sábado, 7 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21524: Da Suécia com Saudade (84): Ainda as “anedotas” do outro lado da “Cortina de Ferro”: recordações da Deutsche Demokratische Republik (José Belo)


José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia; de tempos a tempos,  dá um salto 
a Key West, Florida, EUA [ onde frequenta e às vezes pode ser visto 
 


1. Mensagem de José Belo José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada, 1968/70); cap inf ref, jurista, criador de renas, autor da série "Da Suécia com Saudadr"; vive na Suécia há mais de 4 décadas; régulo da Tabanca da Lapónia; tem c. 180 referências no nosso blogue: entrou "de jure" na nossa Tabanca Grande em 8 de março de 2009]

 
Date: segunda, 2/11/2020 à(s) 15:01
Subject: Ainda as "anedotas"do outro lado da "Cortina de Ferro"
 
Caro Luís 

Em conjunto com a "história" da Praça Vermelha de Moscovo (*) e a propósito do texto e comentários quanto à DDR (Deutsche Demokratische Republik) (**),  aqui segue um texto que confirma um "certo estado de espírito " existente um pouco por toda a parte do outro lado da ....Cortina.

O ano seria 1981. Encontrava-me de férias na costa Báltica da Alemanha e decidi dar uma saltada até Berlin, então ainda bem dividido pelo muro [, derrubado em 1989].

As autoestradas alemãs ocidentais, então praticamente sem limites de velocidade, eram boas pistas para experimentar o meu novo Saab. Ao entrar na autoestrada alemã oriental desconhecia haver na sua quase totalidade um limite de 90 quilómetros/hora.

Frente a um desvio fui obrigado a parar por um polícia de trânsito. Uniforme impecável.Atitudes também impecáveis num distinto porte militar. No entanto a comunicação verbal não era a melhor.
O polícia falava um alemão com forte pronúncia do nordeste e eu um alemão demasiadamente assuecado
´
Depois de muita mímica lá apontou para o conta quilómetros do meu carro.Acabámos por  nos entender quanto ao excesso de velocidade 

Tirando do bolso um papel com multas impressas escreveu à margem: "100 Deutsche Mark".[100n Marcos Alemães]

Perguntei-lhe se referia a moeda alemã oriental.

- Nein! Nein! Nein!...

... Marco alemão ocidental e... a "el contado"!

Mostrei-lhe a carteira,  ao mesmo tempo que explicava tudo pagar com cartão bancário. Manifestamente contrariado,  ordenou-me que o acompanhasse até uma pequena casa construída à entrada do desvio.

Com a minha mulher, sueca e "patrioteira", a gargalhar ao mesmo tempo que cantarolava o hino nacional sueco, lá conduzi o carro até à agência policial.

Lá dentro, o polícia apontou uma cadeira frente a uma secretária com imponente máquina de escrever de "outros tempos". Tendo ele compreendido a impossibilidade de meter ao bolso os 100 marcos ocidentais, ,agora  tudo deveria ser feito para salvar as aparências,  tornando a situação o mais "oficializada" possível .

Rapidamente escreveu os meus dados pessoais, matrícula do automóvel, etc., etc.

Pediu-me então o cartão de crédito bancário para escrever o número. Entre outros, tinha no bolso lateral do meu casaco o cartão bancário e o cartão hospitalar sueco,em tamanho e material idêntico ao bancário, só variando na sua cor branca.

Sem olhar, entrego o cartão ao polícia que, de imediato,  escreve o seu número no impresso da multa.
Só então verifiquei que o cartão por ele empunhando era o cartão hospitalar sueco.

Confesso que o pensamento foi: "Agora é que vou mesmo dentro! Acusado de estar a gozar com tão importante autoridade como a policial."

Não tive tempo para mais divagações pois o senhor polícia limitou-se a apontar a porta da rua, dando por terminado o encontro.

E é uma das muitas recordações da Deutsche Demokratische Republik [, RDA, em português].

Um abraço, J. Belo.

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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P21523: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Na RDA, em fevereiro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Felizmente que me aviara em terra antes de partir para uma RDA cheia de nevões e sempre com a temperatura abaixo de 0ºC, calçado ideal para não partir uma perna, ceroulas, casacão e gorro. Jamais esquecerei esta visita à fortaleza de Königstein, inexpugnável como repetia com o maior entusiasmo o guia, agitando-se entre flocos de neve. Inexpugnável em termos militares, mas houve fugas audaciosas, como a do General Giraud, em 1942. O museu não deixa de impressionar pelas riquezas acumuladas dos reis da Saxónia, a museografia e a museologia eram altamente atrativas. E no último patamar, felizmente em período em que os nevões estavam ausentes, saboreei a panorâmica dos Montes Metálicos e o serpentear do Elba. Voltarei ainda mais duas vezes a Dresden, e não me importaria de regressar amanhã, mais não fosse para entrar na Igreja das Mulheres que conheci ainda em estado de escombro. E entraria com o pé leve na Pinacoteca dos Velhos Mestres, pedindo, ufano, que me indicassem onde podia apreciar o quadro de André Pires de Évora.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (2)

Mário Beja Santos

Num ápice, chegámos à histórica e renomada Fábrica Planeta, conhecida em todo o mundo por produzir máquinas de imprensa, cortadeiras e maquinação, trata-se de uma empresa de consórcio de poligrafia, estão na vanguarda da maquinaria que produz publicações a cores. É um senhor entusiasta, de nome Wensel, que faz a apresentação, mostra-me folhas, rolos, máquinas impressoras e bobinas, máquinas para livros ilustrados. Sempre orgulhoso do que exibe, tudo isto é exportado, e refere mesmo exportações para Portugal, fala na Heska Portuguesa. Revela também orgulho nos fotolitos produzidos, por todas aquelas máquinas de alta produtividade, havia para ali máquinas que imprimiam dez mil folhas à hora. O senhor Wensel olha para o relógio, está adiantada a hora, o almoço espreita, despede-se efusivamente, sabe que vamos seguidamente para um lugar histórico com tanto ou mais renome que a Planeta, Königstein.
E lá vamos, com a barriga a dar horas, Königstein fica na província de Dresden e está junto da fronteira da República Checa, ouvirei dizer mais tarde que é a grande atração da Suíça Saxónica, pode ser que seja mas com toda esta neve não há sonho suíço que me tire do enregelamento. Lá em baixo corre o rio Elba a caminho do Mar do Norte, há montanhas a toda a volta, é uma panorâmica soberba, sobretudo a que se percebe dos Montes Metálicos, avistam-se encostas penhascosas, desfiladeiros em precipício, o olhar avança até ao outro lado, à Boémia. Entramos na fortaleza, há uma senhora na receção que nos conduz a uma cantina, felizmente aquecida. Atirei-me ao pão preto e à manteiga, depois chegou aquela sopa clássica de beterraba com pedacinhos de carne e natas, confortou o estômago, seguiu-se uma salsicha com chucrute, estou pronto, depois de uma taça de café, para enfrentar os densos flocos de neve que caem sobre esta sólida fortaleza que foi até ao século XIX uma reserva da Corte saxónica, tem a sua origem no século XV, ganhou valor militar na sua reconstrução no fim do século XVI, o guia irá igualmente dizer no decurso da II Guerra Mundial foi prisão para prisioneiros políticos, aqui se guardaram os tesouros artísticos da Pinacoteca dos Velhos Mestres de Dresden e foi simultaneamente campo de prisioneiros de guerra, houve fugas audaciosas.
Entrada da fortaleza de Königstein
Detalhe da fortaleza de Königstein
Pormenor da fortaleza de Königstein, com panorama do rio Elba e a República Checa ao fundo

O mínimo que ocorre dizer, mesmo a pingar do nariz, a sentir os efeitos no nevão e a procurar não patinhar na neve (à cautela, trouxera calçado apropriado, umas solas com aderência, bem quentinho no interior, é que a estrutura é muito mais do que impressionante, com as suas três pontes levadiças, a dimensão das torres e torreões, compartimentos que serviram de prisões, olhar para aqueles penhascos inacessíveis, de onde outrora se vertia azeite a ferver e havia armadilhas que funcionavam como paliçadas com pontas de aço. O guia é perentório: aqui nunca entrou um inimigo enquanto houve fortaleza. Canhões não faltam, muralhas também não, já desisti de contar os edifícios, as cisternas, as torres de vigilância e as casas-matas. Estamos a mais de 360 metros do nível do mar e a 240 metros acima do Elba. É uma fortaleza em cima da rocha, Augusto, o Forte, dava aqui festas. Lá no fundo há poços, o guia insiste em descer, obedeço, meio agarrado ao corrimão. Fiz bem em preparar-me para ouvir a oratória ideológica. Aqui esteve preso em 1919 e 1920 o cofundador do Partido Comunista Alemão, Fritz Heckert, juntamente com outros 49 companheiros de luta. Durante a I Guerra Mundial aqui se utilizou uma sala como igreja para oficiais russos prisioneiros. Ao guia não escapa eu estar de ouvido à escuta. Vai-me mostrar o local por onde o General Henri Giraud se escapou em abril de 1942, uma fuga espantosa até à Suíça. Mais tarde veio a saber-se que contou com apoios de gente de Vichy, histórias. E a visita termina com uma passagem pelo museu da fortaleza de Königstein, tudo bem exposto, o guia parece ser muito humano, acha que já debitou o essencial, convida-me, com Petra e Gerald, a ir beber um chá. Creio que nunca bebi um chá com tanta satisfação, a alegria de ver as estranhas a aquecer. É fevereiro, anoiteceu ainda não passava das cinco da tarde, Gerald sugere regressar cuidadosamente a Dresden, agradeci-lhe a compaixão. O jantar foi saboroso, um pedaço de joelho de porco acompanhado por batata cozida e um molho a rescender a mostarda. O melhor seria ir mesmo para o quarto, mas não resisti a dar um passeiozinho para fazer horas. Espequei-me em frente da Semper Opera, na verdade a pedra que eu vi estava bem poluída, mas trata-se de uma construção circular de grande beleza. Amanhã de manhã, imagine-se, antes de partirmos para Berlim, deambularemos pelo Zwinger, terei de novo guia para visitar a Pinacoteca dos Velhos Mestres, e verei o interior da Semper Opera. Uns bons anos depois, aqui regressarei e terei o privilégio de assistir a uma récita da ópera Arabella, de Richard Strauss.
Castelo de Königstein, vista parcial
Semper Opera, a casa de ópera de Dresden

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21522: FAP (124): A batalha das Colinas de Boé, ou a tentativa (frustrada) dos cubanos de fazerem de Madina do Boé o seu pequeno Dien Bien Phu (Abril-julho de 1968) - III (e última) Parte (José Nico, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1968/70)






Fotogramas do filme "Madina Boe" (Cuba, 1968, 38'), do realizador José Massip (1926-2014), obtidas a partir da função "print screening" do teclado do PC e da visualização de um resumo, em vídeo (28' 22'') , disponibilizado no You Tube, na conta "José Massip Isalgué".

O documentário foi carregado no You Tube no dia da morte do cineasta (ocorrida em Havana, em 9/2/2014): é narrado em espanhol, tem subtítulos em espanhol, mas também pequenos diálogos em crioulo e em português (por ex., com o médico dr. Mário Pádua, angolano branco, oficial do exército português, de que desertou, tendo saído de Angola para se juntar mais tarde ao PAIGC). 

Há sequências de cenas que vão da preparação militar a saídas para atacar o quartel de Madina do Boé, em novembro de 1967,   da caça às refeições, das jogatanas de futebol ao quotidiano do hospital de Boké, do outro lado da fronteira, na Guiné-Conacrinfim, até a uma visita de Amílcar Cabral às "tropas em parada"...

Enfim, Cuba não mandou, para o PAIGC, apenas instrutores, conselheiros militares e médicos, mandou também cineastas com o talento de um José Massip. Até nisso Amílcar Cabral foi hábil, soube pôr o cinema e os cineastas de vários países ao seu lado, contrariamente aos políticos e generais portugueses do Estado Novo... que escondiam ao povo a guerra que se travava em África, nomeadamente na Guiné. Para vergonha nossa, o cinema português não tem um único filme com a assinatura de um cineasta de prestígo sobre a guerra na Guiné (1961/74).

Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Pasta: 07057.011.002 Material chegado da URSS no barco Kardla (armamento). Inventário do material com data de 24 de Agosto de 1967. Camiões Gaz 66, metrelhadoras pesadas, canhões sem recúo B-10, morteiros, balas, obuzes, miras telescópicas para espingardas. Data: Terça, 18 de Julho de 1967.

Citação:
(1967), "Material chegado da URSS no barco Kardla", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41012 (2020-11-6)



1. Continuação da publicação de um notável texto, da autoria do José Nico, em que se conta É a guerra, na primeira pessoa no singular, tendo como cenário Madina do Boé e as suas colinas circundantes, entre abril e julho de 1968.

Esse texto apareceu originalmente no nosso blogue, em 30 de abril de 2018 [e foi parcialmente reproduzido no seu livro "A Batalha do Quitafine", lançado em plena pandemia de Covid-19: esgotada a 1ª edição, tem já 2ª edição à vista (*)].

Por ser demasiado extenso e ter surgido num único poste (**), decidimos reeditá-lo agora, por partes, com a expressa autorização do autor. Hoje publicamos a terceira (e última) parte (**).

É uma homenagem também aos bravos de Madina do Boé, tanto do Exército como da FAP. Madina do Boé que, como se sabe, viria depois a ser retirada, no ano seguinte, em 6 de fevereiro de 1969, por decisão do Com-Chefe, gen Spínola.

[Título, revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue, em três partes, da responsabilidade do editor LG]



A batalha das Colinas de Boé, ou a tentativa (frustada) dos cubanos de fazerem de Madina do Boé o seu pequeno Dien Bien Phu (Abril-julho de 1968) 

III (e última) Parte  (***)


A infantaria da Força Aérea [, o BCP 12, ] também lá esteve 
(Operação Diana)


A continuação das flagelações e depois os tiros com armas de precisão [, equipadas com miras telescópicas],  procurando causar baixas na guarnição de Madina do Boé,  sugeriu também, na fase que se seguiu às acções atrás descritas, a utilização de meios terrestres da Força Aérea. 

O comandante do batalhão de paraquedistas n.º 12, na altura o ten cor pqdt Fausto Marques, deslocou-se a Madina do Boé para perceber melhor a natureza do problema e engendrar um plano de acção. 

Com base nos elementos colhidos concluiu que só a surpresa poderia garantir resultados, visto que tudo apontava para que o aquartelamento estivesse sob observação permanente a partir da vizinha encosta do Dongol Dandum.

Por essa razão foi iniciado o transporte diário em DO-27, directamente de Bissalanca para Madina, de equipas de 4 paraquedistas, simulando voos de rotina. Para encobrir a chegada deste pessoal, o avião aterrava de Este para Oeste e, quando dava a volta no fim da pista para se dirigir à entrada do aquartelamento (a meio da pista), parava por momentos para deixar sair os quatro homens que se embrenhavam na mata próxima. 

Estes voos começaram no dia 11 de Julho e terminaram no dia 15 de Julho de 1968 quando o efectivo do grupo de combate comandado pelo tenente pqdt José Manuel Gomes chegou aos 20 elementos.

A missão que lhes foi atribuída rezava assim:

1 - Reconhecer com efectivos reduzidos, evitando a todo o custo o contacto com elementos inimigos ou população, os trilhos que levam às posições de flagelação inimigas.

2 - Efectuar emboscadas nos pontos que o inimigo costuma ocupar para flagelar com armas ligeiras a população de Madina e os movimentos na pista de aterragem.

3 - Emboscar o inimigo nos itinerários de acesso às suas posições, aniquilando-o e capturando o material.

4 - À ordem armadilhar as pontes do rio Capege e Mael Bane
.

A orientação táctica foi para efectuar o reconhecimento nas imediações do aquartelamento, na medida em que o grupo de combate fosse engrossando. As saídas deviam ser executados principalmente à noite, aproveitando a fase da lua, e durante o dia o pessoal devia manter-se escondido e em repouso. 

Depois de reconhecidos os trilhos que o inimigo utilizava nos seus movimentos,  deviam então ser montadas emboscadas nos locais mais prováveis de passagem.

Logo no segundo dia [, sexta-feira, 12 de julho de 1968,] foi efectuado um reconhecimento ao alvorecer em que foram empenhados os primeiros quatro paraquedistas que haviam chegado no dia anterior, apoiados por um grupo de combate da CCaç 1790. 

Nesta saída o inimigo, atento a todos os movimentos, bem instalado no balcão do Dongol Dandum, flagelou o grupo de três direcções, com um efectivo estimado em cerca de vinte elementos, tendo ferido um guia nativo. 

A intenção era reconhecer a área no topo Oeste da pista mas por causa deste ataque tiveram de inflectir para Este, depois prosseguiram para Norte e a seguir voltaram para Oeste atravessando a picada para o Che-Che em direcção a uma pequena elevação conhecida como “Colina de Madina” [vd. carta de Sabiá, 1959, escala 1/50 mil: circundava Madina do Boé, a noroeste].

Por informação da CCaç 1790,  esta zona era por vezes utilizada pelos guerrilheiros que até já teriam sido atingidos por uma salva de morteiros e sofrido baixas. De facto, descobriram os impactos das granadas de morteiro e raminhos partidos com vestígios de sangue. 

Para além disso, o terreno amplo e aberto tinha boas condições para se montar uma emboscada. Depois de reconhecerem toda a zona subiram a vertente Oeste do Dongol Dandum, desceram pela vertente contrária e acabaram por regressar ao aquartelamento vindos de Este.

No terceiro dia [, sábado, 13 d3 julho de 1968,] foram empregues os oito paraquedistas que já estavam disponíveis. Para efeitos de dissimulação integraram-se novamente num grupo de combate da CCaç 1790 que ia apanhar lenha nas imediações da picada para o Che-Che. 

Depois seguiram para Leste até ao rio Barquege (a 1,5 Km) tendo encontrado posições de morteiro a cerca de 1 Km do aquartelamento. Nesta e nas restantes saídas houve problemas com os guias [7] porque eles sabiam perfeitamente por onde os guerrilheiros andavam, tinham medo e também tinham um grande receio do escuro da noite.


O truque de falha do gerador


No quarto dia [, domingo, 14 de julho de 1968,] saíram, às 02h00, 12 paraquedistas que foram montar a primeira emboscada junto às posições de flagelação que tinham sido reconhecidas no dia anterior. Por recomendação do pessoal da CCaç 1790,  foi simulada uma falha do gerador eléctrico para encobrir a saída. 

Em Madina, quando falhava o gerador ficava tudo às escuras até que a iluminação voltasse a ser reposta. O mais preocupante era a perda da iluminação do perímetro de segurança, balizado com arame farpado, e por isso era usual os sentinelas dispararem algumas rajadas para o exterior no sentido de dissuadir eventuais tentativas de infiltração. 

Como havia necessidade de encobrir a saída dos paraquedistas,  foi sugerido ao ten pqdt Gomes que fosse simulada a falha do gerador para confundir os olheiros do PAIGC. E foi assim, com as luzes apagadas e os sentinelas ao tiros para o Dongol Dandum, que os 12 homens do ten Gomes afastaram o cavalo de frisa que dava acesso à pista e esgueiraram-se para a direita na direcção Leste. 

Pouco depois chegaram ao local pretendido onde montaram uma emboscada mas o inimigo não se revelou até ao alvorecer. No regresso, já dia claro, foram flagelados com armas ligeiras a partir da encosta do Dongol Dandum quando entravam no aquartelamento. 

Até esse momento, dado que nos primeiros dois dias as saídas foram feitas juntamente com pessoal de Madina e desta vez fora aplicado o “truque do gerador”,  o inimigo nunca se terá apercebido da presença de outras forças pelo que a vantagem da surpresa ainda se mantinha.

No quinto dia [, segunda feira, 15 de julho de 1968,] a acção anterior repetiu-se, desta vez com dezasseis paraquedistas, e o local escolhido para a emboscada foi entre o topo da pista e a Colina de Madina na zona que tinha sido reconhecida no segundo dia. No entanto, dessa vez também não houve contacto e o grupo regressou a Madina já o sol ia alto.


Finalmente a surpresa resultou


No sexto dia [8], 16 de Julho de 1968 [, terça feira,]  sairam pelas quatro horas da manhã dezoito paraquedistas que rodearam o Dongol Dandum por Leste, seguiram depois pelo vale do rio Barquege e foram aquietar-se na encosta Sul, um pouco a Norte da antiga tabanca de Sebere Dandum [, vd. carta de Madina do Boé, 1958, escala 1/50 mil]

Foi nessa posição que às oito horas da manhã ouviram o tiroteio de uma flagelação a partir da encosta Leste. O ten pqdt Gomes deu então instruções para o grupo abandonar a posição e subir para Norte até encontrar o carreiro da guerrilha que levava à vertente Leste. 

A deslocação foi inicialmente complicada pela reacção do guia nativo que os acompanhava dessa vez e que, transido de medo, se recusou a prosseguir. Teve que ser deslocado para o fim da coluna onde ocupou a última posição e na prática passou a ser rebocado pelo último paraquedista.

Ao chegarem ao trilho, a meia encosta, procuraram rapidamente uma zona que proporcionasse um campo de tiro e montaram um dispositivo em L invertido em que a perna maior, com dez paraquedistas, se estendia a subir ao longo do trilho e a menor 90º à direita, de frente a uma pequena clareira. Numa posição recuada em relação à perna maior ficaram o 1.º Cabo Enfermeiro Giroto e o homem do rádio.

Poucos minutos depois avistaram os primeiros guerrilheiros que desciam a encosta completamente descontraidos e na galhof
a [9] mas apenas cinco entraram na zona de morte que era pequena. Os paraquedistas viram-se obrigados a abrir fogo porque o guerrilheiro que seguia à frente já estava apenas a quatro metros de distância. 

Como este trazia a Kalashnikov em bandoleira, não foi o primeiro a ser abatido, foi o segundo da fila que trazia binóculos ao pescoço [10] e a arma em posição de fogo. Só depois o fur pqdt Capucho atingiu o primeiro homem da fila. 

A disciplina de fogo,  que era um dos pontos fortes das tropas paraquedistas, ao contrário do que sucedia com a generalidade das nossas forças na Guiné, funcionou aqui em pleno mais uma vez. O terceiro homem da fila, abatido pelo soldado José Santos, caíu a cerca de seis metros da emboscada. O quarto também foi atingido e foi nessa altura que o quinto guerrilheiro o tentou auxiliar,  tendo chegado a arrastá-lo de nível na clareira, vários metros para Oeste, ao mesmo tempo que os restantes elementos do grupo,  que ainda se encontravam encobertos pela mata, abriram fogo ao longo do trilho na direcção dos paraquedistas. 

No entanto esses dois guerrilheiros não conseguiram escapar porque o 2.º srgt pqdt  Lança movimentou rapidamente a sua equipa de modo a conseguir posição de fogo e acabaram abatidos também mas não conseguiram alcançar os corpos para lhes retirar as armas. 

Do lado dos paraquedistas,  a reacção cega do inimigo provocou duas baixas: o ten Gomes foi ferido numa perna assim como o apontador da MG 42, 1.º cabo Cabaço, que se encontrava ao seu lado.

 
Guiné > Região de Gabu > Setor de Boé > Madina do Boé > 16 de Julho de 1968, terça feira,  emboscada pós-ataque do PAIGC a Madina, levada a cabo por um Gr Cm do BCP 12, comandado pelo ten pqdt José Manuel Gomes

Infografia: José Nico / José Aparício (2018)


Com dois feridos,  e com um número indeterminado de guerrilheiros em posições mais elevadas,  não foi possível explorar melhor o sucesso mas a equipa do 2.º srgt Lança encontrou rastros de sangue ao longo da mata de onde o grupo inimigo tinha surgido. 

Nas circunstâncias foi necessário quebrar o contacto para trazer os feridos imediatamente para Madina e evacuá-los. No entanto o grupo ainda foi flagelado sem consequências, desta vez de um ponto mais para Sudoeste da zona. A retirada fez-se para Este, mantendo o nível da meia encosta e foi protegida com alguns disparos para as matas mais acima. 

O ten Gomes teve que ser amparado por outro paraquedista e o 1.º cabo Cabaço,  que estava em pior estado, foi carregado por dois companheiros. Ao aproximarem-se de Madina começaram a avistar pessoal da CCaç 1790 que tinha saído do aquartelamento e se dirigia ao seu encontro na tentativa de dar apoio.

José F. Nico
Gen Pilav



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor de Boé > Madina do Boé > 16 de julho de 1968 > "Coube-me a mim efectuar a evacuação dos dois feridos. Comigo viajou o ten cor pqdt Fausto Marques [, cmdt do BCP 12], e por um feliz acaso alguém fez uma foto do DO-27 3460 aterrado na pista de Madina onde eu, o ten pqdt Gomes e um soldado da CCaç 1790 aparecem. É a única prova que ainda tenho de que alguma vez estive no "Algarve na Guiné”.


Fotos (e legendas): © José Nico (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do autor: 

[6] - Testemunho do ex-comandante da Ccaç 1790, actual ten cor inf (R) José Aparício,  após uma visita à Guiné em 1994:

(...) “Regressados a Madina,  visitámos os montes circundantes de onde éramos atacados. Constatei que a quadrícula alfa numérica que utilizávamos estava correcta, e os vários pontos eram efectivamente as bases de fogo que referenciámos na quadrícula.

Um dos elementos que nos acompanhava, e que desempenhava as funções de governador do Gabu, mas que nos tempos da nossa permanência pertencia às forças do PAIGC estacionadas na zona, pediu-me para o seguir sozinho, que me queria mostrar um local; pediu-me para não tirar fotografias e não falar do assunto aos jornalistas e operadores de imagem que nos acompanhavam, o que cumpri, 
naturalmente. 

Chegados ali, na contraencosta de um dos montes à volta de Madina, na direcção (E), mostrou-me o local onde foram enterrados os mortos do PAIGC na zona, descrevendo-me a maneira como enterraram os corpos. Quem ficou constrangido e embaraçado pela situação, fui eu, e por respeito não ousei voltar a olhar com insistência para o espaço e estimar o número de sepulturas, mas que eram muitas. 

Na longa conversa que ali mantivemos, referiu-me os ataques aéreos de 9 e 10 de Abril de 1968 confirmando o juízo que ao tempo tínhamos formulado das circunstâncias de então. Falou-me também das dificuldades que tinham nas evacuações de feridos, já que os hospitais de que o PAIGC dispunha na região com médicos cubanos, se encontravam longe, em Boké a (S) e Kundara a (N). As forças do PAIGC à volta de Madina tinham enfermeiros cubanos, que nos dias dos citados ataques se viram ultrapassados pela situação, passando toda noite a pedir auxílio para transportar os muitos feridos existentes, o que foi ouvido em Madina.” (...)

[7] - Os guias nativos eram soldados do recrutamento local que estavam agregados às companhias metropolitanas. Eram necessários não só porque conheciam o terreno mas também porque eram os intérpretes quando eram feitos prisioneiros ou se encontrava população.

[8] - 16 de Julho de 1968, terça feira.

[9] - Faziam aquilo praticamente todos os dias.

[10] - O homem dos binóculos (e com um relógio russo) era um cabo-verdiano que declarou ser o chefe de um grupo de sete elementos que efectuava as flagelações com armas ligeiras a Madina. Faleceu alguns minutos depois.
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

23 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21003: Agenda cultural (748): "A Batalha do Quitafine", de José Francisco Nico, Ten-General PilAv. O livro pode ser adquirido através do endereço "batalhadoquitafine@sapo.pt" (Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista MMA)

30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21023: Notas de leitura (1286): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", edição que acaba de sair do antigo ten pilav José Nico, BA 12, Bissalanca, 1968/70

3 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21512: Agenda cultural (761): dentro em breve, a 2ª edição de "A Batalha do Quitafine" (2020, 384 pp.). Aceitam-se encomendas "on line" (José Nico, ten gen pilav)


(**) Vd. poste de 30 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18585: FAP (103): Pedaços das nossas vidas (3): Madina do Boé, "O Algarve na Guiné", por TGeneral PilAv José Nico (José Nico / Mário Santos)

(***) Vd. postes anteriores da série:

4 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21514: FAP (123): A batalha das Colinas de Boé, ou a tentativa (frustrada) dos cubanos de fazerem de Madina do Boé o seu pequeno Dien Bien Phu (Abril-julho de 1968) - Parte II (José Nico, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1968/70)

3 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21510: FAP (122): A batalha das Colinas de Boé, ou a tentativa (frustrada) dos cubanos de fazerem de Madina do Boé o seu pequeno Dien Bien Phu (Abril-julho de 1968) - Parte I (José Nico, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1968/70)

Guiné 61/74 - P21521: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (26): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Chegámos finalmente às férias do Natal, é a primeira viagem da amorosa belga para conhecer a identidade do seu Paulo Guilherme, a Lisboa que ele ama, é daqui nado e criado, percorre o burgo sempre que pode em todas as direções, escolheu um menu feito de diferentes aperitivos, inevitavelmente tinha de começar pelo Parque das Nações, era a primeira grande transformação do princípio do século XXI. Correspondeu, nos primeiros dias, ao que ela ansiava ver, foi o caso do romantismo de Sintra, tudo epidérmico, era inevitável. Percorreram a Baixa, começaram na Igreja de São Roque e desceram toda a Rua do Alecrim até ao Cais do Sodré, nem parecem dois cinquentões, andam de mão dada, beijam-se como dois adolescentes, só que ela anda derreada com a vivacidade do seu amoroso, tem que o refrear. E agora aproxima-se o Natal que ela vai descrever com um entusiasmo inusitado, nunca vira coisa igual, toda aquela gente horas à mesa a mordiscar fritos, a rir e a contar histórias. Como iremos ver.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (26): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Noémie adorable, parto amanhã para Bruxelas e espero ver-te muito em breve, começo a trabalhar dentro de dois dias, viajo para uma conferência em Copenhaga, regresso pelo Luxemburgo e bem gostaria de passar um bocadinho o fim-de-semana contigo para te dar conta das maravilhosas férias de Natal que passei com o Paulo, em Lisboa e arredores. Cheguei a meio da manhã, queria aproveitar o máximo possível os cerca de dez dias na companhia de quem tanto amo. O Paulo avisara-me do frio de Natal, para nós aquele frio é mais do que suportável, mas estive o cuidado de vir agasalhada. Ele sugeriu que seguíssemos para o primeiro itinerário, para eu ver a grande mudança que se operara na cidade com a exposição de 1998, comemorativa da viagem de Vasco da Gama. Chegámos a um local chamado Parque das Nações, uma zona da Lisboa Oriental que foi completamente remodelada para albergar os pavilhões da exposição numa lógica bem engenhosa de reaproveitar aqueles espaços para equipamentos, tudo circundado por edifícios com escritórios e um vasto parque habitacional. Arrumado o carro, seguimos a pé, mostrou-me a nova estação de metro, atravessámos depois um centro comercial e entrámos no parque, logo me impressionou uma escultura em ferro, Paulo disse-me tratar-se de uma obra relevante de um dos mais originais escultores portugueses, mostro aqui a imagem. Passeámos à beira Tejo, sempre com um zumbido do teleférico no ar, pedi para não ir, tenho vertigens, mas vi adultos e crianças com um ar muito feliz da viagem aérea. Impressionou-me muito todo aquele percurso à beira-mar, aproximou-se a hora do almoço e numa zona um tanto internacional de restaurantes o Paulo sugeriu que comêssemos comida portuguesa, eram pastéis de bacalhau com arroz de feijão, que delícia, depois pediu uma sobremesa a que chamou farófias, explicou-me que se trata de um aproveitamento de claras, faz parte de um receituário conventual muito antigo. E bebemos o café português, não é como o nosso, nós preferimos o gosto predominante do arábica, eles misturam robusta com arábica, olha, é muito saboroso. Talvez porque eu tenha insistido muito em conhecer a azulejaria portuguesa, fiquei uma vez assombrada quando visitei em 1991, no âmbito da Europália Portugal, uma exposição de azulejos e onde se dizia que o país tem mais azulejos dos que há em todo o mundo, depois quando percorri Lisboa antiga verifiquei que usavam muito azulejo e nas casas apalaçadas é impressionante o uso do azulejo, como nas igrejas, o Paulo, dizia, que fez questão de antes de irmos para casa me mostrar o Convento da Madre de Deus onde está sediado o Museu Nacional do Azulejo. Saímos do Parque das Nações e caminhámos pela Lisboa Oriental já a caminho do centro, aí o casario é antiquado, muito envelhecido e muito maltratado, o Paulo comentava que houvera casas senhoriais famosas, houvesse circunstância e iríamos visitar o palácio do Duque de Lafões, para eu conhecer como vivia a velha aristocracia portuguesa. Chegados ao convento, dado o adiantado da hora o Paulo insistiu em visitarmos só a azulejaria, mas observando que a igreja era de uma opulência inacreditável. Tu não podes imaginar a variedade de azulejos, os portugueses não escondem a influência hispano-árabe e muito menos a importação de elementos flamengos, eu ia reconhecendo motivos típicos do nosso país, o Paulo confirmava que nas trocas comerciais entrava a azulejaria, aliás ele queria mostrar-me azulejos de Delft, parece que há muitos em Portugal.

E seguimos para casa do Paulo, situada num local que se chama Avenidas Novas, ele deu-lhe o nome de Bairro das Estacas, explicou-me porquê Estacas, grande parte daqueles prédios parecem assentar em pilares cilíndricos, um bairro curioso, rodeado de comércio local, até com um pequeno mercado , espaços ajardinados entre os prédios, tudo muito perto de uma linha de caminho-de-ferro. Quando entramos, eu confesso que mesmo conhecendo um pouco os gostos do Paulo, tive sérias dificuldades com todas aquelas paredes com quadros ao longo da parede, lembrou-me os gabinetes de estampas do século XVIII, quadros expostos de cima a baixo, e o Paulo a fazer questão de me mostrar o que comprara na Bélgica, quer em antiquários quer nas feiras da ladra. O vestíbulo está pejado destes enquadramentos, há uma vitrine completamente cheia de louça portuguesa e também muita louça de outros países, fomos ao escritório, uma estante a abarrotar, com filas de fotografias enquadradas, o Paulo mostrou-me o cadeirão onde faz as suas leituras, rodeado de algumas centenas de CD, o leitor pousado numa bonita mesa Arte-Nova. O mesmo aspeto impressionante no quarto, o Paulo a explicar-me a proveniência das obras, inevitavelmente artistas belgas, franceses e ingleses, dirigiu-se para uma fotografia emoldurada e disse-me que tinha sido um grande amigo seu, penso que fixei bem o nome, Cinatti, quem tirara aquela fotografia em Timor a um régulo, o rosto firme, direi mesmo majestático, de alguém que nos acompanha com os olhos, e Paulo disse-me que gostaria muito de falar dele, como se tinham conhecido em 1967 e como ele tinha sido uma das suas mais prestimosas ajudas durante a guerra da Guiné. E quando falou na guerra da Guiné voltou a recordar-me de que vai agora começar a narrativa daquilo que ele chamou o maior desafio que a guerra lhe suscitara, Missirá fora devorada por um incêndio, era uma corrida contra o tempo, havia que reconstruir o quartel antes da época das chuvas, e isto sem abrandar as suas responsabilidades operacionais. Mas estávamos em férias, a guerra ficaria para depois, é um poderoso incentivo para telefonemas e para envio de pacotes com papéis e fotografias. E observou que ainda temos muita guerra pela frente, o romance vai nos primeiros meses. E beijou-me com imensa ternura, eu sou para ele a sua heroína, o arrimo para a segunda metade do século que ele quer viver por inteiro, proferiu esta frase com imenso ardor, com uma voz quente de paixão. E entregámos os nossos corpos.

Quando me levantei na manhã seguinte, o Paulo já tinha preparado um pequeno-almoço tão a meu gosto, flocos de aveia, sumo de toranja, chá verde e torradas, e um café português, claro. Comemos na varanda com vista para os jardins, a conversa, não sei como nem porquê, deslizou para o romantismo, foi quando o Paulo recordou que gostaria muito que fizéssemos hoje o primeiro passeio a Sintra, o que ele chamou uma aproximação, uma iniciação à atmosfera de um lugar mágico. O que aconteceu.

Íamos numa estrada muito movimentada quando ele me propôs que o passeio começasse num ponto extremo, ele falou em Cabo da Roca, parece tratar-se do ponto mais ocidental do continente europeu, depois passaríamos por um lugar chamado Colares e subiríamos a uma estrada para visitar o Parque de Monserrate, eu iria conhecer um jardim extraordinário, obra de vários séculos, não poderíamos entrar no palácio propriamente dito, que fora propriedade de uma rica família inglesa, por estar em obras, a autarquia encetara os trabalhos, podíamos ver à distância e apreciar como o edifício é espetacular com a influência dos arabismos que os românticos tanto cultivaram. Seduziu-me toda aquela vegetação, espero voltar quando este palácio estiver reabilitado. À saída Paulo disse-me que gostaria de me levar ao Convento dos Capuchos, mas atendendo à hora iríamos almoçar num local chamado Almoçageme, não esqueci o nome do pequeno restaurante familiar, a Mariazinha. Nesse dia não comi bacalhau, comecei por uma sopa de caldo-verde e locupletei-me com costeletas de borrego com batata frita e uma alface ripada. Saímos e voltámos à estrada, senti uma certa sonolência, Paulo parou num parque frondoso e aí fiz uma pequena sesta, eram emoções a mais, quase que não acreditava na dimensão da minha felicidade.

E prosseguimos numa estrada franqueada de plátanos em direção ao Palácio da Pena. O Paulo avisou-me logo que era só para ver de fora uma construção originalíssima, tratava-se de um empreendimento de um príncipe alemão, primo do marido da Rainha Vitória, era um apaixonado por castelos românticos, aproveitou uma ruína de um mosteiro, misturou uma série de estilos e o resultado final, asseguro-te, é deslumbrante, olha para este bilhete-postal e depois conversaremos.

Desculpa estar a contar-te tanta coisa ao mesmo tempo, a afogar-te com nomes e imagens que certamente não te dizem nada. É para tu sentires o meu entusiasmo. Pedi ao Paulo para voltarmos para casa, já não sou criança, não sei aonde é que este homem vai buscar tanta energia e tanta ocupação.

Vamos ficar agora só com o dia seguinte, uma pálida imagem do centro histórico. Nada de automóvel, tomámos o metro e fomos para o que ele chamou Baixa-Chiado. No caminho, o Paulo foi-me falando numa igreja sumptuosa, com capelas riquíssimas, obra dos Jesuítas, São Roque. Chegados à tal Baixa-Chiado subimos uma rua chamada Misericórdia e visitámos o templo, é esmagador, a magnificência das capelas fala, disse-me o Paulo, daquela época das riquezas brasileiras que davam para comprar uma capela forrada em lápis-lazúli em Roma. Descemos essa mesma Rua da Misericórdia, Paulo disse que o nome daquele lugar era o das Duas Igrejas, de facto há ali duas igrejas, apontou para a estátua de Luís de Camões, e disse-me que íamos descer a rua que ele mais aprecia pela panorâmica que se desfruta, a Rua do Alecrim. O que eu desfrutei, sinceramente, foi da alegria jovial do meu amoroso, entrou em lojas de velharias, de alfarrabistas, casas de azulejos, uma loja de banda-desenhada, eu entrava e saía de todos estes estabelecimentos depois de ter conversado com os vendedores, há de facto um pormenor muito gracioso, que é o rio Tejo ao fundo, descemos até a um lugar chamado Cais do Sodré, já não podia esconder que me doíam as pernas, e o Paulo levou-me a um restaurante chamado Porto de Abrigo, ali comi uma coisa curiosa, um recheio de marisco, ele chamou-lhe vieira, depois sugeriu-me polvo, jamais tinha comido polvo, com batata a murro, expressão dele, um repasto magnífico. Tinha que ser franca, precisava de descansar, mas aceitei ainda passarmos pelo Terreiro do Paço, e aí assombrei-me com a vista do castelo no alto e as iluminações do Natal. Pois é no Natal que te vou falar a seguir, como eles celebram um tanto diferentemente de nós. Com profundo afeto, Annette.

(continua)
Convento da Madre de Deus
Palácio Real no Terreiro do Paço, Museu Nacional do Azulejo
Cabo da Roca
Parque de Monserrate, palácio já reabilitado, aberto em 2010
Palácio da Pena
Igreja de S. Roque, Lisboa
Rua do Alecrim, Lisboa, imagem da época
Panorâmica mais antiga da Rua do Alecrim, com o Tejo enevoado ao fundo
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21496: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (25): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21520: (In)citações (173): Muitos parabéns, Professor Jorge Cabral, meu Mestre! (Petrouska Ribeiro, Luanda)


"Feliz Aniversário, meu Mestre"
 

1. Mensagem de Petrouska Ribeiro, antiga aluna do Prof Jorge Cabral, nosso querido amigo e camarada que hoje faz anos (*):


Data: 5 de novembro de 2020 22:44

Assunto: Muitos Parabéns ao Professor Jorge Cabral!


Olá,  Professor Luís Graça!


Tanto tempo... (**)

... Permita-me cumprimentá-lo e, sem qualquer desrespeito, mandar-lhe um grande beijinho por tudo o que fez, tem feito, pelo e com o nosso querido, adorado Professor Jorge Cabral.

As saudades são mais que muitas! ...

E hoje mais ainda. Principalmente por lembrar aquele ar trombudo e mimado, de quem não quer festinhas de aniversário, mas que no fundo...é só um menininho querido, não tem nada de rebelde. (risos)

Hoje é o aniversário dele!

Vamos agitar o blogue com mensagens, memórias, estórias bonitas!

Tudo de bom, para si e todos seus, Professor Luís Graça.

Melhores Cumprimentos / Best Regards

Petrouska Ribeiro

Inspecção Geral da Administração do Estado| IGAE, Angola

Tel.: (+244) 949 339 616

Email: ribeiropetrouska@gmail.com


2. 
FELIZ ANIVERSÁRIO, PROFESSOR JORGE CABRAL!  (***)


Luanda, 06 de Novembro de 2020 


Feliz Aniversário, Professor Jorge Cabral! 

E cá estamos para comemorar mais um alegre 06 de Novembro!

Para felicitarmos o filho do Sr. Dionísio e da Sra. Dª. Ilda, pela data que hoje comemora!

Há uns anos atrás, por ocasião de uma conferência em que foi o preletor convidado, o nosso Professor Esotérico mencionou que “somos todos contemporâneos e antes de mais, pessoas com dignidade” (pelo menos, constitucionalmente falando) … e acrescentou: “viver é atuar conservando todos os direitos inerentes à pessoa humana, designadamente o de continuar a ser ela (aquilo que o Professor continua a ser), com os seus valores (eu diria, muitos mais!) e a sua forma de ser e de estar (o que nunca por nunca duvidaria…vindo de si, nunca!!!).

E recordo, num outro momento e com um ar mais sério, levar-nos a pensar que “… habitamos o mesmo mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana. Não somos nós e os outros, somos todos nós!”... 

Palavras suas, Professor Cabral, palavras que, acredite, não ouvimos de mais ninguém.

Pois é, Meu Mestre, os anos passam, mas não por si. Parabéns!

E, creia, os milhares de nós, ex-alunos, que partilhamos o privilégio de o ter conhecido, visto, ouvido, sentido por perto, continuamos a vê-lo o mesmo jovem… sim, não é asneira nenhuma! É jovem há mais tempo!

E prosseguimos expectantes, sedentos de continuar a colher de si o que de melhor e mais bonito nos ensinou a ver e respeitar: o tempo da felicidade, em harmonia e de bem connosco e em comunhão com os outros, sem utopias!

Acredito que nos continue a alegrar com a sua presença, disponibilidade, suas estórias, que nos continue a brindar com a pessoa que é.

Feliz Aniversário, Meu Mestre.

Petruska Ribeiro
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 7  de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5225: (Ex)citações (53): Jorge Cabral, Essa Alma Peregrina Mor (Petrouska Ribeiro)

(***) Último poste da série > 3 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21511: (In)citações (172): Contradições… Já são demais, texto extraído do livro "Estilhaços..." de Joaquim Coelho (Abel Santos)

Guiné 61/74 - P21519: Parabéns a você (1888):Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de 3 de novembro de 2020 Guiné 61/74 - P21509: Parabéns a você (1887): Ten-General PilAv António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Guiné, 1972/74)

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21518: Os nossos seres, saberes e lazeres (420): O Rio Sabor da minha juventude e o de hoje (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Rio Sabor

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 4 de Novembro de 2020, desta feita com uma memória do Rio Sabor dos seus tempos de menino:


O RIO SABOR


O rio Sabor nasce na serra de Ganomeda, província de Zamora, em Espanha, onde se demora breves quilómetros, entra em Portugal tímida e sorrateiramente, como um gato montês a romper entre fragas, ervas e arbustos. Passa perto da cidade de Bragança, que o olha altaneira do cimo do seu Castelo e poucos quilómetros a sul vai engrossar o caudal com as águas do rio Fervença que nasce na serra de Nogueira e banha a cidade. Neste percurso inicial, chega a fazer fronteira entre os dois países ibéricos.

Tinha catorze anos, estava em Bragança para fazer o exame de admissão ao liceu, tinha um vizinho, dois anos mais velho do que eu, que vivia com a mãe, empregada doméstica, num quarto alugado, andava a estudar e comprava quase todas as revistas de cowboys do "Mundo de Aventuras" para ler e emprestava-me também a mim. Um sábado convidou-me para ir com ele a pé, até um sítio do Sabor. seriam somente três quilómetros, que ele conhecia bem. Fomos e encontrámos lá muitos rapazes, alguns a nadar outros a fazer mergulhos das margens mas o grande espectáculo, que prendia as atenções de todos, era dado por alguns, poucos, mergulhadores ousados que do cimo de um penhasco com muita altura se lançavam para um poço fundo do rio. Muitos outros lançavam-se do meio do penhasco. Ele sabia nadar e mergulhar tirou a roupa e entrou naquela festa de rapazes, onde não podia haver raparigas já que os rapazes não tinham calções de banho, muitos nunca os teriam visto sequer. Nunca tinha visto nada igual, o Sabor que passa na minha aldeia, muitos quilómetros a sul, tem margens suaves, quase planas ou pouco elevadas. Os rapazes da terra, tal como eu, no geral, não sabiam nadar ou mergulhar. Tinham pouco tempo de sobra para ir ao rio, no verão, a uma distância de cinco quilómetros, por caminhos de ladeira e com temperaturas escaldantes. Desde meninos, nas poucas vezes que tínhamos sido lá levados pelos pais, em algum verão, tínhamos registado uma atração forte por esse rio que entre margens de areia ou salgueiros, numa toada lenta, ao passar o açude da Barca, seguia a sua viagem. Tomávamos banho nas margens ou em poços com pouca água e procurávamos as "rascas" (conchas que nunca mais vi) na areia. Eram dias inesquecíveis.

O rio com um percurso vertical, que rasga o Nordeste Transmontano, de norte a sul, com 120 quilómetros de comprimento, até desaguar, no rio Douro, depois do Vale da Vilariça, perto de Moncorvo. Irá engrossar com as águas de muitos rios além do Fervença, o Azibo, Angueira, Maçãs, outros rios mais pequenos, algumas ribeiras e muitos ribeiros. Na parte superior, correspondente ao concelho de Bragança foi abrindo caminho e esculpindo margens mais ou menos abruptas, mais a sul passará a correr num vale profundo, cavado entre encostas com alguma inclinação, semelhantes às arribas do Douro, que desde o leito do rio ao cimo chegam a atingir dois quilómetros, para ambos os lados, depois de receber as águas do rio Azibo, perto da aldeia de Lagoa a cerca de três quilómetros da velha ponte de Remondes agora submersa pelas águas da albufeira.

Lagoa já é para mim uma terra de referência pois era a terra da tia Clementina, mulher meiga e acolhedora, tia da minha mãe, prima do pai dela, o meu avô Francisco. A seguir, as aldeias ribeirinhas, sobretudo as do concelho de Mogadouro passam a fazer parte da minha história de vida, pelo conhecimento das suas terras e culturas, dos povoados e pelos laços de família e de amizade com alguns dos seus habitantes.
A partir de Soutelo, no concelho de Mogadouro, passando pela Parada no concelho de Alfândega e pelo Felgar no concelho de Moncorvo, a orografia do vale e das encostas que se elevam das suas margens não se irá alterar muito.
Neste percurso, por razões antigas que terão tido a sua lógica, as povoações ribeirinhas foram quase todas construídas longe do rio, à distância de alguns quilómetros. Seria porque as ladeiras não facilitavam a comunicação e a construção de bons caminhos?
Na verdade em Brunhoso somente depois da década de setenta do século passado, quando a mecanização da lavoura e dos serviços camarários se tornou efectiva, com a ajuda dos fundos comunitários, é que foram construídos caminhos suficientemente largos para tractores, carrinhas e outras máquinas agrícolas. Os carros de bois nunca chegaram a ir ao rio pois nesse tempo já estavam em desuso.
Seria porque as terras de planalto para as searas de trigo e as terras para as hortas em terrenos fundos com nascentes de água, ficavam longe?

O clima mais ameno do vale do rio influenciava o tipo de culturas das encostas do vale. Assim nesse tempo, em que as árvores, como as diferentes culturas não eram criadas em laboratórios e estufas e todas tinham o seu próprio habitat desde tempos imemoriais, eram plantadas sobretudo as oliveiras mas também as amendoeiras e as figueiras. próprias do clima mediterrânico. Essas plantações que lhe davam vida e riqueza, depois do grande surto de emigração clandestina para a Europa rica, nos anos sessenta e setenta, vão ficando gradualmente ao abandono. O trabalho nessas ladeiras e socalcos era duro e mal pago, só por muita necessidade de subsistência os trabalhadores se sujeitavam a ele.

A construção da barragem do Sabor, concluída em 2014, gerou muita controvérsia entre o Governo e os ambientalistas, os lavradores que ao tempo já tinham abandonado as suas ladeiras por falta de mão de obra e rentabilidade puseram-se à margem ou ao lado do Governo, pela sua construção, para receberem alguma indemnização.
A barragem transformou um rio límpido calmo e parado que se atravessava, em muitos sítios a vau no Verão, escuro, largo e tumultuoso no Inverno, num lago profundo e comprido, formado pela albufeira que se estende a montante até à foz do Azibo.
O lago da albufeira submergiu a ponte de Remondes e outras pontes, submergiu também as maiores e mais antigas oliveiras, que estavam há séculos nas zonas de planície que margeavam o rio, um grande património florestal, histórico e arqueológico. Tenho pensado nessas oliveiras seculares, tão largas, tão maciças e tão diferentes das outras plantadas nas encostas, claramente mais novas. Plantadas há quinhentos anos, se não mais, dariam para satisfazer a necessidade de azeite dos habitantes da aldeia mais próxima, que avaliando a densidade populacional em Portugal nesses tempos recuados, seria inferior a cem pessoas. No termo da aldeia de Brunhoso encontram-se vestígios de uma aldeia no alto da fraga do Poio, sobranceira ao Sabor, situada a pouco mais de dois quilómetros. Já bem perto da povoação actual está o Crasto onde há bem pouco tempo os lavradores desenterravam restos de telhas, ao lavrar a terra.
Uma das pontes que vieram substituir a Ponte de Remondes
A outra ponte 500 metros a sul do rio
Outra perspectiva
Neste "lago" está submersa a velha ponte de Remondes
Um olival em Remondes

Os nomes das terras e dos lugares por vezes guardam histórias antigas, o lugar da Barca, falará de um barqueiro que nos meses de inverno e primavera atravessava os viajantes, entre as duas margens, nesse transporte. Foi lá construído um açude, em data que ninguém lembra. para dar um caudal de água regular ao moinho que foi construído no lado esquerdo, logo abaixo dele.
Esse moinho ainda laborava quando eu era menino. Lembro-me ainda da moleira, uma mulher brava e trabalhadeira que vinha à aldeia com uma mula carregada com sacos de farinha e levava sacos de grão de trigo e centeio. Vivia perto do moinho numa corte de ovelhas, lá teve filhos resultantes de encontros ocasionais com alguns homens que lhe agradaram. Lá os criou, com peixes, pão, figos, a ajuda duma pequena horta e uma percentagem das "maquias" da farinha produzida. A Chicota, assim era chamada essa senhora, já morreu há muitos anos, o moinho começou a ficar em ruínas quando ela já sem forças o abandonou e foi viver para a aldeia com uma filha. Era uma mulher alta, esguia, sempre vestida de preto da cabeça aos pés, cara comprida e enrugada a olhar em frente como uma lutadora. Ao crescer, o lago da barragem, pelo rio acima já poucas pedras encontrou do velho moinho da Chicota.

Quando da construção da Barragem houve uma equipe de arqueólogos, (paga pela construtora, suponho eu, para moderar as críticas dos ambientalistas) fazer investigação nas margens do rio. Precisamente perto do moinho e das velhas oliveiras, encontraram algumas construções antigas soterradas, casas de habitação e uma construção diferente que era um lagar, mas não um lagar de azeite, como seria de supor, mas um lagar de vinho. Nunca vi vinhas naquelas encostas do Sabor pelo que só se poderá depreender que as terá havido antes da filoxera que destruiu as vinhas do Douro e também, as dos menos falados, vales dos rios seus afluentes. No Sabor, os lavradores com menos poder económico e menos influência na Corte, do que a D. Maria e os ingleses, nossos colonizadores, terão optado pela plantação de oliveiras e amendoeiras para substituir as vinhas.
E o rio vai seguindo o seu curso subindo ou descendo as águas conforme S. Pedro e os donos da barragem querem
Foz do Rio Sabor

Hoje o rio que passa na minha terra já não se vê correr, sobe ou baixa de volume conforme a vontade de S. Pedro ou dos donos da barragem a jusante, perto da foz.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21499: Os nossos seres, saberes e lazeres (419): Na RDA, em fevereiro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21517: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (10): Relembrando a morte, por acidente com um dilagrama, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama >  c. jun/jul 1973 > O jardim colonial,  com a estátua em bronze de Ulysses S. Grant (1822-1885), o presidente norte-americano que em 21 de abril de 1870 resolveu, por sentença arbitral, a questão da soberania de Bolama, disputada entre Portugal e a Grã-Bretanha... 

A estátua em bronze desapareceu em 2007, sendo mais recentemente substituída por uma em cimento, A foto é do nosso camarada Luís Mourato Oliveira, que em meados de 1973 fez um estágio,  de preparação para o comando de subunidades africanas, no Centro de Instrução Militar (CIM)  de Bolama. Um ano antes, estiveram  aqui o Carlos Barros e a sua 2ª CART / BART 6520/72 a fazer a IAO.

 Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Carlos Barros, Esposende


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros [, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; membro da Tabanca Grande nº 815; vive em Esposende, é professor reformado]

Recorde-se que o BART 6520/72 foi mobilizado pelo RAL 5 (Penafiel), tendo embarcado em 23 de junho de 1972 (Cmd, CCS e 2ª Companhia )... Após a realização da IAO, com as suas companhias, de 30 de junho de 1972 a 26 de julho de 19l72, no CIM, em Bolama, seguiu, em 28 de julho de 1972 ara o sector de Tite, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com o BArt 2924.

Em 20 de agosto de 1972, assumiu a responsabilidade do Sector SI, com sede em Tite e englobando os subsectores de Tite, Jabadá, Nova Sintra e Fulacunda, este até 4 de janeiro de 1973, por transferência para a zona de acção do COP 7. Em 19 de junho de 1973, por extinção do COP 7, a zona de acção do batalhão foi alargada com os subsectores de Fulacunda e Ganjauará.

Desenvolveu intensa actividade operacional, orientada para a realização de patrulhamentos, emboscadas, reconhecimentos ofensivos e acções sobre os grupos inimigos instalados na área, além de garantir a segurança e protecção das populações e a reacção contra flagelações efectuadas sobre os aquartelamentos e aldeamentos.

Dentre o material capturado mais significativo destacam-se: 1 metralhadora ligeira, 2 pistolas-metralhadoras, 8 espingardas, 1 lança-granadas foguete e a detecção e levantamento de 38 minas.

Após ter coordenado a desactivação e entrega do subsector de Nova Sintra ao PAIGC, em 17 de julho de 1974, recolheu em 20 de agisto de 1074 a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso, tendo as subunidades dos restantes subsectores assumido a responsabilidade das medidas de desactivação e entrega dos aquartelamentos respectivos: Jabadá (1º Companhia), Nova Sintra (2ª Companhia) e Fulacunda (3ª) Companhia.
 

Relembrando a morte, por acidente com  um dilagrama, no CIM de Bolama, em  10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo  (CCS/BART 652o/72)

 por Carlos Barros (**)


Em Bolama, quando os militares da 2ª CART/BART 6520/72 estavam a fazer a IAO, uma pré –preparação militar para nos ambientar à guerra, a carreira de tiro era o local onde treinávamos com o material de guerra: G3, bazucas, dilagramas, morteiros 60...

Foi um mês [. junho / julho de 1972,] de intenso treino com “fogo real”…

O furriel Barros tinha estado, no quartel,
perto do rio Geba, não longe do destacamento dos dos fuzileiros, com o seu amigo, alferes Carlos [Manuel Moreira de Almeida]  Figueiredo, da CCS [, natural de São Pedro do Sul,] e, numa conversa amena, este tinha-lhe confessado que estava farto da carreira de tiro e que ia pedir ao comandante para o deixar descansar.

O Barros ouviu o seu desabafo do seu amigo e concordou com a ideia do Alferes, seu amigo, porque não era fácil ouvir tanto tiro, tanto rebentamento, durante semanas “a fio”!

No dia seguinte, o pelotão do Barros estava no mato em exercícios militares e vê uma urna a ser transportada numa viatura militar. Perguntou a si mesmo, o que teria acontecido? ...

Naquele momento, uma grande e mortífera cobra passou por ele... O Barros não fez qualquer movimento e ela seguiu o seu caminho…

Em pleno treino, na carreira de tiro, no lançamento de um dilagrama, com defeito de fabrico, uma granada deflagrou-se inesperadamente, e atingiu mortalmente um cabo de outra companhia (talvez de Empada) e o Alferes Figueiredo, ficando os dois irreconhecíveis.

À noite, o Barros e outros camaradas foram jantar num designado Hotel, mas não conseguiram jantar, e os pratos encheram-se de lágrimas de dor!

Perdeu-se um amigo num insólito acidente e  o Barros pensava:

Ao fim de quinze dias de  Guiné, já temos dois mortos!...

Foram noites sem dormir, e foi este o primeiro “banho de tragédia e sofrimento” que ele sentiu.

Meus Deus, dizia ele para os botões do seu camuflado:

 Irei resistir a isto?

Com muita sorte, o pessoal da companhia resistiu em 24 meses e 48 dias de guerra, tendo regressado à Metrópole, no dia 10 de agosto,

 Talvez o dia mais feliz da minha vida!...− exclamou ele.

Carlos Barros

Furriel Miliciano

Guiné 1972/74

Nova Sintra, 26 de junho de 1973 
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28 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21398: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (8): os meus livros de bolso, da RTP, oferecidos pelo MNF, em 25/1/1973, deixei-os a alguns guerrilheiros do PAIGC, em 17/7/1974... E comigo trouxe "farrapos" da nossa bandeira, e ainda os guardo, como símbolo do nosso sofrimento e coragem

19 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21371: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (7): os craques da bola...

14 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21358: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (6): a evaporação das cervejas

12 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21349: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (5): A visita da Cilinha ao destacamento de Nova Sintra, em 1973...

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