Lourinhã > Praia da Areia Branca > 6 de junho de 2019 > A duna em flor...
Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Embora não fosse essa a tua intenção como autor, o editor LG fez questão de o partilhar com os amigos e camaradas da Guiné, na certeza de que o vão ler e apreciar. Obrigado, Zé, em meu nome e da Alice, avós da Clarinha. E quando ela for maiorzinha, prometo lê-lo, em voz alta. Ficará a saber então que tem mais um "tio-avô" com grande sensibilidade humana e não menor talento, capaz de escrever um conto como este, tão cheio de ternura e tão "natalício". Um balaio cheio das melhores coisas da vida e do mundo, para ti, esposa, filhos e netos, coisas que não têm peso nem medida: saúde, paz, amor, esperança...Um abraço fraterno, Luís".
por José Teixeira
Caminhavam pela praia de Matosinhos fora, em passada suave, para não assustarem a leve brisa outonal que esvoaçava pelo ar e lhes roçava a face com carinho, alimentando o doce sonho que emergia dentro dos seus corações, vigiados por milhares de gaivotas em descanso, mais a norte, junto ao belo edifício do Terminal de Passageiros, enquanto outras esvoaçavam sobre as suas cabeças numa deleitável dança, animada por melodiosos cantos de acasalamento.
De mãos unidas pelos dedos firmemente entrelaçados, deixavam-se embalar pela música das ondas, que ajoelhavam a seus pés cobrindo-os de beijos, e sem querer lhes perturbavam a linha de pensamento que os unia, ao mesmo tempo que deixavam as doces gargalhadas de prazer e felicidade ecoar no espaço sideral que os envolvia.
Milhões de lâmpadas celestes projetavam tímidos raios de luz, deambulando pelo cosmos às escondidas da lua em fase de quarto crescente, até se cruzarem com aqueles olhos que irradiavam centelhas de felicidade. Retiravam-se, então, intimidados com o brilho que saltava alegremente daqueles olhares, como os raios do néon do mais belo reclame sobre o dom da vida.
Sonhavam o meu futuro num livro aberto cujas páginas estavam virgens. Imaginavam-me sentada na areia a escrevê-lo com tinta indelével da água azul do mar que lhe beijava os pés. E eu ainda não era eu. Eu era apenas o sonho que comandava as suas vidas. Era a estrela que brilhava no horizonte sem idade, caminhando ao encontro da luz da humanidade, trazendo na bagagem mil coisas belas. As mais belas que o mundo pode ter, para os encantar.
Por vezes, surgiam pequenas nuvens que escondiam o luar e as estrelas lá no alto dos céus e eu, que ainda não era eu, ficava triste. Tão triste como eles. Fantasmas cavalgando incertezas. Sombras agoireiras sobre o meu futuro, logo dissipadas pela esperança do amor que os unia e pela fé que transforma montanhas.
De repente, num estremecimento, que eles recordam a cada momento, deram corda à paixão que os unia, recolheram-se nas rochas plantadas na praia e eu nasci do mais belo ato de amor que o Planeta Terra conheceu. Cheguei transportada aos ombros, pelos ventos da ternura que os unia. Ousei bater, de mansinho, à porta da vida, e entrei sem pedir licença, na certeza de que seria bem-vinda e escondi-me silenciosamente no ventre de minha mãe. Estavam entrelaçados numa conversa animada e não deram pela minha chegada. Os gestos de carinho e afeto, que partilhavam entre si foram para mim o feliz prenúncio de que era ansiosamente desejada e senti-me uma felizarda por ter uns pais que se amavam tão profundamente.
E continuavam a sonhar. Acalentavam o sonho da minha vinda e eu estava no meio deles. Ainda pensei em transmitir-lhes um sinal. Talvez um pequeno enjoo à minha querida hospedeira, mas decidi acompanhá-los no sonho. Que sublime sonho!
Um belo dia, a minha mãe, notando a falta dos sinais da sua feminilidade, deduziu que eu tinha ousado aflorar dentro de si e guardou em silencioso anseio um sinal mais concludente da minha presença.
Durou pouco tempo o seu silêncio. A sua expectante alegria foi tão intensa que meu pai deduziu que algo de bom estava para acontecer. Também ele sonhava poder acolher-me nos seus braços, sem saber que eu já estava bem escondidinha no coração de minha mãe. Um terno e profundo abraço, que só os verdadeiros amantes sabem dar e saborear, foi a forma que a minha mãe encontrou para lhe transmitir a sua ansiedade. Senti-os a correr à procura de uma médica amiga, a Suzana, que confirmou a minha chegada.
Só sei que meu pai ficou tão “tonto” com a notícia que escreveu um lindo poema, que guardo como o primeiro e o mais belo presente que recebi, e o dedicou à minha mãe.
Estrela que brilhas no horizonte sem idade,
Ousaste bater à porta da vida,
De mansinho,
E entrar suavemente,
Caminhando ao encontro da luz da humanidade.
Trazes na bagagem mil coisas belas
As mais belas que o cosmos tem
Para nos encantar.
Serás sol ao amanhecer,
Lua cheia ao anoitecer.
Vem, meu bem,
Nosso caminho alumiar
Com o teu sorriso de bonança.
Flor em botão,
Rosa ou cravo, não importa,
Tu nasceste antes de ti
Em sonhos de amor,
Espelhados em berço de oiro,
Carregado de esperança.
Tu recebeste o sopro da vida
Em ninho de amor-perfeito.
Tu projetas amor em teu redor
O amor que nasceu contigo.
Tu levas amor a quem te ama,
Tu enriqueces de amor quem te protege,
Tu acolhes o amor puro
Do amor que te gerou,
Porque tu és amor,
Tu és o amor da nossa vida.
E assim se iniciou a minha aventura neste mundo. Convidaram os meus avós para virem, no domingo seguinte, almoçar cá a casa. Nesse dia, foram à florista comprar as mais belas flores e coloriram as janelas, mesas e prateleiras da casa. Puseram sobre a mais rica toalha de mesa o faustoso serviço de jantar, oferecido como prenda de casamento pelos meus tios Zeca e Linda. A minha mãe aprimorou um cabritinho assado no forno para dar um prazer ao meu avô, enquanto o meu pai, que não é adepto de doçuras, preparava uma salada de fruta com todos os ingredientes, para a sobremesa.
Era meio-dia quando os convidados, que até parece terem combinado a hora de chegada, o que não creio ser verdade, apareceram, felizes e contentes por poderem partilhar em comum um dia de convívio com os seus filhos. Creio que a minha avó Sofia já suspeitava, e tanto assim que trazia um belo ramo de rosas brancas para oferecer à filha querida.
Quando os meus pais lhes abriram a porta da rua, os acolheram de sorriso aberto e eles descobriram a pulcritude que transpirava no interior da casa, foi-lhes fácil deduzir que havia felizes novidades para contar. Não foram precisas palavras para anunciar que eu tinha chegado.
Uniram-se, os seis, comigo no meio, num abraço do tamanho do universo para festejar a minha vinda a este mundo. A felicidade que transbordou dos seus corações encheu o meu ego. Ah! Como eu gostava de ter perninhas, por mais frágeis que fossem, para poder expressar em pulinhos de alegria a felicidade que se apossou de mim, ao sentir-me assim bem-vinda! Mas eu era apenas um pequenino botão!
Ali mesmo andei de colo em colo. Fui elevada aos píncaros do céu pela minha mãe. Senti os abraços repartidos, os sorrisos espelhados da alegria que os animava. Os mil conselhos que as queridas avozinhas teimavam em dar à minha mãe foram guardados em livro de oiro. Todos eram precisos. Bem! Todos não. Alguns, já tinham barbas brancas como as do avô Tomás, outros, eram tão lógicos e de senso comum, que minha mãe apenas dava um sorriso de aceitação e os enviava para a pasta do esquecimento que acauteladamente trazia consigo desde o momento em que sentira minha chegada.
O meu avô paterno ficou tão comovido que pegou na mão da minha mãe, encostou-a ao coração e deixou cair uma lágrima de felicidade pela minha chegada, mas a minha avó, logo recolheu a lágrima num lenço de papel cor-de-rosa e pediu para chamarem o INEM. Foi tamanha a confusão que até eu fiquei assustada. Minha avó só gritava: "Chamem o INEM! Chamem o INEM!"
Estranhamente, os meus pais ainda não me tinham dado um nome. Fora tão curto o tempo, desde o momento em que me geraram, que nem se tinham lembrado de um nome para mim. Talvez se tivessem lembrado: creio que minha mãe tinha pensado em Constança e o meu pai sempre gostou do nome Gabriel; mas para quê pensar num nome para mim se nem sequer sabiam se eu era rapaz ou rapariga?! Nem eu sabia!
O mais importante para eles, segundo deduzi das suas palavras e pensamentos, era criarem as condições ideais para eu ser bem recebida. Meus avôs é que não descansaram e logo se puseram numa disputa acesa, perante o gáudio dos meus pais, pelo interesse demonstrado em me batizarem. No prolongado almoço que se seguiu, em que eu fui o centro das atenções, ouvi chamarem-me Miguelito, Dani, Tecas, sei lá! Tantos nomes me deram que já me esqueci, mas nada ficou decidido.
Talvez Constança! …Talvez Gabriel ou Rafael…talvez Tomás em honra do meu avô paterno… defendiam os meus pais, com afinco.
E assim passámos um belo dia!
A meio da tarde, bem comidos e bem bebidos, fizerem um tchim! tchim! à minha saúde e à minha mãe, como portadora do tesouro mais querido da vida deles, e eu senti-me um pequeno príncipe no reino que eles estavam a construir, de sonho e de esperança.
Agora já sei que era uma princesa e me vou chamar Constança.
Despediram-se com abraços e beijos e muitos desejos de felicidades para a minha mãe e para mim. O meu pai até se deixou envolver por algum ciúme que logo desapareceu na ternura de um beijo que minha mãe lhe deu.
Meus pais, mal fecharam a porta da rua, entrelaçaram-se um no outro e deram-me muitos beijinhos. Estavam tão felizes e eu sentia-me tão bem no meio deles! Viver deve ser uma coisa fantástica!
Depois, muita coisa boa me aconteceu...
A minha mãe trata-me com mil cuidados. Até já aprendi com ela a gostar de música! Sempre que está em casa a descansar, porque eu estou a crescer e devo pesar muito na sua barriguinha, ela deita-se a ouvir música e eu deleito-me com ela. Ficamos as duas muito quietinhas em silêncio. Bem, eu porto-me mal, porque já tenho o prazer de brincar e de lhe fazer cócegas. Aproveito os momentos em que ela está deitada, para brincar com os pés, mas ela parece gostar e vai logo pôr a mãozinha dela por cima. Até chama o meu pai para ele sentir o meu pé a fazer-lhe cócegas. E riem-se muito!... É tanta a sua alegria que até eu rio de prazer.
Sei que já tenho um bercinho junto do leito onde meus pais descansam, para quando eu sair da barriga da minha mãe, dormir aconchegada ao lado deles. Passam a noite abraçados um no outro. O meu pai ressona um pouco, mas não me incomoda. A minha mãe é que por vezes acorda e ficamos as duas sonhar o meu futuro.
Agora que sinto a quentura do tempo de verão a enlaçar-me e a convidar-me a ir ao encontro do mundo que me espera de braços abertos, com sorrisos acolhedores e corações cantando de júbilo, é tempo de aceitar o desafio para sair do cantinho acolhedor que minha mãe construiu dentro do seu coração e partir para a vida, levando comigo uma vontade tremenda de construir um mundo novo, de mão dada com todas as pessoas de boa vontade.
José Teixeira