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quarta-feira, 25 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26956: Historiografia da presença portuguesa em África (487): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1926, dois documentos a abonar o desejo de bem servir do Governador Velez Caroço (41) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2925:

Queridos amigos,
Andava a mexer e a registar o que mais de significativo seria para destacar do ano de 1927, quando me faltava algo a mencionar da governação de Vellez Caroço. Fui buscar o meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", procurei este ano de 1926 e apercebi-me que o BNU e uma boa parte do comércio exportador dava por paus e pedras quanto às medidas propostas pelo governador para que não faltasse fluidez em cambiais para as transferências do encargo do Governo, pensões dos funcionários, necessidades do comércio importador, insurgiram-se e encaixavam-se a Lisboa, irá começar um contencioso assaz dramático que levará ao governador pedir a demissão, prontamente aceite pelo ministro João Belo e Vellez Caroço despede-se magoadíssimo, diz mesmo que há para ali um sinistro bater de asas dos abutres que pretender exercer a sua ação de rapina. Tenho para mim que devia merecer uma investigação aturada toda esta governação de 5 anos de alguém que, iniludivelmente, mudou a Guiné, ou pelo menos a valorizou e pode escrever à saída que dela saiu com as mãos limpas.

Um abraço de
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1926, dois documentos a abonar o desejo de bem servir do governador Velez Caroço (41)


Mário Beja Santos

Considerei necessário voltar ao último ano de governação de Vellez Caroço, recordado que estava do litígio monumental que existia entre o governador e os parceiros económicos e financeiros, quando estava a preparar o meu livro Os Cronistas Desconhecido do Canal de Geba: O BNU da Guiné, ambos os chefes de delegação do BNU em Bolama e em Bissau criticavam profundamente as cambiais, dirigiam-se ao ministro das Colónias dizendo que a Guiné caminhava para o desastre mais completo. Ora Vellez Caroço dirigiu-se ao ministro das Colónias em 12 de abril apresentando os difíceis problemas das transferências e propondo soluções, como se pode ler:
“Atendendo à grave crise que atravessava a província da Guiné, devido à falta de transferências por parte do BNU, que alegava não ter coberturas para que em troca do escudo guineense a província pudesse satisfazer os seus encargos no estrangeiro e na metrópole, foi o Governo da província obrigado a pôr em execução um diploma, ultimamente tão discutido na imprensa, mas que, incontestavelmente, incalculáveis benefícios trouxe à província da Guiné.

Como grandes são esses benefícios Sr. Ministro, que seria um grave prejuízo para a administração daquela província tal problema não fosse mantido, ou então, substituído por uma outra medida equivalente que cabalmente satisfizesse os fins visados nesse diploma, isto é, garantir ao BNU em cambiais as coberturas necessárias para as transferências dos encargos do Governo, pensões de funcionários e necessidades do comércio importador.
Com a suspensão por parte do BNU das transferências, ficou uma casa comercial da Guiné, a mais importante da província, a Casa António Silva Gouveia, Limitada, a fazer transferências com prémios exagerados, desvalorizando assim o escudo da Guiné a seu talante, o que, necessariamente, importaria dentre em bem pouco tempo o monopólio de toda a exportação da província a favor desta firma. Pouco interessa ao governador da Guiné a forma de processos de comerciar desta ou qualquer outra empresa, mas a Casa Gouveia, estando a fazer operações bancárias, estava fora da lei pretendendo monopolizar a exportação das oleaginosas, esse plano prejudicava os altos interesses da província.

Difícil é avaliar de longe Sr. Ministro, as perniciosas consequências que a execução de um tal plano acarretaria para a Guiné, mas, quem ali vive há perto de 5 anos, com aqueles que ali têm interesses e afanosamente trabalham em explorações industriais, agrícolas e comerciais, e que pelo exercício dos seus cargos e misteres são obrigados a tratar com os indígenas e, portanto, conhecem alguma coisa da sua psicologia e os incentivo imprescindíveis que eles precisam para o trabalho, no qual reside toda a riqueza e em cuja intensificação assenta todo o progresso e desenvolvimento desta nossa rica colónia, não poder ter dúvidas nem hesitar em afirmar que esse monopólio tinha como consequência uma diminuição de trabalho por parte do indígena. Senhora da exportação de oleaginosas, a Casa Gouveia estabeleceria preços mínimos na sua compra ao indígena e estes, imediatamente, afastariam a sua atividade, reduzida simplesmente ao necessário, para a cultura de arroz, milho, feijão, mandioca e outros géneros que bastavam à sua alimentação.”


E, mais adiante:
“Outro perigo há ainda a evitar: é o contrabando para o território francês. A fronteira da Guiné é extensíssima e não há forma económica de obter-se uma fiscalização eficaz. A única forma é a concorrência de preços. Este ano, como no território francês pagavam a mancarra por melhor preço, principalmente no início da campanha, já se fez muito contrabando para lá. O que será amanhã quando a Casa Gouveia, ou qualquer outra, conseguir acabar com a concorrência e puder estabelecer no mercado interno preços a seu talante?”
Não escondendo que o diploma por ele mandado publicar fora alvo de reclamações quer por parte do comércio estrangeiro quer por parte da Casa Gouveia, o governador afirma que o diploma encerra um erro na parte que diz respeito ao depósito de 50% das cambiais dos produtos despachados para a metrópole, alegando que esse erro não traz ilegalidade ao diploma.

E escreve o seguinte:
“Mas, caso assim não fosse, nas mãos do Governo da Metrópole estava a resolução do assunto. Devido, porém, às reclamações que V. Ex.ª tem sido apresentada contra o diploma, uma solução eu venho propor que satisfará por completo os pontos de vista que o Governo da província procura efetivar com o seu diploma, e em coisa alguma irá lesar interesses do comércio exportador, quer estrangeiro quer nacional. Consiste essa solução em o Governo da Metrópole ceder das cambiais provenientes da exportação e reexportação da Guiné e que o Governo cobra, e que serão depositadas no BNU, ficando este obrigado a publicar no Boletim Oficial da Colónia uma conta corrente que sumariamente mostre a aplicação dessas cambiais e onde o Governo e o comércio facilmente possam verificar que 50% das cambiais da Guiné tem uma rigorosa e exclusiva aplicação às suas necessidades de transferência.

Outra solução há mas essa acarretará necessariamente uma maior intensificação nas reclamações do comércio estrangeiro, pois a adotar-se, poderá dizer-se que o diploma que eu promulguei só foi feito para agravar esse comércio, o que, debaixo do ponto de vista internacional e da boa harmonia existente hoje em todo o comércio da Guiné, que muito favorece a nossa política colonial, reputo inconveniente.
Essa outra solução consiste em manter o meu diploma na parte relativa à exportação para os portos estrangeiros e sustentar os produtos destinados aos portos da metrópole, mas sendo, todavia, as cambiais resultantes da reexportação desses últimos produtos, não aproveitados na indústria nacional e enviados a portos estrangeiros, depositados no BNU para servirem de coberturas ao movimento de transferências da Guiné.”

E conclui:
“Eis, Sr. Ministro, o que sobre tão momentoso problema ouso que expor a V. Ex.ª, esperando que as minhas propostas mereçam a esclarecida atenção de V. Ex.ª e que uma rápida solução seja dada para que a província da Guiné prosseguir o seu caminho de civilização e progresso.”


O diploma em referência irá conhecer alterações conforme aparecem publicadas no suplemento do Boletim Oficial, com data de 29 de junho, e igualmente o Boletim Oficial publica alterações propostas em harmonia com o acordo estabelecido entre o Governo central e o governador da Guiné, ouvidas as entidades interessadas que aí tinham a sua representação, haveria discussão destas alterações na sessão do Conselho Legislativo. O comércio exportador continuará a protestar e o BNU a negar financiamentos, será um braço de ferro terrível, os governos sucedem-se, Vellez Caroço dirige-se ao ministro das Colónias João Belo, faz ver a situação desastrosa em que se encontra a Guiné e se não lhe der uma solução pede a demissão. João Belo demite prontamente o governador a 16 de dezembro e a 18 está nomeado um encarregado do Governo, o Capitão António José Pereira Saldanha.

No suplemento publicado em 17 de dezembro, Vellez Caroço dirige-se aos militares de terra e mar o funcionalismo da Guiné em geral:
“Sei que entre alguns de vós tenho inimigos e detratores da minha obra na Guiné; não é agora a ocasião de a discutir; o tempo fará justiça e as nossas mútuas ações serão um dia julgadas com retidão e imparcialidade.
Saindo, porém, da Guiné de consciência e mãos limpas, saberei esquecer as ofensas para só me lembrar daqueles que com lealdade comigo cooperaram no desenvolvimento e engrandecimento desta rica província, joia inestimável e preciosa do nosso vasto domínio colonial.
Faço votos para que o sinistro bater de asas dos abutres e aves agoirentas que, rapaces esvoaçam nos céus da Guiné, se perca no espaço infinito e, lá bem longe dos nossos domínios, vai exercer a sua ação de rapina. Ao sair da Guiné trago mais uma vez, com toda a minha alma, com o coração sangrando, ferido pelas injustiças dos homens: Viva a Pátria! Viva a República Portuguesa!”


Tenente-coronel Vellez Caroço
A primeira central elétrica de Bissau, em 1940
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Nota do editor

Último post da série de 18 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26933: Historiografia da presença portuguesa em África (486): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, de 1925 a 1926, é o fim da era do governador Vellez Caroço (40) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26875: Notas de leitura (1804): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Foi neste seu primeiro livro que António Duarte Silva vislumbrou o que havia de inédito na estratégia congeminada por Amílcar Cabral para sair do impasse da luta armada graças à declaração unilateral de independência, que ele analisa em detalhe, conjugando o direito e a política, foi um processo cuja anatomia envolveu o confronto estratégico de Spínola e Cabral, o progressivo isolamento diplomático de Portugal e a credibilização do PAIGC sempre em alta; o autor esmiúça o processo eleitoral da Assembleia Nacional Popular e como se prepararam as reuniões para a independência. No terceiro e último texto, iremos ver a descolonização portuguesa e o reconhecimento da Guiné-Bissau, chamando a atenção para o riquíssimo acervo documental e bibliográfico que o autor nos preparou.

Um abraço do
Mário



A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (2)

Mário Beja Santos


Como se assinalou no texto anterior, o investigador António Duarte Silva encarou esta obra como um roteiro em quatro partes: colonialismo e nacionalismo na Guiné; o que houve de inédito e revolucionário na declaração unilateral da independência, que ocorreu formalmente em 24 de setembro de 1973; que caminhos trilhou a descolonização portuguesa e como a República da Guiné-Bissau nasceu de um conjunto de normas e atos políticos singularíssimos: o direito à autodeterminação previsto na Carta das Nações Unidas, como o PAIGC se fez legitimar não só pela lutar armada mas como um lutador pela independência que tinha território ocupado pelo colonizador; e o caso inédito de que essa declaração unilateral da independência foi acompanhada com prontidão pelo reconhecimento do número maioritário dos Estados pertencentes às Nações Unidas e como pelo 25 de Abril, se chegou ao reconhecimento português e à admissão da Guiné-Bissau na ONU.

O autor enfoca o tempo e o modo da descolonização portuguesa, como se procurou a negociação com o Governo português para chegar à autodeterminação, sem qualquer êxito, e também como o pensamento de Cabral era consistente na definição do que devia ser a soberania e poder constituinte: idealizou uma assembleia que votasse a independência, gerou empatia no ONU, a Assembleia Nacional Popular começou por aprovar a independência, depois a Constituição e designou os titulares dos outros órgãos centrais do Estado. Há aqui um dos pontos capitais da análise que o autor faz à formação da Guiné-Bissau enquanto Estado africano.

Ele diz expressamente:
“O Estado, em África, resulta de um transplante e não só a evolução das sociedades e dos sistemas político-jurídicos africanos profundamente marcada pelo fenómeno colonial como a sociedade pós-colonial foi pré-definida de um modo decisivo através do princípio da territorialidade, da imposição do sistema normativo ocidental e da mundialização do sistema inter-estatal. De facto, os Estados africanos, sobretudo da África negra, corresponderam a uma repetição geral do Estado moderno. A mundialização do Estado moderno constituiu um dos traços dominantes do nosso tempo e acelerou-se no decurso dos últimos decénios. O Estado africano, cuja existência é anterior à de uma nação sobre a qual se possa fundar, tem de indo construindo a sua própria nação. Enquanto procede à construção nacional, o Estado resume-se à mera soma de aparelhos administrativos, que procuram separar-se da sociedade civil, já que a sociedade civil não permite ainda distinguir a função do órgão e o órgão do seu titular. A grande maior dos Estados africanos imitou formalmente o Estado metropolitano. Acresce que a receção do modelo estadual europeu foi essencialmente organizacional, pois nem o espírito democrático foi assimilado, nem o Estado africano, precisamente por vir de fora e ser imposto de cima, tem a contextura do Estado moderno.”

E daí a observação que o autor faz das particularidades da Guiné-Bissau, continuo a pensar que se trata de uma apreciação que nenhum investigador da problemática guineense devia ignorar. E, logo de seguida, o autor procede a uma síntese de como a Guiné fez parte do império colonial português, é uma figura política e jurídica surgida a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a presença portuguesa na região foi sempre muito mitigada, a sua colonização assentou no trabalho forçado, no imposto de capitação e na exportação comercial – aí tiveram um papel de capital a chamada Casa Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, esta ligada ao Banco Nacional Ultramarino.

Dado o contexto, o autor muda de campo de observação para todo o histórico da declaração de independência, o que remete para uma síntese do direito colonial, do que se passou no teatro de operações, como foi evoluindo o envolvimento internacional e a ação diplomática de Amílcar Cabral, a importância que teve em termos políticos internacionais, a visita de uma missão especial da ONU no início de abril de 1972 a alguns pontos do Sul da Guiné, como Cabral pôde potenciar as conclusões da missão e o beneplácito recebido pela Assembleia Geral da ONU; temos igualmente um quadro das tentativas de negociação. Cabral congeminara uma estratégia para a declaração unilateral da independência: a convocação de eleições nas chamadas zonas libertadas, elaborou um documento intitulado Bases para a criação da 1.ª Assembleia Nacional Popular na Guiné, estava a ganhar forma o cenário para a independência a que Cabral fisicamente não assistiu, na última mensagem de Ano Novo, proferida no mês em que foi assassinado, ele refere-se expressamente à eleição e reunião da Assembleia Nacional Popular, dizendo que a Guiné-Bissau até aí é uma colónia dispondo de um movimento de libertação e cujo povo libertou durante anos de luta armada parte do seu território nacional, passaria a ser, aprovada a independência, um país dispondo do seu Estado e que tem uma parte do seu território nacional ocupada por forças armadas estrangeiras.

Entre o assassinato de Cabral e a declaração unilateral da independência, e indo um pouco atrás, houvera a ofensiva portuguesa no Sul, a reocupação do Cantanhez, a chamada Operação Grande Empresa, que inicialmente deixou o PAIGC em grande confusão; seguem-se os acontecimentos de março e abril, a chegada dos mísseis terra-ar e de duas grandes operações montadas para cercar Guidage e Guilege, com resultados devastadores. Spínola envia para Lisboa um relatório atemorizador: “Aproximamo-nos, cada vez mais, da contingência do colapso militar.”

De 18 a 22 de julho, próximo de Madina do Boé, realiza-se o segundo congresso do PAIGC; Aristides Pereira é eleito como Secretário-Geral e Luís Cabral como Secretário-Geral Adjunto; reveem-se os estatutos do PAIGC e convoca-se a Assembleia Nacional Popular com o fim de proclamar a independência. O lugar inicialmente escolhido era Balana, no Sul, por razões de segurança e por ter havido rotura de ligações diplomáticas entre o Senegal e a Guiné-Conacri, escolheu-se um ponto de Boé, e não seriam ainda 9 horas de 24 de setembro quando a dita assembleia proclamou o Estado da Guiné-Bissau.
O autor disseca o teor da Proclamação do Estado, analisa a Constituição do Boé e extrai uma breve conclusão:
“Das muitas considerações que esta Constituição pode suscitar, destaca-se que a Guiné-Bissau foi criada como Estado constitucional, cuja Lei Fundamental não foi uma mera técnica de descolonização, antes o produto de uma luta de libertação nacional ampla e duradoura, e pretendia ser o estatuto de um Estado-Nação combinando os (dominantes) modelos europeus com soluções próprias da sua história, em especial, da descolonização da Guiné-Bissau (e, também, de Cabo Verde).”


(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 26 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26849: Notas de leitura (1801): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26864: Notas de leitura (1803): "Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940)", por Leonor Pires Martins; Edições 70, 2012 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26651: Notas de leitura (1786): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Na Terra do Novo Deus: O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
No virar do século, as autoridades de Lisboa, com os cofres exaustos, e bem mais preocupadas com a ocupação de Angola e Moçambique, não encontravam solução expedita para deletar a presença portuguesa na Guiné, tinha havido o fim da escravatura, a administração limitava-se a algumas praças e presídios e a uma paupérrima capital em Bolama. Surgiram então algumas hipóteses de entregar a colónia a companhias de comércio, é nesse contexto que o Marquês de Liveri convida o general Henrique Dias de Carvalho a ir até à Guiné e emitir um parecer quanto às potencialidades da colónia. O general socorreu-se da documentação mais recente, confiou num conjunto de opiniões sobre as populações da Guiné, há que admitir que a etnografia e a etnologia ainda não tinham dado passos fundamentados, daí ele ter tecido considerações que correspondiam, em muitos casos, a pouca realidade no campo das etnias, quanto aos usos e costumes e até aos espaços ocupados por todas estas populações. Revela-se profundamente otimista quanto ao valor da terra e com uma exaltação contida diz a quem o lê que poderá estar ali um novo Brasil. Estes apontamentos do general Dias de Carvalho têm seguramente o valor histórico de versarem um incitamento ao presumível investidor, que não chegou a ser. Insista-se que em Lisboa não se sabia muito bem o que fazer da Guiné; mas naquele tempo estava em desenvolvimento uma cultura que iria dar os seus frutos: o amendoim.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Na Terra do Novo Deus:
O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 2


Mário Beja Santos

Continuando a leitura deste ensaio de Philip Havik sobre apontamentos do general Dias de Carvalho referentes à sua estadia na Guiné no virar do século, ele vai tecer um acervo de considerações sobre o quadro étnico, viu-se que procurou olhares e considerações de outros viajantes e estudiosos, mas muito do que escreve não era nem exatamente assim nem os números dados e até a leitura etnológica e antropológica carece de rigor. Comentário meu, veja-se o que ele diz de Fulas.

Os Fulas vieram do interior e encontraram já estabelecidos na Guiné os Mandingas e os Biafadas; têm origem em pastores e nómadas que foram avançando no Sudão, em direção ao litoral. O Fula é de cor, vermelho acobreado, lábios delgados, dentes verticais, cabelos lisos que usam entrançados, feições inteligentes, extremidades finas, formas de corpo esbeltas e corpulência mediana. O Fula usa vestuário idêntico ao dos Mandingas, cabaia flutuante, bubu, calção em forma de saco apertado nos joelhos e cintura; usa geralmente sandálias fabricadas pelos Mandingas; os homens ocupam-se apenas dos rebanhos, deixando aos escravos de outras raças o amanho das terras; atualmente no Forreá já se entregam à colheita da borracha. O general, sabe-se lá com base em quê diz que os Fulas tendem a desaparecer por inúmeras miscigenações e doenças venéreas. Dividem-se em Forros e Pretos. Os Fulas-Pretos consideram os Forros uma raça inferior e ocupam a zona mais interessante do Forreá entre Buba e o rio Cogon; juntaram-se estas duas raças para se libertarem do jugo dos Mandingas e dos Biafadas. Os Fulas-Forros têm, como riqueza principal, o gado vacum; reconhecem a soberania dos Almamis de Timbo, chefes supremos do Futa Djalon.

Nos seus apontamentos, Dias de Carvalho destaca os Bijagós, nomeadamente o começo da plantação de amendoim sobretudo em Bolama e nas Galinhas. “A ênfase dada às ilhas na introdução desta cultura demonstra a mesma consciência histórica da sua relevância para a transição do comércio de bens e tráfico de escravos para uma economia de plantação.” Refere a parceria entre governadores e negociantes da época, procurou nos Bijagós obter uma concessão para o Marquês de Liveri, procurava-se estabelecer uma feitoria agrícola e comercial na ilha de Orango.

Revelou interesse pelo feiticismo, deu o exemplo de um curioso fenómeno a que assistiu, tratava-se da chegada do Deus Branco à Guiné, percorreu vários chãos em 1898 e depois desvaneceu-se. A passagem deste Deus Branco serviu-lhe para ilustrar a natureza supersticiosa das sociedades africanas.

Bem importante são as conclusões que Havik estabelece para a leitura dos apontamentos de Dias de Carvalho:
“Até aos anos 90 de oitocentos, a Guiné, que é na altura composta por aproximadamente 70 km2 de algumas ‘tiras de terra’, aparece como uma colónia fantasma, por causa da falta de soberania efetiva portuguesa sobre o território dentro das fronteiras delineadas no tratado com a França em 1886. Quando da chegada de Dias de Carvalho à Guiné, o poder sobre a maior parte da colónia ainda é exercido pelos povos nativos, que só cederam perante intensas campanhas militares na parte continental do território em 1915.
O Ultimatum Britânico fez com que a Coroa, novamente, apostou nas colónias para resgatar a metrópole da crise financeira e económica em que se encontrava. Para tal, facultou grandes concessões a companhias estrangeiras e portuguesas para facilitar a exploração agrícola e comercial da Guiné, e valorizar os seus recursos naturais e humanos. Começando com a concessão dos ‘terrenos públicos baldios’ aos Condes Buttler em 1892 e dos ‘terrenos incultos ou desocupados’ ao Mateus Augusto Ribeiro de Sampaio e o Conde Valle Flôr em 1894, que essencialmente incluíram a maior parte do então distrito, a Guiné ornou-se um alvo apetecível para a ‘exploração agrícola, comercial e industrial’.
A constituição da Companhia de Comércio e de Exploração da Guiné, criada nos anos 90 de oitocentos para mais tarde ser comprada por capitais belgas e que Dias de Carvalho é convidado integrar, visava também obter através de compra terrenos para desenvolver a agricultura de renda na Guiné. Esta política das grandes concessões a companhias estrangeiras não era, no entanto, nada pacífica entre os demais ponteiros e comerciantes no território, que protestaram veementemente contra a concessão que por incluir a maior parte dos terrenos férteis no litoral, era vista como um ameaça.”


As casas de comércio estrangeiras eram o sustentáculo da província, o único comerciante de origem portuguesa era António da Silva Gouveia, a Casa Gouveia, mais tarde integrada na CUF. O pequeno comércio era dominado por cabo-verdianos. Vê-se que é um observador sem ilusões da nossa ténue presença, cita mesmo um dos governadores da Guiné quando realça que “é vergonha confessar que desde séculos a nossa ação se não estende além dos muros que circundam a povoação de Bissau”. Havik recorda que foi precisamente na década e meia imediatamente anterior à chegada de Dias de Carvalho à Guiné que os governantes começaram a olhar para a maneira como se podia tirar proveito dos seus amplos recursos naturais. Não surpreende, pois, que estivesse centrado nos seus relatórios enviados a Lisboa sobre o que a terra da Guiné podia dar, como podia ser ocupada e valorizada. Adverte que era preciso aumentar a força militar para que houvesse uma boa administração, ou seja, impunha-se a tropa para garantir ocupação, e é bastante auspicioso do que o solo guineense poderá dar. Num arrobo contido, fala mesmo da Guiné como o novo Brasil. E é bastante temperado, no fundo comprova o seu tato político, ao fazer duras críticas e observações impiedosas à administração colonial e à gestão dos recursos pelos colonos e comerciantes, equilibrando nas suas apreciações ao dar uma vibrante cor local e despertar a atenção de quem o lê para a chamada Babel Negra, os tais apontamentos que provavelmente considerava fiéis sobre etnografia e etnologia, o que comprovadamente não era verdade.

Igreja de Nossa Senhora da Natividade, Cacheu. Constitui a primeira igreja portuguesa erigida na costa ocidental africana.
Azulejos de Bissau
Pormenor do rio Cacheu
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Notas do editor:

Vd. post de 28 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26626: Notas de leitura (1784): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Na Terra do Novo Deus: O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 1 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 31 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26632: Notas de leitura (1785): "Futuros Criativos"; edição da Associação para a Cooperação Entre os Povos, Fundação Portugal-África e Instituto Camões, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26461: As nossas geografias emocionais (40): A Casa Gouveia e o Café Bento num conhecido postal da época, da coleção do Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74)




Guiné > Bissau > s/d (c. anos 60) > Sem legenda >  Av da República (hoje, Av Amílcar Cabral) >  Ao fundo no início da avenida, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau (em segundo plano)...  

No final da avenida, tínhamos a Casa Gouveia, à esquerda, em primeiro plano, com a esplanada do Café Bento à direita (e contigua à  sede da Administração Civil: deswte edifíci, só se vê praticamente o telhado, acima do arvoredo)

 (Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 -Telef. 329775, Lisboa). Colecção: Agostinho Gaspar  (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74). 

Edição (e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).


1. Mais umas "vistas" que os ajudam a localizar melhor a famosa esplanada do Café Bento / 5ª Rep (*). Quem nunca lá foi, não pode dizer que esteve na Guiné (**).

Depois,  tudo  o vento (da História) levou... 

A Casa Gouveia passou a Armazém do Povo e o Café Bento fechou por falta de cerveja, de "apanhados do clima" (que eram os clientes e bebedores de cerveja) e, claro, da matéria-prima (que era a guerra) com que se faziam combatentes, da frente e da retaguarda, heróis, cobardes, coirões,  espiões, pides,"turras",  bufos,  etc.  (Logo ali ao lado, era a Amura, a sede do QG/CCFAG, com os seus centenários poilões.)

A 5ª Rep era a "fábrica de boatos" da guerra... Também tinha como em Saigão, "djubis" que engraxavam as botas das tropa...Nunca lá puseram, felizmente, nenhum engenho explosivo...  

No final da guerra, sim, haverá um atentado terrorista  contra o Café Ronda (café e pensáo, uma espelunca), em 26 de fevereiro de 1974. E foi da responsabilidade do PAIGC, que quis mostrar, no 1º aniversário da morte de Amílcar Cabral, que podia atingir alvos urbanos e civis no coração da capital... 

Felizmente que a incursão pela "guerrilha urbana" ficou por ali...mas foi o suficiente para causar algum alarme entre os militares e suas famílias, que viviam em Bissau... Provocou um princípio de debandada... (Resta saber se Amílcar Cabral, se fosse vivo, aprovaria este tipo de escalada da guerra, com recurso a atentados cegos, causando vítimas inocentes entre a população civil.)

O Cafe Ronda situava-se também na Av da República, um pouco mais abaixo do cinema UDIB e do lado contrário ao deste,

Quem disse que a Guiné foi o nosso Vietname ?... Era uma das bocas com que se "emprenhavam os ouvidos aos piriquitos" quando chegavam esbaforidos e sequiosos a Bissau... (LG)

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Notas do editor:

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26459: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (53): O antigo Café Bento já não é do meu tempo, e foi vítima do "bota-abaixo"...Foi remodelado e até 2023 estave lá instalada a delegação da RTP África







Guiné - Bissau > Bissau > 2 de fevereiro de 2025 > Aqui foi o local do antigo Café Bento / 5ª Rep > Confluência da Av Amílcar Cabral com a Rua António Nbana 


Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2025. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Patrício Ribeiro, nosso amigo e camarada (foi fuzileiro em Angola, 1969/72), histórico membro da Tabanca Grande, nosso "embaixador em Bissau",  cicerone, autor da série "Bom dia desde Bissau"; fundador da empresa Impar Lda; vive na Guiné-Bissau há 4 dezenas de anos; tem mais de 180 referências no blogue.


1. Mensagem do Patrício Ribeiro (*), com data de domingo, 2,   por volta das 23h30:


Café Bento, não conheci a funcionar.
Assisti às obras para ser o restaurante Nmetchi
t (?)... Pelo Fernando Barata de aquando da construção do Hotel em Cacheu.

Depois foi entregue a um antigo presidente, foi alugado á RTP África,  até há pouco mais de um ano. 
De onde retirei parte dos equipamentos, para o novo edifício da Delegação da RTP no Chão de Papel.

Matennhas. Patrício

2. Comentário do editor LG:

Centenas, milhares de camaradas nossos passaram pelo Café Bento , ao longo da guerra (!)...Não há uma única foto do raio da esplanada da famosa 5ª Rep, com a malta na esplanda em primeiro plano!... Toda a gente se gaba de lá ter passado e transpirado (e alguns, "conspirado"), mas ninguém ficou com um "recuerdo", a não ser alguma foto de grupo, tirada na esplanada ou  no interior... Aliás, o mesmo se passou com outros lugares do roteiro da "noite" de Bissau: cervejaria Solmar, resturante Pelicano, pastelaria Império, restaurante Solar dos 10, boite Chez Toi... 

Perdão: o Carlos Silva tem duas ou três fotos da zona na sua página do Facebook, que, com a devida vénia, iremos republicar... (O Café Bento ficava em frente à Casa Gouveia...Para a malta do nosso tempo, a Av da República, larga e comprida, ia do palácio do Governador até à 5ª Rep, a "civilização" acabava ali.)

Temos dezena e meia de referências ao Café Bento. Obrigado, Patrício, és o melhor cicerone de Bissau e da Guiné-Bissau toda. Aproveito para (re)publicar uma foto da Av Amílcar Cabral, renascida como a Fénix. Surpreendente, devo-te dizer. (A seta a amarelo sinaliza o antigo edifício do Café Bento.




Guiné-Bissau > Bissau > Av Amílcar Cabral (até 1975, Av da República) > Até dá gosto lá voltar e andar a pé, desde a Praça dos Heróis da Independência até à avenida marginal (3 de Agosto), e o cais do Pijiguiti (ou Pidjiguiti, ou Pindjiguiti, ou Pindinguiti...)   A foto, usada aqui com a devida vénia,  é da Forbes - África Lusófona > Kadidja Pinto Monteiro > 24 Janeiro, 2024 17:38 >  Inaugurada Av. Amílcar Lopes Cabral na Guiné-Bissau   (Observ.: A Forbes Portugal é uma publicação da Emerald Europe, Lda, publicada sob o acordo de licenciamento com a Forbes Media LLC. “Forbes” é uma marca usada sob a licença da Forbes LLC.)
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26454: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (52): A antiga Cervejaria Solmar, na Av Domingos Ramos, perto do mercado novo e da Segurança Social

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25163: Notas de leitura (1666): "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões; Empresa Nacional de Publicidade, 1966 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Já aqui estavam referenciados alguns apóstolos da hagiografia jornalística, caso de José Manuel Pintasilgo, Horácio Caio, Dutra Faria, Amândio César. Inesperadamente, surgiu-me este trabalho de Martinho Simões, era inevitável que o trouxesse ao vosso conhecimento. Andou muito de quartel em quartel, graças à DO. Nunca se fala em bombardeamentos, nos nossos mortos e feridos, não há descrição de um aquartelamento, as conversas ficam circunscritas aos oficiais, dá como inteiramente fidedignos os comentários de quem lhe faz os briefings; não há quartéis do PAIGC dentro do território, são sempre bandoleiros que batem e fogem para o Senegal ou República da Guiné; Amílcar Cabral é um fantoche do comunismo, um traidor e um renegado, tem sofrido tanta deceção e repúdio das populações que é cada vez mais difícil recrutar gente para o terrorismo. É mais uma relíquia para juntar às outras. E a sua proposta para a existência de correspondentes de guerra não foi levada a sério.

Um abraço do
Mário



Martinho Simões, enviado especial do DN na Guiné, 1965

Mário Beja Santos

Sob a forma de livro, com o título "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões, Empresa Nacional de Publicidade, 1966, temos agora acesso às reportagens do enviado especial do DN a Moçambique, Angola e Guiné, em 1965, todas elas publicadas no jornal Diário da Avenida da Liberdade.

 Naturalmente que é uma obra apologética, combatemos terroristas, bandidos que têm bases perto das fronteiras das nossas colónias, felizmente que eles têm pouquíssimo apoio das populações que preferem a soberania portuguesa. Desconhecia inteiramente esta obra, faz todo o sentido aqui se deixar do seu conteúdo as ideias principais. Tinham dito a Martinho Simões (e ele reconhece que não passava de boato malévolo) que as populações guineenses viviam apavoradas; que os nossos soldados não se atreviam a sair dos quartéis; que os terroristas se não eram os senhores da guerra, tomavam, contudo, iniciativas que traziam a marca da confiança que nasce da superioridade; e que uma parte da província caíra em poder do inimigo. Ora a verdade desfaz o boato e a verdade disseram-lhe oficiais com quem contatou logo à chegada, mesmo o general Arnaldo Schultz. Não teve quaisquer restrições no seu trabalho, e apresenta o leitor a Guiné, a superfície, as etnias, a quase total lealdade a Portugal. Seja como for, a luta era dura e cruel, estes comunistas às ordens de Moscovo procuravam metodicamente a subversão.

Alude à História da Guiné, não deixa de se assombrar com a mistura de povos, refere o portuguesismo dos comerciantes da Guiné depois de nos dizer que os nativos eram os donos de todo o território da Guiné. Não sei onde é que ele foi buscar a convicção de que Barbosas & Comandita foi a primeira firma a hastear a bandeira nacional em território guineense, em 1920 já António da Silva Gouveia tinha empresa; e refere as obras sociais de grande significado de Barbosas & Comandita, da Casa Gouveia e da Sociedade Comercial Ultramarina; Martinho Simões esteve no Ilhéu do Rei e pôde apreciar o centro industrial da Casa Gouveia. Tece louvores ao trabalho do Movimento Nacional Feminino na Guiné, à sua importante atividade de assistência à família, lembranças aos militares, o seu serviço de contencioso, a sua intensa atividade em apoio das subvenções e pensões.

Vai de DO até perto da fronteira, nunca ficaremos a saber qual e onde; acompanhado pelo Tenente-coronel Rebelo de Andrade percorreu toda a linha da fronteira, desde a ponta Norte ao extremo Sul – o Cantanhez e a ilha do Como incluídos. 

“Posso acrescentar que passei algumas horas num posto, a meia dúzia de metros de terras da República da Guiné. Ao longe, os pobres palhaços de Amílcar Cabral (não resisto a nomear, desde já, o traidor) mantêm uma expetativa ansiosa, hesitantes entre as ordens dos seus chefes e o amor à pele que, mau grado e promessas discursatas, constituem um bem que lhes custa perder.” 

E avalia o potencial inimigo: 

“Os bandoleiros são cobardes. Vêm pela calada da noite, lançam os engenhos de morte que os comunistas lhes oferecem em abundância e fogem para os seus acampamentos centralizados nos países vizinhos”.

Visita o Comando da Defesa Marítima da Guiné, visita pela mão do Comodoro Ferrer Caeiro, reunião elucidativa, ouviu relatórios e explicações, viu mapas, examinou provas concretas e fez perguntas, recebeu respostas objetivas. E visitou as oficinas navais, em franco desenvolvimento. Esteve na base aérea, pôde avaliar o trabalho extraordinário na recolha de feridos, no transporte e ligação de militares e civis, em reconhecimentos e em missões táticas. Estranhamente, nem uma palavra sobre os bombardeamentos. Visitou o Batalhão da Intendência na Fortaleza de São José da Amura, viu o seu trabalho ciclópico para que os alimentos e iguarias chegassem a todos os pontos da Guiné para os festejos do Natal. Ficou surpreendido com o funcionamento do hospital militar, dá conta das camas, das consultas, das intervenções cirúrgicas. Apreciou o programa radiofónico das Forças Armadas, emocionou-se a valer quando viu um artigo do dr. Augusto de Castro, então diretor do DN, lido aos microfones da emissora provincial, em português, em crioulo e fula. Encontrou-se em Bula com o Tenente-coronel Henrique Calado, glória do hipismo nacional.

E veio a história do chefe dos bandoleiros da Guiné, o traidor e ingrato Amílcar Lopes Cabral, conhecido na subversão como Abel Djassi. Quanto lhe pagará o movimento comunista. Faz uma curta digressão sobre a FLING e a UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa) e como o traidor se sobrepôs a todos. Pior do que tudo, Abel Djassi naturalizara-se cidadão da República da Guiné e trabalhara para o Ministério da Agricultura local. Como castigo, o renegado, agora, só dificilmente podia fazer o recompletamento dos seus grupos desfalcados, fez-se amigo dos vietcongs, visita Havana. E ficamos a saber que em Paris há um outro libertador, Fradique Castro, que promete a independência de Cabo Verde e condena o PAIGC. De novo em avião, segue para Cabedu, dá como inteiramente demonstrado que este posto, situado entre o Cantanhez e a Ilha de Como, rechaça as investidas dos bandoleiros. 

“Estive em Cabedu e em Beli. Nos dois postos, os militares não se confinam aos estreitos limites dos quartéis, não se escondem atrás do arame farpado, não vivem amedrontados. De Cabedu e de Beli as patrulhas continuam a sair regularmente, batendo os caminhos e os campos limítrofes, restabelecendo a ordem que a subversão perdurou. O inimigo só de longe em longe aparece, em rápidas e cobardes incursões, para logo regressar às bases de onde veio – na República da Guiné.”

Visita Bolama, sente que a cidade perdeu animação e fulgor. Increpa-se contra o que ele chama o terrorismo branco – os derrotistas, os fabricantes de mentiras, aqueles que, no doce viver da paz, se esquecem dos que estão em guerra, os que entendem ser preferível a renúncia à defesa do património nacional. Lança críticas também ao jornalismo, não percebeu o silêncio da imprensa moçambicana com a guerra feroz que se trava no Norte. Mostra-se favorável ao aparecimento de correspondentes de guerra. 

“Só eles sabem e podem desenvolver e esclarecer as indicações forçosamente sintéticas dos comunicados oficiais, que, aliás, também não são em número suficiente.” 

Agradece a colaboração recebida nas três frentes. E comenta: 

“Apercebi-me do autêntico significado de terrorismo, das implicações de uma luta de guerrilhas, em que o inimigo se dilui e foge ao contato com as forças da ordem, em que os bandidos recusam, sistematicamente, o combate em campo aberto, contentando-se com surtidas eventuais.
Torna-se inevitável, portanto, uma tenaz perseguição, que lhes crie o desassossego, que os desmoralize, que lhes roube a possibilidade de qualquer iniciativa. É uma guerra sem quartel, fluida, por isso mesmo mais demorada e difícil.”

Jornalista Martinho Simões, imagens dos arquivos da RTP
Em Pequim, a preparação do primeiro grupo de revolucionários, vemos de pé, entre outros, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira e Francisco Mendes e de joelhos Nino Vieira, Saturnino da Costa e Rui Djassi
O centro de Bissau em 1966
General Arnaldo Schulz a dirigir a mensagem de Natal de 1966, arquivos da RTP
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25153: Notas de leitura (1665): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (11) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25147: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - XLIV (e última): Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: "O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  A terra de Amílcar Cabral. Foto tirada ainda antes da independência. O edifício da antiga Casa Gouveia, mais tarde  Tribunal Regional de Bafatá; o centro do parque infantil onde estava a estátua do antigo governador Oliveira Muzanty, o 1º ten da marinha (1906-1909), e onde passou a estar depois o busto de Amílcar Cabral; à esquerda do edifício, o célebre e fotogénico pombal, que muito provavelmente pertencia aos armazéns da Casa Gouveia; à direita (não visível na foto, ficava o antigo mercado e a piscina (edifícios coloniais que entraram rapidamente em ruína, tal como a cidadezinha de Bafatá, a "princesa do Geba")... Não sabemos, ainda, com rigor de quem é o autor desta foto nem a data... Mas tudo parece que ainda é da época colonial, a tal ainda se comia arroz em vez de milho para burro (como diz o Amadu)... A viatura automóvel que se vê à frente do edifício da Casa Gouveia não nos parece ser um camião russo GAZ mas uma carrinha de caixa aberta, Mercedes,  da CG (Casa Gouveia). No livro do Amadu Djaló, a foto é atribuída ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e é a última imagem (a petro e branco) do livro (pág. 283).


1.  Últimas páginas (pp. 280/286) das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), reproduzidas a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.,  edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra ,  facultou-nos uma cópia digital. (O Virgínio, com a sua santa paciência e a sua grande generosidade, gastou mais de um ano a ajudar o Amadua a pòr as suas memórias direitinhas em formato word, a pedido da Associação dos Comandos...). 

O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de 120 referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar. As folhas manuscritaas foram entregues ao  Virgínio Briote com a autorização  para as transcrever (e eventualmente publicar no nosso blogue). Desconhecemos o seu conteúdo, mas já incitivámos o nosso coeditor jubilado a fazer um derradeiro esforço para  transcrever, em word, o manuscrito do II volume (que ficou incompleto). E ele prometei-nos que ia começar a fazê-lo, "para a semana"...


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra);

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74);

(xxviii) a CCAÇ 21 está no leste, na região de Gabu, ao serviço do CAOP2, e mais exatamente em Canjufa, quando sabe da notícia do golpe de estado do 25 de Abril em Lisboa; só no dia 27, de manhã, regressa a Bambadinca, onde estava sediada;

(xxix)  ainda antes da extinção da CCAÇ 21 e do  Batalhão de Comandos da Guiné, o Amadu Djaló encontra-se com alguns responsáveis do PAIGC, logpo am maio/junho de 1974: o cabo-verdiano Antero Alfama, em Bambadinca e Xima, e depois na fronteira com o Senergal, com o João da Silva e com o Pedro Nazi...

(xxx) em meia dúzia de páginas pungentes, mas ao mesmo de uma grande serenidade e dignidade, relata o calvário da sua vida de 'pária' (por ter servido no exército dos 'tygas') após a extinção da CCAÇ 21, em agosto de 1974, até ao golpe de estado do 'Nino' Vieira, em 14 de novembro de 1980; publicaremos ainda, posteriormente,  os anexos do livro (pp. 287-299), organizados com a ajuda do Virgínio Briote.


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIV:


Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: " O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Agora, 25 de Abril, nova era. Logo nos dias a seguir, ainda em Abril, havia um homem, que sempre que me via vinha falar comigo. Um outro homem tinha-lhe dito para me avisar que tinha ouvido dizer que eu ia ser morto pelo PAIGC. E que,  se eu quisesse fugir para o Senegal, ele tinha francos para me dar. E insistiu que várias pessoas lhe tinham dito que eu ia ser morto. Todos os Comandos vão ser mortos, mesmo os antigos, dizia esse tal homem.

Um dia ouvi chamar pelo meu nome.

 −  Amadu, passa ali na minha casa.

Fui a casa dele. Quando entrei, a primeira coisa que o homem fez foi fechar a porta da rua. Era perigoso falar connosco.

 −  Olha, eu sou fulano, não tenho nada com política da Guiné, mas tu, Amadu,  és meu amigo há muito tempo. Se precisares de sair da Guiné, conta comigo.

Respondi-lhe que ia pensar, que se fugisse quem ia ficar a tomar conta da família, a minha mãe estava muito velha, as minhas mulheres podiam ir para qualquer lado, ir para casa dos seus pais ou voltar a casar, agora os meus filhos, o que ia ser deles? 

E disse que preferia ficar aqui, na Guiné, até ao dia em que me prendessem e me matassem. Nessa altura a minha família ficava a saber. Se eu fugisse, ninguém sabia o que me tinha acontecido.

Eu não queria morrer, como veio a acontecer a companheiros meus, sem a minha família saber onde estava, se tinha fugido ou sido morto.

− Eu não vou fugir, mas muito obrigado, foi a minha resposta.

Antes, as pessoas procuravam-nos para nos conhecerem melhor, para serem nossos amigos.

Depois de 25 de Abril e até 20 de Agosto de 1974, quando entregámos as armas, o comportamento das pessoas mudou, passou a ser diferente. Ninguém queria ser nosso amigo, nem acompanhar os comandos. Agora, a maioria eram nossos inimigos, e outros, a quem antes tínhamos feito favores, começaram a prender as pessoas, Comandos ou não.

Antes de 11 de Março de 1975, foram mortos o tenente Bacar Djassi, o tenente Jamanca, o alferes João Uloma e o 1º sargento Lalo Baio[1], todos Comandos.

Foi uma era muito difícil para todos os que estiveram com os brancos. Poucos falavam connosco, éramos marginalizados completamente pela gente que, antes, estava à nossa protecção e que, depois, passaram a ser os nossos maiores inimigos.

Foi também uma grande experiência, que ajudou quem sobreviveu a viver tranquilo para o resto da vida.

O povo era falso, não podíamos ter confiança em ninguém. O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso.

Durante esses onze anos, de 1974 a 1985, eu não podia falar do que passei, em nenhum lado da terra onde nasci e cresci. Passei a ser insultado nas reuniões e obrigado a bater palmas aos insultos que me faziam.

Diziam na minha cara que, no dia 22 de Novembro de 1970, na ida a Conacri, os portugueses saltaram os seus cães com dois pés, isto é, nós. 

Chamavam-me "cão" e eu tinha que aplaudir. Suportei tudo, bati-lhes palmas até, aceitei tudo o que me disseram. Nada era mal, tudo parecia ser bom.

Desses tempos, em Bafatá, pouco depois de março de 1975, fui assistir ao funeral de um vizinho. Quando cheguei ao local, estava lá muita gente. Cumprimentei as pessoas, algumas responderam, outras não. Notei que um presente fez um gesto com a cabeça para um militar do PAIGC, que não me conhecia.

O militar deu a volta
 − para outro lado e mandou um miúdo chamar-me. Chegou junto de mim e disse:

 − Tio, um militar mandou chamar-te.

Segui o menino até ao militar do PAIGC. Dois militares, que estavam numa varanda com armas nas mãos, deram-me voz de prisão. Um à esquerda e outro à direita, conduziram-me em direcção ao quartel, onde era antes o esquadrão de Cavalaria. Chegado ao último cruzamento, vi um jipe a aproximar-se de nós. Subimos para o passeio e vi o Suleimane Djaló, 2º comandante do batalhão. Era da minha etnia, embora a gente não se conhecesse.

Quando me aproximei, acompanhado dos dois soldados da sua unidade, perguntou:

− O que é que se passou?

−  Fui eu que o prendi, meu comandante!  
 − respondeu o militar.

 −  Por quê? 
 − perguntou o Suleimane.

 
− Ele é alferes dos Comandos!

 − Então, podemos prender qualquer militar, sem ordem de ninguém? De onde é que vieste? Quem te deu ordem para vir cá prender gente?

 − Desculpe, meu comandante, ninguém me mandou!

Suleimane Djaló, o comandante, olhou para mim:

 −  Onde ele te encontrou, Amadu?

 −  No choro[2]!

O comandante mandou-me embarcar no jipe. O sol estava muito bravo. O chefe que me prendeu também pediu boleia, mas o comandante disse que fosse a pé. Levou-me até à minha casa e,  depois, regressou.

O que me prendeu era beafada, chamava-se Ansumane Injai. Na altura em que me prendeu, estava bem fardado, de oficial, com calça e camisa de terylene e sapatos bem engraxados, fio de ouro e mascote, tudo grosso.

Passados uns anos, um dia, eu estava com o cunhado do meu irmão mais velho, meu conhecido desde muito novo. Andávamos juntos muitas vezes, o pai dele foi meu professor do Alcorão e o meu irmão mais velho tinha casado com a sua irmã mais velha.

Eu e o meu parceiro tínhamos um Peugeot 404, uma station com sete lugares. Ele também tinha sido tropa, foi condutor da 1ª CCmds. O nosso carro estava na oficina a mudar peças e, nós estávamos à porta do mercado de Bafatá.

A certa altura, chegou uma pessoa à minha frente e cumprimentou-me, apertando-me a mão. Era uma pessoa magra, estava suja e cheia de nódoas. Ele olhava para mim mas eu não o conhecia. Perguntou-me se eu não o reconhecia.

 
 − Eu,  não!

 −   Fui eu quem te prendeu! No choro do homem do Bairro de Caibra.

 
− Ah, foste tu?

 
− Sim, fui. Olha, desde que te prendi, nunca mais passei bem. Estive preso um ano e dois meses, libertaram-me, passados alguns dias voltaram para me prender mais dois anos. Saí há 5 dias da prisão.

Antes de eu sair da prisão, faleceu um meu primo em Bambadinca. Não tenho dinheiro para o transporte, foi um amigo que me deu boleia de Bissau até Bafatá. Agora, eu peço-te, por favor, que me arranjes 20 escudos para pagar o transporte para Bambadinca, para ir cumprimentar os familiares do meu falecido primo.

Não lhe disse nada. Meti a mão ao bolso, tirei uma nota de 50 escudos e dei-lhe. Ele agradeceu e foi embora. O meu companheiro disse-me que eu era um burro.

Eu não tenho ódio, Deus pagou-lhe o que merecia. Ele prendeu-me durante uma hora, esteve preso mais de três anos. O que é que eu vou querer mais dele ? Nada!

Aqueles anos foram de fome, não havia arroz. No governo de Luís Cabral, desembarcou um barco com rações de milho para os burros para dar à população. Fizemos tudo por tudo para comermos aquele milho, mas não conseguimos, era ração para burros. Mas,  vendo bem, o Luís Cabral não devia ser o único culpado. O ministro do Comércio era filho da Guiné e o 1º ministro também.

Depois de 14 de Novembro [de 1980],
acabaram-se as perseguições. Até esse dia fui perseguido dia e noite. Estava cadastrado no aeroporto, como todos os africanos que tinham sido militares portugueses. Todos os cadastros foram levantados. Dentro do meu coração, não deixo de louvar o 'Nino' Vieira[3], Presidente da Guiné-Bissau.

Nunca esquecerei os primeiros anos do governo de Luís Cabral, desde 1 de janeiro de 1975 até janeiro de 1976. A partir de 11 de março, a emissão do rádio acabava à noite com a frase “a pena de morte continua”, o recolher era obrigatório, a partir das 20h00 tínhamos que fechar as portas e apagar as luzes. Acendíamos as lanternas, algumas fabricadas por nós próprios. Era assim até ao nascer do novo dia.

Lembro-me de ouvir falar de um acontecimento passado em Farim[4]. Noventa e tal pessoas, Comandos e outros militares e milícias, que viviam na região de Casamansa, foram presos no Senegal pela polícia e por militantes do PAIGC. Trouxeram-nos em viaturas até à fronteira e depois, em viaturas do PAIGC, para Farim.

Depois, meteram-nos nas covas, que durante a guerra serviram de depósitos das granadas de artilharia. Ficaram lá presos. Não havia nenhum buraco, nem nenhum furo, por onde entrasse ar. Fechados lá dentro bateram à porta, gritaram, ninguém ouviu nada. 

No outro dia, de manhã, quando abriram a porta, encontraram-nos mortos, só um ainda respirava. Deram-lhe água para beber e quando acabou de beber também descansou e foi para junto dos companheiros. Não ficou nenhum sobrevivente daquela prisão subterrânea.

Quando 'Nino' fez o 14 de novembro, não admitiu no seu governo o autor deste massacre, mas mandou dar-lhe uma carrinha para governar a sua vida, que ficou como a sua reforma.

Com o golpe de 14 de novembro, a Guiné mudou muito. Começou livre e a fome acabou. Passou a haver arroz, não milho para burros, chegaram mais mercadorias para a Guiné, o aeroporto ficou aberto para todos os guineenses, que estavam na Europa. Os guineenses podem agradecer tudo isto a 'Nino' Viera, um filho da Guiné.

Deixámos o passado para trás. Por quê o ódio? E a vingança? Qual é o destino da vingança? É a guerra! Qual o destino final da guerra? Estropiados, sangue, lágrimas, pobreza, suor, trabalho.

Vai demorar muitos anos para acabar com a pobreza.

FIM do I Volume (Publicar-se-ão a seguir os Anexos)
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Notas do autor ou do editor VB:

[1] Lalo Baio, mandinga, sobrinho do chefe da tabanca de Morucunda, em Farim, tinha pertencido ao PAIGC, nos primeiros anos da luta. Por qualquer motivo, tomou a decisão de se apresentar às autoridades portuguesas, trazendo com ele dez elementos e as respectivas armas.

[2] O morto. antes de ser enterrado, é embrulhado num pano e envolto numa esteira. As mulheres põem luto, vestindo-se de branco, sem qualquer enfeite ou adorno, a não ser um lenço branco. 

Ao fim de quarenta dias faz-se a cerimónia do choro, que consiste na reunião da família e amigos, orações na mesquita local, abate de uma ou mais cabeças de gado, sendo depois repartido por todos, depois de cozinhado. Não têm cemitérios. A sepultura é no local mais conveniente, ficando o corpo com a cabeça para oriente.

[3] Nota do editor: João Bernardo Vieira, 'Nino' Vieira, 'Nino' ou 'Kabi Nafantchammma' como também era chamado, nasceu em Bissau, em 27 de Abril de 1939.
[ Tem 165 referências no nosso blogue.] 

Em Janeiro de 1961 partiu para a República Popular da China, integrado num grupo de dez camaradas escolhidos por Amílcar Cabral, a fim de receber treino militar. Com 25 anos apenas, 'Nino' já era o Comandante Militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conakry. Foi quase sempre no Sul que actuou durante a luta, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos como Guilege, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros. 

Embora se tenha dedicado principalmente à actividade operacional, como comandante de unidades de guerrilheiros, 'Nino' Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de todo o território a partir de 1970.

Foi eleito deputado em 1973 e, posteriormente, Presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou no Boé a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973.

Após a independência foi Comissário do Estado para as Forças Armadas. 

Em 1980, 'Nino' chefiou o golpe que levou à destituição do Presidente da República, Luís Cabral, e assumiu os cargos de secretário-geral do PAIGC e a Presidência da República. 

As consequências deste golpe levaram ao fim do projecto de Amílcar Cabral, a união dos povos guineense e cabo-verdiano. Em 1984 foi aprovada uma nova Constituição e só em 1991 terminou a proibição dos partidos políticos.

Com o novo regime, as primeiras eleições tiveram lugar em 1994. 'Nino' Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, foi eleito Presidente da República à 2ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994. Quatro anos depois, ainda conseguiu suster um golpe que visava a sua destituição. Mas não por muito tempo.

A propósito de um nunca esclarecido fornecimento de armas para a guerrilha de Casamansa, em Junho de 1998 travou-se uma violenta guerra civil entre partidários de Ansumane Mané e forças fiéis a 'Nino'. Mané destituiu-o em 7 de Maio de 1999 e 'Nino' Vieira foi obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal.

Fazendo jus à sua antiga imagem de combatente, 'Nino' regressou a Bissau em 2005 para anunciar a candidatura às presidenciais de Junho de 2005, que venceu à 2ª volta contra Malan Bacai Sanhá. Mas a sorte, que tantas vezes o protegeu, estava prestes a abandoná-lo.

Há Guineenses que dizem que, depois do regresso de Portugal, 'Nino' nunca conseguiu recuperar os poderes políticos e militares, que antes detivera. Que o poder militar se mantinha nas mãos dos que o tinham exilado e que, apesar das várias tentativas para fazer e compor alianças, o poder político se mantinha longe dele. Outros afirmam que 'Nino' foi tão bom combatente como mau político.
De herói da luta de libertação nacional a vilão e tirano, é como o retratam alguns camaradas, depois de o verem à frente dos destinos da Guiné-Bissau durante 22 dos 36 anos de Independência.

Companheiros cabo-verdianos na luta pela libertação, não esquecem que foi 'Nino' que, em 14 de Novembro de 1980, matou o sonho de Amílcar Cabral de unir os dois países. E não se coíbem também de referir que, com o golpe militar que derrubou Luís Cabral, 'Nino' abriu caminho a uma violência que durou até aos nossos dias. 

Outros contrapõem que a violência e os ajustes de contas começaram ainda antes do 1º Congresso do PAIGC, em Cassacá, Cacine, e fizeram sempre parte da vida do partido. Certo é que, nos últimos trinta anos, 'Nino' esteve sempre no centro das muitas crises que afectaram a vida da jovem República. E na sequência de mais um grave conflito político-militar, 'Nino' Vieira morreu, em 2 de Março de 2009, às mãos de alguns militares das Forças Armadas de que foi um dos principais criadores.

Ironias do destino dos antigos camaradas de luta e adversários depois: os corpos de “Nino” Vieira e o do general Tagmé Na Waié, também vítima, um dia antes, de uma explosão violenta no seu gabinete e ambos companheiros na luta pela independência, repousaram juntos, bem perto um do outro, na morgue do Hospital Simão Mendes, em Bissau, antes de serem sepultados no cemitério de Bissau, em extremos opostos.

[4] Nota do editor: em depoimento a Nelson Herbert, editor-sénior do serviço em português para a África, da Radio Voice of Amrrica (Voz da América), Luís Cabral refere-se assim ao acontecimento: 

(...) “Houve um acidente gravíssimo, acidente que todos nós lamentamos imenso. Foi numa altura em que numa prisão subterrânea deixada em Farim pelas autoridades coloniais, puseram-se lá indivíduos que nos foram entregues na fronteira do Senegal, indivíduos em número bastante elevado e houve à noite uma asfixia, falta de ar, e morreram pessoas nessa prisão. Quando tivemos conhecimento desse desastre, desse acidente, ficámos altamente perturbados e isso nem os homens que estavam directamente ligados a esses prisioneiros nem nenhum dos outros elementos da direcção do País deixaram de sofrer, sofrer mesmo, com esse acidente que vitimou várias pessoas. Isso foi uma coisa que lamentei muito e que gostava imenso que nunca tivesse sucedido.” (...) 

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais entre parènteses retos, título, subtítulo, síntese das partes anteriores: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série  > 1 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25126: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLII: No rasto do PAIGC, a última saída da CCAÇ 21: apanhada de surpresa, em Canjufa, pela notícia do golpe de estado do 25 de Abril (pp. 272/276)