Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2025:
Queridos amigos,
Há pouco a explicar quanto às razões pelas quais se acumulam imagens que, pasme-se, até tinham sido tiradas para se juntarem a outros eventos de itinerâncias. É a limpar a câmara fotográfica que encontro estas recordações do amanhecer na Feira da Ladra, pois venho sempre ao princípio da feira em busca de tesouros e não escondo que às vezes sou bem sucedido. Há igualmente imagens avulsas que se prendem com a satisfação que sinto a estar a ver o arvoredo daquele local do Reguengo Grande, onde tenho casebre, estou para ali, a espairecer, ouvindo tocatas de Bach ou sonatas de Schubert, chega o lusco-fusco e ponho-me no parapeito à espera do fim do dia, o resultado aqui publiquei na semana anterior. E hoje conto-vos a história porque vos mostro uma vista da Graça tirada do Teatro Taborda, a antiga sede do Patriarcado, no Campo Santana, ou o interior da gigantesca cúpula da Basílica da Estrela.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (230):
Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente – 2
Mário Beja Santos
Devo muitíssimo à Feira da Ladra, e falando concretamente do nosso blogue, essa dívida exprime-se em papéis que eu aqui adquiro e que me são muitíssimo úteis para falar da Guiné. Ensinaram-me que se deve vir à Feira um pouco antes das sete da manhã, é por essa altura que os vendedores, pessoas que compram espólios onde tanto podem vir livros como a mais diversa quinquilharia, tiram dos sacos e põem nas bancas estes livros e papelada avidamente folheados por negociantes e bibliófilos, em que me incluo. Ganho imenso em ver o nascer do dia neste Campo de Santa Clara, por vezes venho mais cedo no frio do inverno, foi assim que captei uma imagem na rua do Vale de Santo António que me serviu de capa para o meu livro A Rua do Eclipse, espanto-me sempre de ver avermelhar o negrume, o rio incendeia-se, no entretanto há cambiantes de luz entre o amarelo e o esverdeado; e gosto de ver montar a Feira, inicialmente é todo um caos e, de repente, à luz do dia sentimos que se está a percorrer um verdadeiro mercado onde prima a fancaria, o que parece não ter préstimo, mas nós, os potenciais compradores, estamos ali confiantes de que é dia de sorte para alcançar almejados tesouros.
Os feirantes estão a chegar, cada um acampa no espaço que alugou. Será que eu vou encontrar aqui hoje algum tesouro?
Como isto aconteceu, não tenho explicação, seriam seis e meia da manhã, está tudo esborratado nestes estranhos azuis e amarelados, talvez um meteorologista me pudesse explicar porque está azul-celeste a cúpula de Santa Engrácia, o arvoredo, os toldos e o alcatrão, parece cenário de teatro, talvez mesmo uma aurora mística.
Enquanto a feira se organiza, ponho-me no fundo de Santa Clara, perto do antigo Hospital da Marinha que está a ser trans formado em hotel ou condomínio de luxo, venho bisbilhotar o Tejo, embora a melhor panorâmica seja trezentos metros acima no Mercado de Santa Clara. O que me atrai são estas cambiantes de luz amarelada a enfrentar o dia nascente: é como se fosse uma cintilação de ouro antes de que todas as cores fiquem esclarecidas.
Sim, a feira está armada, vai começar a busca, passo pelas loiças como cão por vinha vindimada, o papel é sempre o meu alvo principal, mas não desdenho das caixas de CDs, e há também espaço para as minhas ninharias, é o caso das gravatas, embora ninguém acredite é possível comprar a 1 euro gravatas Hermès ou Armani, depois mandar limpar a seco. Nos bons tempos que fiz na Feira da Ladra de Bruxelas comprei lenços para o pescoço da Chanel, Yves Saint Laurent ou Balenciaga, a minha filha herdou este pacote de relíquias.
Palácio Costa Lobo, depois sede do Patriarcado, no Campo de Santana, será transformado em residências de luxo. Passo por aqui quando me dirijo à Biblioteca do Goethe-Institut, ali bem perto. Em 15 de março de 1995, amigos ofereceram-me almoço na rua de S. José antes de eu partir para ser operado no Hospital dos Capuchos a uma hérnia na L4. Tomei o elevador do Lavra, por aqui andei a passo de tartaruga, e quando cheguei aqui à sede do Patriarcado, saiu de um carro D. António Ribeiro, o cardeal da época, com quem me relacionei em atividades da Juventude Universitária Católica. Cumprimentos para aqui e para acolá, achei um tanto desusado as perguntas que me fez não da doença, mas pelo local e o dia da operação. No dia seguinte à dita operação, apareceu-me o médico do dia com um ar um tanto embaraçado, estava lá fora o cardeal para me visitar, devia pôr ali uma cadeira ou não? Além disso, havia ali também um guineense com um cacho de bananas. Meio tonto pelas drogas que me tinham dado, disse ao médico para mandar entrar o cardeal, não queria nada de longas conversas. Acontece que na cama ao lado estava lá um senhor que sofria de hidrocefalia, com a regularidade que era internado para extrair líquido. Quando viu entrar o cardeal, o homem ficou possesso, que não queria morrer, se vinha ali um cardeal era para lhe dar uma extrema-unção… nunca vivi uma cena como esta, recordo-a sempre quando por aqui passo.
Tirei esta fotografia no Teatro Taborda. Lá caí mais uma vez na esparrela de ir ver um grande clássico adaptado, de peças de três horas ou mais reduz-se para um espetáculo de hora e meia com toda a luminotécnica a ferver, em vez de estar a ver um gigante do classicismo estou numa rave, com lasers e barulho. Mas não perdi de todo a noite. Esta imagem tendo lá em cima o Convento da Graça tirou-me a má disposição.
Já aqui dei conta de uma itinerância ao Museu Nacional de Arte Antiga. Não publiquei esta imagem, parece que a guardei com grande devoção. Lembro-me perfeitamente do tempo em que a Custódia de Belém, a obra-prima máxima da ourivesaria portuguesa era mais escura do que clara, só o ouro é que brilhava, depois um mecenas apanhou a operação de conservação e restauro, temos aqui mais um mistério de quem é o seu autor, há quem diga que foi Gil Vicente. Para mim é assunto desinteressante, ando por vezes tempo sem fim aqui à volta, estupefacto com a elegância e o poder espiritual que emana desta obra.
Venho por vezes a Arroios a uma loja de eslavos onde é possível comprar arenque fumado, que aprecio comer com puré de batata condimentado. Esta é a fachada da Igreja do Convento de Arroios, durante muitos anos não me interroguei porque é que estão ali as pedras de armas da Grã-Bretanha. Acontece que a Rainha D. Catarina de Bragança, viúva de Carlos II na Grã-Bretanha mandou aqui fazer um colégio para os Jesuítas, a igreja ficou sob a égide da Nossa Senhora da Nazaré. Depois da extinção das Ordens Religiosas deu em hospital. Todo aquele espaço está com ar desgraçado, vai seguramente acabar em condomínio de luxo, a igreja está agora sob o culto ortodoxo, penso que é frequentada pelos ucranianos. Esta fachada merecia melhor sorte.
Quando recebo visitas de amigos estrangeiros nunca me passa pela cabeça sugerir uma visita à Basílica da Estrela, quando muito, falo dela no elétrico nº 28. Mas desta feita o casal alemão pedia para visitar a Basílica, ainda pensei que vinham apaixonados pelo presépio de Machado de Castro, mas não, gostam de estudar estes matacões do barroco. A igreja estava aberta, ouvia-se os cantares na Capela da Adoração, havia gente nos bancos a aguardar missa e eu aproveitei para me pôr no centro do transepto e olhar a altíssima cúpula, reconheço que é impressionante, só peço desculpa de a imagem não aparecer devidamente equilibrada, e é difícil de imaginar a altura que nos separa do piso da igreja.
(continua)
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Nota do editor
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