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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27539: Humor de caserna (228): O Natal de Missirá que teve bacalhau ensaboado e, como prenda, o Menino... Braima (Abraão, em fula) (Jorge Cabral, 1944-2021)


Ilustração: IA generativa (ChatGPT / OpenAI), composição orientada pelo editor LG


O Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos

por Jorge Cabral (1944-2021)

Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, o de Missirá 1970, nunca o  esqueci. 

Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas. Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.

– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.

E eu para o cozinheiro Teixeirinha:

– Quanto tempo esteve de molho?

– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que, na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.

– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…

Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.

Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:

– Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu É macho! É macho!

– Eu não te tinha dito?!

A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido. 

Não trouxera só a viúva, treouxe também uma velha, muito velha, a bisavó, que se chamava Maimuna, mas que o Alfero alcunhou logo de  a "Antepassada". Meia cega passava os dias à porta da morança, dormitando de boca aberta…Nunca falou comigo, mas quando eu passava, sorria mostrando o único dente que conservava:

– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
 
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!

E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:

– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!

Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem "Antepassados"… (*)

Jorge Cabral 

Lisboa, 7/12/2016 (Revisão / fixação de texto, título: LG)


Nota de LG - Já morreram todos, o narrador e as suas personagens, o Cabral, o Branquinho, o Amaral... O que será feito do Menino Braima ? Terá chegado a completar um ano ? E depois os cinco anos ? A ser vivo, terá hoje 55 anos. O que é um feito notável  para um guineense. 



Jorge Cabral (1944-2021)

1. Comentário do editor LG:

O Jorge adorava o Natal. Fingia que não, como alguns de nós, mais cínicos, que dizem não ligam  nada ao Natal...E a prova é  que escreveu várias "estórias cabralianas" sobre o tema... Passadas na Guiné. 

Esta é das últimas, a nº 92,  que me entregou , em dezembro de 2016. Para comemorar, à sua maneira, mais um "Natal na Guiné". 

Passou lá dois Natais, tal como eu (o de 1969 e o de 1970). Um em Fá Mandinga e outro em Missirá (aqui muito mais isolado do mundo, com o rio Geba a separá-lo  da sede do sector L1, Bambadinca, que já era a "civilização". O  seu miserável destacamento era mais a norte, em terra de ninguém.

Foi meu camarada e amigo, meu contemporâneo. Três anos mais velho. Não o deixaram completar o curso de direito. Julgo eu, mas não tenho a certeza. Nunca falámos disso. 

Foi depois advogado e professor universitário de direito penal.

Vai fazer 4 anos, no próximo dia 28 deste mês, que ele deixou a terra que tanto amava. 
Morreu cedo demais. Deixou muitos amigos e amigas, inconsoláveis. A começar pelos seus antigos alunos e sobretudo alunas do curso de serviço social. A quem tratava  carinhosamente por "almas". E que ainda hoje lhe escrevem mensagens de muita saudade e ternura na sua página do Facebook (Jorge Almeida Cabral).

Era da arma de artilharia. Passou por Vendas Novas. Comandou um Pelotão de Caçadores Nativos, o Pel Caç Nat  63... Eram poucos, cerca de 30, a maior parte guineenses. 

Cinco anos depois, de ter escrito esta peça de antologia,  de humor de caserna (que acima reproduzimos), o Jorge morreu em plena pandemia. De cancro. Deixou-nos o coração destroçado.  

Pedi à IA que fizesses uma análise sumária do microcono. Género em que ele era mestre. Microconto pícaro, burlesco, absurdo. Ele fazia a guerra como quem representava uma peça do teatro do absurdo. 

 Pedi, além, disso, á menina  IA, que é "talentosa", para criar uma ilustração, divertida, caricatural, alusiva a esse Natal, algures no mato, na Guiné, em Missirá, em 1970, longe de casa (a 4 mil km de distância)... 

Era o Natal possível de muitos de nós, soldados portugueses. É uma homenagem saudosa ao "alfero Cabral" , como diziam os seus soldados. Mas também ao António Branquinho, nosso grão-tabanqueiro, irmão do Alberto.  Sem esquecer o Amaral, de que também me lembro ainda, mas mais vagamente.


Guiné > Zona leste >r Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho, simulando tocar um instrumento tradicional,  com uma bajudinha, no meio,  e o Amaral (sentado). 

Segundo a oportuna observação do nosso amigo e consultor permanente para as questões etnolinguísticas, Cherno Baldé, "o instrumento, na lingua fula, chama-se 'Hoddu', é mais antigo e, provavelmente, serviu de inspiração para a criacão do cora dos Mandingas"... Em crioulo, "nhanheiro".


Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Análise literário do microconto Missirá, 1970 > A Noite de Natal do Bacalhau Ensaboado

(Pesquisa: LG + IA / Gemini e ChatGPT) (Condensaçáo, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

O texto (e o contexto) partilhado é uma memória vívida e comovente de um Natal passado em Missirá, no ano de 1970, durante a guerra colonial na Guiné. É uma narrativa curtíssima, mas rica em detalhes, humor e humanidade. Em dois parágrafos e meia dúzia de diálogos , o autor cria uma atmosfera natalíica, de densidade humana e literária raríssima. 

O nosso amigo e camarada Jorge Cabral, falecido precocemente, é escritor de primeira água. N o futuro merecerá figurar em qualquer antologia do conto sobre a temática da guerra colonial.

Vejamos alguns dos pontos principais da história e do seu contexto:

(i)  O jantar de Natal "cnsaboado"

Cenário: a ceia de Natal aconteceu numa mesa "engordurada, sem toalha", no destacamento  de Missirá. O narrador (o alferes) e os seus camaradas, metropolitanos, "tugas" (Branquinho, Amaral, Teixeirinha) reuniram-se para o que deveria ser um jantar especial. No Natal, em Portugal, come-se bacalhau, com batatas e "pencas" (no Norte). É uma data festiva. A maior do ano.

Incidente: o prato principal era bacalhau com batatas (supremo luxo, naquelas paragens). No entanto, quando começaram a comer, o Branquinho notou que o bacalhau "sabia a sabão".

Explicação: o cozinheiro, Teixeirinha, confessou que se tinha esquecido do tempo de demolha e que o soldado Pechincha lhe dissera que, na terra dele, costumavam "lavá-lo com sabão" para ficar bom.

Punição: o Alferes, numa mistura de frustração e espírito natalício, mandou o Teixeirinha, como castigo,  ir à cantina buscar cervejas para todos, a pagar a meias com o Pechincha.

Ceia final: a ceia resumiu-se a batatas, latas de conserva e cerveja morna (pois o frigorífico tinha avariado na semana anterior).

(ii) O nascimento do menino  e os Três Reis Magos

Notícia: meia hora após a ceia, o soldado Alfa Baldé, que já tinha três filhas e duas mulheres, e recentemente trouxera uma nova esposa, adotada por levirato (**), mais  a bisavó idosa, Maimuna,  irrompe, a gritar de alegria: "Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu! É macho! É macho!"

Batismo proposto: o Alferes, num gesto de afeto e ironia, sugeriu que o bebé se chamasse Jesus, mas o Alfa Baldé, fula e muçulmano, já tinha nome para a criança: seria Braima (na língua fula, é uma variação do nome árabe Ibrahim, o equivalente a Abraão em português).

Visita: o "alfero Cabral", mais os furriéis Branquinho e Amaral, foram ver o recém-nascido.

Momento mágico: ao entrarem, o Amaral, que estava "um pouco tocado" (pela cerveja, mesmo "choca"), proclamou: "Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!"

(iii) O passar do tempo

Conclusão: o narrador reflete sobre o tempo que passou  (46 anos,  de 1970 a 2016)  e sobre a inevitabilidade da velhice.

Metáfora: dos "Três Reis Magos", um já tinha morrido (o Amaral) e os outros dois estavam velhos (o Branquinho e o Cabral), comparando-se a si próprios com a bisavó Maimuna (a "Antepassada"), que passava os dias a dormitar. 

É uma história belíssima que contrasta a simplicidade e as dificuldades da vida militar em cenário de guerra  (a mesa suja, o bacalhau estragado, a cerveja morna) com a alegria e o simbolismo do Natal (o nascimento do "Menino Braima" e a visita dos "Três Reis Magos"). 

A memória do narrador é claramente moldada por este momento único e inesperado de humanidade partilhada, naquele lugar onde Cristo nunca parou (e onde nem sequer o Diabo perdeu as botas).

Outros pontos a destacar:

Este microconto é um exemplo  do microconto pícaro e burlesco, atravessado por uma camada de absurdo existencial, que transforma a experiência traumática da guerra colonial numa espécie de teatro do quotidiano, onde o riso não nega a dor, domestica-a.

(iv) A memória selectiva e o Natal como exceção:

O texto começa com uma afirmação fundamental: “Poucos são os Natais de que me lembro.”

A memória aqui não é cronológica, é afetiva. Entre dezenas de anos e vários Natais, só um se fixa, o de Missirá, 1970. O Natal surge como ritual deslocado, arrancado do seu cenário simbólico europeu e transplantado para o mato guineense. É um Natal “possível”, não ideal.

(v) O bacalhau: símbolo nacional convertido em farsa

O bacalhau, pilar do Natal português, obrigatório à mesa nesse dia mágico, aparece ensaboado, literalmente contaminado pelo erro, pela improvisação, pelo desenrascanço,  pela santa  ignorância ( bem-intencionada, apesar de tudo).

O episódio é magistral porque:

  • subverte o sagrado produto gastronómico nacional (que é o bacalhau);

  • introduz o humor de caserna (o castigo não é a "prisão", é cerveja, paga a meias pelo desastrado cozinheiro Teixeirinhz e o "chico-esperto" do soldado Pechincha):

  • revela a cadeia de mal-entendidos culturais (o Pechincha, a tradição “da terra dele”, a de ensaboiar o bacalhau em vez de o demolhar em várias águas e vários dias).

Aqui, o riso nasce do choque entre vários mundos, mas nunca há desprezo, humilhação,  apenas risota, humanidade.

(vi) A autoridade do “Alfero”: justa, teatral, cúmplice

O narrador constrói a figura do alferes Cabral como:

  • autoridade funcional;

  • figura quase teatral:

  • mediador cultural.

O castigo é simbólico e coletivo. Não humilha, integra. Isto revela o comando humanizado, típico de quem percebe que naquela guerra ninguém está “inteiro” e tem "toda a razão".

(vii) O nascimento: epifania no meio do caos

O nascimento do filho do soldado guineense Alfa Baldé é o centro simbólico do conto. É um Natal sem presépio formal, sem luzes, sem enfeites, sem artifícios;

  • um parto real, no mato, natural, sem parteira (como terá sido o de Jesus na gruta de Belém);

  • um menino que nasce enquanto outros matam ou morrem;

  • um menino que tem de ser "Braima"... e não o "Jesus" dos cristãos ou o "Alfero Cabral", comandante daquela tropa matrapilha.

A figura da Maimuna / “Antepassada” é absolutamente extraordinária:

  • guardiã do tempo;

  • elo entre gerações;

  • quase uma personagem mítica

O sorriso com um único dente é um recurso literário de enorme economia e força.

(viii) Os Três Reis Magos: embriaguez, teatro e revelação

Quando o Amaral diz: “Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!”

o microconto atinge o seu auge. Aqui acontece tudo ao mesmo tempo:

  • o Natal cristão é reencenado de forma profana e ecuménica;

  • Jesus é um menino pretinho:

  • a guerra transforma-se em farsa absurda;

  • os soldados são atores improvisados num palco de todo  improvável.

É o teatro do absurdo em plena guerra, com a gente gosta de dizer das "estórias cabralianas" (de que o "alfero Cabral" publicou, no nosso blogue, mais de 9 dezenas).

(ix) O tempo final: melancolia sem sentimentalismo

O último parágrafo é devastador na sua contenção: “Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…”. Aliás, cinco anos depois, morreria o narrador, e em 2023 o Branquinho. O Teixeirinha e o Pechincha não sabemos se são nomes reais.

Sem lamento, sem retórica. Apenas o tempo. A guerra passou, mas deixou corpos gastos e memórias resistentes, como a de todos nós. 

 A comparação final com a Maimuna fecha o círculo: todos acabamos “antepassados”. Todos seremos amanhã antepassados, quando os nossos filhos e netos se lembrarem de nós, se um dia forem à Guiné, em viagem de turismo: "Os nossos antepassados, que andaram por estes matos, rios e bolanhas..."

(x) Conclusão

Este microconto é um ato de resistência pela memória, um riso contra a desumanização,  uma homenagem implícita aos soldados anónimos que combateram naquela guerra absurda, um Natal sem redenção, mas com dignidade e humanidade.

O Jorge Cabral escrevia como alguém queria sobreviver contando histórias. e isso é talvez a forma mais honesta de literatura de guerra. N a realidade, eu sempre o oconheci como o mais "paisano" dos combatentes. Ele que era filho de militares e foi até "menino da Luz", seguramente contra a sua vontade.


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp.  

Tinha um II volume, praticamente pronto para ser publicado.  
A morte  emboscou-o.

________________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"

(**) Levirato: o costume, observado entre alguns povos, nomeadamente semitas, que obriga um homem a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo Testamento como uma das leis de Moisés. O vocábulo deriva da palavra "levir", que em latim significa "cunhado". Fonte: Wikipedia.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26274: Humor de caserna (87): A virilidade lusitana: das bagas do Sambaro ao estoicismo do Sousa (Jorge Cabral, 1944-2021)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71 >  O 1º cabo Monteiro (já falecido): "com um pequenino Alfero Cabral, às costas", legendou o cmdt do Pel Caç Nat 63, com graça ... A par da tragédia, a guerra da Guiné foi também um peça do Teatro do Absurdo... Jorge Cabral (1944-2021) tinha o grande talento e o especial mérito de nos mostrar, com um toque de genial humor castrense, esse outro lado da guerra, que era o nosso quotidiano de gente "saudavelmente louca", que se não fora esse "grãozinho de loucura" não teria vencido (leia-se: sobrevivido).

(Foto gentilmente cedida, pelo Jorge Cabral, em 2006, sem menção de autor, e que passou a ser parte do arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

 
1. Chega esta altura do Natal e eu sinto uma doce saudade de alguns amigos e camaradas que foram ficando pela picada da vida. Um deles é o "alfero Cabral", o Jorge Cabral (1944-2021), um dos "históricos" do nosso blogue... 

Já lá ficou ele, em plena pandemia, "sentado no marco quilométrico nº 77 da nossa picada da vida", cada vez mais cheia de minas e armadilhas...Sinto que tenho que ir reler algumas das suas "estórias cabralianas"... Para experimentar estar mais próximo dele, do seu legado, da sua irreverência mas também da sua empatia, da sua capacidade de compreensão e compaixão do outro...

Esta "estória" foi publicada há 18 anos, na quadra natalícia (*).. Talvez seja pouco ... natalícia mas é divertida, irónica, desconcertante. E a gente precisa de rir-se como só ele sabia pôr-nos a rir, a sorrir,  a pensar, com a sua graça brejeira e a sua ironia desarmante, desconcertante    (ninguém como ele para ser capaz de  "avacalhar" o sistema, a tropa, a guerra..., mas sem ódio, sem insultos, sem grosseria) .

Onde quer estejas,  Jorge, tu que foste noutra incarnação alferes miliciano de artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, região de Bafatá, Zona Leste, 1969/71), continua a inspirar-nos e dar-nos ânimo para podermos continuar a contar e partilhar as nossas estórias da Guiné, umas tristes, outras mais divertidas, umas mais safadas outras mais provocatórias, umas mais estúpidas outras mais inteligentes...

Bem sabes que nunca invejei (e tu também não...) o lugar de comandante de coisa nenhuma, no TO da Guiné, e muito menos deste tipo de destacamentos (como o de Missirá), isolados, na linha de fronteira dos setores, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos milícias com a sua numerosa família às costas, além dos cães e dos cabritos   e das galinhas (nunca vi gatos) 
,  e mais meia dúzia de graduados (1 alferes, 2 ou 3 furriéis, outros tantos cabos e especialistas de origem metropolitana), à beira do abismo, esquecidos e abandonados, sem eletricidade, sem bebidas, sem frescos, sem comida decente, sem artilharia... Enfim, entregues à sorte e ao azar...  E, ainda por cima, sem direito a um lugar na História. (No Arquivo Histórico-Militar, não há sequer  história destas subunidades, porque ninguém as escreveu.)

Amigos e camaradas da Guiné: não vejam nestas "estórias cabralianas" qualquer propósito de ofender a secular e nobre instituição militar, mas tão apenas o relato das manifestações de uma saudável loucura, própria dos seres humanos que são postos à prova em situações-limite...

Contrariamente a qualquer bestiário da guerra, as estórias cabralianas são um hino à idiossincrasia lusitana, à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de sobrevivência, de imaginação, de adaptação e de "desenrascanço" da nossa gente...

Eu sei que as estórias do Jorge têm fãs e detratores... Eu, que estou do lado dos fãs, tiro-lhe o quico, bato-lhe a pala, desfaço-me em adjetivos e louvores... Infelizmente este filão esgotou-se: uma doença crónica de evolução prolongada  cortou-lhe o fio da vida, o húmus do humor, a torrente da escrita,  já no final de 2021...

Fica a sua memória,  a sua verve, a sua capacidade de grande observador da natureza humana, o seu talento literário: ninguém como ele sabia, com duas pinceladas, criar uma personagem (um "boneco") e mostrar aquilo que é o único na espécie humana que é a compaixão (no seu sentido etimológico, cum + passio > sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor) e a capacidade de rir-se  de si próprio quando a gente se olha ao espelho... no outro.

O Jorge, que enquanto estudante universitário tinha devorado o Ionesco e o teatro do absurdo, não se colocava na situação, confortável, do marionetista, manipulando as suas criaturas... Ele fazia parte, de alma e coração, da peça e do cenário, e do "makng of" do seu teatro do absurdo...

Caro leitor: que não sejam precisas as bagas do Sambaro no teu/nosso sapatinho para nos pormos a sorrir, a pensar,  a ter esperança, saúde, boa disposição, amor, amizade, liberdade,  paz... E, já agora,  Bom Ano Novo, saudemo-lo, a ele que aí vem, cheio de promessas, de ilusões, de oportunidades e de ameaças como todos os Novos Anos que já vivemos... 


O "alfero Cabral", 
em carne e osso
A virilidade lusitana: das bagas do Sambaro ao estoicismo do Sousa

por Jorge Cabral
 (1944-2021)


Amigo Luís, cá continuo relembrando a vida nos Destacamentos, com a ajuda dos Amigos que me acompanhavam, e que me contam extraordinárias peripécias, algumas das quais eu já havia esquecido.

Num Destacamento isolado como era Missirá, a forma de estar e de viver dependia muito da personalidade do respectivo Comandante, suas capacidades, limitações e peculiaridades. Até porque as funções que lhe eram atribuídas, excediam a mera chefia militar. Médico, Psicólogo, Juiz, Conselheiro, superentendia em todos os assuntos, e do seu carácter podia resultar um férreo ambiente prisional, ou uma agradável comunidade de afectos, como creio ter sido o meu caso.

Claro que estávamos todos apanhados, mas numa loucura amena e saudável, que nos divertia e  
nos ajudava a mascarar a tristíssima rotina.

Todos, metropolitanos e africanos, alinhavam  n imaginação do alferes  que cada dia surgia com uma nova ideia. É por isso que devo ter material para centenas de estórias, desde a comemoração de São Mamadu, até o ter colocado as mulheres de sentinela…

As decisões mais difíceis aconteciam com as evacuações por doença, principalmente porque o meu enfermeiro, o maqueiro Alpiarça, quando não estava bêbado, para lá caminhava…
A estória que hoje remeto, descreve, precisamente, uma situação em que tive muitas dúvidas. Felizmente, o Sousa recuperou…

Bom Natal, Amigo! Grande Abraço!
Jorge (*)
______________


Aos domingos vestíamo-nos à paisana e dávamos longos passeios à volta da parada, imaginando praças, avenidas, ruas, adros de igreja e até estações de comboio. Depois entrávamos na Cantina e invariavelmente pedíamos:

− Um fino e uns  tremoços!!!

Não havendo tremoços, triplicávamos a cerveja, não sem o Pechirra, o nosso motorista, explicar a importância do acompanhamento em falta, o qual segundo ele possuía um monumental efeito afrodisíaco, pois…  E lá contava uma delirante estória das suas proezas sexuais. Só os soldados africanos e algum adido metropolitano periquito, ainda o escutavam, embora o seu calão portuense fosse dificilmente traduzível.

Uma vez o bazuqueiro Sambaro anunciou que possuía umas bagas suma (**) tremoço,  tão boas que um homem podia estar toda a noite… Achei piada. À basófia tripeira respondia a basófia fula… Afinal as diferenças não eram assim tão grandes…

O certo é que o Sambaro foi buscar as tais bagas, e calhou ao Sousa experimentar. Ao fim de uma hora resultou. Passadas quatro horas continuava a resultar. Oito horas depois o Sousa uivava de dor, e suplicava-me a sua evacuação. Que fazer?

Reuni com os furriéis. Podia eu lá evacuar um soldado com aquele motivo ?! Que escreveria na mensagem? Ataque de tes*o…? 

Pragmático,  o Amaral sentenciava:

− O que sobe, desce. 

E o Branquinho acrescentava:

− Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe.

E quanto ao Pires inventava:

 − A curiosidade não matou, inchou o gato.

Tomada a decisão, o pobre do Sousa aguentou três dias, como um herói.

Quando terminei a comissão, deixei-lhe proposto um louvor “porque durante setenta e duas horas suportou com estoicismo a dor resultante de fogo interno, devendo ser apontado como exemplo da virilidade lusitana"...

Parece que o Polidoro (***) não concordou. Enfim, injustiças…

Jorge Cabral

( Revisão / fixação de texto, títulos, itálicos e negritos, notas, título: LG)
________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1369: Estórias cabralianas (16): As bagas afrodisíacas do Sambaro e o estoicismo do Sousa

(**) Igual a, como (em crioulo)

(***) Polidoro Monteiro, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Substituiu o tenente-coronel Magalhães Filipe.

(****) Último poste da série > 12 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26260: Humor de caserna (86): O ”turra” e a boina verde da enfermeira paraquedista (Maria Arminda, ex-ten graduada enfermeira paraquedista, FAP, 1961/70)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26047: Efemérides (444): 15 de outubro de 1969, perdas, inesquecíveis, uma saudosa amizade e porquê

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de hoje, 15 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Cada um se arroga o direito de ter o seu dia de memória, com ou sem textura de religiosidade. Exatamente há 55 anos, uma mina anticarro ceifou vidas e deixou gente marcada por diferentes tipos de mazelas, desde traumatismo craniano a fratura no calcâneo. Lição mais amarga não podia ter, permiti-me viajar pela noite escura, a tragédia podia ter sido maior se a força do PAIGC que ali nos aguardava não tivesse percebido que os tiros às escuras é metralha de dois bicos. Recebi enorme solidariedade do batalhão de Bambadinca, é inquebrantável a gratidão que dela guardo. E nasceu uma grande amizade por alguém que me tratou dos olhos. Sempre que voltava a S. Miguel, era inevitável um encontro com o Zé Luís, podíamos estar até 2 ou 3 anos sem qualquer contacto, em nada diminuía a euforia do encontro. E foi assim durante décadas até ele partir para as estrelas, e hoje junto-o na minha memória ao lado daqueles camaradas que tanto sofreram com a explosão de Canturé, no regulado do Cuor, em 15 de outubro de 1969.

Um abraço do
Mário



Efeméride: 15 de outubro de 1969, perdas, inesquecíveis, uma saudosa amizade e porquê

Mário Beja Santos

Aí por fevereiro de 1969, comecei a dar tombos nas viagens quase diárias entre Missirá e Mato de Cão, ou no sentido inverso, uma dor aguda, por detrás do joelho direito, levava-me à queda, parecia que logo me recompunha, a dor suavizava; o maqueiro bem me punha emplastros, mas fazendo notar que havia algo de anómalo na curva interior do joelho; conversa com o médico do batalhão, David Payne, confesso-lhe que se repetem com mais frequência as quedas, passa-me requisição para ir à consulta de ortopedia a Bissau, aproveito para pedir para ir ao estomatologista e ao oftalmologista, pedido aceite.

Parto no início da segunda semana de março, fico surpreendido com a rapidez do atendimento, trato uma cárie dentária, o médico ortopedista, face ao resultado do raio-x, informa-me que tenho uma exostose, uma enorme cartilagem, dali já não saio, vou ser operado; na véspera de entrar no HM 241, consigo uma desistência e vou ao oftalmologista. É um homem de estatura avantajada, voz abaritonada, cedo descubro que vem dos Açores, o acento é tipicamente micaelense. Palavra puxa palavra, falo-lhe da minha estadia entre outubro de 1967 e março de 1968, as belíssimas lembranças que trouxe, ainda não faço a mínima ideia como elas se vão cinzelar na minha existência, estamos entusiasmados na conversa, é nisto que ele propõe que jantemos juntos, vamos matar saudades da terra. Apresenta-se, é o único oftalmologista na Guiné, tem que fazer algumas horas no hospital civil, chama-se José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tenente-médico, tinha acabado de montar consultório quando foi chamado para estas lides na Costa Ocidental de África; interrogo-me, olhando esta fotografia, devia estar mesmo uma noite mais do que acalorada para haver todo aquele suor na camisa, alguém nos tirou a fotografia, ambos de boa disposição e já com a promessa de encontros futuros. Não iria acontecer tão cedo.

A 20 de março, apoiado nas canadianas, vou a um determinado guichet buscar uma guia de marcha, um sargento desbocado, quando houve falar em Missirá, no Cuor, diz sem rebuço que houve mortos e feridos na flagelação da véspera, ardera o quartel. Transido, peço ao condutor que me leve de novo ao HM 241, consigo encontrar o régulo Malã Soncó, tem o peito estilhaçado, fala dos mortos e dos outros feridos; nova viagem até ao Quartel-General, suplico uma partida do que é que entre pelos ares, mandam-me para Bissalanca, um helicóptero deposita-me no Cuor, aviso todos que temos de ter o quartel pronto antes que cheguem as chuvas, o que aconteceu.

Ando duríssimo, os meus caçadores nativos recalcitrantes, andam pelos matos fechados desde 1966, sonham com a boa vida, é nisto que vou amolecendo quanto às medidas de precaução, acho que tudo me é permitido, como andar pela noite escura nas picadas. E assim contribuí que em plena noite, à entrada de Canturé, uma mina anticarro despedaçasse a parte dianteira de viatura, o soldado-condutor Manuel Guerreiro Jorge entrou logo em agonia, eu saí disparado, felizmente com a G3 na mão, não vale a pena falar mais do que aconteceu, bem me pesa na consciência o resultado de um ato inequivocamente negligente.

Com a cara queimada e óculos perdidos, volto novamente à oftalmologia, o José Luís tratou-me dos olhos e nasceu um ritual de encontros que se irão prolongar até que dolorosos esclarecimentos obrigaram o seu internamento, era sempre uma festa ir até S. Miguel. Havia que o avisar com alguma antecedência. Ainda hoje, paro no Largo da Matriz, em Ponta Delgada, a olhar onde era o seu consultório ou percorro a rua Bruno Tavares Carreiro, ali bem pertinho, imagino que lhe vou bater à porta, fazemos sala e depois partimos para uma iguaria e para conversa que puxa conversa e que nos despedimos com a quase certeza de que em breve haverá novo toque de reunir. E voltaremos a falar do 15 de outubro. Escreveu alguém que a fotografia é um documento fascinante porque nos permite apreciar um instante que existiu. Ela permite infindáveis perguntas, estas duas fotografias têm resposta numa amizade inesquecível, que nasceu na tormenta da guerra.

Escrevo estas recordações exatamente 55 anos de factos ocorridos que iriam solidificar uma amizade para a qual não há qualquer veleidade em responder quanto ao seu porquê.


Março de 1969
15 de outubro de 1969, o meu amigo Humberto Reis parece que não acredita no que está a ver
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Nota do editor

Último post da série de 19 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25762: Efemérides (443): Hoje, no dia do 139º aniversário natalício de Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), e na inauguração do seu Museu, em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, o Papa Francisco deu-nos a graça e a honra da Sua Benção (João Crisóstomo)

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25670: Elementos para a história dos Pel Caç Nat 52, 54 e 63 que, ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, jun 70 / mar 72), estavam destacados no Sector L1 - Parte I




1. A partir da História do BART 2917 (de 15/11/69 a 27/3/72) podemos obter mais alguns dados informativos sobre os 3 Pel Caç Nat que operaram, no setcor L1 (Zona Leste, região de Bafatá)



I. O dispositivo inical das NT na zona de ação do BART 2017, em junho de1970 era o seguinte (referem-se apenas os Pel Caç Nat) (*):
 
  • Pel Caç Nat  52 > Bambadinca
  • Pel Caç Nat  54  > Missirá
  • Pel Caç Nta 63 >  Fá Mandinga

Havia um Gr Comb na Ponte Rio Udunduma, que era rendido  de 3 em 3 dias numa escala que incluía 5 Gr Comb: 4 da CCAÇ 12 (Bambadinca) e 1 um do Pel Caç Nat 52 (Bambadinca)

 Posteriormente foram introduzidas as seguintes alterações ao dispositivo inicial, nas datas a seguir indicadas:

  • em 18 out 70, o Ple Caç Nat 52 vai para Fá Mandinga;  
  • em 19 out 70,  desloca-se o Pel Caç Nat 63 para Missirá;
  • em 20 out 70,  o Pel Caç Nat 54 vem para Bambadinca.
 
Em 2 de julho de 1971, nova rotação destas subsunidades africanas:
  • Pel Caç Nta 52 > Missirá:
  • Pel Caç Bat 54 > Fá Mandinga;
  •  Pel Caç Nat 63 > Bambadinca 

De 26 de julho  a 9 de setembro de 1971, o Pel Caç Nat 54 é destacado para Bafatá,  regressando depois a Fá Mandinga. Nessa altura, é o Pel Caç Nat 63 a ir para Bafatá, donde regressa, a Bambadinca , em 26 de outubo de 1971.
 
E parece ser o Pel Caç Nat 63 que vai "inaugurar" o destacamento de Mato Cão.  


II. Estas três subunidades, ao tempo do  BART 2917, foram comandadas por:

  • Pel Caç Nat 52: 


(i) até Até 24.jul 70, alf mil at inf  Mário António Gonçalves Beja Santos; 

(ii) de 24.jul 70 até para além do regresso do BART 2917 à Metrópole, alf mil at inf Alferes Miliciano Atirador Nelson Alberto Wahnon Reis.



  • Pel Caç Nat 54:

(i) até 18 nov 70, alf m,il at inf Correia (desconhece-seo o nome completo); 

(ii) de 18. nov 70 até para além do regresso do BART 2917 à Metrópole, alf mil Hélder P. R. Martins;


  • Pel Caç Nat  63:

(i) até 1 jul 71, alf mil at art Jorge Pedro Almeida Cabral (1944-2021);

(ii) de 11 jul 71 até 27 mar 72, alf mil at Manuel David Coelho, da  CART 2714 (que estava em Mansambo);

(iii)  em 2 jul 71 o alf mil Arsénio Pires, inicialmente nomeado como Comandante do Pel Caç Nat  63, foi colocado na CART 2714, em substituição do alf mil at Manuel David Coelho.


O "alfero Cabral" (1944-2021), no meio, entre dois dos seus homens do Pel Caç Nat 63


III. Outras transferências de pessoal:

  • em 30 jun.71 foi transferido da CART 2716 (Xitole) para o Pel Caç Nat 52, o fur mil at  Atirador Paulo Ferreira CRUZ [ou Paulo Pereira Cruz];
  • em 16 set 71 foi colocado no Pel Caç Nat  63 o fur mil at Jorge Abreu Batista  da CART 2715 (Xime):
  • em 23 set 71 foi colocado no Pel Caç Nat 63 o fur mil at  Sérgio Oliveira Carvalho Pinto, da CART 2714 (Mansambo);

  • António Branquinho (1047-2023)
    em 24 set 71 por ter terminado a sua comissão de serviço no CTIG  marchou para Bissauo fur mil at António Júlio Abrunhosa Branquinho (1947-2023),  do Pel Caç Nat  63, a fim de aguardar transporte para a Metrópole;
  • em 7 dez 71 foi colocado no Pel Caç Nat 63 o fur mil at Loureiro,  da CART 2714 (Mansambo), onde se encontrava desde 19 out 71;
  • em 15 dez 71 regressou à CART 2715 (Xime) o fur mil at Jorge Abreu Batista. (encontrava-se destacado no Pel Caç Nat 63 desde 16. set 71).

IV. Recomplementos 

JULHO DE 1970

  • Pel Caç Nat 52

- Alferes Miliciano Atirador Nelson Alberto Wahnon Reis 80063969;

- Furriel Miliciano Atirador Manuel Augusto Castro Silva 12709969;

- Soldado Atirador Francisco Lopes 82054167;

- Soldado Atirador Tiburcio Gomes Ofany  82055367;

- Soldado Atirador Mama  Obralé 82036266;

- Soldado Atirador Ogo Baldé 82023766;

  • Pel Caç Nat  54

- 1º Cabo Atirador Roberto Pina Araújo 82022165;

- 1º Cabo Atirador Armando António Silva 82038664;

- 1º Cabo Atirador Dino Vieira 82074665;

  • Pel Caç Nat  63

- 1º Cabo Atirador João S. Guilherme 16335969;

- 1º Cabo Atirador Joaquim S. Freitas 17722969;

- Soldado Atirador Jango Candé 82055065;


AGOSTO DE 1970

  • Pel Caç Nat 52

- Soldado Atirador Paté Mané 82060167:

  • Pel Caç Nat 54

- Furriel Miliciano Atirador Alfredo J. S. Freitas 14037769;

- Furriel Miliciano Atirador José Mário  C. Ferreira 06205370;

- Furriel Miliciano Atirador José A. L. Pires 10684269;

  • Pel Caç Nat  63

- 1º Cabo Atirador António S. Barroso 05674470;

- 1º Cabo Atirador António M. S. Araújo  17925969;

SETEMBRO DE 1970


  • Pel Caç Nat 52

- Furriel Miliciano Atirador João  M.M. Branco 07125668;

- Soldado Atirador Mamassali Baldé 82063867;

- Soldado Atirador Bacar Baldé 82057465;

- Soldado Atirador Mango Baldé 82057165

- Soldado Atirador Seco Umaro Baldé 82055266;

- Soldado Atirador Tunca Sanhá 82037066;

  • Pel Caç Nat 63

- Furriel Miliciano Atirador Carlos E. C. Nunes Amaral 14288269;

- 1º Cabo Atirador Sanassi Baldé 82052865;

- Soldado Atirador Indouque Queta 82052265;


OUTUBRO DE 1970

  • Pel Caç Nat 52

- 1º Cabo Atirador Fodé Mané 82023866;

- Soldado Atirador Adulai Embaló 82049567;

- Soldado Atirador To mango Baldé  82057465;

  • Pel Caç Nat 63

- 1º Cabo Atirador José Sangá 82016164;

- Soldado Atirador Braima Candé  82014060;

- Soldado Atirador Holdé Embaló 82035565;

NOVEMBRO DE 1970

  • Pel Caç Nat 52

- 1º Cabo Atirador António A. F. Rocha 05955270;

- Soldado Atirador Sambaro Baldé 82095264;

  • Pel Caç Nat 54

- Alferes Miliciano Atirador Hélder P- R. Martins  07543668;

- 1º Cabo Atirador Fernando Vasco Menoita 00762170;

DEZEMBRO DE 1970

  •  Pel Caç Nat 54

- Soldado Atirador Adi Jop  82077770

- MARÇO DE 1971


  • Pel Caç Nat 54

- Soldado Atirador Sambaro Embaló 82092068;

- 1º Cabo Atirador Manul Augusto Gaspar12528870;

  • Pel Caç Nat 63

- Soldado Atirador Braima Jau 82035066;

ABRIL DE 1971

  • Pel Caç Nat 54

- 1º Cabo Atirador Amílcar Prazeres Pereira  11702470;

  • Pel Caç Nat  63

- 1º Cabo Atirador Cralos José Pereira Simplício  12687370.

(Continua)

(Seleção, revisão/ fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 4 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25600: O armorial militar do CTIG - Parte I: Emblemas dos Pelotões de Caçadores Nativos: dos gaviões aos leões negros, das panteras negras às águias negras...sem esquecer os crocodilos

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25651: Notas de leitura (1701): Cuidado com o material em falta! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Andamos a ler as peripécias vividas por um engenheiro civil em Bolama, em 1928, era Governador o Major Leite de Magalhães, o sr. engenheiro tinha as contas no caos, ofendia gente e levava lambada, era sancionado pelo Governador em pleno boletim oficial, contestava sempre, e não esconde que tinha amizades em Lisboa. Nisto saltaram recordações de material em falta, a necessidade urgente de fazer processos de abate para ferros retorcidos de camas, colchões, fronhas e lençóis queimados, armas escavacadas. E logo um alferes na sede do batalhão, em Bambadinca, me pedia para em cada flagelação eu meter as faltas que ele tinha nos seus depósitos. Fatal como o destino, apareceu-me um coronel com cara de poucos amigos a perguntar como é que eu tinha mais abates que 2 batalhões juntos... Tudo se explicou, tudo se perdoou, mas isto do material em falta, deteriorado ou avariado, pode dar as mais inusitadas chatices, regressara a Portugal há bem 6 meses e bateu-me à porta um polícia, tinha que pagar um lençol rasgado (que, evidentemente, recebera rasgado, e com a calmante explicação que não tinha importância nenhuma) ou então teria que o acompanhar à esquadra.
Cuidado com o material em falta!

Um abraço do
Mário



Cuidado com o material em falta!

Mário Beja Santos

A situação de que vou falar foi vivida por muitos combatentes e relaciona-se com material deteriorado sobre o qual havia exigências severas de processo de abate. Imagine o leitor como o assunto sobreveio, lendo documentação manuscrita com um século ou mais que se encontra nos reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Folheando uma grossa pasta, dei com uma novela vivida por um engenheiro civil, diretor das obras públicas em Bolama, no primeiro semestre de 1928, era governador da Guiné o Major Leite Magalhães e o engenheiro chamava-se Caetano Marques de Amorim, recusou ir para o Estado da Índia, foi despachado para a Guiné onde teve muitíssimos problemas, desde ter levado forte pancadaria de deportados ofendidos, uma advertência feita pelo governador em pleno boletim oficial e ser dado como um diretor de obras públicas altamente negligente. O inspetor extraordinário José Manuel de Oliveira e Castro envia ao governador em 29 de agosto de 1928 o resultado da inspeção financeira que levara a cabo na Direção das Obras Públicas.

Escreve:
“A inspeção teve início em 14 de abril último, pelo balanço dado ao cofre e pela verificação dos documentos nele exigentes, representando despesas efetuadas.
E dada a forma irregular como se haviam realizados os pagamentos constantes da documentação ali encontrada, no montante de muitas centenas de escudos, foi necessário proceder a um estudo e confronto demorados com a escrituração da Direção da Fazenda.
Relativamente ao Depósito de Materiais e Ferramentas, não podia ter lugar qualquer exame à sua escrita, porque ela não existia. Existia, sim, um livro sem obediência aos mais rudimentares preceitos legais, mal escriturado e atrasado. Os materiais e ferramentas existentes no Depósito, encontravam-se aos montes, sem indicação de preços e sem referência a faturas.
Foi, portanto, necessário promover a regularização da escrita, o inventário de toda a existência e a organização do novo livro, por onde se pudesse conhecer as espécies dos materiais e dos artigos à carga desse Depósito. Tal serviço foi protelado por parte do respetivo Fiel, durante muito tempo, e, para a sua mais breve conclusão indispensável se tornou que a Direção da Fazenda lhe suspendesse os vencimentos até concluírem e apresentarem os respetivos trabalhos.
Só em 10 de julho do ano corrente, o Sr. Diretor das Obras Públicas, engenheiro Marques de Amorim, me comunicou que o Fiel do Depósito tinha regularizado a escrita. Mas, vista ela, notou-se-lhe a falta de vários elementos que verbalmente lhe foram pedidos e que não apresentou, até que os pedi oficialmente. Em 11 do mesmo mês, vieram esses elementos com a nota da Direção das Obras Públicas, e no mesmo dia estava ultimada a inspeção financeira, cujos resultados levei ao conhecimento daquela Direção.
Verificado está que a demora havida se deve ao caos em que se encontrava a parte financeira daquela Direção, que, é indispensável acentuar-se, a mim, como inspetor extraordinário me pertencia apenas verificar e não organizar e compor, como fiz, não só pelo natural empenho da regularidade de todos os serviços da colónia, como também para satisfazer às instâncias do engenheiro Marques de Amorim, abraços com as dificuldades resultantes dos mais processos adotados anteriormente ao seu exercício.”


Despede-se com os cumprimentos da época (Saúde e Fraternidade), continuei a ler o processo, Marques de Amorim tentou agredir o deportado político José Simões da Piedade, disse a quem o ouviu que se estava a “cagar na revolução”, os deportados ajuramentaram-se para lhe dar um corretivo, Leite Magalhães irá puni-lo por comportamento desrespeitoso, enfim, uma perfeita cegada. Enquanto tudo isto lia, ocorreu-me o que vivera em Missirá, corria o mês de agosto de 1968. Peripécias inesquecíveis, e como é próprio destes casos, com ameaças de punição à vista.

Estava acerca de 1 mês a comandar Missirá e Finete, vivi em Missirá mais tempo, e um dia o cabo-quarteleiro, de nome Veloso, de voz ciciante e sempre a retorcer para baixo a sua bigodaça me recordou que havia uma divisão que eu ainda não visitara, um depósito de material sem préstimo, que conviria urgentemente denunciar à CCS do novo batalhão que ia chegar em breve a Bambadinca. Lá fui visitar o dito depósito, emanava um cheiro nauseabundo a podridões várias, ali havia de tudo, ferros de cama enferrujados, capacetes que tinham perdido préstimo, umas estranhíssimas peças em couro a cheirar a mofo, restos de terrinas metálicas rachadas ou amolgadas, enfim, um mundo inesperado de sucata com que eu não sonhara. E começou uma aventura kafkiana: interrogado o furriel que estava encarregado da contabilidade e manutenção, declarou nunca ter feito autos de abate, nem lhe conhecias a fórmula; anotado como prioritário o assuno na minha agenda, vou a correr falar com o tenente da secretaria do BART 1904, entregam-me formulários, insistem que devo fazer rapidamente o preenchimento dessa documentação, partirão em breves semanas. E preencheu-se aquela burocracia, senti alívio de meter em sacos toda aquela traquitana nauseabunda.

Não tinha passado 1 mês desde a chegada do novo batalhão, sofro uma flagelação de monta em Missirá, na noite de 6 de setembro, fez-se o relatório e descriminaram-se as perdas, o novo alferes encarregado da manutenção do material pede-me para eu alterar os números: na flagelação perderam-se 2 camas, ele recomendou que eu pusesse 20; arderam lençóis, fronhas e colchões, “Epá, põe aí qualquer coisa como 30 pares de lençóis e fronhas e mesmo os colchões, fiz o inventário aqui do batalhão, nem podes imaginar o material que falta, tenho que pedir auxílio a quem sofre flagelações para não vir a ter chatices”.

E cada vez que eu tinha uma flagelação aquele brioso alferes da CCS avolumava perdas.

Até que um dia desceu um helicóptero em Missirá, dele saiu um coronel com ar de poucos amigos, depois de um seco aperto de mão pediu-me um ambiente reservado para conversarmos, foi direito ao assunto, em Bissau achava-se completamente inacreditável que naquele quartelzinho com um pelotão de milícias e um pelotão de caçadores nativos houvesse perdas que excediam à vontade as de um batalhão que estivesse permanentemente a ser atacado. Respondi-lhe sem hesitar que tinha perdas e não enjeitava a camaradagem, como o Sr. Coronel podia imaginar ninguém estaria interessado em levar para a metrópole cobertores malcheirosos, ferros de cama, pedaços de fronha, rolos de arame farpado, procedera com solidariedade e não estava arrependido. O Sr. Coronel então sorriu, deve ter considerado que era com aquela franqueza chamar os bois pelos nomes que valia a pena encerrar o assunto, como aconteceu, meses depois o tal inquérito que foi arquivado.

Enfim, enquanto lia na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa os infortúnios e os disparates de Caetano Marques de Amorim, veio-me à lembrança que não se deve descurar o material em falta, quem descura arrisca-se a muitos amargos de boca. E fica aqui a última lembrança. Já em Bissau, pronto para regressar, aboletado num dormitório infecto a que chamávamos “Vaticano III” entregaram-me um lençol esfarrapado, que não me preocupasse, entregava-o assim na data da partida, era material para abate, não havia mais. Acreditei e 6 meses depois, a viver na Avenida do Brasil, em Lisboa, bate-me à porta um polícia e mostra-me um documento em que eu tinha que repor uma maquia por ter esgarçado um lençol em Bissau, se não pagasse imediatamente teria de o acompanhar à esquadra. Mais uma vez se mostrava que é preciso ter muito cuidado em manusear material para abate…

Prestando-se assistência sanitária na Guiné, 1967, Arquivo Global Imagens, com a devida vénia
A messe em Missirá (Cuor) em 1966, imagem do blogue
A minha morança em Missirá, ardida em 19 de março de 1969
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Nota do editor

Último post da série de 14 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25639: Notas de leitura (1700): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1858 a 1861) (7) (Mário Beja Santos)

domingo, 16 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25643: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águias Negras" (1966/74) - Parte II: Com o José António Viegas, por Bissau, Bolama, Mansabá, Enxalé e Missirá, no 2ºs emestre de 1966




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 54 > 1966 > O alf mil Marchand (ou Marchã) junto ao depósito de géneros, destruído no ataque de 22/12/1966


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 54 > 1966 > Mais uma vista parcial do destacamento (e tabanca), depois do ataque de 22 de dezembro de 1966.



Guiné >  Rio Geba > Pel Caç Nat 54 >c. agosto de 1966 >  No "cais" do Enxalé: da esquerda para a direita, o José António Viegas, o alf mil Marchand (Ou Marchã), ambos do Pel Caç Nat 54, eo fur mil enf, da CCAÇ 1439


Guiné >  Rio Geba > Pel Caç Nat 54 > Agosto  1966 > Nos barcos "turras" (Casa Gouveia), a caminho o Enxalé


Guiné >  Rio Geba > Pel Caç Nat 54 > Enxalé > Agosto de 1966 >  Vacas comparadas em Bissá, pelo comandante da CCAÇ 1439, cap Pires.

Fotos (e legendas): © José António Viegas  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Confirma-nos, por email de ontem, o José António Viegas, que, no início, o Pel Caç Nat 54, formado no CIM de Bolama, era constituído por:

  • alferes Carlos Alberto de Almeida e Marchã (ou Marchand);
  • furriel mil Álvaro Valentim Antunes (morto na 1ª mina);
  • furriel Arlindo Alves da Costa (DFA, ferido na segunda mina);
  • fur mil José António Viegas;
  • 1ºs Cabos Manuel Januário (DFA), Coelho (DFA) e João Simão (telegrafista);
  • os soldados, do recrutamento local, eram das etnias Papel, Fula, Mandinga e Olof (um deles) (*)

Na primeira foto acima, o alferes Marchand (ou Marchã) está junto ao depósito de géneros depois do ataque a Missirá, em 21 de Dezembro de 1966.



José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54
 (Bolama, Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole,  
Ilha das Galinhas, 
1966/68)


2. O José António Viegas, nosso grã-tabanqueiro nº 587 (desde 11 de novembro de 2012),  continua a ser a fonte privilegiada de informação sobre o seu Pel Caç Nat 54, de que é um dos "pais-fundadores". Daí que o seu percurso no CTIG, de 1966 a 1968, também o é desta subunidade, de que... "não reza a História" (*).

Vamos recordar alguns dos seus passos (**):

(i) Bolama, agosto de 1966

(...) Embarquei para o CTIGem 30 de julho de 1966,  no Uíge. Fui em rendição individual para ir formar, em Bolama, com outros camaradas, os primeiros Pelotões de Caçadores Nativos. Chegámos a 3 de agosto. (...)  Quatro  dias depois seguimos para Bolama para receber os Pelotões e fazer os treinos operacionais. O meu Pelotão foi o 54.

(...) Aqui apanhei o meu primeiro paludismo que me deixou de rastos por uns dias. O cheiro de que estávamos numa guerra e não de férias em África, era o ouvir de rebentamentos todas as noites em S. João, que ficava em frente a Bolama, e em Tite, e logo de seguida fazer a guarda de honra a um camarada que tinha morrido no rebentamento de uma bailarina em S. João e que foi enterrado no cemitério de Bolama.

(...) A minha estadia em Bolama, antes de ser colocado com o meu Pel Caç Nat 54 em Mansabá..., lembro-me bem daquela cidade já em degradação mas ainda com várias edificações em bom estado, como os correios, junto à piscina do Cabo Augusto onde se passavam os bons tempos de lazer, a casa do Governador e o Hotel, que estava em boas condições, onde muitos camaradas vinham descansar e passar férias.

(ii) Mansabá, setembro/outubro  de 1966

(...) No fim de Agosto, depois de ter terminado o treino operacional, seguimos para Bissau e depois para Mansoa, numa coluna enorme, onde se juntaram mais militares com destino a Mansabá.

A coluna até Cutia decorreu com normalidade, mas a partir daqui foram tomadas todas as precauções até Mansabá, onde se ouviram alguns tiros e aviso.

Em Mansabá estivemos 45 dias com a CCAÇ 1421. Aqui começa a nossa entrada na guerra. Logo nos primeiros dias fomos fazer um golpe de mão e, como tal, foi posta à prova a nossa impreparação para reagirmos debaixo de fogo. Quando se chegou ao objectivo, foi lançado o ataque pelo homem da bazuca e, debaixo daquele fogachal, eu de pé com as balas a assobiar sem saber o que fazer.

Aqui começa a minha preparação com os melhores operacionais, os meus soldados nativos, o meu cabo Ananias Pereira Fernandes, o homem que não gostava de G3 e só usava a Madsen, que me joga para o chão e me ensina a organizar e dispersar debaixo de fogo.

Lembro-me o que aprendemos em Vendas Novas com aqueles filmes da guerra da Argélia, no meio de dunas, e nós íamos para a selva, enfim ainda havia poucos formadores com experiência de combate.

(...) Voltando aos meus 45 dias em Mansabá... (Pena que não tenha fotos desta fase pois ardeu-me tudo no ataque em Missirá.)

Nos primeiros dias em Mansabá, ao cair da noite, começou o nosso obus 8.8 a cantar, vim até ao pé da bateria falar com o artilheiro um Fur. Mili. cabo-verdiano, perguntar o que se passava, dizendo ele que tinham informações que o Amílcar andava por ali.

Na semana seguinte foi feita uma operação em forte com a 5.ª CComandos, a CCP 121, a CCAÇ 1421 e o nosso Pelotão. Entrámos pelo Morés, os Comandos e os Páras fizeram o estrago e voltamos.
Um Sargº. Paraquedista trocou o seu camuflado com o meu, soube há pouco tempo que morreu com a doença maldita e que vivia aqui perto de Loulé.

Todas as semanas estávamos a sair sempre à noite. Nas progressões, até me habituar no escuro da noite, às grandes teias de aranha e aos terríveis bicos das Micaias, foi uma tortura.

Antes de sairmos, fomos montar uma emboscada no Alto de Momboncó com um Pelotão da 1421. Estava com o meu pelotão emboscado quando vejo os Fiat a picar sobre nós, deu para assustar, levantámos com as armas para o alto e vejo o asa a desviar, logo de seguida ouviu-se largar as bombas e o cheiro horrível de petróleo. Este era um dia não, e no regresso apanhámos com uma emboscada de abelhas, os nativos largaram as armas e toca a fugir. O Sargento Monteiro da 1421 ficou bem picado e ainda por cima tinha pouco cabelo, ficando num estado lastimável.

Desta CCAÇ 1421 lembro-me do Cap Carrapotoso, já falecido, e dos Furriéis Fernandes e Passeiro. (...)

(iii) Enxalé, novembro de 1966

(...) Os poucos dias que estive em Bissau, foi para tomar contacto com a cidade, um dos sítios de encontro era o Café Bento, conhecido pela a 5ª Rep, onde encontrei amigos que nem pensava que estavam por aqueles lados.

Neste café sabiam-se as novidades todas do mato e também as histórias que contavam aos piriquitos. Havia um pouco de tudo, aqueles que diziam que estávamos ali na guerra para defender os interesses da CUF que era representada pela Casa Gouveia, outros que diziam que ainda iam voltar situações piores que a Ilha do Como.

Os frequentadores assíduos do Café aconselharam-me logo que se quisesse bons livros era falar com o Sr. Bento, pois que certos livros a Pide ia lá buscar, mais tarde tive ocasião de presenciar.

Passados que foram estes curtos dias em Bissau, lá fomos embarcados nos barcos da Casa Gouveia, que iam levar abastecimentos a Bambadinca, e navegando rio Geba acima durante a noite, aconchegados da humidade no meio da carga.

Chegámos ao Enxalé pela manhã. As barcaças encostaram, não havia cais, fomos recebidos pela Companhia 1439 e pelo Pel Caç Nat 51 que já estava naquele aquartelamento.

Fui encontrar o pessoal da CCAÇ 1439 um pouco desmoralizado pois um mês antes, em outubro, tinha rebentado uma mina em Mato Cão, na ida houve um primeiro rebentamento que pulverizou um soldado açoriano, e na volta outro rebentamento que resultou na morte do furriel Mano.

Esta Companhia era comandada pelo Capitão Pires, um grande homem e um bom operacional.

A nossa primeira saída foi para ir a Bissá onde o BCAÇ 1888 queria fazer um destacamento.
Fomos direito a Porto Gole e depois seguimos para Bissá, era impressionante ver aquele aldeamento, no chão balanta, no meio de uma grande clareira com bastante gado e celeiros de arroz enormes.

Lembro-me do cap Pires dizer:

- Um destacamento aqui, no meio de um dos principais fornecedores do IN ? Vai correr muito sangue.

E foi verdade, entre 1967 e 1968 muitos morreram e muitos ficaram feridos.

Regressámos com gado comprado para a Companhia.

Nesta mês de Novembro a nossa missão era fazer colunas a Missirá e a Porto Gole e umas operações na zona. Lembro-me do alferes Zagalo de Matos que,  quando saía para as operações o seu ordenança trazia o camuflado impecável e as botas a brilhar, tinha que estar todo a rigor. Ainda há dois para três anos, quando o encontrei nas suas andanças teatrais, lhe falei nisto que ele recordou com saudade. (Já partiu).

Havia na companhia um Furriel que era professor, o Farinha, dava aulas aos militares, a maior parte madeirenses, alguns analfabetos, e dava aulas numa escola improvisada no aldeamento, não esqueço a fome de aprender daquelas crianças.

(iv) Missirá, dezembro de 1966:

(...) O Capitão Pires, da CCAÇ 1439,  querendo juntar o máximo da Companhia para passarem o ultimo Natal juntos, enviou o nosso Pelotão 54 para Missirá, todo o pessoal dizia que íamos passar umas férias, pois aquele destacamento não tinha problemas de ataques há muito.

Instalámo-nos e fizemos o respectivo reconhecimento. No dia 22 recebemos o correio,  via Bambadinca, com algumas encomendas de Natal e preparávamos o nosso primeiro Natal na guerra. Depois do jantar, e depois de verificar os postos, fomo-nos deitar. 

Na nossa palhota dormíamos os três furriéis. Enquanto o sono não vinha,  íamos falando até que, por volta das 10 horas da noite, começa a entrar pela nossa palhota uma metralha de fogo: explosivas, tracejantes e iluminantes de arma pesada, por sorte o fogo passava todo a um metro acima das nossas camas, foi agarrar nas armas como estavámos, já com a palhota a arder, e tentar organizar a defesa.

Eu fui municiar o meu cabo Ananias Pereira Fernandes , com a MG42,  para o abrigo e tentar pôr o pessoal a fazer fogo o mais rasteiro possível. O destacamento parecia Roma a arder e a pontaria deles era tão grande que conseguiram meter uma morteirada no bidão do azeite no depósito de géneros. O rebentamento deste parecia fogo de artifício.

No meio da gritaria e dos impropérios de um lado e de outro, ouve-se um grito de agarra-lo á mano, pois de certeza que vinham com cubanos.

Depois de quase uma hora de fogo, as morteirada estavam a cair junto ao refeitório onde estava o Unimog debaixo do embondeiro, o soldado condutor da CCAÇ 1439 foge e consegue pôr a viatura a funcionar, que estava com escape livre, para o retirar daquela zona de fogo. Julgo que eles pensaram que vinham reforços e debandaram, foi uma sorte porque as munições não eram muitas, principalmente as de morteiro 60 e bazuca.

Tentou-se a seguir ver se havia feridos, não havendo nada a registar entre os militares, mas acho que na população houve dois mortos e três feridos.

Hipótese de ajuda não tínhamos, nem de Finete, que era o destacamento mais perto, nem de Bambadinca, pois tinham que atravessar o rio. Só aguardando o pessoal do Enxalé.

Logo pelo nascer do dia veio o heli fazer as evacuações, o piloto era o Faísca, moço conhecido do Algarve. Assim que o heli levantou começamos a ouvir metralha, era o pessoal da CCAÇ 1439 e o pessoal do Pell Caç Nat 51 que estava a ser emboscado entre Mato Cão e Missirá. O IN retirou mas ficou emboscado, era lógico que viria ajuda.

Começámos então a olhar para a realidade, palhotas ardidas e grande destruição, dos nossos pertences só tínhamos a roupa vestida no corpo, o resto era tudo cinza. Guardo a única coisa que encontrei, uma moeda de 10 pesos toda queimada. No reconhecimento que fizemos, encontrámos bastante sangue e uma pistola. Era triste ver o destacamento com tanta destruição.

Com o depósito de géneros completamente destruído, pouco tínhamos para comer, fomos a Bambadinca buscar algumas coisas e tentar arranjar roupa.

Chega o dia de Natal, a comida não era muita, vem o meu cabo Januário e outro cabo Ananias dizer que iam dar uma volta para arranjar carne. Chegada a hora do almoço apresentaram um repasto de carne com arroz de xabéu , que estava uma delicia, findo o almoço o cabo africano Ananias chamou-me à parte e deu-me as caveiras dos macacos que tínhamos acabado de comer. Guardei uma como talismã que perdi quando vim da Africa do Sul em 1978. (...)

 (Selecção, reevisão / fixação de texto: LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 14 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25640: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águia Negras" (1966/74) - Parte I: Temos dois representantes na Tabanca Grande, o algarvio José António Viegas (1966/68) e o açoriano Mário Armas de Sousa (1968/70)...



27 de novembro de  2012 > Guiné 63/74 - P10731: Memórias de Mansabá (26): Os meus 45 dias em Mansabá (José António Viegas)