1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Chegámos finalmente às férias do Natal, é a primeira viagem da amorosa belga para conhecer a identidade do seu Paulo Guilherme, a Lisboa que ele ama, é daqui nado e criado, percorre o burgo sempre que pode em todas as direções, escolheu um menu feito de diferentes aperitivos, inevitavelmente tinha de começar pelo Parque das Nações, era a primeira grande transformação do princípio do século XXI. Correspondeu, nos primeiros dias, ao que ela ansiava ver, foi o caso do romantismo de Sintra, tudo epidérmico, era inevitável. Percorreram a Baixa, começaram na Igreja de São Roque e desceram toda a Rua do Alecrim até ao Cais do Sodré, nem parecem dois cinquentões, andam de mão dada, beijam-se como dois adolescentes, só que ela anda derreada com a vivacidade do seu amoroso, tem que o refrear. E agora aproxima-se o Natal que ela vai descrever com um entusiasmo inusitado, nunca vira coisa igual, toda aquela gente horas à mesa a mordiscar fritos, a rir e a contar histórias. Como iremos ver.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (26): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Noémie adorable, parto amanhã para Bruxelas e espero ver-te muito em breve, começo a trabalhar dentro de dois dias, viajo para uma conferência em Copenhaga, regresso pelo Luxemburgo e bem gostaria de passar um bocadinho o fim-de-semana contigo para te dar conta das maravilhosas férias de Natal que passei com o Paulo, em Lisboa e arredores. Cheguei a meio da manhã, queria aproveitar o máximo possível os cerca de dez dias na companhia de quem tanto amo. O Paulo avisara-me do frio de Natal, para nós aquele frio é mais do que suportável, mas estive o cuidado de vir agasalhada. Ele sugeriu que seguíssemos para o primeiro itinerário, para eu ver a grande mudança que se operara na cidade com a exposição de 1998, comemorativa da viagem de Vasco da Gama. Chegámos a um local chamado Parque das Nações, uma zona da Lisboa Oriental que foi completamente remodelada para albergar os pavilhões da exposição numa lógica bem engenhosa de reaproveitar aqueles espaços para equipamentos, tudo circundado por edifícios com escritórios e um vasto parque habitacional. Arrumado o carro, seguimos a pé, mostrou-me a nova estação de metro, atravessámos depois um centro comercial e entrámos no parque, logo me impressionou uma escultura em ferro, Paulo disse-me tratar-se de uma obra relevante de um dos mais originais escultores portugueses, mostro aqui a imagem. Passeámos à beira Tejo, sempre com um zumbido do teleférico no ar, pedi para não ir, tenho vertigens, mas vi adultos e crianças com um ar muito feliz da viagem aérea. Impressionou-me muito todo aquele percurso à beira-mar, aproximou-se a hora do almoço e numa zona um tanto internacional de restaurantes o Paulo sugeriu que comêssemos comida portuguesa, eram pastéis de bacalhau com arroz de feijão, que delícia, depois pediu uma sobremesa a que chamou farófias, explicou-me que se trata de um aproveitamento de claras, faz parte de um receituário conventual muito antigo. E bebemos o café português, não é como o nosso, nós preferimos o gosto predominante do arábica, eles misturam robusta com arábica, olha, é muito saboroso.
Talvez porque eu tenha insistido muito em conhecer a azulejaria portuguesa, fiquei uma vez assombrada quando visitei em 1991, no âmbito da Europália Portugal, uma exposição de azulejos e onde se dizia que o país tem mais azulejos dos que há em todo o mundo, depois quando percorri Lisboa antiga verifiquei que usavam muito azulejo e nas casas apalaçadas é impressionante o uso do azulejo, como nas igrejas, o Paulo, dizia, que fez questão de antes de irmos para casa me mostrar o Convento da Madre de Deus onde está sediado o Museu Nacional do Azulejo. Saímos do Parque das Nações e caminhámos pela Lisboa Oriental já a caminho do centro, aí o casario é antiquado, muito envelhecido e muito maltratado, o Paulo comentava que houvera casas senhoriais famosas, houvesse circunstância e iríamos visitar o palácio do Duque de Lafões, para eu conhecer como vivia a velha aristocracia portuguesa. Chegados ao convento, dado o adiantado da hora o Paulo insistiu em visitarmos só a azulejaria, mas observando que a igreja era de uma opulência inacreditável. Tu não podes imaginar a variedade de azulejos, os portugueses não escondem a influência hispano-árabe e muito menos a importação de elementos flamengos, eu ia reconhecendo motivos típicos do nosso país, o Paulo confirmava que nas trocas comerciais entrava a azulejaria, aliás ele queria mostrar-me azulejos de Delft, parece que há muitos em Portugal.
E seguimos para casa do Paulo, situada num local que se chama Avenidas Novas, ele deu-lhe o nome de Bairro das Estacas, explicou-me porquê Estacas, grande parte daqueles prédios parecem assentar em pilares cilíndricos, um bairro curioso, rodeado de comércio local, até com um pequeno mercado , espaços ajardinados entre os prédios, tudo muito perto de uma linha de caminho-de-ferro.
Quando entramos, eu confesso que mesmo conhecendo um pouco os gostos do Paulo, tive sérias dificuldades com todas aquelas paredes com quadros ao longo da parede, lembrou-me os gabinetes de estampas do século XVIII, quadros expostos de cima a baixo, e o Paulo a fazer questão de me mostrar o que comprara na Bélgica, quer em antiquários quer nas feiras da ladra. O vestíbulo está pejado destes enquadramentos, há uma vitrine completamente cheia de louça portuguesa e também muita louça de outros países, fomos ao escritório, uma estante a abarrotar, com filas de fotografias enquadradas, o Paulo mostrou-me o cadeirão onde faz as suas leituras, rodeado de algumas centenas de CD, o leitor pousado numa bonita mesa Arte-Nova. O mesmo aspeto impressionante no quarto, o Paulo a explicar-me a proveniência das obras, inevitavelmente artistas belgas, franceses e ingleses, dirigiu-se para uma fotografia emoldurada e disse-me que tinha sido um grande amigo seu, penso que fixei bem o nome, Cinatti, quem tirara aquela fotografia em Timor a um régulo, o rosto firme, direi mesmo majestático, de alguém que nos acompanha com os olhos, e Paulo disse-me que gostaria muito de falar dele, como se tinham conhecido em 1967 e como ele tinha sido uma das suas mais prestimosas ajudas durante a guerra da Guiné. E quando falou na guerra da Guiné voltou a recordar-me de que vai agora começar a narrativa daquilo que ele chamou o maior desafio que a guerra lhe suscitara, Missirá fora devorada por um incêndio, era uma corrida contra o tempo, havia que reconstruir o quartel antes da época das chuvas, e isto sem abrandar as suas responsabilidades operacionais. Mas estávamos em férias, a guerra ficaria para depois, é um poderoso incentivo para telefonemas e para envio de pacotes com papéis e fotografias. E observou que ainda temos muita guerra pela frente, o romance vai nos primeiros meses. E beijou-me com imensa ternura, eu sou para ele a sua heroína, o arrimo para a segunda metade do século que ele quer viver por inteiro, proferiu esta frase com imenso ardor, com uma voz quente de paixão. E entregámos os nossos corpos.
Quando me levantei na manhã seguinte, o Paulo já tinha preparado um pequeno-almoço tão a meu gosto, flocos de aveia, sumo de toranja, chá verde e torradas, e um café português, claro. Comemos na varanda com vista para os jardins, a conversa, não sei como nem porquê, deslizou para o romantismo, foi quando o Paulo recordou que gostaria muito que fizéssemos hoje o primeiro passeio a Sintra, o que ele chamou uma aproximação, uma iniciação à atmosfera de um lugar mágico. O que aconteceu.
Íamos numa estrada muito movimentada quando ele me propôs que o passeio começasse num ponto extremo, ele falou em Cabo da Roca, parece tratar-se do ponto mais ocidental do continente europeu, depois passaríamos por um lugar chamado Colares e subiríamos a uma estrada para visitar o Parque de Monserrate, eu iria conhecer um jardim extraordinário, obra de vários séculos, não poderíamos entrar no palácio propriamente dito, que fora propriedade de uma rica família inglesa, por estar em obras, a autarquia encetara os trabalhos, podíamos ver à distância e apreciar como o edifício é espetacular com a influência dos arabismos que os românticos tanto cultivaram. Seduziu-me toda aquela vegetação, espero voltar quando este palácio estiver reabilitado. À saída Paulo disse-me que gostaria de me levar ao Convento dos Capuchos, mas atendendo à hora iríamos almoçar num local chamado Almoçageme, não esqueci o nome do pequeno restaurante familiar, a Mariazinha. Nesse dia não comi bacalhau, comecei por uma sopa de caldo-verde e locupletei-me com costeletas de borrego com batata frita e uma alface ripada. Saímos e voltámos à estrada, senti uma certa sonolência, Paulo parou num parque frondoso e aí fiz uma pequena sesta, eram emoções a mais, quase que não acreditava na dimensão da minha felicidade.
E prosseguimos numa estrada franqueada de plátanos em direção ao Palácio da Pena. O Paulo avisou-me logo que era só para ver de fora uma construção originalíssima, tratava-se de um empreendimento de um príncipe alemão, primo do marido da Rainha Vitória, era um apaixonado por castelos românticos, aproveitou uma ruína de um mosteiro, misturou uma série de estilos e o resultado final, asseguro-te, é deslumbrante, olha para este bilhete-postal e depois conversaremos.
Desculpa estar a contar-te tanta coisa ao mesmo tempo, a afogar-te com nomes e imagens que certamente não te dizem nada. É para tu sentires o meu entusiasmo. Pedi ao Paulo para voltarmos para casa, já não sou criança, não sei aonde é que este homem vai buscar tanta energia e tanta ocupação.
Vamos ficar agora só com o dia seguinte, uma pálida imagem do centro histórico. Nada de automóvel, tomámos o metro e fomos para o que ele chamou Baixa-Chiado. No caminho, o Paulo foi-me falando numa igreja sumptuosa, com capelas riquíssimas, obra dos Jesuítas, São Roque. Chegados à tal Baixa-Chiado subimos uma rua chamada Misericórdia e visitámos o templo, é esmagador, a magnificência das capelas fala, disse-me o Paulo, daquela época das riquezas brasileiras que davam para comprar uma capela forrada em lápis-lazúli em Roma. Descemos essa mesma Rua da Misericórdia, Paulo disse que o nome daquele lugar era o das Duas Igrejas, de facto há ali duas igrejas, apontou para a estátua de Luís de Camões, e disse-me que íamos descer a rua que ele mais aprecia pela panorâmica que se desfruta, a Rua do Alecrim. O que eu desfrutei, sinceramente, foi da alegria jovial do meu amoroso, entrou em lojas de velharias, de alfarrabistas, casas de azulejos, uma loja de banda-desenhada, eu entrava e saía de todos estes estabelecimentos depois de ter conversado com os vendedores, há de facto um pormenor muito gracioso, que é o rio Tejo ao fundo, descemos até a um lugar chamado Cais do Sodré, já não podia esconder que me doíam as pernas, e o Paulo levou-me a um restaurante chamado Porto de Abrigo, ali comi uma coisa curiosa, um recheio de marisco, ele chamou-lhe vieira, depois sugeriu-me polvo, jamais tinha comido polvo, com batata a murro, expressão dele, um repasto magnífico. Tinha que ser franca, precisava de descansar, mas aceitei ainda passarmos pelo Terreiro do Paço, e aí assombrei-me com a vista do castelo no alto e as iluminações do Natal. Pois é no Natal que te vou falar a seguir, como eles celebram um tanto diferentemente de nós. Com profundo afeto, Annette.
(continua)
Convento da Madre de Deus
Palácio Real no Terreiro do Paço, Museu Nacional do Azulejo
Cabo da Roca
Parque de Monserrate, palácio já reabilitado, aberto em 2010
Palácio da Pena
Igreja de S. Roque, Lisboa
Rua do Alecrim, Lisboa, imagem da época
Panorâmica mais antiga da Rua do Alecrim, com o Tejo enevoado ao fundo
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de outubro de 2020 >
Guiné 61/74 - P21496: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (25): A funda que arremessa para o fundo da memória