1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro,
1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 15 de Maio de 2019:
A dureza da nossa infância e a guerra
No passado dia 17 fui à Associação 25 de Abril assistir ao lançamento de
"A Minha Guerra a Petróleo" da autoria do José António Pereira da Costa. O apresentador da obra foi o Coronel Carlos Matos Gomes, ex-Comando e escritor de créditos mais que provados.
Excelente orador, deu ali uma lição histórica de literatura portuguesa, com especial incidência no que se refere ao colonial e pós colonial. Mas ao vê-lo lembrei-me de antigos camaradas de escola, que foram comandos também e com principal relevo para dois que estiveram na Guiné mais ao menos no período que eu também lá estive.
O Aníbal Gavião (Laredo de alcunha) foi meu colega na escola em Alcobaça na 1.ª classe e mais tarde na 4.ª quando regressei à vila. O Augusto foi meu colega na escola da Vestiaria entre o final da minha 1.ª classe e a 3.ª e o que aqui escrevo, acaba por se focar na história das crianças daquele tempo, com especial ênfase para as fracas condições económicas, que a grande maioria tinha que ultrapassar com escolas a quilómetros, descalços e com almoço que não passava de um pedaço de pão duro, para render, e um cubo de toucinho assado frio, que lhes servia de pequeno almoço, almoço e lanche, especialmente dos que moravam nas aldeias.
Em 1957 entrei para a escola primária de Alcobaça.
Era uma sala cheia de crianças de bata branca em frente da professora. A secretária ligeiramente para o lado direito, deixava livre a visão para o quadro preto, a cruz e as fotografias emolduradas de António Salazar e Craveiro Lopes que era presidente da República por essa altura. Reza a História, que este não era dos predilectos do regime e assim, ao contrário dos que se eternizavam no lugar, foi despachado tão depressa quanto possível.
A professora era e foi, senhora temida até ao fim da sua carreira. Conhecida por mais que uma geração e que estava castigada a dar só a primeira classe por via de algumas “carícias” feitas com mais afinco na malta pequena.
Naquele tempo a sala de aula era um sítio austero pouco convidativo, onde imperava a máxima da reguada e a cana da índia, para quem não sabia ou se esquecia de trazer os trabalhos de casa feitos, quem sujasse a bata, quem não tivesse algum material, etc.
Éramos obrigados a sair e regressar a casa com a bata vestida impecavelmente limpa, facto que me custou alguns safanões dados pela a minha mãe, pois por vezes tinha que ma lavar quando eu chegava a casa e enxugá-la sabe Deus como, para que eu me apresentasse sem mácula às nove horas do dia seguinte na escola.
A falta dela era imperdoável.
Na verdade, frequentaram comigo a escola crianças de todos os estratos sociais e a bata tornava-nos à primeira vista iguais. As diferenças eram assim mais subtis para quem não soubesse, que haveria crianças com várias batas e umas, a maioria como eu, que só tínhamos uma.
Mas juntando o feitio da professora, com o terror que a minha mãe tinha de vivermos numas águas furtadas na travessa da Cadeia, bem por cima do hoje afamado António Padeiro, que já existia naquele tempo sem tanto “pedigree” mas com a qualidade que o tempo não esmoreceu, por essas razões acabamos por ir viver para a aldeia da Vestiaria, situada a pouco mais de 3 quilómetros, mais precisamente na rua que ia para lavadouro e mais tarde, para a Rua do Loureiro. Dali até ao cruzamento entre os Casais e quem ia para o Pinhal Fanheiro ficava a escola. Palmilhávamos mais ao menos uns 1500 a 2000 metros para cada lado quer chovesse quer fizesse Sol.
A lei era taxativa e vigorava uma sobre a proibição de se andar descalço, mas quando cheguei à nova escola eu parecia um extraterrestre, pois batas e sapatos era coisa que não se via por aquelas bandas. Os garotos descalços traziam umas sacolas com uma ardósia e livro de leitura, mais uma sebenta para os trabalhos casa e assim, é fácil adivinhar o espanto que a minha mala reluzente, com caixa de lápis cadernos e livros encadernados, tudo arrumadinho, causou.
A disciplina na escola também coisa de assombrar, pois conviviam todas as classes da primeira à quarta e não eram poucos os alunos que eram maiores que a professora. A D. Emília, jovem professora de Aveiro para ali desterrada, a viver num quarto alugado, quando ia para lhes bater, eles simplesmente seguravam-lhe os braços “o quê que você quer mulher ?”, quando não saltavam simplesmente pela janela e estava o assunto arrumado.
Não raramente eram as mães que os levavam de volta à escola por medo de represálias, uma vez que a escola era obrigatória e se não fosse isso, teriam muito que lhes dar a fazer no campo ou à volta do gado, na vez de andarem a alimentar a boa vida do rapaz a passear os livros.
As mães de alguns alunos quando chamadas à escola por algo que o filho tivesse feito, usavam da sua autoridade aplicando-a à pancada. Condenação e castigo, que eles levavam logo ali com um sarrafo seco de videira, agarrados por um braço e saltando ao ritmo das bordoadas.
- “Sra professora, você arreie-lhe com força, arreie-lhe” - e iam-se embora a maldizer a sorte, o rapaz, mais a escola, que assim ele nunca mais ia trabalhar.
No fundo era a grande chatice pois sem a 4.ª classe ninguém lhe podia dar emprego, se não ficava assim mesmo, pois para a enxada não era preciso saber o abecedário nem geometria.
Comigo andaram o Zé Loureço e o Coelho, que assentaram praça no CICA4 no mesmo dia que eu. O Mário Farelo, o “Escalracho”, os irmãos Manel e Augusto, o Mendes que me ia furando um olho com uma cana acabada de arrancar da vinha ao lado da escola, quando fez dela uma lança. O Manel e o Augusto, estes dois irmãos mais o “Escalracho”, eram por assim dizer responsáveis por todas as malandrices que se faziam e mesmo quando não eram eles, que roubavam a fruta ou roubavam os ovos da capoeira, era certo e sabido que eram os suspeitos e culpados costume.
A vida da escola era assim colorida e assim fui passado de classe à medida que me iam confundindo no aspecto geral, perdi o brilho e o brio, deixando a bata em casa, com a mala toda esfolada ao estilo de quem te viu e quem te vê.
Voltei para Alcobaça a tempo de fazer a quarta classe. Os meus colegas mais velhos foram trabalhar para os fornos da Crisal ou em oficinas na vila, outros por lá ficaram no amanho das terras. Perdi o contacto com a esmagadora maioria deles e se não fora a tropa nunca mais veria outros tantos. O Manuel trabalhou numa marcenaria lá para os lados da Fonte Nova e o irmão mais novo Augusto, encontrei-me com ele no avião que nos trouxe de férias à Metrópole. Era dos Comandos o que não me admirou dado o espírito voluntarioso e belicoso que lhe conheci. Ostentava orgulhosamente os símbolos da 35.ª ou 38.ª, possivelmente esteve envolvido nas operações em Copá e Canquelifá ou mesmo Guidage.
Voltei a viajar com ele no regresso das férias e bebemos uns whiskies para nos prepararmos para o impacto do arame farpado do aeroporto de Bissau e aí chegados, abrasados pelo o impacto do calor ele foi para os Comandos e eu para os Adidos de má memória.
Não tenho ideia de o ter voltado a ver mas duma coisa não tenho dúvida, é que foi naquela vida dura que se forjaram os nossos jovens, o que lhes permitiu aguentar a dureza daquela guerra durante tantos anos.
Mesa de Honra com: Coronel Carlos Matos Gomes, Coronel Vasco Lourenço e o autor de "A Minha Guerra a Petróleo", Coronel António José Pereira da Costa
Na mesa de honra, no lançamento do livro do Coronel António José Pereira da Costa, estavam três soldados que participaram no 25 de Abril, data que como sabemos, embora sujeita aos detratores de todas as latitudes, continua a ser o primeiro dia de liberdade do resto das nossas vidas.
Um muito obrigado por isso.
Juvenal Amado
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de maio de 2019 >
Guiné 61/74 - P19767: (In)citações (130): As Comemorações de Abril, A Memória e a História (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679)