sábado, 27 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21953: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte III: Depois de Chaves, Estremoz, RC 3, onde fomos formar companhia...


Estremoz > Regimento de Cavalaria, nº 3 > Dragões de Olivença > 2016





Estremoz > Café Águias d’Ouro > 2016 > O autor, à entrada


 
Estremoz > Café Águias d’ Ouro > 2016 > O autor, no interior


Estremoz > Pousada da Rainha Santa Isabel > 2016 > Foram uns belos dias passados na magnífica Pousada da Rainha Santa Isabel – com a Isabel (minha esposa) a sair para mais uma incursão pela linda cidade. A não perder um jantar no restaurante, a 10 metros da Pousada, “A Cadeia”.




Estremoz > Tasquinha Zé d'Alter > 2016 > 
 O homem de pé junto à porta, na fotografia, é o atual proprietário, que em conversa comigo se comoveu ao reviver as noites de fado no tempo do Zé D’Alter.



Estremoz > Tasquinha Zé d'Alter > 2016 > Na entrada da taberna existe uma grande fotografia artística do Zé. Para se poder ver a figura majestosa do Zé , fixar a visão durante uns segundos no quadro preto. Bela homenagem do atual proprietário.  ex-empregado do Zé.


Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Joaquim Costa, hoje e ontem.
Natural de V. N. Famalicão, 
vive em Fânzeres, Gondamar,
pero da Tabanca dos Melros



1. Mensagem do Joaquim Costa, com data de 15 do corrente, às 12h54

Olá, Luís: Envio em, anexo, mais um poste, hoje sobre a minha passagem pela região alentejana que me enche a alma, Estremoz, onde formamos a companhia CCAV 8351, juntamente com a CCAV 8350 de Guileje .

Um grande Abraço, e muita saúde, para ti e para todos os bloguistas. Joquim C.



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte III  (*)


Depois de Chaves, Estremoz formando companhia com destino à Guiné



(i) Estremoz: “A outra família”, o Águias d’Ouro … e o Zé d’Alter


De Tavira para Chaves, de Chaves para Estremoz, feito bola de pingue pongue, mas reconfortado das pequenas férias passadas na bela cidade transmontana, lá abalo eu, agora para o Alentejo.

A guia de marcha para Estremoz vinha acompanhada com a informação da minha mobilização para a Guiné. Não me afetou muito esta notícia uma vez que tinha já interiorizado que seria o meu destino, naquela postura de: se esperares o pior, pior nunca terás.

A minha primeira ação em Estremoz foi um pequeno almoço (mata bicho) na esplanada do café Águias d’Ouro (1). Fiquei logo maravilhado com a traça do café e em particular do edifício, ainda hoje, uma referência arquitetónica da cidade.

Entro no café para pagar e apreciar o seu interior enquanto reparo, sentados em duas mesas, num grupo de jovens com um semblante de quem espera a partida para o degredo. Com medo do contágio fugi e deparo-me com uma visão idílica de um garboso oficial a passear montado num belo cavalo.

Mais tarde confirmei que os rapazes de semblante carregado eram graduadas de uma das 3 companhias em formação neste quartel. O garboso oficial era um prestigiado militar muito conhecido na cidade.


(ii) E a “família” lá foi a chegando de todos os pontos do país


O Transmontano de Vila Real (hoje rendido ao Alentejo), de bigode do mesmo, com quem fui desenvolvendo uma boa amizade, ao ponto de o ter auxiliado; de forma graciosa, durante todo o tempo de Guiné, no consumo do seu tabaco (hábito que ainda permanece nos encontros anuais da companhia). Rapaz fiável, grande observador, sereno e prudentemente desconfiado, como bom transmontano...

O Beirão, “Alcaide de Almeida”, rijo como o granito (mas não pequeno), como diz a canção popular da Beira. Beirão, mas com alma de alentejano dada a sua calma perante qualquer situação. Pró ativo, sempre com a preocupação de se antecipar aos acontecimentos, mas... “de gancho” (como se diz na minha terra), difícil de torcer e convencer (...mais fácil de vencer nos jogos de tabuleiro!), como bom Beirão...

Os dois meninos (quase) da Foz. Os últimos “fidalgos” do Porto, com tertúlias sempre marcadas no Orfeu (café na Boavista, Porto). Aperfeiçoaram o seu Inglès no “engate” de Inglesas no Parque de Campismo da Prelada. Mais o da Rua Senhora do Porto (lindo nome para uma rua!) que , aliás, demonstrou a mesma perícia (no engate das inglesas) no levantamento de minas no Cumbijã.

O Menino da linha (sulista mas não elitista!...). Sempre despreocupado, otimista, positivo, especialista em gerir a fortuna das tias (palavras suas), fã de revistas inglesas (Penthouse), com artigos de fundo e conteúdos densos e que fazia questão de as emprestar a toda a gente, antes de serem religiosamente arquivadas nos aposentos do capitão. Com ele e com o um dos meninos da Foz (a quem devo, para além da amizade, a sua indignação quando todos calaram… ) formamos uma equipa perfeita no comando do 1º pelotão.

O Homem do Barreiro. O político denso, o verdadeiro homem do “reviralho”, foi responsável pelo despertar da consciência política de muitos de nós. Das muitas discussões acaloradas com ele, uma vez, furioso (sendo ele um homem “desarmantemente” calmo), atira-me à cara: não passas de um social democrata (convenhamos que nada mau para a época).

O Nosso “Alfero” de Gaia, o seu nome define a sua pessoa. Humanamente o melhor de nós todos. Após o grato prazer de o conhecer comentei com alguns amigos: este rapaz nunca disparará um tiro em combate, nem em situação de autodefesa. Infelizmente foi dos primeiro a sentir, na pele, as consequências da guerra e a sua brutalidade. Felizmente tudo ficou bem com ele.

O Nosso “Alfero” das terras do Lis... Durante algum tempo, ainda em Estremoz, pertenceu ao meu pelotão. Não nos acompanhou para a Guiné, contudo, do pouco tempo de contacto com ele foi evidente o seu humanismo e grande preocupação com o bem estar dos soldados.

O Homem de Castelo de Bode do 4.º pelotão, calmo, reservado, algo desconfiado, mas bom companheiro não obstante uma relação algo distante.

Dois outros companheiros que tive o grato prazer de conhecer, um muito truculento, destemido nas palavras mas que manifestava um “nervosismo” atroz quando em situação de saída para o mato. Completamente descontextualizado, aproveitou a ida de férias a Portugal e não voltou!...

O outro camarada, uma bom moço, que nunca se adaptou e aceitou a vida militar, foi-se “arrastando”, sempre com a cabeça longe dali, até ir de férias de onde também não regressou!... Desenvolvi com ele uma boa amizade, facilitada pelo facto de ele ter frequentado o Colégio Interno das Caldinhas (Instituto Nun’Alvares), em Santo Tirso, falando sobre uma região que os dois conhecíamos.

Este Colégio Interno, de referencia no período do Estado Novo (ainda hoje uma excelente escola), recebeu muitos alunos que acabaram por ocupar, no país, posições de relevo em diferentes áreas (empresarial, política, artes, etc.,) do qual destaco – Pinto da Costa.

O “Alfero” Algarvio(iu), pescador de águas profundas, amigo de conversa fácil, sempre com uma solução infalível para tudo, consubstanciadas, segundo ele, em algo já testado mas de difícil compreensão para o comum do cidadão. Comportamento comum a qualquer algarvio(iu) de gema.

Creio que de todos nós foi o único que não se deixou afetar pela “bagunça” organizada do destacamento, mantendo-se fiel e dando corpo, no bom sentido da palavra, ao papel de militar asseado e disciplinado.

Seguimos os dois, depois de regressados da Guiné, os caminhos do ensino e da gestão escolar. Como homem de fé, continuo, (sentado e já dormitando), à espera da sardinhada prometida no nosso reencontro em Portimão enquanto aí passei férias durante mais de vinte anos.

Entretanto foram chegando os ditos especialistas:

O Alfacinha... de primeira (Para mim, para lá do Mondego são todos alfacinhas) - O homem que tratava da nossa saúde, física e mental. Um homem talhado para a solução e nunca para o problema. Um privilégio ter um amigo assim. Espero que, passados todos estes anos, me tenha desculpado daquele incidente em Veneza (2)

O outro alfacinha era o  homem que (DES)tratava o nosso estômago. Gingão, “malandreco”, bem humorado, sempre de resposta pronta, ou seja: o verdadeiro vagomestre.

Não esqueço o dia em que, ao refilarmos grosso com ele atirando-lhe à cara que nos estava a matar à fome, organizou uma ceia, com todos os refilões, com produtos que ainda hoje não sei onde os foi desencantar…

O Homem do fato macaco e também alfacinha: Castiço, com gestos peculiares e muito sugestivos, com um “linguajar” ao nível do trabalhar dos motores dos seus unimogues e berliets... aos soluços.

O homem do “Búnquer”, de Aveiro:  A maior parte do tempo metido no seu Búnquer das comunicações. Distante, pouco falador, controverso, mas com quem mantive uma boa amizade.

O “Homem Grande” da Figueira da Foz (Buarcos):  O Abraracourcix (4) da “Aldeia” do Cumbijã - O mais especial de todos !

Benfiquista e/ou antiportista é suposto que ainda guarde no cofre da sua casa de Buarcos as revistas da “penthouse” do Martins e, como bom benfiquista, é muito provável que junte a este espólio meia dúzia de livros, “best-seller” da literatura de “bordel” portuguesa, escrito pelas mãos da Senhora Comendadora Leonor Pinhão e pelos pés da D. Carolina Salgado (Eu, Carolina). Para ser candidato a um convite para o camarote presidencial do Estádio da Luz não resistirá a juntar a este riquíssimo espólio meia dúzia de cópias do filme português (de mais um comendador: João Botelho), o mais visto nas salas de cinema português nos últimos 100 anos [?], sobre a “ a máfia do norte” (Corrupção), que conta a vida do seu putativo “padrinho”, o homem (tal como o eterno capitão: João Pinto) de uma só cor: azul...e branco

Para melhor conhecerem o Abraracourcix da “Aldeia” do Cumbijã, nada melhor do que lerem o capítulo destas minhas memórias: “o que outros disseram de nós” recolhido de vários postes do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Contudo, fica aqui o meu reconhecimento pela confiança que depositou em mim, não obstante embrulhada numa decisão injusta e comunicada de forma intempestiva. Jamais trocaria este gesto de confiança por onças de ouro ou galões.

Depois de uns dias de adaptação à nova realidade, coube-nos a nós receber os nossos soldados vindos de vários pontos do país (a maioria do Oeste), com alguns a entrarem em pânico (como aconteceu com a maioria de nós), quando eram informados que o nosso destino era a Guiné.

A instrução decorreu de forma serena e cúmplice, não obstante a canícula que se fez sentir naquele verão de 1972. Com o decorrer da instrução, e sabendo o que o futuro nos reservava, consolidou-se um grande espírito de grupo entre toda a companhia.

Foi aqui que me tornei um exímio jogador de lerpa (jogo de cartas a dinheiro) graças aos mestres do ofício - os velhinhos sargentos do quartel. No dia em que fazia serviço aos telheiros (instalações fora do quartel onde dormiam os soldados da companhia) era sempre uma noite sem ir à cama já que o casino se montava no final do jantar e fechava as portas já com os soldados formados em parada para regressarem ao quartel para mais um dia de instrução. Sempre que fazia serviço aos telheiros no dia seguinte seguia carta para casa a pedir mais uma mesada adiantada…

Aqueles sargentos eram tramados…

Na impossibilidade de uma referência pessoal (que todos mereciam), aqui ficam os nomes de todos estes valorosos militares e excelentes camaradas e amigos que fazem parte da lista dos convocados para os encontros anuais:

Alfredo Cardoso                                                         Alexandre dos Santos Policarpo           

Mateus Alves                                                              Alfredo José Teixeira da Costa

Amadeu Santos Antunes                                              Aníbal Marques de Oliveira

António Batista Pinto                                                  Alberto Nunes Costa

António José Faísca de Jesus                                       António Fernando Ferreira Oliveira

António Manuel Mota Vieira                                       António José Mendes Antunes

António Paulo Veríssimo                                             António Manuel Pereira Oleirinha                   

António Valente Marques                                            António Santos Grilo

Armando Bessa de Freitas                                           António Vieira Gouveia

Arsénio Pedrosa Marta                                                Armando Piedade da Silva      

Alberto Tavares Augusto Coelho covas                         Abel Santos Ferreira   

Augusto Mesquita Magalhães                                      Aurélio de Oliveira Machado

Avelino Inácio Pimenta                                               Benjamim Vieira Simões

Carlos Alberto da Conceição Pereira                            Carlos Alberto da Silva Machado

Carlos de Jesus Tomé                                                  Carlos Pompeu Fonseca Góis

Casimiro Henriques Dias                                             Diamantino Almeida Gonçalve

Diamantino Augusto Afonso                                        Diogo Bernardino Martins Matos

Dionísio de Oliveira Rafael                                         Eduardo Alexandre Rosa Aleixo

Eduardo Ramos Vitorino                                             Fernando Machado Henriques

Fernando Manuel Antunes                                           Fernando Manuel Gaspar Lopes

Fernando Manuel Marques Carrilho Mourato               Fernando Manuel Moreira Barbosa

Florindo Inácio Marques Rosmaninho                          Florival António Luz

Forivaldo dos Santos Abundâncio                                Francisco da Encarnação Calçada

Francisco Felismino Grácio                                         Francisco José Sanches Ferreira

Francisco Sobral Matias                                              Francisco Valério Cardoso

Franklim Rosário Fernandes                                        Isidro Lopes Correia

Jerónimo Oliveira Vaz Catarro                                     João Carlos Henriques de Almeida

João Jesus Sequeira                                                     João Henriques Carrilho Gomes

João José Ribeiro Fernandes Vilar                                João Manuel Oliveira Querido

João Manuel Reis de Melo                                           João Mendes Corrente

Joaquim Bonifácio Brito                                              Joaquim da Silva Costa

Joaquim dos Santos Anastácio Vieira                            Joaquim Felismino Maximiano

Joaquim Gabriel Nunes Rabiço                                    Joaquim Lourenço Cavaco Pereira

Joaquim Martins de Oliveira Coelho                            Joaquim Ponte Portilho

 

Aproveitando o descanso de um dia de instrução, reunimos um pequeno grupo de amigos e lá fomos à taberna do tão falado Zé D’Alter (3), para beber uns canecos e ouvir o afamado fado espontâneo. Entramos, e logo nos apercebemos que não estávamos a entrar em mais uma taberna mas sim numa casa onde estavam reunidos um grupo de amigos, tal a cumplicidade dos presentes: pessoal da terra e muitos militares. 

Todos falavam com todos ninguém servia ninguém cada um servia-se, da pipa, do garrafão, do tacho, da frigideira etc., Ao terceiro copo já um representante da terra dava o mote ao tocar uns acordes na sua viola cantando, timidamente, o primeiro fado da noite. O esvaziar das canecas libertou os fadistas espontâneos e já todas se achavam capazes do seu número. O ambiente foi aquecendo ao ponto do Zé D’Alter dar um murro na mesa e dizer: silêncio que isto agora é para quem sabe! Fez-se um silêncio de ouro e o fado surge na sua nobreza e pureza maior da taberna na vós do Zé D’Alter. No fim houve palmas, lágrimas e vivas ao fado…e ao Zé.

(Continua)

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Notas do autor:


(1) Edifício construído entre 1908 e 1909, foi inaugurado como café a 4 de Abril de 1909. O seu proprietário inicial era Francisco Rosado, da firma Rosado & Carreço e o estabelecimento funcionava também como buffet e sala de bilhar. Entre 1937 e 1939 tiveram lugar algumas obras a cargo do arquitecto Jorge Santos Costa, cujas principais alterações foram a transformação de uma das portas exteriores numa montra-janela e a remodelação da fachada térrea, ao gosto modernista da altura. Em 1964, sob responsabilidade de José Manuel Pinheiro Rocha, transformou-se o primeiro piso em restaurante, destituindo o edifício de alguns elementos originais. Após um abaixo-assinado de moradores de Estremoz, é classificado como Imóvel de Interesse Público em 1997.

(2) O encontro improvável, em Veneza, de três “Morcões do Norte” e de um Alfacinha especialista em Matacanhas

No ano de 1977 (3 anos depois de regressar da Guiné), eu e mais dois companheiros, o Gil Marques, empresário da industria têxtil (irmão do Motar Paulo Marques, o primeiro português a vencer uma etapa do Paris Dacar) e o Miguel, professor de economia e contabilidade, decidimos, depois de mais uma noite de copos na tasca do Pega, hoje um restaurante com nome no “Evasões” e “Boa Cama Boa Mesa” (à nossa custa), decidimos aproveitar as férias numa viagem (de 31 dias) pela Europa, numa das nossas Dianes.

Um dia se decidiu e no outro abalamos, com partida junto ao nosso café das tertúlias e “jogatanas” de bilhar diárias, o “Pica Pau” com todos os presentes e amigos desejando boa viagem, na Diane do Gil.

Lá consegui meter num pequeno saco umas peças de roupa, um mapa e uma tenda que nunca havia montado. Decidida a primeira paragem em Madrid, como pessoa mais sensata do grupo [???], lá fui pensando em programar minimamente o itinerário de toda a viagem até à capital espanhola.

Já em França, a caminho de Nice, com um amortecedor a queixar-se do peso, surgem na estrada muitos jovens a pedir boleia (muito comum na época em Portugal e em toda a Europa). Eis quando aparece uma jovem no meio do caminho, quase nos obrigando a parar, com o Miguel aos gritos, pára, pára … mas o Gil não parou. Ficamos furiosos com ele, mas ele, com a sua calma, informa: não vamos passar o tempo nisto! Dois dias já passados com as lindas catalãs (professoras primárias a trabalhar em Barcelona) desrespeitando o programa minuciosamente elaborado pelo Costa, e para além do mais o amortecedor não ia aguentar. Òh Gil ! Aguenta, aguenta! Tanto insistimos que ele deu a volta passou novamente pelo local onde ainda se encontrava a miúda, deu nova volta e lá paramos para dar boleia à donzela. Enquanto o Miguel abria gentilmente a porta, surge detrás de um arbusto (estilo David Attenborougt) um rapaz com dois metros de altura, com a miúda sorrindo dizendo: não se importam de levar também o meu namorado? Empurrando-o para dentro do carro antes que dissesse-mos que não.

Durante a viagem o Gil, preocupado com o amortecedor, passou o tempo a chamar nomes ao gigante, que era Sueco, utilizando todo o vocabulário vernáculo do norte que tinha mais à mão, enquanto o rapaz olhava para ele, divertido, sempre com um sorriso nos lábios.

Este incidente foi motivo de conversa até Veneza, onde montamos (tentamos montar ), pela primeira vez a tenda num parque de campismo (até Veneza sempre dormimos ao relento apenas com o saco cama). Começamos a montar a tenda mas não atinávamos com a quantidade de ferros. Já desesperados, diz o Gil: não és tu engenheiro? Então trata tu disso que eu vou tomar banho. O Miguel aproveitou a deixa e fez o mesmo.

Ainda não refeitos da boleia dada ao gigante Sueco, durante o banho continuaram os insultos ao rapaz em voz alta que se se ouvia em todo o parque. Até eu, que também não atinava com a tenda (ou faltava ferros ou faltava pano), estava a ficar incomodado com os palavrões (afinal sou professor “carago”…).

Entretanto, sinto uma mão no meu ombro, viro-me, e vejo um homem lourinho, de olhos claros dizendo, em bom português: já uma pessoa não pode estar com a família sossegada no parque de campismo, sem estar sujeita a ouvir este chorrilho de palavrões. Este lourinho era o grande amigo Caetano o mesmo que me tirou uma matacanha do dedo grande do pé (com a sua faca do mato?) no Cumbijã (Guiné) de boas e más memórias.

(3) Taberna do Zé D’Alter - O homem de pé junto à porta, na fotografia, é o atual proprietário, que em conversa comigo se comoveu ao reviver as noites de fado no tempo do Zé D’Alter. Na altura era um jovem funcionário, de quem o Zé gostava muito e que, contra a sua vontade, o ajudava na taberna no período da noite já que adorava todo aquele ambiente.

Com a morte do Zé, acabou por ficar com o espaço no qual foi forçado a fazer obras. Contudo, guarda religiosamente parte do espólio da antiga casa que compreende fotos de dezenas de companhias crachás, bandeiras e muitas e comoventes dedicatórias ao amigo Zé D’Alter. Em sua homenagem, hoje, na entrada da taberna existe uma grande fotografia artística do ZÉ. [Vd. fotos acima.]

(4) Abraracourcix (Abraracourcix, no original francês, trocadilho com "à bras raccourcis", "de braços muito curtos" [?], ou "a toda força", ele é o chefe gaulês da pequena aldeia dos irredutíveis gauleses, como Astérix. Apesar de ser bastante respeitado pelos seus súbditos e bastante temido por seus inimigos, nem sempre consegue impor as suas ordens. Só tem medo de uma coisa: que o céu caia sobre sua cabeça, mas como ele próprio afirma, quem morre de véspera é peru.

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21952: Os nossos seres, saberes e lazeres (438): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (2): (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Melhor complemento para a visita ao Vale Glaciário do Zêzere não podia ser senão ir conhecer com algum pente fino o burel de Manteigas. Que surpresa, que bom gosto na recuperação dos padrões e na adaptação às exigências dos novos tempos, e que dever de memória, já que esta indústria é inquestionavelmente pioneira e deu matéria-prima afamada, lembrem-se os quilómetros de tecido que daqui partiram para a Grã-Bretanha, e atenda-se aos mercados exigentes que se abrem ao burel de Manteigas, esta vila que vem dos confins da nacionalidade e que hoje tem uma sedutora oferta turística, como pude comprovar. Até fiquei com o nariz no ar a pensar no que a natureza pode oferecer em cores outonais, um pouco antes de aqui chegar o cortante frio serrano. Logo que possível, vou voltar a este recanto de apaziguamento, de verdura e de um alcantilado sem rival.

Um abraço do
Mário


De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (2): O burel em Manteigas

Mário Beja Santos

É pura coincidência, almoçados e em hora de sesta folheio apontamentos extraídos da Corografia Cabo-Verdiana, de 1841, o seu autor é um general português, de nome José Conrado Carlos de Chelmicki, nascido em Varsóvia e que deu provas de grande bravura nas lutas liberais nas nossas terras, militar prestigiadíssimo e que veio a falecer em Tavira. O seu trabalho incide sobre Cabo Verde e Guiné, falando da indústria, e indústria artesanal, louva a panaria cabo-verdiana que, por caminhos ínvios, também se transplantou para terras guineenses, basta lembrar a panaria manjaca. Retive um parágrafo, para mim bem talhado e à altura do que daqui a um bocado vai acontecer, quando partirmos para visitar fábricas de burel:
“Os panos, tecidos e colchas atraem a admiração de todos os viajantes, por bem-feitas, cores lindas e lindos lavores: porém, sobretudo, pela maneira como são fabricados”. Descreve minuciosamente o modo de fiar, o tipo de tear (peça única, com muitas camas, feito a obra de arte e o tear vai para o fogo) e carateriza depois os panos: “Estes panos são de algodão, só ou misturado com lã ou seda. Compõem-se de seis ou mais bandas de um pé de largura sobre seis ou oito de comprimento: cozidas umas às outras pelas ourelas, conforme a largura do pano que se quer ter”. E a cogitar nesta panaria, vamos então admirar a recuperação do burel, parecia caminhar para a extinção, quando se deu o declínio da indústria de lanifícios na Serra da Estrela.

Que o leitor mais curioso vasculhe na Internet o que foi e o que é hoje o burel, a matéria-prima é a lã, sujeita a tratamentos específicos, era o tecido mais apreciado pelos homens da pastorícia, a água e a geada não entram, lã mais protetora não há para quem vagueia sujeito às inclemências do tempo.

Sempre a coscuvilhar literatura sobre os territórios que visito, tirei de uma obra de um acérrimo apaixonado de Manteigas, José David Lucas Batista, alguns elementos curiosos que ele publica numa obra de 2002, dando conta de atividades culturais múltiplas. Refere-se a uma exposição documental fotográfica onde se mostravam instalações e máquinas antigas da indústria têxtil em Manteigas e de tecidos (escocês). Atenda-se ao que escreveu:
“O testemunho seguro mais antigo da existência do fabrico de panos em Manteigas aparece em documento de 1523. Nele, D. João III, concede à Câmara desta terra o direito de nomear o vedor dos panos, o que até então constituía prerrogativa real, daí ser de admitir que os panos apreendidos em Gouveia a dois negociantes de Manteigas, por volta de 1500, fossem aqui fabricados. No Tombo dos bens móveis e de raiz do concelho de Manteigas de 1560 aparecem referências a três prisões. A partir desta data e para os séculos XVII, XVIII e XIX as notícias abundam.

Uma história secular desta actividade, que se pode ainda rectrotrair para tempos mais remotos, a avaliar pelo desenvolvimento implícito na existência de um vedor em 1523 e anos anteriores, implica mudança e substituição de métodos de fabrico e de utensílios e máquinas nele utilizados. Esta mudança foi fortemente acelerada nos últimos anos e continua em curso. Além da redução drástica da maior parte dos antigos engenhos, assistimos ainda bem recentemente à venda como sucata de máquinas cujo interesse era incontestável, como testemunhos de uma fase da indústria local. A documentação fotográfica que aqui se apresenta tem como finalidade chamar a atenção para os riscos que correm peças valiosas do ponto de vista da arqueologia industrial, isto para que sejam a todo o custo preservada e não venham a ser destruídas ou mesmo dispersas, o que representaria grave dano para o património cultural não só de Manteigas, mas ainda para toda a região da Serra da Estrela e mesmo para o país em geral.

As amostras de escocês que igualmente se apresentam foram escolhidas de um conjunto de 200 espécimes, remanescentes de uma colecção de 2000 exemplares, datado de 1949. Por estas indicações se podem avaliar os desgastes que o decorrer de menos de 40 anos provocou e a enorme escala de perdas registada neste ramo”
.

Embalado pelo entusiasmo deste autor, lembrando a panaria cabo-verdiana e guineense, atrelo-me ao rancho e vou todo pimpão, disposto a admirar o burel de Manteigas, e que formas toma, nos nossos dias.

O leitor mais interessado saciará a sua curiosidade procurando no digital o nome das duas fábricas que fazem burel em Manteigas. Por ali cirandou vendo roupa de senhora e homem, artefactos de cuidado desenho, peças lindíssimas. E houve visita-guiada a um mundo de fabrico de ontem e de hoje, artesãos em atividade, exige uma vigilância incansável, se os fios saem da norma gera-se o caos, é como se fosse um começar de novo, remexendo em toda a meada. Vale a pena olhar para estas máquinas, dei comigo a lembrar teares de outros lugares, dos Açores a Bafatá, a curvar-me respeitosamente por este artesanato que hoje é disputado no mercado internacional, de Berlim a Tóquio. O que é verdadeiramente original e confortável tem sempre procura.

À saída da visita a uma das fábricas, deparou-se um conjunto de lápides comemorativas, há aqui algo de muito comovente, pois agradece-se ao trabalhador mais humilde e ao investidor a aposta naquele empreendimento, homenageia-se dando nome àqueles seres humanos, uns que meteram dinheiro, outros que trabalharam desalmadamente, sonhando superar a crise da indústria dos lanifícios e pôr coisas belas no mercado. Gostei muito de ver o burel mas não gostei menos desta concórdia serena, ao contrário das pirâmides do Vale dos Reis, aqui estão os nomes dos meus compatriotas que deram o corpo ao manifesto para que aquela fábrica se erguesse e se labutasse. Ainda há portugueses de lei, pelos vistos.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21923: Os nossos seres, saberes e lazeres (437): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (1): (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21951: Parabéns a você (1938): Luís Cardoso Moreira, ex-Alf Mil Sapador da CCS/BART 2917 e BENG 447 (Nova Lamego, S. Domingos e Bissau (1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21948: Parabéns a você (1937): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo Especialista MMA da Força Aérea Portuguesa (1979/82)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21950: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (41): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
O dia-a-dia de Annette é um baú de surpresas, há reuniões em que os intérpretes saem completamente esgotados, outras têm um teor interessante ou permitem folgas para dar um bom passeio, neste dia o grande amor de Paulo Guilherme ciranda pelo Parque do Cinquentenário, uma construção grandiosa com que Leopoldo II quis homenagear os cinquenta anos de independência da Bélgica, é um espaço de natureza e de vários museus temáticos, o mais importante é o de Arte e História, ali estão depositadas riquezas inexauríveis de várias civilizações. Annette dá conta ao seu amor do inventário que está a fazer referente a dois meses, agosto e setembro de 1969, partilha de mágoas e inquietações, Paulo dá sinais de completa exaustão, estão a reduzir-lhe os efetivos, os patrulhamentos a Mato de Cão são rotina interminável. Coisa curiosa, quando ele e os seus caçadores nativos se encaminharem para Bambadinca tudo se alterará na navegabilidade do Geba, o porto do Xime entrará em funcionamento. E anos depois será tomada a decisão de criar um aquartelamento em Mato de Cão, decisão que só pecou por ser tardia. E se os dois cinquentões se reformassem mais cedo? Vivendo cá e lá, não teriam mais despesas, é certo que com os rendimentos minguados. Annette, nesta fase da proposta, nem se atreve a dizer ao seu amado que ele podia ficar ali em Bruxelas a trabalhar naquele mundo em que se tornou perito, aquela associação europeia de que ele é um dos diretores até tem escritório em Bruxelas, ele bem podia mais tarde ali ficar em trabalho avençado, ela continuaria nas suas atividades de intérprete. Haverão de conversar, ela está ansiosa por quebrar esta distância, esta paixão a conta-gotas.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (41): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, estive no Luxemburgo, como te disse, foram dois dias, um com os peritos da Estatística, comissão mais enfadonha não há, felizmente que temos manuais que nos auxiliam a compreender todo aquele jargão das siglas, o dia seguinte foi dedicado aos medicamentos, o trabalho foi mais atrativo, discutia-se a revisão de folhetos informativos das benzodiazepinas e de potentes anti-inflamatórios. Aproveitei para levar o dossiê da documentação de agosto e setembro de 1969, sem dúvida alguma que corresponde a um dos períodos mais árduos e desgostosos da tua experiência na Guiné. Procurei ler cuidadosamente os aerogramas que enviaste aos teus entes-queridos, logo aquele episódio da flagelação a Missirá em que um dos teus soldados se expôs e te cobriu o corpo, na tentativa de te salvar a vida; aqueles patrulhamentos nos mangais do Geba a destruir canoas, como tu escreves, a confirmação de que gentes da guerrilha atravessam o rio seja para se abastecerem ou trocar informações, seja para viajar para outros lugares do rio Corubal; embora o assunto seja compreensivelmente grave, não pude deixar de sorrir com as tuas discussões com um alferes que veio de Bambadinca e andou a pôr minas e armadilhas à volta de Missirá e por possíveis caminhos que sirvam de acesso aos guerrilheiros que vêm foguear Missirá, gargalhei mesmo quando tu argumentaste em estado de fúria que nem lhe passasse pela cabeça pôr armadilhas junto da fonte de Cancumba e muito menos nas proximidades dos campos lavrados; adoeceste de exaustão, veio um médico de nome David Payne Pereira e obrigou-te a passares dois dias no repouso em Bambadinca; tu desanimas, ainda não há condições para transferir o gerador que está no porto de Bambadinca para o Cuor; barafustas na sede do batalhão porque te vão retirando efetivos continuando com as mesmas exigências dos teus patrulhamentos e numa altura em que continuam trabalhos de renovação não só nos abrigos como nas moranças da população civil de Missirá…

Paulo adorado, encontrei num aerograma uma conversa tua com esse teu amigo aí de Lisboa, Queta Baldé, conversa havida quando ele estava no posto de vigia, o Queta começou na milícia em 1964, na Ponta do Inglês, referiu outros camaradas do pelotão, caso do Mamadu Djau, que também ali vivia, depois a ida para Finete, a seguir a formação do vosso pelotão em Bolama, já me mandaste a fotografia desse conjunto, no verso diz que foi uma oferta de alguém que se chama Jorge Rosales. Não sei como tinhas tempo para passares ao papel aquele conjunto de recordações, mas a verdade é que num aerograma datado do fim de agosto tu reproduzes essa conversa com Queta Baldé: “Há poucas terras mais ricas na Guiné, nosso alfero, que estas aqui do Cuor e dos regulados à volta. Todos aqueles quilómetros de Malandim até Ponta Nova, subindo de Finete até Boa Esperança, e à volta de Gã Joaquim, até à Aldeia de Cuor, dá arroz com fartura, pode ter muito gado. A população de Finete fugira para o mato no princípio da guerra. O régulo vivia em Missirá mas deslocou muita gente para Finete, e depois da vinda da milícia veio também mais povo ali viver, originário de Canturé, Chicri, Sansão e Aldeia do Cuor. Havia ali muitas lojas de comércio, brancos e cabo-verdianos que venham buscar mancarra, arroz e coconote. Todas essas lojas desapareceram com a guerra. Fiquei em Finete até 1966, altura em que fui tirar a recruta em Bolama com o alferes Rosales”.

Mais adiante, encontrei referências à repetição de uma operação na região do Xime, acho que se procurava destruir um acampamento situado na estrada entre Xime e Ponta do Inglês, envolvia três contingentes, competia-te ficares na mata do Poidom, aí emboscarias esse grupo, acaso fosse atacado o acampamento. Ao amanhecer, vocês ouviram um forte tiroteio, e cerca de meia hora depois apareceu o contingente que atacara a casa de mato, houvera um acidente, morrera um dos soldados logo à entrada do acampamento, e tu descreves o transporte do morto numa padiola, lembrou-te uma marcha fúnebre, um caminhar por dentro da mata densa para fugir aos trilhos potencialmente armadilhados e assim regressaram ao Xime e partiram logo para Bambadinca; posso estar equivocada mas entre agosto e os primeiros dias de outubro encontrei referências a cinco pequenas flagelações a Missirá e uma a Finete, flagelações pequenas, morteiradas, só numa delas é que se aproximaram com espingardas metralhadoras junto dos cajueiros, em frente à porta de armas.

As idas a Mato de Cão prosseguem, é uma rotina estafante, para não parares as obras em Missirá há que permanentemente negociar com as milícias de Finete de gente que também vai a Mato de Cão. Paulo, estive ontem a ler aquele episódio em que ao alvorecer, tu irias diretamente de Missirá para Mato de Cão com quinze homens, ao sair do abrigo deste com o pelotão completamente formado em U, à porta, bem indumentados da cabeça aos pés, percebeste que havia ali coisa séria, regressaste ao abrigo para igualmente te bem indumentares, regressaste e perguntaste ao que vinham, o porta-voz era o cabo Domingos da Silva, só estavam presentes os militares guineenses, queriam lembrar a nosso alfero que o pelotão nascido em 1966 tivera em Porto Gole e Enxalé, após um ano tinham vindo para Missirá, não regateavam trabalho, não estavam revoltados contra nosso alfero, mas queriam uma mudança para Bambadinca, estavam cansados. Tu escreves nos teus apontamentos que o cabo Domingos estava verdadeiramente inspirado, vieram ao de cima os seus dotes de orador, tu apercebes-te que há plena legitimidade no pedido deles, mas sentes o prenúncio da despedida, e não vale a pena dizeres-lhes que a canseira não abrandará, eles certamente já falaram com quem faz intervenção no setor de Bambadinca, é-se pau para toda a colher, tu próprio ouves queixumes de quem por ali anda a apoiar o ordenamento dos Nhabijões, nos patrulhamentos e nas emboscadas, nas intermináveis colunas dos regulados próximos com toda a sorte de carregamentos, e não faltará a participação nas operações ou colunas de reabastecimento ao Xitole. Sublinhei uma frase tua, a respeito da resposta que lhes deste para tal reivindicação: “Se for essa a determinação do comandante de Bambadinca, vou com vocês, mas deixo o meu coração aqui”. Neste momento estou a juntar o que falta de setembro, fiquei apavorada com o colapso nervoso que tu descreves de um teu colaborador de nome Casanova, assim que os apontamentos estiverem ordenados, como de costume pedirei esclarecimentos e darei conta do produto final, tanto quanto me é dado perceber vocês só irão para Bambadinca em meados de novembro.

Trabalhei hoje na Rue Stevin, muito perto das instituições da Comissão Europeia, o presidente da sessão disse ter necessidade de fazer uma pausa de duas horas do tempo do almoço, havia que negociar um documento final com um conjunto de países que estão a pedir adesão às Comunidades Europeias, como tu sabes vão entrar um grande número de países da Europa de Leste, Malta, Chipre, etc. Desisti de ir almoçar ao refeitório do Edifício Berlaymont, havia sol e uma temperatura amena, fui passear para o Parque do Centenário, levei duas sandes e uma garrafa de água, não me esqueci de um pedido teu, quando acabar a reunião, tenho que fazer comprar na Rue Neuve, e irei rezar na Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, dizes-me que sempre que podes quando estás em Bruxelas aqui vens rezar os teus mortos e pedir mais fé no teu amor a Deus. Assim será, está prometido. Mando-te estas imagens do parque, sei que muitas vezes por aqui tens passeado. Quero informar-te que a previsão meteorológica para o tempo da Páscoa é bastante má, frio e aguaceiros, talvez seja conveniente reconsiderarmos os tais dias nas praias do Mar do Norte e nas ilhas holandesas, programas mais caseiros, exposições não faltam, podíamos ir num dia que não haja chuva à região das Ardenas e almoçar em França, já que tu gostavas de visitar a Basílica de Avioth, podíamos voltar a Orval, tu gostaste muito.

Que saudades tenho de ti meu querido, às vezes penso (talvez esteja a ser imprudente) que nos podíamos reformar mais cedo e vivermos tanto em Lisboa como em Bruxelas, não havia acréscimo de despesas, embora isso significasse redução de proventos. Mas gozaríamos da companhia um do outro, sem maltratar as ajudas que dedicamos aos nossos filhos. Conversaremos a seu tempo, se achares bem, não escondo a impaciência de ter-te sempre ao pé de mim. Vamos então conversar sobre as férias, valeu? Hoje janto com dois irmãos da minha família de adoção, em Anderlecht, amanhã telefono-te, preciso de ouvir a tua voz, sentir o sopro do teu amor, bisous, milles et plus milles, Annette.
Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, Bruxelas
Escultura de Constantin Meunier, O Ceifador, Parque do Cinquentenário, Bruxelas
Pormenor de escultura, Parque do Cinquentenário, Bruxelas
Arco do Triunfo do Parque do Cinquentenário, Bruxelas, nas colunatas à volta funcionam museus
A Esfinge Misteriosa, Museus Reais de Arte e História, Parque do Cinquentenário, Bruxelas
Entrada do antigo Quartel do Centro de Instrução Militar, Bolama
Aqui funcionou o Centro de Instrução Militar de Bolama, onde se prepararam os soldados de Paulo Guilherme
Imagem dos Rápidos de Cussilinta/Saltinho, a ponte e o Corubal
Um prisioneiro, fotografia oferecida ao blogue Ephemera, de José Pacheco Pereira, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21919: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (40): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21949: Op Mabecos Bravios: a versão da CECA e do ex-cap inf José Aparício, comandante da infortunada CCAÇ 1790, a última companhia de Madina do Boé


Guiné > Região de Gabu > Carta de Jábia (1961) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Ché Ché, na margem esquerda do Rio Corubal. 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Há operações que ficaram na nossa memória,por uma razão ou outra, boa ou má...  A Op Mabecos Bravios (retirada do aquartelamento de Madina do Boé, sector L3, de 2 a 6 de fevereiro de 1969) é daquelas que nos marcaram para sempre, pela tragédia que ocorreu na travessia do rio Corubal, em Cheche (ou Ché Ché).  O descritor, Op Mabecos Bravios,  tem já 30 referências no nosso blogue (*). 

Mas faltam aqui ainda outras versões. Como se sabe, continua ainda a haver controvérsia sobre a etilogia do acidente que provocar 47 vítimas mortais. Encontrámos esta versão no livro da CECA (2014), com o valioso testemunho do ex-comandante da infortunada CCAÇ 1790,  o então cap inf José Aparício, hoje cor inf ref.

Corrigimos as datas, que não estão corretas. Mantemos o topónimo Ché Che, usada pela CECA (Comissão para Estudo das Campanhas de África), embora na carta de Jábia o topónimo grafado seja Ché Ché. No nosso blogue temos usado a grafia Cheche (que tem mais de 7 dezenas de referências).

Faz-nos falta ainda, aqui,  um importante testemunho, o do ex-alf mil José Luís Dumas Diniz,  da CART 2338, responsável pela segurança da jangada que fazia a travessia do rio Corubal, em Cheche, aquando da retirada de Madina do Boé. 

Com a história da pandemia, está por realizar o prometido encontro do nosso editor Luís Graça com ele. Como há tempos escrevemos aqui, uma peça fundamental neste feliz encontro foi (e vai ser) o ex-alf mil trms, Fernando Calado, da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), membro da nossa Tabanca Grande, e meu contemporâneo da Guiné (estivemos juntos, em Bambadinca, entre julho de 1969 e maio de 1970). Foi o Fernando Calado que me pôs em contacto com o José Luís Dumas Diniz. Enfim, dificuldades de agenda, de parte a parte, ainda não nos permitiram fazer esse encontro a três. O Dumas Diniz vive, a maior parte do tempo, em Coruche, se não erro.


Operação "Mabecos Bravios" , de 2 a 7 de fevereiro de 1968

Forças envolvidas:

CCaç 1790
CArt 2338 (-)
CCaç 2383 
CCAÇ 2403
CCAÇ 2405
CCAÇ 2436
CArt 2440,
CCaç 5 (1 Gr Comb)
Pel Mil 161
Pel Rec Daimler 1258 (-)
Pel Sap /  BCaç 2835

Estas forças, com APAR [, apoio aéreo], efectuaram uma escolta no itinerário Nova Lamego - Madina do Boé - Nova Lamego, pertencente à Zona Leste, Sector L3 [, BCAÇ 2835].

Foi accionada mina A/C no cruzamento de Beli, sem consequências; e foram detectadas e destruídas 2 minas A/C entre Ché Che e Canjadude. Durante a operação, Madina foi flagelada 4 vezes sem consequências.

No regresso, na travessia do rio Corubal, um acidente com a jangada que transportava forças de segurança da retaguarda provocou a morte de 47 militares das NT (2 sargentos, 43 praças e 2 Milícias).


Guiné > Região de Gabu > Madina do Boé > CCaç 1790 > 5 [?] de fevereiro de 1969 > Missa celebrada pelo Bispo de Madarsuma e Capelão-Mor das Forças Armadas, Brig António Reis Rodrigues (1918-2009) (e também procurador à Câmara Corporativa, na VIII Legislatura, 1961/65, como representante da Igreja Católica).

Foto: Cortesia de CECA (2014), p. 353. (Com a devida vénia)



NOTA:  Acidente no rio Corubal em 6 [e não 8] de Fevereiro de 1969 - Dados fornecidos pelo Tenente-Coronel José Ponces de Carvalho Aparício, à época Cmdt da CCaç 1790 aquartelada em Madina do Boé.

"Na Guiné-Bissau nos anos 60 a travessia do Rio Corubal para a região do Boé era feita, como hoje, junto à povoação do Ché Che onde durante a guerra se encontrava ali em permanência uma força militar de um pelotão de infantaria, reforçado com uma secção de morteiros de 81 mm.

Esta travessia era então obrigatória para a rendição das forças militares portugueses estacionadas em Madina do Boé e Beli, e ainda para o reabastecimento daquelas forças que na época das chuvas (cerca de 6 meses) ficavam completamente isoladas.

Por isso, durante a época seca realizavam-se normalmente 2 colunas por mês, cada uma escoltada por uma companhia reforçada com um pelotão de autometralhadoras "Fox" ou "Daimler" e com protecção aérea permanente.

Cada coluna era constituída por um elevado número de viaturas, cerca de 20 a 30, carregadas com munições e reabastecimentos.

A travessia do rio Corubal era então feita por uma jangada constituída por uma plataforma sobre 2 canoas; um longo cabo ligando 2 pontos fixos instalados em cada margem corria numa roldana instalada na plataforma; a impulsão necessária para mover a jangada era dada pela força braçal dos militares puxando manualmente o cabo. 

Como segurança do movimento, uma embarcação "Sintex" com motor fora de bordo acompanhava lateralmente cada movimento de vaivém, pronta para qualquer emergência.

Em Fevereiro de 1969 após a decisão do Comando-Chefe da Guiné de abandonar todo o Boé [,  
Directivas n° 1/68 de 1 Jun, 20/68 de 25 Jul e 59/68 de 26 Dez do Cmdt-Chefe] - sendo que  Beli já tinha sido abandonado meses antes retirando para Madina do Boé todas as forças ali estacionadas - foi desencadeada a operação "Mabecos Bravios" sob o comando do agrupamento n" 2957 [, cmdt: cor inf Hélio Felgas]. 

Uma enorme coluna com cerca de 50 viaturas pesadas escoltadas por 2 Companhias de Caçadores, e dois pelotões de autometralhadoras, e com apoio aéreo permanente, chegou a Madina do Boé na tarde de 07  de Fevereiro de 1969.

A esquadra de helicópteros simulou durante a tarde lançamento de forças nas colinas de Madina para tentar evitar as habituais flagelações por morteiros e canhões sem recuo.

Durante toda a noite desse dia as viaturas foram carregadas com as toneladas de munições, armamento pesado, e todo o equipamento e material aproveitável ali existente; na manhã de 5 [, e não 7,]  de Fevereiro iniciou-se o movimento para o Ché Che, onde a coluna chegou no final da tarde desse dia. 

Por decisão do comandante da operação, o número de dias previsto para a sua realização foi reduzido de vários dias, para libertar os meios aéreos empenhados; e a travessia do rio Corubal iniciou-se logo de seguida, com inúmeras travessias efectuadas durante a noite com muitas dificuldades e problemas no embarque na jangada das viaturas carregadas ao limite.

Para a realização da operação de evacuação do Boé, foi construída uma jangada nova, maior que a anterior, com um estrado sobre 3 canoas. 

Em vez da corda inicial, o movimento da embarcação era garantido pelo "Sintex" com motor fora de bordo amarrado à jangada, do lado de jusante do rio, e operado por um sargento de Marinha requisitado para o efeito. 

A velha jangada esteve sempre acostada na margem direita.

Nas travessias do rio durante a noite, com as viaturas foram também indo passando secções dos militares empenhados. 

No início da manhã de 6 [e não na tarde de 9]  de Fevereiro de 1969, na última e fatídica viagem, embarcaram a parte que restava dos militares das CCaç 2405 e da CCaç 1790, cerca de 80 a 90 militares. 

A meio do rio, uma aceleração brusca do motor do "Sintex" fez erguer a frente de bombordo da jangada; tendo sido dada logo ordem para reduzir a velocidade, a jangada fez o movimento pendular inverso, desta vez mergulhando ligeiramente no rio a frente de estibordo, as canoas ficaram cheias de água mas o tabuleiro ficou flutuando, com os militares a bordo com água pelos tornozelos.

Chegados à margem direita, ao proceder-se à contagem constatou-se a falta de 47 militares das duas Companhias.

O Comandante da Operação {, cor inf Hélio Felgas,] não permitiu que as duas Companhias [, CCAÇ 1790 e CCAÇ 2405] permanecessem no Ché Che para tentarem recuperar o maior número de corpos possíveis, seguindo por isso logo para Nova Lamego.

O acidente em causa deu origem de imediato a um Auto de Corpo de Delito, e a longas e complexas averiguações, incluindo todos os aspectos da operação, que em 1970 terminaram em julgamento em Lisboa no 3.° Tribunal Militar Territorial, que durou várias sessões e que terminou com a absolvição do único réu, o alferes miliciano comandante do Destacamento estacionado no Ché Che [, pertencente à CART 2338, Fá Mandinga, Nova Lamego, Canjadude, Buruntuma, Pirada, 1968/69]
 ".

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Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné -  Livro I  (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pp. 353-355. 
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Nota do editor:

(*) Vd. alguns dos muitos postes sobre este doloroso dossiê:

1 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - 21724: Op Mabecos Bravios: a participação da CCAÇ 2403, na
retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Hilário Peixeiro, cor inf ref)

6 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19476: Recortes de imprensa (101): o desastre do Cheche, no rio Corubal, ocorrido na manhã de 6/2/1969 (Diário de Lisboa, 8 de fevereiro de 1969, p. 1)

13 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11837: Op Mabecos Bravios (1-8 de fevereiro de 1969): a retirada de Madina do Boé, com o trágico desastre no Cheche, na travessia do Rio Corubal, foi há 44 anos (1): Relato do cmdt da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 (Galomaro e Dulombi, 1968/70)

Guiné 61/74 - P21948: Parabéns a você (1937): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo Especialista MMA da Força Aérea Portuguesa (1979/82)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21944: Parabéns a você (1936): Gumerzindo Gomes da Silva, ex-Soldaddo CAR da CART 3331 (Cuntima, 1970/72)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21947: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (11): "O Mendes" e "A independência"


1. E assim damos por finda a publicação desta série de memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74) enviadas ao nosso Blogue no dia 29 de Janeiro de 2021:


30 - O MENDES

Era o furriel miliciano enfermeiro da nossa Companhia. Mais do que um camarada, mais do que um camarigo (camarada e amigo) era um camarigueiro (camarada, amigo e companheiro).

A sua ambição civil era estudar medicina mas, circunstâncias da vida, obrigaram-no a adiar o sonho que, todavia, manteve sempre.

Tirada a especialidade foi colocado em Tomar e veio connosco para a Guiné.

A sua competência, calma e humanismo no tratamento dos doentes, civis ou militares, era excecional e, ser tratado pelo Mendes, era cura rápida e certa.

Homem afável, falava baixo e sempre com muita seriedade, sem nunca perder a calma, em particular com os seus subordinados a quem tratava como iguais e que muito o respeitavam.

Já na vida civil, encontrámo-nos casualmente duas ou três vezes e falava-me sempre na possibilidade de se organizar um convívio para rever a rapaziada de que ele tinha saudades. Levou esse convívio 30 longos anos a acontecer e, entretanto, o Mendes tinha-nos deixado.

Lá, onde estiver, saberá com certeza a estima e gratidão que todos nós lhe temos.


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31 - A INDEPENDÊNCIA

Após o 25 de abril, foram estabelecidos acordos com o PAIGC para a transferência dos poderes territoriais.

Em Bissau, antes da independência, só pontualmente se via pessoal do PAIGC, nomeadamente à noite no edifício dos CTT.

As coisas foram sendo feitas gradualmente e com grande descrição até à independência da Guiné-Bissau que, creio, se processou a 10 de setembro de 1974.

Regressei à Metrópole, evacuado, no dia 5 de setembro de 1974 e a minha companhia no dia seguinte.

Nos meses que passei em Bissau, depois do 25 de abril e antes do regresso, assisti a várias manifestações da população, a propósito de tudo e de mais alguma coisa, que normalmente decorriam sob um manto de preocupação ou tristeza o que colidia com o que devia ser a alegria de um povo acabado de ser libertado.

As pessoas acomodavam-se de pé, em camionetas de caixa aberta, deslocando-se em marcha lenta, e recitavam uma ladainha qualquer que não entendia, estando ausente aquela alegria espontânea própria do povo africano, mais parecendo um velório.

Na minha opinião, este comportamento indiciava a consciência de que o caminho da liberdade tinha muitos perigos e incertezas, em particular para aqueles que viviam nas cidades e que de alguma forma beneficiavam com a estadia dos militares portugueses na Guiné, assegurando com alguma facilidade a sua subsistência e a da família, objetivo prioritário em qualquer sociedade.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"

Guiné 61/74 - P21946: Da Suécia com saudade (87): Filhos de portugueses mas... desconhecidos em Portugal - Parte I: o grande romancista John dos Passos, com costela madeirense (1896-1970) (José Belo)





John [Rodrigo] Dos Passos, o grande escritor norte-americano, com costela madeirense (1896 - 1970), autor da clássica trilogua "USA", escrita entre 1930 e 1936 (, mais tarde,traduzida para português por Hélder de Macedo, e publicada, em Portugal, pela Portugal Editora em 1946: Paralelo 42 (413 pp.),1919 (463 pp) e Dinheiro Graúdo (574 pp.)... A trilogia "USA" foi consuderada como um dos 100 melhores romances, escritos em inglês, do séc. XX. (LG)

Imagens cedidas por José Belo (2021)


1. Mensagem de José Belo (, o  representante da Tabanca Grandenno Círculo Polar Ártico):

Data:  19 feb. 2021 kl 13:29
Assunto: Filhos de portugueses mas...desconhecidos em Portugal!
 

Quando estudei nos States fui surpreendido pelo desconhecimento em Portugal de alguns descendentes de portugueses por lá famosos.

A um nível intelectual muito elevado existiu, por exemplo ,o JOHN RODRIGO DOS PASSOS, conhecido nos meios culturais Norte-Americanos como John D'os Passos.

Nasceu em 14 Janeiro de 1896 em Chicago/Illinois e faleceu a 28 de Setembro de 1970 em Baltimore/Maryland.

Filho de um rico advogado,  de origem portuguesa,graduou-se na Universidade de Harvard em 1916.

Serviu como condutor de ambulâncias na Primeira Guerra Mundial e, em resultado das suas experiências,  escreveu em 1921 um amargo romance contra a guerra intitulado"Os 3 Soldados".

No pós-guerra viajou,como correspondente de imprensa. Esteve em Espanha e outros países europeus adquirindo entäo um forte sentido histórico de observacäo social. Foi um período que acentuou algumas das suas simpatias radicais.

Com o passar dos anos, gradualmente,o seu subjectivismo tornou-se num realismo objectivo mais vasto e abrangedor.

Considerado um dos maiores novelistas da "Geracäo Perdida" do pós guerra norte-americano, a sua reputacäo como historiador social e crítico da "qualidade da vida" americana surge com o best-seller que foi a sua trilogia -"U.S.A".

Nesta trilogia é posto em destaque a imagem dos Estados Unidos como sendo realmente duas nacöes. Uma de ricos e privilegiados, e outra ,a dos pobres, sem qualquer poder e representacäo política.

Foi uma muito importante e divulgada obra literária que espelhava toda uma época.

Depois de alguns outros romances e intervencöes em acontecimentos políticos da época,  escreveu uma nova trilogia em 1939, 1943 e 1949  "District of Columbia",ainda que menos ambiciosa que a anterior.

Nesta verifica-se a sua desilusäo com os movimentos laborais norte-americanos, com as políticas radicais na generalidade, e o liberalismo característico do modelo político do "New Deal".

Näo será de estranhar que o governo da ditadura portuguesa não se sentísse "confortável" em divulgar este intelectual que era um forte crítico das ditaduras Ibéricas.

É, no entanto, de lamentar que o Portugal democrático posterior não tenha divulgado a trilogia "USA", como seria merecido.
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Notas do editor:

Último poste da série > 18 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21917: Da Suécia com saudade (86): Portugueses ilustres que aqui viveram...antes de mim: 1º Visconde Soto Maior (Rio de Janeiro, 1813 -Estocolmo, 1893) (José Belo)