia estava em Bissau e o seu 1.º Substituto era o Alferes Mendonça, que era miliciano. Fez-se uma reunião nessa noite no “escritório” do 1.º Sargento Santos para tentar resolver a “bronca”.

Depois de muitas e variadas opiniões resolveu-se “inventar” um ataque do inimigo às 3 da manhã com granadas de morteiro, que iriam “cair” numa arrecadação que iria arder violentamente.
Quando o incêndio estivesse extinto tudo que nessa altura “faltava” na Companhia (colchões, lençóis, pneus e uma espingarda G3) teria sido consumido pelo fogo. O Furriel Enf Oliveira faria um auto de aniquilamento no dia seguinte para ser enviado para o Batalhão em Farim. E assim se fez.

Respirámos todos de alívio e um mês depois deixámos Binta e, via Farim com passagem pelo Oio, viemos para Bissau para embarcar no “Uíge” a caminho de casa. Já lá vão mais de 50 anos.

O crocodilo do Cacheu há muito que deve ter netos ou mesmo bisnetos!

José Eduardo Reis de Oliveira
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 – P10563: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (40): O avô da Matilde, um vizinho especial

domingo, 28 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11496: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (44): A gloriosa CCAÇ 675 foi realmente única

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 15 de Abril de 2013:

Caro Carlos Vinhal, Será isto uma doença?
Caso afirmativo… não tenho cura!

Somos levados a concluir que a gloriosa CCaç 675 foi realmente única; não, é claro, por não haver outra com este número, mas porque ela foi realmente diferente, para melhor, em comparação com a grande maioria das unidades que “guerrearam” (sem ódio) nos três teatros de operações.

O Jero, eu e outros temos apregoado intensamente que fomos e continuamos a ser ímpares – perdoem a nossa vaidade. A verdade é como o azeite: vem sempre à superfície.

Quem leu os nossos textos no blogue e os deliciosos livros do Jero ficou a conhecer, em parte, as razões do nosso orgulho.


Prestem atenção: 

- 1º - Tivemos um capitão sem par! Grande parte da nossa obra é consequência disso mesmo.

- 2º - Limpámos completamente a nossa zona e mantivemo-la sem “intrusos” até ao fim da nossa comissão.

- 3º - Os nossos militares distinguiam-se, no aquartelamento, no mato ou na cidade, pela sua valentia, coragem e pelo seu comportamento e disciplina.

- 4º - Recuperámos milhares de civis que, para fugirem à guerra, se refugiaram no Senegal vizinho; voltaram quando se aperceberam que ali já havia paz e condições “ótimas” para viver.
Por ação direta, dedicada e intensa do nosso capitão conseguimos sementes para as suas “lavras”. Tiveram uma colheita “astronómica”; foram “ensinados” que era necessário semear e colher o máximo para alimentar também os que ainda haviam de voltar – e vieram muitos.

- 5º - Mais de três dezenas de militares habilitados apenas com a 3ª classe de adultos frequentaram, nos intervalos a guerra, as “nossas aulas” regimentais e concluíram em Farim a 4ª classe.

- 6º - Construímos uma Igreja e duas pistas de aterragem.

- 7º - Para uso dos nativos, edificámos um posto de Primeiros Socorros e preparámos pessoal de enfermagem; construímos uma escola para a miudagem nativa.
Um dia, Domingo, os miúdos, alinhados por alturas compareceram frente ao comando da companhia; enquanto a Bandeira subia garbosa, ao topo daquela haste tosca, eles cantaram, donairosos, o Hino Nacional. Não se tratou de ordem ou sugestão nossas; foi decisão do professor “improvisado” que trouxemos de Farim.

- 8º - Transformámos uma singela e ruim picada de 12Km em estrada e reconstruímos duas pontes.

- 9 - Custeámos a trasladação dos nossos três mortos em combate.

- 10 - Além de vários louvores e condecorações individuais, a CCaç 675 recebeu dois merecidos louvores coletivos.


Depois do regresso, continuámos a nossa senda de diferenças: 

A) Todos os anos, em Maio, sem falha, realizamos o nosso almoço de confraternização sem esquecer a missa pelos nossos mortos, de lá… e de cá.

B) Nos intervalos dos almoços anuais tem havido as chamadas “mini 675”, com 3; 5; 10; 20 ou mais de sessenta convivas.

C) Desde a 1ª hora, os nossos familiares participam nas nossas reuniões; os familiares de alguns dos nossos mortos fazem questão de confraternizar connosco.

D) Há alguns anos, iniciámos a colocação de lápides nas sepulturas dos nossos “elos” falecidos. Este rol, longo, mas por certo, incompleto, veio a lume na sequência do lembrete para requerer as medalhas em epígrafe; acontece que todos nós, oficiais, sargentos e praças somos detentores de tais insígnias que nos foram presenteadas pela própria CCaç 675, a gloriosa.

Belmiro Tavares e José Eduardo Oliveira (JERO) juntos de um "Elo" falecido

Eis mais um tema que não consta do rol.
Obrigado, Carlos, pelo tempo roubado, mas no que à CCaç 675 diz respeito, nós sentimos sempre ganas de agarrar o mote.
Não nos levem a mal por isso!

Aquele abraço!
BT
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Notas do editor:

- Quem quiser conhecer a história da CCAÇ 675, além de ter de ler o livro do nosso JERO, "Golpes de Mãos - Memórias de Guerra", podem ler aqui no Blogue as Histórias e memórias de Belmiro Tavares e Histórias do JERO

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11355: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (43): Eu, aprendiz de perfeito, apresento-me

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10563: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (40): O avô da Matilde, um vizinho especial

1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO), ex- Fur Mil da CCAÇ 675, (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 24 de Setembro de 2012: 

Boa noite meu caro amigo Carlos
Com votos que estejas em forma e preparado mais uma "mudança de hora" cumprimento-te com particular estima.
Mando-te uma longa história de Verão já em tempo de Outono. No calendário e na vida. Resultou de uma brincadeira de duas miúdas que na praia das crianças (São Martinho do Porto) fizeram aproximar dois avós. Com cabelos brancos e com memórias dos seus tempos da Guiné.

Segue em anexo o resultado final... de dois "rapazes" maiores de 70.

Um grande abraço de Alcobaça,
JERO


HISTÓRIAS DO JERO (40)

O avô da Matilde, um vizinho especial

Uma das vantagens de ser avô é poder conhecer através dos nossos netos pessoas que, em circunstâncias normais, nos passariam “ao lado”. Nas férias do mês de Agosto deste ano, em São Martinho do Porto, a minha neta Mariana começou a brincar com a Matilde e daí até conhecer o seu avô foi um instante.

Nas primeiras palavras que troquei com o Avô da Matilde adivinhei que estava na presença de um ex-combatente, o que se confirmou no momento seguinte quando trocámos nomes, idades e interesses…

Ambos tínhamos 72 anos e, no nosso passado, a Guiné dizia-nos muita coisa.

O Carlos Ferreira quando me disse que tinha 2 comissões na Guiné e tinha sido sargento-chefe paraquedista deixou-me …altamente interessado em cimentar a nossa relação. Ficou logo combinada uma conversa para mais tarde. E, no momento, em que passo ao papel estas linhas já tivemos duas ou três conversas, o que já permite fazer o seu B.I., com os seus dados militares.

Carlos Herculano da Silva Ferreira nasceu em Braga em 16 de Dezembro de 1940. Em 4 Maio de 1961, com quase 20 anos e meio, assentou praça na Escola do BA 3- Tancos. Frequentou o 14.º Curso de paraquedistas e foi “brevetado” em Julho desse ano.

Nos meses seguintes está envolvido em diversas ”diligências”, sendo colocado em Monsanto “para fazer guarda às antenas”, que tinham um papel importante nas comunicações com as nossas províncias ultramarinas. A guerra já tinha então começado em Angola (Fevereiro de 1961).

Regressa a Tancos em 1962 e em 1963 é mobilizado para a Guiné.

Viaja de Tancos para Bissau num “Skymaster”, integrado de um contingente de cerca de 50 paraquedistas.
Chega à Guiné em Junho de 1963 e em meados de Janeiro de 1964 integra as primeiras tropas da “Operação Tridente”, que invadem a Ilha do COMO.

Permanece no Como até ao final operação, que termina em 22 de Março. E continua na Guiné até Agosto de 1964.
Era então soldado-paraquedista e chefe de equipa.

Regressa à Metrópole e casa em Janeiro de 1965.
Frequenta em Tancos o curso de Sargentos.

Em Setembro de 1967, já então como Furriel, segue para Angola, onde cumpre mais uma comissão, até Novembro de 1969 (1.ª Companhia 121).

Mais um regresso a Tancos onde vai permanecer até inícios do ano de 1972.
Durante esse período colabora na instrução de 14 “cursos de combate”. Passam-lhe “pelas mãos” centenas de paraquedistas.

Em Fevereiro de 1972 segue de novo para a Guiné em rendição individual. Foi substituir o Furriel Pires, de Setúbal, morto em combate. Cumpre uma comissão muita dura, que vai prolongar-se até 28 de Março de 1974. Integra muitas operações, passando por Guidage, integrado no 2.º Pelotão da Companhia 121, onde tiveram 4 mortos. Regressa à Metrópole a tempo de “apanhar” a Revolução de Abril.

Estava colocado em Tancos quando, em 25 de Abril, é chamado para integrar um grupo de paraquedistas que, entre várias operações, têm “responsabilidades” junto da sede da PIDE e na prisão de Caxias.

Encontra então nessa prisão um alto funcionário da Pide que tinha conhecido em Bissau durante a sua última comissão na Guiné. Segue depois para a segurança do Aeroporto de Lisboa, onde está em serviço durante algumas semanas.

Mais um regresso a Tancos e, passado algum tempo, é chamado para próximo do General António Spínola.

Presta serviço na Presidência da República de 1974 a 1977. Em 1979 faz o Curso de Sargento-Chefe e é colocado em Monsanto. Passa à reforma em Fevereiro de 1988.

E, à distância no tempo, o que mais o marcou nas suas 2 comissões na Guiné!?

Em relação à primeira comissão ainda hoje recorda as más condições da sua estadia inicial em Bissau.

Foram 29 dias a dormir no chão debaixo de um alpendre com telhado de zinco. Foi um período em que quase deu em doido e que lhe valeram 10 dias de prisão… «Um cabo de serviço embirrou comigo, saltou-me a “tampa” e ofendi-lhe a mãe».
A “porrada” foi despenalizada mas não deixou de a apanhar.

«Depois a vida dá muitas voltas e um dia, durante uma operação no mato, tive que o carregar às costas.»

Depois, em Janeiro de 1964, fez parte do pelotão de paraquedistas que integrou os mais de 1000 homens que fizeram parte do contingente da Operação Tridente, para a recuperação da soberania da Ilha do Como, ocupada pelo PAIGC desde 1963.

Foram dias muito duros. À distância no tempo recorda um momento para o qual ainda hoje - tantos anos passados - ainda não encontra uma “boa explicação”. Já estava no Como há 2 ou 3 dias quando integrou uma “coluna” para entrar no “mato”.
Com a floresta à vista - deslocavam-se “em bicha de pirilau em cima do “separador” da bolanha - e as uns 30 metros da mata ouviu um barulho suspeito. «Era o 4.º da fila e vi um “vigia” deles saltar de uma árvore. Logo a seguir aparece um tipo, fardado de caqui, que nos faz um sinal de “alto”.» Logo após o salto do “vigia” ficámos no chão e pedimos pela rádio apoio de fogo de morteiro. O inimigo desapareceu e as nossas tropas recuaram.

Que quis dizer aquele gesto de “alto” !?
Não quiseram fazer fogo, não queriam guerra? Tinham a “surpresa” do lado deles e não a aproveitaram. Ainda hoje, 48 anos passados, a cena não se apagou da “sua cabeça” e o enigma mantém-se.

Em relação à “Operação Tridente” não se pronuncia pois a sua crónica está contada e ao tempo - não teve tempo nem espaço, nem informação - que valha a pena acrescentar mais alguma coisa ao que está escrito e …já passou à história.

Quanto à segunda comissão, que como já foi referido cumpriu em rendição individual, prolongou-se de Fevereiro de 1972 até 28 de Março de 1974.

Das muitas operações em que esteve envolvido recorda especialmente a invasão do Cantanhez. «A minha Companhia estava em Teixeira Pinto e veio para Bissau para preparar a operação. Na data prevista fomos hélio-transportados até à orla da Mata do Cantanhez. Fui o primeiro militar do primeiro “heli” a saltar. Era então 2.º Sargento e o meu chefe directo era o Alferes Silva, que é hoje Coronel. A nossa missão consistia em limpar a área para se montar um aquartelamento. Estivemos vários dias na zona e fomos atacados durante uma noite. Ao fim de 3 dias o “Caco Baldé” aparece lá e vai falar com o Comandante de Companhia, o Capitão Augusto Martins, que chegou a General.»

Mandaram-me chamar ao Comando porque o General Spínola queria conhecer a mata. «Foi comigo e fomos sempre a falar. No final da visita deu-me os seus parabéns e disse-me que tinha gostado de me conhecer.»
«Foi para mim um dia e uma ocasião muito especial. Que não mais esqueci.»

Ficámos um mês no Cantanhez. Tempos depois, numa operação na zona de Bambadinca, fomos sobrevoados por um helicóptero.
Para meu espanto o “héli” baixou e veio aterrar perto dos meus homens.

O “Caco” vinha a bordo e, quando me aproximei, perguntou-me se estava tudo bem e se era preciso alguma coisa. Reagi de imediato e pedi-lhe: «Meu General vá-se embora, que me dá cabo da operação.»
- Se precisares de alguma coisa chama. Acenou-me com o bengali e o “héli”afastou-se.
 «Nunca mais esqueci o momento».

«Deixo para o fim a recordação de uma ocasião muito dolorosa e marcante.
Um dos meus homens – o 1.º Cabo Melo – ganhou o Prémio Governador da Guiné e teve direito a um período de férias no Continente. Podia ter vindo para Bissau para apanhar o avião para Lisboa mas fez questão de entrar numa operação comigo, porque sabia que fazia falta. Nessa operação foi morto em combate. Em Junho de 1973. 
Foi o maior desgosto da minha vida de militar. Andei 8 dias bêbado.»

À distância no tempo… o Avô da Matilde emociona-se e cala-se.
Mais tarde diz-me que lhe fez bem falar.


Daqui para a frente sempre que for a São Martinho do Porto vou tocar à campainha do apartamento do Sargento-Chefe Carlos Ferreira. Um vizinho especial.

JERO
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9045: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (39): O 1º Cabo Cond Auto/ Rádio VELEZ

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Guiné 63/74 – P9045: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (39): O 1º Cabo Cond Auto/ Rádio VELEZ

1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:


1.º Cabo Cond auto/Rádio VELEZ - A modéstia em pessoa



A CCaç 675 continua a honrar os seus mortos.

Mais uma vez acompanhei o ex-Alferes Belmiro Tavares na honrosa e digna missão de recordar os nossos mortos, com a colocação de uma lápide na sua última morada.

Já são quarenta os nossos mortos!... Na Guiné tivemos 3 baixas. Regressámos em Maio de 1966 e desde então até aos nossos dias já nos deixaram mais 37 camaradas.

Na missa que mandamos celebrar nos dias dos nossos convívios, que têm lugar habitualmente no 2º domingo,  de Maio desde 1967 até aos dias de hoje, recordamos sempre os nossos mortos. Quando a já longa lista é lida em voz alta pelo Belmiro Tavares cada nome é saudado com o grito de “presente”.

Francisco Diogo Velez, que faleceu em 23 de Março de 2010, foi um dos nomes referido em passado recente.

Acompanhado de um seu familiar – José Godinho, seu sobrinho por afinidade - fomos visitar a sua campa no cemitério Municipal Vale Flores, em Feijó.

 “Presente”. Velez. 1º Cabo Cond/Auto/ 2458/63 da CCaç 675.

... Dr. Francisco Diogo Velez, da Central de Cervejas, completou seu sobrinho José Godinho.

O Belmiro olhou para mim e eu olhei para o Belmiro. No Outono deste 2011 estava-nos reservada uma surpresa. Das grandes. 

Dos nossos tempos da Guiné recordava o Velez como um militar disciplinado, cumpridor, bom no que fazia mas sem dar especialmente nas vistas. Era um bom militar como era apanágio da maioria dos militares da Companhia do Capitão Tomé Pinto. O Velez só se transfigurava e dava nas vistas quando jogava futebol. Era o nosso melhor jogador. Simplesmente o melhor.


Em termos pessoais recordava-o como parceiro de uma cena meia caricata, de que não me orgulhava particularmente mas que tinha efectivamente acontecido. Constava até do nosso “Diário”.

«…na noite de 13 de Setembro de 1964 tivemos a surpresa de um ataque ao quartel, em Binta. Estávamos – vários furriéis e sargentos - numa sala que tinha duas saídas. Uma para o lado donde vinham os tiros e outra pró outro lado. O lado bom… dava para a sala dos telegrafistas. Arrombámos a porta e passámos pelos telegrafistas como uma manada de búfalos a fugir de leões. Eu fui um dos “heróis” que atropelou o Velez na minha corrida desenfreada “pró lado bom”.Nunca mais esqueci a sua cara de espanto…».

Saímos do cemitério do Feijó e visitámos a casa do [sobrinho] do Velez. E soubemos tantos anos depois o que tinha sido a vida pessoal e profissional do nosso Velez, da Guiné.

Já na casa de José Godinho vimos uma sala preenchida com troféus e fotografias do “Chico” Velez, como os seus familiares mais próximos o tratavam.

Nasceu em 1942 em Benavila, concelho de Aviz, distrito de Portalegre. Alentejano de um meio rural, filho de uma família de camponeses, muito humilde, teve a companhia de mais 4 irmãos. Fez a 4ª Classe, jogava a bola e foi aprendiz de sapateiro, com um seu tio. Viveu na sua terra natal até aos 20 anos. Chegou o tempo da vida militar, e foi mobilizado para a Guiné, onde o viemos a conhecer.

Depois do regresso em Maio de 1966 – soubemos pelo seu sobrinho José Godinho – que ingressou pouco tempo depois na Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, em Vialonga, onde veio a trabalhar toda a vida.

Foi servente e depois ajudante de motorista. Tirou a carta de condução profissional e foi promovido a condutor. Por volta dos 40 anos resolveu estudar. Estudou à noite e em dois anos fez o liceu. Ingressou depois na Faculdade de Economia, em Lisboa, e em 5 anos conseguiu terminar o seu curso. Na sua empresa reconheceram-lhe os méritos e o seu esforço para se valorizar e quando já andava no 2º ou 3º  ano da Universidade ingressou nos escritórios da Empresa, como tesoureiro. Quando terminou a sua licenciatura passou ao Departamento de Finanças e nos últimos anos da sua vida foi Director Financeiro da Central de Cervejas.

Nos convívios da CCaç 675 o Dr. Velez nunca contou nada da sua vida e sempre se manteve discreto e sem alardes ou jactâncias da sua meteórica subida na vida profissional. Sabíamos que trabalhava da Central de Cervejas mas pouco mais.

Manteve-se solteiro e sempre próximo dos seus familiares. Comprou uma casa com 9 assoalhadas, onde viveu grande parte da sua vida. Essa casa de 9 assoalhadas é em Lisboa, na Avenida Miguel Bombarda, nº 139.

 Na fase da sua doença, que lhe veio a causar a morte, esteve nos últimos meses de vida em casa do José Godinho e da sua sobrinha favorita, a Cita, em Fernão Ferro, na margem Sul. Já muito doente fez questão em fazer testamento e deixou as poupanças da sua vida aos seus familiares mais próximos.

O seu funeral foi uma sentida manifestação de pesar. De gente do futebol – jogou nas reservas do Benfica e do Sporting Clube de Portugal nos tempos em que Juca foi treinador do clube – e de gente do ténis de mesa. Nesta modalidade o “Chico” Velez foi durante alguns anos campeão nacional de veteranos pelo Clube Desportivo do Millennium BCP. Sem nunca ter sido bancário.

Nunca contou aos seus camaradas da “675” os problemas de saúde que marcaram duramente um ano da sua vida. O último. E só mais tarde soubemos que já não estava entre nós.


A surpresa estava para acontecer quase um ano e meio depois da sua morte. O 1º Cabo Velez da “675” morreu “Dr”. Doutor em economia mas principalmente em simplicidade. Sem ostentação de títulos nem vaidades.

Francisco Diogo Velez foi a modéstia em pessoa. Cultivou em vida valores que vão para além da morte. Merece o nosso apreço. A nossa homenagem póstuma.

Em termos pessoais começo hoje a pagar-lhe uma dívida de gratidão.Com a expressão da minha saudade. Da nossa saudade.

Um Alfa-Bravo dos teus camaradas da Guiné.
JERO
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8653: Histórias do Jero (38): O Sétima Dia (José Eduardo Oliveira)


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8653: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (38): O Sétima Dia


1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:

O SÉTIMO DIA

A vida militar cria laços difíceis de explicar para quem “não andou por lá…”
Depois, já na vida civil, com o correr dos anos esses “laços” estreitam-se $em relação a alguns camaradas. O contrário também por vezes acontece quando, com o decorrer do tempo, conhecemos um pouco melhor com quem lidámos quando éramos jovens de vinte e poucos anos.
Os encontros anuais dos ex-militares aumentavam ou diminuíam o "valor acrescentado” do que conhecíamos ou julgávamos conhecer em relação aos nossos antigos camaradas de armas. Nalguns casos foram precisos anos para perceber melhor com quem tínhamos lidado durante esses anos da guerra do Ultramar.
Apesar de tudo não tivemos muitas surpresas porque os maus bocados de uma comissão de dois anos definem o carácter e a maneira de ser de cada um… sem grandes margens de erro.

O mais irreverente dos Alferes da C.Caç. 675, que serviu na Guiné dos idos de 1964-66, Artur Mendonça de seu nome, nado e criado em Felgueiras, só voltou a aparecer anos depois dos primeiros encontros anuais da Companhia.
Na foto o Capitão Tomé Pinto e o Alferes Mendonça em Binta-Guiné (1965).
Era então já engenheiro têxtil, com sinais evidentes de estar bem na vida. Era um homem de sucesso que já tinha trabalhado mundo fora e que continuava brincalhão .Era um “gozão” nato.
Ao longo dos anos sempre que nos encontrávamos contemplava-me de imediato com a recitação de uns versos ingénuos que tinha escrito e publicado num “jornal de parede” da Companhia, no Natal de 1964.
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
O Mendonça tinha uma memória prodigiosa…
Tivemos que aguentar esta piada ao longo dos anos, embora por vezes não nos faltasse vontade de mandar o nosso Alferes “abaixo de Braga”. Mas como o Mendonça já vivia em Felgueiras…
Há uns dois ou três anos soube pelo Belmiro Tavares - outro Alferes da C.Caç. 675 – que o Mendonça estava bastante doente . Tinha feito quimioterapia e já sabe que a partir daí a vida sofre grandes mudanças.
O Tavares, que tem as suas raízes familiares em Sever do Vouga, visitava-o de vez em quando.
Uma semana atrás o telemóvel tocou e vimos que do outro lado estava o Tavares: - Então Kamarada tudo bem?
Nem acabámos a brincadeira habitual entre nós – Kamarada mas com “K” – porque pelo tom de voz do Tavares percebemos que ele não estava bem.
Entre soluços e poucas palavras disse-nos que estava em Felgueiras e que o Mendonça tinha morrido. O seu corpo já estava na Igreja e o funeral ia ser dentro de meia hora. Desligou de seguida sem nos dar tempo de dizer nada.
Havia que deixar passar algum tempo e foi o que fizemos.
---#---
No passado dia 4 de Agosto viajámos para Felgueiras. O Tavares veio de Lisboa e nós apanhamos a sua boleia na estação de serviço da Nazaré, na A-8.
Tínhamos entretanto combinado telefonicamente que uma representação da “675” deveria estar presente na Missa de 7º.Dia.
Connosco viajou também o Moreira, ex-Furriel Atirador da nossa Companhia.
Durante o tempo de viagem – mais de duas horas – recordámos entre risos inúmeras “estórias” do menino “Arturinho”, como mais tarde viemos a saber que era conhecido na sua terra natal . Rimos com gosto convencidos de que seria daquela maneira que o nosso Alferes gostaria de ser recordado pelos seus pares.
Viveu a vida militar sempre a “gozar com a tropa”no limite do admissível para não ser punido. Assumia que não seria voluntário para nada mas que cumpriria os “mínimos”, pois também não lhe interessava levar uma “porrada”.
No final da comissão ,na ausência do Capitão, desempenhou por alguns dias as funções de Comandante de Companhia Interino. Aproveitou o tempo para louvar os maiores “cromos” da Companhia. Quando dizemos “cromos” queremos dizer os militares que só teriam sido exemplo em “nabices”…
Por volta das 19H00 estávamos junto da mansão do menino “Arturinho” onde viemos a conhecer a sua viúva, dois filhos e um dos seus netos.
A família estava conformada com a partida do seu ente querido. Tinham durante cerca de três anos feito tudo o que era possível para o ajudar na sua luta contra a doença e estavam convencidos que o seu familiar tinha partido sem sofrimento.
A Igreja e o Cemitério eram a poucas dezenas de metros da casa do Artur Mendonça.

Um seu neto de 7 anos, com ar de esperto que nem um rato, andava de bicicleta à nossa volta com à vontade e destreza.
Tinha sido um dos grandes amigos dos últimos tempos de vida do seu Avô, a quem ensinava com paciência como gravar programas da televisão e outras habilidades informáticas.
Seguiu-se a missa do 7º. Dia, celebrada por um sacerdote despachado.
Vinte sete minutos mais tarde estávamos fora da Capela da Pedreira.
Visitámos o cemitério, com a surpresa de ver o nosso amigo sepultado num jazigo pouco vulgar.

«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
Depois foi o tempo do regresso.
Viajámos até Sever do Vouga onde pernoitámos numa das casas do Belmiro Tavares.
Na noite longa que se seguiu dormi mal, muito mal e pensei longamente no menino “Arturinho”.
Julguei perceber finalmente a sua maneira de ser e a irreverência congénita de que fazia alarde.
Tinha sido criado em berço de ouro -o seu Pai tinha sido um respeitado médico da região de Felgueiras - e atingiu os diversos patamares da vida sem grandes dificuldades porque alem de ser esperto era “filho de família”…
O que, quer se queira quer não, dá sempre jeito.
Quando chegou à vida militar percebeu rapidamente os pontos fortes e fracos da vida castrense.
E gozou sempre que pôde com a tropa. Na boa…
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma
nova.»
Até sempre, menino Arturinho.
Até sempre, meu Alferes Mendonça.
JERO
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Nota de M.R.:
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3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8208: Histórias do Jero (37): 3 de Maio de 1966, o dia D de desembarque em Lisboa (José Eduardo Oliveira)

terça-feira, 3 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8208: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (37): 3 de Maio de 1966, o dia D de desembarque em Lisboa




1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,

Acabei de escrever um texto que tem a ver com o regresso da minha CCAÇ 675.

Saímos de Bissau a 28 de Abril e chegámos a Lisboa em 3 de Maio de 1966.

Gostava de ver no nosso blogue esta "postagem" no próximo dia 3 de Maio de 2011, 3ª Feira.

Por ironia do destino tenho uma intervenção cirúrgica marcada para esse dia a um sacana de um joelho… com 71 anos.


3 de Maio de 1966

Esta memória que agora recupero tem 45 anos!

Tem a ver com a minha chegada a Lisboa depois de cumprir 2 anos de serviço militar na Guiné.
O desembarque aconteceu em 3 de Maio de 1966.

Dos 5 dias da viagem de regresso quase nada recordo.
O que recordo como mais marcante foi o momento em que entrei dentro do «UÍGE» ainda no Cais de Bissau.
Nesses tempos entre o Cais e o navio havia umas boas dezenas de metros a percorrer, distância que era feita numa pequena lancha a motor. Terei sido dos últimos a embarcar às voltas com um caixote que trazia com coisas pessoais (as minhas papeladas e uns panos guineenses compradas no mercado de Bissau no dia da partida).

O caixote era grande, difícil de transportar e, devido à ondulação, quase me caiu à água quando finalmente consegui agarrar a escada do portaló, que nos permitia subir a bordo do navio.
Lembro-me do grande alívio que senti quando finalmente entrei no navio e «pisei» terreno seguro.

Depois… segue-se um vazio na minha cabeça que, não é total, porque tenho fotografias desses tempos.

Quando tempos depois organizei o meu álbum de fotografias coloquei na mesma página uma foto à partida e uma foto do regresso. Foi impressionante constatar como dois anos tinham mudado tanto os traços fisionómicos da nossa gente. Miúdos à partida e homens feitos na viagem de regresso.

E não regressaram todos. Faltaram o Soldado Ap Met Augusto Gonçalves (morto em 29.Julho.1964), o Fur Mil Atirador Álvaro Mesquita (morto em 28.Dezembro.1964) e o Soldado Atirador João Nunes do Nascimento (morto em30.Julho.1965).

Devido a ferimentos graves também nos tinham precedido na viagem de regresso oito militares evacuados, em datas diferentes, para o Hospital Militar Principal, de Lisboa: o 1º.Cabo Craveiro e os soldados Bessa, João Santos, António Filipe, João Alexandre, Carlos Coelho, Severino Dias e o “Caldas” (Joaquim Lopes Henriques).

Cinco dias depois da partida de Bissau, menos bem alimentados do que na viagem de ida mas sem “livro de reclamações”… foi tempo de arrumar as ideias. Já a pensar mais como civis do que como militares fazíamos contas à vida.


No dia 3 de Maio de 1966 Lisboa estava à vista e… a ponte sobre o Tejo já estava concluída!

O «UÍGE» aproximava-se lentamente dos cais, apinhado de multidão mantida a alguma distância por elementos da P.M.

Lembro-me de algumas assobiadelas com que os polícias militares foram contemplados pela malta que chegava.

Os PêEmes… só existem mesmo para chatear a malta!

DO NAVIO PARA O CAIS…

Ali estava eu, com as mãos apoiadas na amurada do navio, que finalmente acostava ao Cais de Alcântara.
Tinha esperado por aquele momento dois anos, dois longos anos.

E… não sentia nada do que tinha esperado!

Vamos lá entender o Mundo, as pessoas… se eu próprio me custava a entender!

Estava no final de uma longa «viagem à guerra», já tinha descortinado entre a multidão do Cais os que me tinham ido esperar e… nada. Ou melhor dizendo… muito pouco.
Afinal o que se passava comigo!?

Ainda hoje, a quarenta e tal anos de distância, tenho dificuldade de explicar o que se passou!
Sei que estava parado, quase apático, sem vontade de correr para a saída!

Terei sido dos últimos da minha Companhia a desembarcar.

Cheguei junto dos meus e recordo especialmente o abraço da minha mãe.

Mãe é mãe e sabia que tinha sido Ela a pessoa que mais tinha sofrido com a minha ausência de dois anos.

Para melhor a abraçar pousei no chão um pequeno saco de bagagem que trazia ao ombro. Neste saco transportava a máquina fotográfica e os últimos «souvenirs» de Bissau.

Quando acabou o abraço e me baixei para apanhar o saco ele já não estava lá…

Um amigo do alheio tinha-se aproveitado da confusão e tinha-o levado por engano…

Acalmei rapidamente as preocupações da minha mãe. Afinal eu ainda lá estava. Vazio, confuso mas…fisicamente presente.

Quanto ao ladrão isso que queria apenas dizer que… tinha regressado de novo à civilização!

Olhei mais uma vez para o mar.

Até sempre… Guiné!

Quarenta e cinco anos depois tenho o privilégio de todos os dias poder recordar lugares, rever amigos, reler irmãos sob o frondoso, fraterno e sagrado poilão da nossa Tabanca Grande...

São esses os meus “créditos” 45 anos depois do regresso da Guerra do Ultramar, ou Colonial ou da Independência…

Com uma paz diferente da que tinha DO NAVIO PARA O CAIS… em 3 de Maio de 1966.

Um abraço fraternal de Alcobaça,
JERO
____________
Nota de M.R.:

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20 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7826: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (36): Ida ao dentista em Farim (JERO)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7826: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (36): Ida ao dentista em Farim

1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos hoje a seguinte mensagem:


Salvo as devidas distâncias e com o devido respeito recordei-me desta história a quando de uma recente postagem sobre uma ida do então General Spínola ao estomatologista. No HM 241, em Bissau. Com o seu monóculo a ser confiado a um Médico durante o tempo da consulta dentária.
«É evidente que quem o tratou foi o Chefe, mas havia necessidade que alguém tomasse conta do monóculo e logo me tocou a mim. É engraçado que senti aquele receio de ser o fiel depositário de tão solene objecto. Mas consegui não o deixar cair!!!»
(Mário Bravo)



IDA AO DENTISTA A FARIM


Por volta de Novembro ou Dezembro de 1965, quando já contávamos cerca de 18 meses de comissão, chegaram ordens via rádio a Binta, vindas da sede do Batalhão em Farim, para uma ida ao dentista.
Militares da “675” aguardam transporte para Operação “TIRA-DENTE”

O Alferes Médico Martins Barata deu-me as devias instruções e em pouco tempo arranjei uma lista de militares com necessidade de cuidados de medicina dentária. À distância no tempo há que recordar que a visita a Farim era para arrancar dentes e não para os arranjar.

Num dia de manhã a coluna dos militares com dentes “estragados” arrancou para Farim.

Sentados nos Unimogs, com a G-3 entre as pernas e com o lenço na boca. Era naqueles dias que quem seguia atrás da primeira viatura comia pó que se fartava.

Chegámos a Farim sem problemas de maior e como Furriel Enfermeiro recebi instruções para orientar a consulta .Ao ar livre, está claro. Duas cadeiras e duas filas, frente a um Alferes Médico e a um 1º.Cabo auxiliar de enfermagem.  Cada “cliente” abria a boca, dizia qual era o dente ou os dentes estragados, levava uma injecção (anestesia) e vinha para o fim da fila. Passados uns minutos avançava para a extracção. Abre a boca, respira fundo e… alicate. Já está.
Meia dúzia de minutos depois do início das primeiras extracções, e como é comum na vida militar, alguém segredou ao parceiro do lado que o cabo é que era “bom”.

A fila que destinava ao médico ficou reduzida ao mínimo. Tentei perceber o que se passava e refazer a “fila” pró Alferes. Mas não consegui grande coisa.

A fila do Cabo engrossava e deve ter “facturado” o triplo das extracções em relação ao seu superior.  Foram recomendados alguns cuidados de higiene aos desdentados e com a malta toda a cuspinhar sangue lá regressámos a Binta. O lenço verde deu um jeitão.
O pó avermelhado da “estrada” é que foi difícil de suportar… mas a meio da tarde estávamos em “casa”.Sem problemas de maior. Além das dores na boca, está bem de ver.

Termino o registo desta operação “tira-dente” com um testemunho pessoal. Também então precisava de ter ido ao dentista… mas não fui.
Quando em Maio de 1966 regressei da Guiné andei cerca de 2 anos a tratar dos dentes. E tiveram que me extrair 11 (onze) dentes. Uma das extracções correu mal e tive uma alveolite. Como o próprio nome indica é uma infecção no alvéolo. Regressei ao dentista e ele mandou-me abrir a boca. Enquanto o diabo esfrega um olho fez-me uma raspagem. A frio, sem anestesia. Mais tarde explicou-me porquê. Mas naquele momento dei um berro que se deve ter ouvido dois andares acima do consultório. Dei um berro e um salto na cadeira.
Na “descida”… lembrei-me do Cabo. O de Farim. Porque é que não fui para a fila dele?
Não me tinha doído tanto e tinha sido à borla…
Acabei por contar a história do Cabo-dentista de Farim ao Médico-dentista de Alcobaça.
E consegui, mais tarde, um desconto na esquelética. Que é uma das minhas recordações da Guiné. Onze dentes postiços. Seis em cima e cinco em baixo.
Bons velhos dentes, digo, tempos.
De Binta. Da Guiné.
E quanto partir… até posso cá deixar a esquelética.
Pró museu da minha Companhia. Da seis, sete, cinco.
Mas não tenho pressa nenhuma…
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota de M.R.:
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3 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7544: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (34): Quem tem cu… tem continuação… (José Eduardo Oliveira - JERO)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 – P7517: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (35): Morte a vinte e oito… na CAÇ 675




1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675,
Binta
, 1964/66), enviou-nos hoje a seguinte mensagem:

Camaradas,

No rescaldo de mais um Natal mando-vos mais uma história da "minha guerra", num dia que nos marcou a todos: o primeiro morto em combate na C.Caç. 675.

Faz hoje, dia 28 de Dezembro, 46 anos. Era o meu melhor amigo e fui então incumbido de reunir todos os seus bens pessoais (livros, cartas, rádio, gravador e roupas) para os mandar para os seus pais. Assim fiz e troquei cartas bastantes emotivas com o seu Pai, Rebelo Mesquita, que era ao tempo Director do Jornal de Famalicão. Nos dias de hoje colaboro com esse jornal. Os acasos da vida.

MORTE A VINTE E OITO…

Correndo o risco do “lugar comum” poder-se-á dizer que todos nós temos na vida datas marcantes.
A data em que escrevemos este apontamento – 28 de Dezembro de 2010 – é para nós particularmente marcante por neste mesmo dia – passados que estão 46 anos – ter morrido um grande amigo: o Furriel Miliciano Álvaro Vilhena Mesquita.
Aconteceu no Norte da Guiné em 28 de Dezembro de 1964. Entre Udasse e Binta.
No “Diário da C.Caç. 675” esse trágico dia era assim descrito:
«…Meio-dia e trinta.
Um estoiro medonho, um rebentamento de violência extraordinária, faz parar a coluna. A segunda viatura, um Unimog, estava envolta numa fumarada espessa e começava a arder.
Simultaneamente de um dos lados da estrada, emboscado no mato, o inimigo começava a disparar.
Embora paralisados momentaneamente pela surpresa os nossos homens têm uma reacção fortíssima que faz calar em poucos momentos o inimigo.
Há uma pausa. Os oficiais disciplinaram o fogo e todos procuram saber o que se passa lá à frente.
A viatura sinistrada incendiara-se e há feridos que gemem e que correm perigo junto das chamas que podem provocar uma explosão no depósito do “Unimog” e incendiar o capim das bermas do caminho.
A mata fechada, a fumarada da viatura incendiada, a estrada multo estreita, mais complicam a situação e há dificuldades nos primeiros momentos em avaliar a extensão e gravidade da ocorrência.
Sob o pneu direito da retaguarda da viatura que seguia em segundo lugar, tinha rebentado um engenho explosivo de grande potência. Uma mina anti-carro.
Todos os homens que seguiam na viatura tinham sido projectados pelos ares.Com violência.
O médico e os enfermeiros acorrem à frente.
«Há um morto!».
A notícia corre ao longo da coluna e faz estremecer aqueles que a ouvem, abalando-os mais que o violento estampido de há momentos atrás.
«O furriel Mesquita está morto.»
O médico e os dois enfermeiros, auxiliados por alguns soldados, multiplicam-se em esforços para socorrer os feridos.
Há 8 feridos e o estado de alguns inspira sérios cuidados.
O “Unimog” atingido pela mina arde completamente, transformado num autêntico braseiro donde sai um fumo espesso que atinge dezenas de metros de altura. Alguns metros à sua volta há um calor horrível, mas é mesmo ali que têm de ser tratados os feridos.
É pedido um helicóptero.
Aqueles momentos infernais parecem prolongar-se indefinidamente.
A viatura destruída, que com o rebentamento, ficou atravessada no meio da estrada, é encostada à berma direita, seguindo a coluna para a frente, para uma região mais despida de vegetação, onde se aguarda o helicóptero pedido.
As palavras não poderão dar uma ideia pálida dos momentos que se viveram no dia 28 de Dezembro.
Ele ficará assinalado na existência de todos os homens da «675» como um dia trágico que não se esquecerá jamais.
As nossas tropas tiveram as seguintes baixas:
Furriel Mil. Álvaro Manuel Vilhena Mesquita, com lesões internas graves que lhe provocaram morte instantânea.
Feridos em combate:
Alferes Mil. Costa, 1.º cabo atirador n.° 2069/63, Marques, 1.º Cabo atirador n.° 2231/63, Craveiro, Soldado atirador n.° 1909, Santos, Soldado atirador n.° 2085/63, Filipe, Soldado Transmissões n.° 2978/63, Nunes e Soldado atirador n.° 6/63/U da 1.ª C. C. Nhastima Dum.»
Quarenta e seis depois por um acaso da vida, que consideramos “singular”, estamos de novo ao lado Álvaro Mesquita numa das páginas do “Jornal de Famalicão”. O jornal da sua terra natal fundado pelo seu Pai.


Desde há alguns meses que dois antigos camaradas do Álvaro – o Belmiro Tavares, ex-Alferes Miliciano e o Oliveira, ex-Furriel Miliciano – colaboram no “Jornal de Famalicão, que é agora dirigida por sua Irmã Teresa Mesquita.
Na vida e na morte… amigos até ao fim .E fiéis ao lema do emblema da sua Companhia da Guiné.
NUNCA CEDERÁ.
Um grande abraço de Alcobaça.
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
PS: Nesta data escrevi à irmã e ao sobrinho do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.

“Boa noite Teresa,Recebi hoje o "nosso" jornal e confesso-lhe toda a minha emoção ao ver o meu texto lado a lado com a evocação dos 46 anos do falecimento do Álvaro.
As voltas que o mundo dá!?
Quem é que me havia de dizer que algum dia na vida eu voltaria a estar tão perto do meu querido companheiro de Binta?

Mas aconteceu e é muito bonito. Digo até que é uma das páginas mais bonitas da minha vida. Para si e para o Chico toda a minha consideração e estima.
José Eduardo Reis de Oliveira”
__________
Nota de M.R.:
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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Guiné 63/74 – P7028: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (34): Memórias de Angola – Uma (longa) noite a conduzir… A morte

1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil Enfº da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66) e enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 22 de Setembro de 2010:

Camaradas,

Depois de longa ausência envio um texto sobre Angola, respeitante a uma dramática história passada em 5 de Junho de 1963.

Já lá vão 47 anos!

Confirmei alguns dados e sei que a história tem veracidade. Um irmão do Joaquim Mexia Alves - o António - foi Alferes numa Companhia deste Batalhão.

Como vi que no nosso Blogue já existem 70 postagens sobre Angola julgo que a história que te estou a enviar terá cabimento junto dos "testemunhos" da "nossa" Guiné.

Para complemento do texto anexo uma cópia de um mapa militar do Norte de Angola, assinalando Bessa Monteiro e Ambrizete (este mapa foi tirado de uma Edição do EME, 2º.volume do Dispositivo das Nossas Forças – Angola -, 1989).




UMA (LONGA) NOITE A CONDUZIR… A MORTE
De seu nome José Peça Figueiredo foi conhecido nos seus tempos de militar como o “Alcobaça”. Vá-se lá saber porquê!

Recolhi a história que hoje vou contar em diversos tempos…

Num primeiro tempo… hesitei em contá-la pela tremenda carga de dramatismo que contém.

Num segundo tempo – impressionado pela morte recente de uma familiar – telefonei ao Zé Peça, que daqui a pouco mais de um mês vai entrar numa idade ingrata – os 70 menos 1, e disse-lhe:

Eh pá, qualquer dia “deixamos de fumar” e fica por escrever a tal história da tua noite a caminho do Ambrizete…

Falámos ao fim da tarde de hoje, 20 de Setembro de 2010, em casa do Zé.

Somos amigos desde há muitos anos e sei que é… ”boa praça”. Não engana. Discreto, palavroso como profissional (foi um excelente vendedor de automóveis) mas extremamente recatado quando toca a falar de si.

Foi portanto um José Peça Figueiredo tenso e particularmente sério que me (re)contou a história de uma das noites mais longas e dramáticas da sua vida militar.

Foi no dia 5 de Junho de 1963. Passava pouco do meio dia. À distância do tempo recorda esse dia… ao minuto. Era Soldado Condutor (condutor auto rodas) da CCS do Batalhão 400 (BART 400).*


Pediram nessa altura “voluntários” para ir ajudar uma coluna do "392", de Baca, que estava a ser atacada quando vinha a meio caminho em direcção a Bessa Monteiro .

O Zé Peça ficou no quartel sentindo-se na obrigação de me explicar que “na tropa aprendeu cedo que não se devia ser voluntário” para nada. Saiu uma coluna comandada pelo Capitão Moura Borges para "ir dar uma mão" à tropa do "392", ajuda que tinha sido pedida por rádio.

Por volta das 3 da tarde soube o que tinha acontecido.

A cerca de 12 kms. de Bessa Monteiro, num local em que a “picada” estreitava devido a uma “garganta” da montanha a segunda viatura da coluna da CCS rebentou uma mina anti-carro e não tinha conseguido chegar ao local da emboscada da "392". Tinham-se registado diversos mortos e feridos.

Lembra-se dos mortos terem chegado “feitos aos bocados”. Havia a lamentar 3 mortos da CCS, entre os quais o Capitão Borges.

E também havia mortos em Baca da CART 392. Constava que eram 4.

O “Alcobaça” ajudou no que lhe foi possível e ainda assarapantado pela confusão do momento lembra-se de passado algum tempo ter sido chamado pelo Comandante de Batalhão, Ten. Coronel Alberto Ferreira de Freitas Costa.

“Alcobaça” vai jantar e depois levas os mortos a Ambrizete”.


Nesta parte da narrativa o Zé Peça esclarece-me de algumas dúvidas.

Destino Ambrizete porquê?

Ambrizete ficava a 200 kms. mas tinha cemitério e uma Igreja, onde se podiam fazer os funerais.


Teria que fazer o percurso onde tinha ocorrido o rebentamento da mina e passar por Baca para transportar, para o mesmo destino, os outros mortos.

Entre diversos pormenores macabros em relação aos mortos da CCS o Zé Peça lembra-se ainda do que comeu na altura: “bacalhau com batatas”! Porque se lembra deste pormenor? Porque que era um "prato" de que muito gostava e não tinha conseguido "tocar na comida".

Algum tempo depois apresentou-se com a sua “GMC” junto ao Comando e carregaram-lhe, em maca, os 3 mortos.

O Ten. Coronel entregou-lhe os galões do Capitão Borges e disse-lhe em voz baixa que os voltasse a colocar no corpo do Oficial quando tivesse chegado ao seu destino.

- E quem vai comigo, meu Comandante?

- Ninguém.Vais sozinho pois já chega os mortos que tivemos. Se houver outra mina só teremos mais uma baixa e não duas.

O Zé Peça, que sabia que o Comandante de Batalhão tinha estima por si, sentiu um aperto "mitral" mas nada disse e subiu para a viatura. Pôs o motor a trabalhar e arrancou, seguido por duas viaturas com duas(??) secções.Lembra-se que uma das secções era comandada pelo Furriel Tavares.

Eram umas seis da tarde.

Ainda havia luz de dia mas pouco depois começou a escurecer.

O “Alcobaça” não acendeu os faróis mas ligou os “olhos de gato” da “GMC”. Em marcha lenta, pois nalguns troços da “picada” os homens do Furriel Tavares seguiam apeados, chegaram ao local onde tinha rebentado a mina.

Foi muito difícil ultrapassar o "buracão", dificuldades que pouco depois aumentaram quando encontraram duas árvores abatidas na "zona de morte" da emboscada que a malta do "392" tinha sofrido.

Os “abatises” tiverem que ser serrados e removidos para a berma para a pequena coluna continuar o seu caminho.

Foram horas de angústia que se prolongaram pela noite dentro. Chegaram a Baca por volta das 4 da manhã. Aí o Zé lembra-se de ter comido alguma coisa. Uma espécie de pequeno almoço.

Tinham sido precisas cerca de 10 horas para percorrer 22 quilómetros!

Foram carregados os mortos da “392”- eram 3 e não 4 - e a coluna “funerária” seguiu a caminho de Ambrizete.

Só, na sua cabine, nem uma vez o Zé Peça olhou para trás, para a sua”carga”. Sentia um cheiro a morte e um zumbido de moscas… Foram horas e mais horas até Ambrizete. Só, com os seus pensamentos, o Zé Peça olhava para a “picada” atento a qualquer coisa… As sombras da noite foram clareando e quando o amanhecer chegou o seu ânimo melhorou um pouco…

Eram 5 da tarde quando chegaram a Ambrizete.

Tinham passado cerca de 23 horas desde que tinham saído de Bessa Monteiro!

Os corpos começaram a ser descarregados e o “Alcobaça” apressou-se a pôr os galões no cadáver que lhe pareceu ser o do Capitão Borges. Os corpos estavam inchados, cobertos de pó, de moscas e…irreconhecíveis. O Zé Peça teve dúvidas mas… não conseguia olhar mais tempo os mortos.

Perguntei-lhe se os corpos estavam identificados, se tinham as chapas metálicas de identificação que todos os militares traziam ao peito? Em consciência não se lembra… nem sabe responder.

Tinha que sair dali bem depressa e foi para a “Pensão do Moço”. Conhecia o dono e lembra-se que foi para a cama bem cedo. Caiu na cama mas não conseguiu dormir nada de jeito. Teve pesadelos e viu, vezes sem conta, os “seus” mortos numa noite longa… que parecia não ter fim.

No dia seguinte atestaram-lhe a sua GMC com géneros. Carregou sacos de arroz, feijão, grão, batatas, conservas e barris de vinho.

O Zé Peça lembra-se que sentia algum “conforto” com o carrego que ia transportar. Carregava a tonelagem máxima e se “encontrasse” uma mina anti-carro talvez não saltasse muito!

Não houve problemas no regresso a Bessa Monteiro.


Quando chegou ao aquartelamento pensava que ia encontrar a malta toda em lágrimas.

Foi recebido com gritos de satisfação. Olha o “Alcobaça”!

Num grupo tocava-se acordeão e dançava-se…

Parecia que nada de anormal se tinha passado 2 dias antes.

O “Alcobaça” percebeu que a guerra é mesmo assim.

Ai dos que partem!

Quem fica… come, bebe, brinca... convencido que a acontecer alguma coisa de mau acontecerá aos outros.

Fez o relatório verbal ao seu Comandante e não ocultou as dúvidas que teve quando colocou ao galões do Capitão… num corpo que poderia não ser o “certo”.

O seu Ten. Coronel não o recriminou e explicou-lhe as razões da tal ordem cruel:

«Segues sozinho porque já me chegam os mortos que tivemos.»

O Zé Peça compreendeu e seguiu para a sua vida no quartel. Onde fazia tudo… ou quase tudo.

Mal sabia ele que ainda estavam para acontecer outros acontecimentos bem trágicos por ali…

Em 6 de Setembro de 1964 é abatido um pequeno avião de reconhecimento onde seguiam dois oficiais do BArt. 400:

O Ten. Coronel Alberto Ferreira de Freitas Costa e o Capitão Carlos Alberto Boura Ferreira morreram nesse dia aziago.

O Zé Peça termina a sua história com a voz rouca.

Peço-lhe algumas fotografias do seu tempo de Angola que, com a ajuda da sua mulher, encontra passado algum tempo.

Quando me preparava para me despedir o “Alcobaça” conta-me mais um capítulo da sua vida.


Dois anos e 65 dias depois de ter rumado a Angola regressou a Portugal e à “nossa” Alcobaça na Primavera de 1965. Empregou-se nas “Termas da Piedade” onde, passado pouco tempo, com a sua habilidade nata para fazer tudo… fazia quase tudo!

Quando alguma coisa urgente o justificava deslocava-se de carro a Alcobaça – a 2 Kms. das Termas – para tratar do que fosse necessário e dava a boleia a quem precisava de vir à vila.

No Verão desse ano de 65 transportou três pessoas e na conversa “de ocasião” uma senhora falou da morte do seu marido,que tinha sido militar em Angola .Quando ouviu falar de Angola o Zé Peça meteu-se na conversa e perguntou qual era patente do militar que tinha morrido. A senhora disse-lhe que o seu marido tinha sido o Comandante do Batalhão 400. O Zé Peça respondeu-lhe de olhos arregalados que esse oficial – o Ten. Coronel Freitas Costa – tinha sido o seu Comandante de Batalhão. Mais contou que tivera com ele uma relação respeitosa mas de muita amizade. E recordou emocionado à senhora (de que não recorda o nome) que o seu Comandante quando esteve de férias em Portugal (em 1964 ??) tinha passado por Alcobaça e lhe tinha levado pêssegos da sua região. Os melhores pêssegos do mundo. Nessa altura dissera ao Zé onde os tinha comprado e "que quem passa por Alcobaça não passa sem lá voltar". Quando esta conversa aconteceu, recorda o Zé Peça, que nem um ano tinha passado sobre a morte do seu Comandante.

A viúva do seu Comandante recordava-se da compra desses pêssegos.

Fez com a senhora uma grande amizade, que recorda com muita saudade.

Como o mundo é pequeno!

Pequeno mas habitado por muita gente.

Com dias aziagos e… noites longas.

Passar uma noite a conduzir… a morte… marcou-lhe a vida.

Para sempre!

Nota final:

Guerra do Ultramar

info: LC123278

Mortos do Batalhão de Artilharia 400 Angola 1962 / 1965

NOME. freg (naturalidade). concelho. Posto. Un. OP. Data. PU. loc sepultura.

Os nomes assinalados a vermelho dizem respeito ao relato do Zé Peça.

13.Março.1963

HORÁCIO DOS SANTOS OLEIRO Arrabalde - Vilar Cadaval Sld CArt393/BArt400 13-03-1963 A † Ajuda (Lx)

5.Julho.1963

1-CARLOS JOSÉ DE MOURA BORGES Campanhã Porto Cap BArt400 (CCS) 05-07-1963 A † Entre-os-Rios

2-FERNANDO DOS SANTOS BORGES Rio Torto Valpaços 1Cb BArt400 (CCS) 05-07-1963 A † Ambrizete

3- JOÃO CLÁUDIO FERNANDES Lourinhã Lourinhã Sld BArt400 (CCS) 05-07-1963 A † cemit concelhio

4-JOSÉ FREITAS ESTEVES Cascais Cascais Sld CArt392/BArt400 05-07-1963 A † cemit concelhio

5-SERAFIM FRANCISCO RIBEIRO Souto Santa Maria da Feira Sld CArt392/BArt400 05-07-1963 A † freg nat

6-VIRGÍLIO FERREIRA Reriz Castro Daire Sld CArt392/BArt400 05-07-1963 A † Ambrizete

15.Agosto.1963

ARTUR FLORIANO COELHO MENDES (???) (???) 1Cb CArt393/BArt400 15-08-1963 A

JOSÉ FERNANDO BARBOSA DE ALMEIDA Rio Tinto Gondomar Sld CArt393/BArt400 15-08-1963 A † Ambriz

9.Setembro.1963


JOÃO ANDRELINO VALERIANO CEBOLA Sé e São Pedro Évora 1Cb CArt391/BArt400 09-09-1963 A † Ambrizete

JOSÉ DA MOTA FONSECA Perozelo Penafiel 1Cb CArt391/BArt400 09-09-1963 A † freg nat

9.Novembro.1963

JOSÉ ANTÓNIO DA LUZ Nossa Senhora do Pópulo Caldas da Rainha Sld CArt391/BArt400 09-11-1963 A ‡ ñ rec

28.Novembro.1963

MANUEL ANTÓNIO IGREJAS FERNANDES Angueira Vimioso Sld CArt393/BArt400 28-11-1963 A

6.Setembro.1964

CARLOS ALBERTO BOURA FERREIRA Sanfins do Douro Alijó Cap BArt400 (CCS) 06-09-1964 A † freg nat

ALBERTO FERREIRA DE FREITAS COSTA Sé Nova Coimbra TCor BArt400 06-09-1964 A † Guia (Cascais

24.Fevereiro.1965

ANTÓNIO MANUEL LOPES Padornelo Paredes de Coura Sld BArt400 (CCS) 24-02-1965 A † Alto de São João (Lx)

* OS GATOS (Bessa Monteiro, Baca, Quibala Norte, Ambriz, Ambrizete, Quimbumbe etc)



Um grande abraço de Alcobaça
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


11 DE JULHO DE 2010 > Guiné 63/74 – P6712:
Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (33): Na Guerra e na Paz… Até ao Fim…