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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
O Zé Matos teve a gentileza de me enviar o mail com o miolo deste livro que ele escreveu em parceria com um reputado especialista, Matthew Hurley. Oxalá que surja a possibilidade de haver uma tradução portuguesa, pelo menos as instituições da Força Aérea deviam cuidar de quem investiga em sua memória. Aqui vai a introdução, só lhe introduzo um reparo acerca da estagnação económica que os autores referem sobre o período. Não foi nada assim, autores da maior probidade e rigor já esclareceram como os anos 1960 foram decisivos de diferentes títulos: a tumultuosa emigração, a avalanche turística no Algarve, os investimentos estrangeiros, a explosão industrial, etc., são dados indiscutíveis. O mesmo não acontece com os primeiros anos de 1970, e a crise petrolífera atingiu-nos em cheio, é contemporânea de uma situação aguda em mobilizar mais jovens para os conflitos africanos. Ainda bem que vemos investigadores portugueses envolvidos em trabalhos que possam circular na arena internacional da pesquisa e confronto de posições.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

É um pequeno volume onde, depois de se dar informação sobre abreviaturas e notas terminológicas, se faz uma curta introdução, a que os autores intitulam “Crocodilos e Bombas”. Na edição de hoje, sumariamos, por conta e risco próprios, o essencial de tal introdução.

Em 1960 ocorre uma mudança extraordinária na aviação militar, aparecem no terreno aviões supersónicos, misseis e o radar concorreu para o modo de fazer a guerra. Em Portugal, nesse mesmo período, a mudança foi outra. De 1961 para 1975, Portugal combateu em África e a Força Aérea Portuguesa (FAP) travou uma guerra a baixa-altitude com aparelhagem eletrónica rudimentar contra a guerrilha. Estas operações da FAP eram de baixa intensidade. É uma das razões por que a guerra portuguesa em África passou praticamente sem nenhum estudo de observadores contemporâneos, em Portugal ou fora de África.

Mesmo com estas limitações, a FAP, no teatro africano da Guiné, mostrou o valor e as vulnerabilidades do poder aéreo num contexto irregular, como instrumento da contrainsurgência. De 1963 a 1974 a FAP desempenhou sucessivamente missões que incluíram bombardeamentos ofensivos e atividades humanitárias. No nível de ação direta e de resultados militares imediatos a FAP provou ser a mais importante arma contra a guerra subversiva e, em alguns momentos, o seu modesto desempenho pareceu levar a insurgência ao colapso. Contudo, devido à efetividade da FAP, o aparelho imperial – e especialmente a sua componente militar – foi crescendo excessivamente dependente da operacionalidade aérea. Os independentistas viram-se obrigados a dar prioridade à defesa aérea. Os imperativos da competição envolveram as capacidades da FAP e da guerrilha e acabaram por se constituir o pivô do resultado da guerra.

Durante a guerra que Portugal travou na Guiné, a FAP demonstrou um notável poder de intervenção, e assim se conseguiu manter uma campanha ao longo de uma década em ambiente austero apesar das deficiências crónicas em meios aéreos, armamento e pessoal – fragilidades devidas à estagnação económica interna (?), mudanças demográficas e hostilidade internacional ao império português.

Há ainda que ter em conta a resiliência da FAP tendo em conta a existência de outros teatros de operações e o enquadramento logístico exigido pela NATO (recorde-se que a NATO exigiu a retirada dos F-86 da Guiné). A adaptabilidade da FAP e a utilização hábil dos seus meios permitiram manter sempre o apoio a um exército disperso em alguns dos terrenos mais inóspitos do planeta. Antigos comandantes portugueses e historiadores têm assinalado esse excelente desempenho da FAP e alguém disse que se tratou de “uma notável proeza de armas”, independentemente do desfecho da guerra.

Acontece que a situação mudou radicalmente com o aparecimento em primeira mão dos teatros de guerrilha dos misseis terra-ar, que exigiram procedimentos estritos à FAP, quando no passado dispunha de uma supremacia quase absoluta, e a partir do momento em que os outros ramos das Forças Armadas se aperceberam do caráter retrátil dessa operacionalidade, acusaram emocionalmente a baixa.

A guerra aérea na Guiné Portuguesa continua em grande parte inexplorada nos círculos militares e mesmo académicos, merece maior audiência o seu estudo pela forma económica e eficaz com que atuou não só num enquadramento geopolítico tumultuoso e de rápida mudança tecnológica.

Imagem do “DO”, a aeronave que nenhum dos antigos combatentes esqueceu pela sua tão estimável presença

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17722: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (21): Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), ocorre-me perguntar: E afinal para quê?

Guiné-Bissau - 2008 - Cemitério Militar de Bissau - Talhão Central
Foto: © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.


1. Em mensagem de 28 de Agosto de 2017, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos esta reflexão onde põe em causa o sacrifício de uma geração que combateu em África, numa guerra sem sentido em território desconhecido para a esmagadora maioria dos militares para além-mar mobilizados. A mesma interrogação se põe para os camaradas guineenses que durante 11 anos lutaram a nosso lado.


A Minha Guerra Petróleo (21)

E Afinal para Quê?

Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), facto histórico ocorrido após onze anos de guerra, conduzida nas condições mais duras de quantas ocorreram nos três TO onde a guerrilha contra as autoridades portuguesas eclodiu e depois de ter lido alguns dos últimos posts no blog que me atingiram mais profundamente, ocorre-me perguntar:
E afinal para quê tanto esforço? Para que serviu tanto sacrifício? Valeu a pena o nosso empenhamento, (sempre que existiu) não apenas na área operacional, mas também nas outras, (e tantas foram)? Esta questão do “empenhamento” no desempenho das tarefas diárias levanta a questão fundamental da nossa intervenção em África: será que a considerávamos necessária, justificada, útil e vantajosa até? Ou pelo contrário, aceitávamo-la como uma problema – uma espécie de obstáculo a transpor – a que não podíamos fugir?

Tenho para mim e declaro já que, cada vez mais, concluo que tanto esforço e sacrifício foi totalmente inútil. Mas isso é a minha maneira de pensar… Aqui deixo algumas considerações sobre o tema. A guerra na Guiné durou 11 anos e traduziu-se essencialmente num somatório do sacrifício – físico e psíquico – de períodos de dois anos imposto aos jovens portugueses, numa altura da vida que deveria ser, como dizia Gomes Freire de Andrade, a mais bela parte da vida e durante o qual os rapazes do nosso tempo se preparavam para a vida que se iria seguir. Para além dos que foram e voltaram “bem”, temos a considerar o sacrifício dos mortos, a dor dos feridos e de todos os outros que voltaram depois de terem sido vítimas de outros tipos de sofrimento, como a prisão, por exemplo.

Hoje, coleccionamos as consequências do “conflito”, descrevemo-las em livros, em blogs e em evocações anuais ou convívios em que se recorda o sucedido. Chamam-nos os “Velhotes da Tropa”. Nesta altura já não será importante contabilizar as tais consequências, pois isso é do campo da estatística, uma ciência fria e que normalmente não acrescenta nada de novo, depois de um tratamento matemático da realidade. Os estudiosos futuros que o façam! Além disso, hoje não se pode fazer nada para melhorar o que quer que seja…

Venho apenas perguntar para que serviu tudo aquilo que passámos e cujas marcas hoje ostentamos, veladamente uns, outros exibindo-as com orgulho (provas de dever cumprido, afirmação de coragem ou de virilidade) ou, na pior das situações, por impossibilidade de as esconder.

Vou falar dos portugueses metropolitanos. Mas poderia estender a pergunta, incluindo os guineenses, que lutaram – esses de modo ininterrupto, nas suas terras e junto das suas famílias – do lado das autoridades portuguesas. E, por uma questão de justiça, ainda poderia estender as mesmas perguntas, relativamente aos guineenses (guerrilheiros do PAIGC e civis que os acompanhavam, na esperança de que, depois daquele sacrifício, a vida lhes sorriria). Se podemos apresentar um número dos que lutaram à ordem do governo, sediado em Lisboa, em relação a estes últimos não encontramos arquivos fiáveis que nos permitam estimar quantos tenham sido e, muito menos, quais desses morreram ou ficaram com as sequelas dos tipos que indiquei a cima.

Os “Metropolitanos”, arregimentados num processo contínuo e sempre crescente, podem ter começado por aceitar a ida para a guerra como um imperativo patriótico e moral. Com efeito, a História e a Geografia de Portugal que estudávamos, todos pelos mesmos manuais, e examinados, da mesma forma e com os mesmos critérios, inculcavam-nos no espírito, uma espécie de crença (não diria fé) que fazia com que tivéssemos daquelas terras um conhecimento menos que livresco mas, mesmo assim, se nos perguntassem, considerávamos que elas eram “os nossos territórios de além-mar”. O número dos que lá tinham qualquer coisa de seu era mínimo e, em boa verdade, o sentimento de posse em relação àquelas terras era algo que ninguém conseguia explicar o que fosse. Estou convencido de que este estado de espírito tinha que ver com o momento da vida em que o conhecimento nos era inculcado. Era uma ideia que íamos interiorizando e não podíamos pôr em causa – por motivos óbvios – e que íamos arrumando no nosso espírito, esperando nunca ter de a fazer vir à memória e, muito menos, que isso viesse influenciar a nossa maneira de viver. Quantos de nós tinham ido alguma vez à Guiné? E, contudo, se a Pátria precisasse, iríamos e fomos…

A censura que pesava sobre as publicações antigas acerca da Guiné impedia que tivéssemos conhecimento do que por ali se passou, ao longo de 500 anos e a que não tínhamos acesso nos tais manuais. Era uma censura estranha, já que não “cortava” textos ou impedia a publicação dos livros mas, recorrendo a uma espécie de silêncio nunca assumido, impedia que a mensagem daquelas publicações se difundisse e assim tivéssemos uma ideia concreta do que íamos encontrar e, principalmente, porquê. Hoje, quando lemos os livros e as revistas antigas, só temos que somar dois e dois, ao conectar o que encontrámos nos locais onde vivemos com as descrições que ali encontramos. As publicações de propaganda (emitidas pelo SNI e outras entidades oficiais) eram algo que tinha uma difusão muito restrita, talvez propositadamente, e não despertavam interesse. Eram coisas que “o Estado” publicava, mais por obrigação, e que acabavam por não ter utilidade na difusão da realidade.

E a “realidade” veio. Uma vez desembarcados, só poderemos falar de choque e espanto. Então a Guiné era aquilo? Era por aquilo que vínhamos arriscar-nos? Aquela terra também era Portugal? Porquê, se a diferença era tão grande? Qual era a ligação que sentíamos ter àquelas populações? Ou, reciprocamente, qual era a ligação que as populações tinham connosco? Sem possibilidade de retorno, fizemos apelo à velha capacidade de adaptação dos portugueses a qualquer meio onde se encontrem, chegando ao ponto de tentar falar a língua que era comum aos seus grupos étnicos de que ainda conhecíamos(?) vagamente os nomes. No contacto diário, nunca procurámos ensinar-lhes a nossa. Por mim, creio que recusar aprendê-la era uma das suas formas de resistir à ocupação, que só episodicamente assumiu a forma de integração. É por isso que ainda conhecemos algumas palavras em crioulo ou mesmo em fula, balanta ou outra, consoante as regiões por onde andámos. Mas o mais importante foi que, à chegada, caiu por terra o mito de “dilatação da fé”, uma vez que o número de católicos que encontrámos era ínfimo, se comparado que o dos islamitas ou animistas.

Inevitavelmente, no íntimo de cada um de nós, começaram, então, a ser postas em causa as razões para estarmos ali, naquela hora e naquelas condições. Era uma interrogação para qual cada vez menos tínhamos resposta. É inútil dizer que as perguntas deste teor, sem resposta, eram cada vez mais e as contradições se avolumavam a cada dia de comissão. Sabemos todos que a convicção – mesmo forte – das primeiras mobilizações rapidamente se perdeu e, a cada “fornada” de periquitos, era possível notar a falta de mentalização, de interesse e vontade, relativamente aos velhos que saíam com a sensação de que as coisas não tinham melhorado. Mas, no fundo, o que é que interessava se tinham melhorado? O “dever cumprido” era afinal ter estado sem fugir, ter sofrido e, com maior ou menor êxito ter suportado as investidas do inimigo ou ter obtido êxitos nas nossas acções ofensivas. Mas, em consciência, a maior parte de nós não saberia responder cabalmente se o sector que passámos aos periquitos estava melhor do que tínhamos recebido da velhice. Não falo obviamente, na melhoria das condições de vida, nos aquartelamentos, porque essas vinham do nosso ânimo, capacidade e apoio logístico conseguido.

Numa análise das outras áreas da nossa actuação, vou excluir a famigerada APsic que, antes de tudo, tinha de ser barata, o que a condenava a nem conseguir sequer seduzir os incautos, tal era o seu grau de demagogia. Mas havia outras áreas em que a nossa acção revestia aspectos gratificantes. A melhoria das condições de vida nas tabancas através (por exemplo) da abertura de poços ou construção dos chamados “reordenamentos”, onde era suposto que a população viveria melhor, pelo menos a coberto dos incêndios. No entanto, os “reords” eram também uma consequência da nossa táctica, o que faz supor que nunca teriam acontecido se a guerra não tivesse surgido. Temos também o caso do apoio sanitário que conseguíamos prestar às populações e que, algumas vezes, até estendíamos aos inimigos. E as melhorias no sistema viário, intensificadas durante o governo do General Spínola e obtidas à custa de grande esforço em todas as regiões. Já no que respeita à educação, a nossa actuação foi mais discreta e os resultados bem modestos. Nunca detectei uma grande avidez da população no acesso à instrução e cultura e, devido ao atraso em que se encontrava, seria de esperar que o desenvolvimento da educação fosse quase exigência. Recuso que se trate de características endémicas do povo. Admito antes que se tratasse de uma atitude de desconfiança, ou até de recusa, que radica no passado, talvez longínquo, e que visaria evitar a descaracterização. Seria possível a montagem de uma estrutura de escolas primárias semelhante à que existia na Metrópole? Não creio que fosse, por demasiado cara. Como sabem a “guerra” tinha que ser barata, pois o orçamento não dava para tudo. E professores/as será que os havia?

De qualquer modo, temos que concordar que é uma ideia um tanto ou quanto absurda ter de fazer uma guerra para obter melhorias sociais ou “concedê-las” em consequência da guerra. “Na Guerra Preparando a Paz”, a divisa de um dos batalhões a que pertenci é, no mínimo, um absurdo. A Paz faz-se e pratica-se. Se há guerra é porque há condições para que surja. Preparar a Paz fazendo a guerra, como muitas vezes se diz é como ficar feliz por ter adoecido e saber que o que é bom é ter saúde. Surrealismo puro!

Mas por mais que fizéssemos, há uma coisa, que ninguém pode negar: nunca ocorreu uma mudança de campo massiva da população sob controlo do inimigo, nem uma colaboração espontânea e generalizada por parte da população que estava sob nosso controlo. E a população era o alvo daquela guerra. Era o que tínhamos de conquistar de modo a negar ao inimigo a exploração das contradições que tinham levado à situação que se vivia. É dado adquirido que, na Guerra, há sempre uma parte da população com um comportamento amorfo em relação aos beligerantes, mas as mudanças operadas deveriam ter levado a uma maior aceitação do domínio das autoridades. E tal não sucedeu, por mais que nos esforçássemos.

Não entendíamos porquê mas, já naquele tempo, tínhamos a ideia de que o inimigo estaria muito mobilizado e motivado. Não tínhamos dúvidas de que o aparelho administrativo do inimigo não tinha capacidade para fazer melhor do que a nossa Administração. Também não entendíamos bem o que levava a população que apoiava o inimigo a manter-se junto dele. Sabemos agora que a deserção, de combatentes ou não combatentes, era severamente punida e que o controlo dos acompanhantes era muito apertado. Era o “partido” dos anos sessenta/setenta, nos restos do estalinismo. As sucessivas independências da África iam-no confirmando, de vez em quando. Era só ler os jornais e revistas. Claro que os nacionais poderiam ser acusados de facciosismo, mas os estrangeiros – a que tínhamos acesso – e que normalmente eram a base dos noticiários que víamos, ouvíamos e líamos, poderiam ser aceites como bastante credíveis. Em geral, a saída das autoridades coloniais, precipitava os novos países para as situações de neocolonialismo que não beneficiavam senão o partido (único) que ficava no poder. E se assim fosse em relação à Guiné, que é que poderíamos fazer para que ali fosse diferente?

Passaram 54 anos. Duas gerações! Estamos quase todos na casa dos setenta e é tempo de olhar para trás, de modo lógico, imparcial, sem ideias preconcebidas e com a coragem necessária para enfrentarmos o que passou. É bom que o façamos, antes que os doutores comecem a fazer teses, frias e sem alma, mas que encerrarão o processo. E o que eles escreverem o que está certo. Enumerei, sinteticamente o que fizemos e os resultados (pobres) que tivemos. Descrevi o modo – vicioso e atabalhoado, mas férreo – como fomos, desde a meninice, preparados para participar activamente no que sucedia. O trauma da chegada e as dificuldades em justificarmos numa auto-análise o que fazíamos e o desacerto entre nós e as populações locais que eram também portugueses, mereceu-me destaque. Acho que a convicção, uma vez adquirida, não deve ser posta em causa e, se perdida, perdeu-se tudo o resto. Resumidamente, descrevi a nossa actuação na área operacional e indiquei os sacrifícios e os traumas de toda a espécie que carregamos e que muitas vezes não são compreendidos e muito menos aceites na sociedade dos nossos dias. Por fim mostrei as consequências de um fenómeno que começou sem que nos apercebêssemos e terminou, como seria de esperar.

Como conclusão final interrogo se poderíamos ter feito algo (ou deveríamos ter feito mais) para que as coisas não sucedessem assim e tenho a certeza de que nada havia a fazer. No meu primeiro, ou segundo post, digo que éramos um grupo de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio florestal que tinha todas as condições para arder e não tenho hoje qualquer dúvida de que tudo foi em vão. Se calhar, com um pouco de senso, poderíamos ter chegado a uma solução melhor e com menos sacrifícios dos metropolitanos e dos guineenses amigos ou inimigos. Mas, a História não se rebobina…

28 de Agosto de 2017
AJPC
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16891: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (20): Estudo sobre o bi-grupo de Mário Mendes

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16345: Notas de leitura (863): Os Vampiros, BD de Filipe de Melo e Juan Cavia, Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Têm sido generosas as críticas a este álbum, a todos os títulos original, não hesito em considerá-lo uma obra de referência. Passa-se em Dezembro de 1972, no Norte da Guiné forma-se uma patrulha que tem como objetivo encontrar uma base do PAIGC dentro do Senegal, saber o que se passa. É uma viagem de horror, andam à solta espíritos malignos, sugadores de sangue, e os militares vão-se transformando, ameaçam-se, uns são devorados, outros interiorizam o Maligno.
É imprescindível olharmos para esta BD com espírito ortodoxo sob pena de categorizarmos o argumento como uma acusação a combatentes. Recomendo vivamente a leitura desta obra superior da banda desenhada.

Um abraço do
Mário


Os Vampiros: um luxo de BD sobre a guerra da Guiné

Beja Santos

Os vampiros nunca saíram de moda, antes de serem personificados pelo Conde Drácula já faziam parte de diferentes mitologias do mal onde pululam hidras, górgonas, lobisomens e figuras fantasmáticas do mundo das trevas. A sua presença na contemporaneidade, com expressão na literatura e no cinema, decorrem naturalmente da atração pelas situações-limite entre o homem e a fera, o belo demoníaco, o sugador que depreda até à queda final. Há, evidentemente, outras dimensões que se podem explorar na procura de uma explicação sobre a moda dos vampiros: há quem diga que esta sociedade competitiva, sem escrúpulos, de triunfadores e predadores excita o imaginário dos vampiros. E o vampiro como homem condenado é a maldade sem perdão.

"Os Vampiros", Tinta-da-China, 2016, é um acontecimento de BD pelo nome do argumentista e do desenhador. Filipe Melo é polifacetado, na música e na BD, Juan Cavia é diretor de arte para cinema e publicidade, é nome sonante do audiovisual. Meteram ombros a um projeto temerário: guerra da Guiné, uma estranha patrulha dentro do Senegal, uma viagem com monstros (na consciência e à solta), uma missão aparentemente formal é dada a um grupo de homens. Metem-se à mata, a viagem marcha de assombro em assombro, o terror é imparável, até ao deslindamento final.

O álbum abre com uma citação do Padre António Vieira, vem mesmo a propósito: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta”. Quem viaja a caminho daquela missão leva imensas dores, estamos em Dezembro de 1972, os militares da missão saem de uma LDP, encontram-se com outros militares que saem do helicóptero, sabemos que o manda-chuva é o Sargento Emanuel Ferreira dos Santos, é um grupo pequeno e tem um guia africano. Em pleno mato sabemos que a missão é atravessar a fronteira para o Senegal e fazer um reconhecimento, confirmar onde é que fica uma base do PAIGC junto à fronteira, enviar as coordenadas por rádio e voltar ao ponto de recolha. Internam-se mato adentro. Surgem as primeiras imagens de atrocidades, há miragens que o leitor ainda não está em condições de descodificar, um atirador furtivo faz a primeira baixa na patrulha, é depois liquidado, reacendem-se imagens de barbárie (corte de orelha); as tropas fazem um alto, há trocas de confidências, alguém se refere ao sargento como o maior carniceiro da Guiné, há pesadelos, e recomeça a viagem, o soldado de nome Totobola gaba-se da sorte que tem tido, pisa uma mina, temos a segunda vítima, os ânimos aquecem, o Sargento Santos manda prosseguir, aparece uma nativa com um filho, repete-se a violência, mãe e filho são abatidos, os militares começam a descontrolar-se e a apontar as armas uns aos outros, há quem tenha pesadelos num períodos de descanso, a marcha prossegue debaixo de chuva diluviana, a patrulha dá com o corpo do guia Sanhá mutilado, a face com uma expressão de horror total, os olhos ensanguentados.

Estamos agora no segundo capítulo, a citação é tirado do livro Moby Dick de Herman Melville: “A loucura humana é a coisa mais matreira e felina que existe. Quando pensamos que desapareceu, pode apenas ter-se transfigurado numa forma ainda mais subtil”. A patrulha aproxima-se da base rebelde, depara-se-lhes uma autêntica carnificina. Atónitos com este banho de sangue, procuram vivos, na escuridão sobressaem olhos sanguinolentos, aparece alguém aterrorizado, é abatido, um dos elementos da patrulha aparece ferido e delirante, o contingente militar percebe que estão cercados por um inimigo invisível, barricam-se nas instalações. Mais pesquisas e encontra-se um outro elemento que teria pertencido ao grupo abatido, encontrara um esconderijo, mais cenas de violência, novamente há camaradas a apontar armas aos seus camaradas. O sobrevivente, que não fala português, consegue uma ligação rádio, o comandante da patrulha dá as coordenadas. A espera continua, o rádio emudecido. Temos agora o terceiro e último capítulo, Zeca Afonso é a citação com os seus Vampiros: “No céu cinzento, sob o astro mudo,/batendo as asas, pela noite calada,/vêm em bandos, com pés de veludo,/chupar o sangue fresco da manada./Eles comem tudo, eles comem tudo,/eles comem tudo e não deixam nada”. Há, durante esta longa espera, diálogos confusos, cortaram a luz do exterior, a força sitiada abre a porta, chegou um jipe com gente armada, tudo vai correr mal. O Sargento Santos desabafa acerca da família que o espera: “O homem de quem elas estão à espera já não existe. Morreu pouco depois de chegar à Guiné”. Amanhece, vem um avião e bombardeia a posição com Napalm. A força militar está praticamente extinta, e aparece um jipe, e no uso da metáfora os autores dão-nos conta de quem sobrevive fica sujeita à condição de vampiro.

Nada ao nível das artes da banda desenhada tinha acontecido entre nós com um traço tão plausível, um estudo tão apurado do mundo tropical, do horror da guerra, dos transportes militares, do caminhar dentro da mata, podendo-se discutir se os ambientes de floresta podem ser totalmente identificados com as lalas e matas guineenses. Há o jargão intenso da caserna, a despeito de alguém dizer “tudo bem”, expressão que ninguém usava naqueles tempos. A arte, convém esclarecer os mais céticos e exigentes no tratamento do que foi aquela guerra, tem liberdades, metáforas e bizarrias que não devem ser encaradas como ofensas a quem combateu. Ninguém imagina um grupo tão pequeno a fazer aquela incursão no Senegal; não se pode fazer uma leitura literal daqueles vampiros e aos exageros da barbárie. Tomando como referência as citações dos três capítulos, a guerra foi aquele monstro que quanto mais comia menos se fartava, põe todos os homens contra todos os homens, e em que a loucura se transfigura porque há patrulhas, flagelações, inimigos imprevisíveis, minas, muitas minas, é um terreno de eleição para que o homem se sinta moldado no papel de sugador, de besta insaciável. A propósito de uma história que nesta banda desenhada ocorre em Dezembro de 1972, no Norte da Guiné, até parece ajustado lembrar aquele coronel do filme Apocalypse Now que vive empolgado com o horror e no horror é justiçado por ter quebrado todas as normas por que se rege a instituição militar.

“Os Vampiros”, de Filipe Melo e Juan Cavia são um marco miliário na BD portuguesa. Aquela guerra da Guiné atingira a monstruosidade de que quanto mais consumia tanto menos se fartava.



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Nota do editor

Último poste da série de 25 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16329: Notas de leitura (861): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14873: Notas de leitura (736): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
O nacionalismo radical trata o fim do Império como um processo de traição, de abandono, o zénite da derrisão dos valores da nação. Neste livreco, feito de um amontoado de considerações sem consistência histórica e de respostas de valor muito desequilibrado, o leitor tem oportunidade de ver como se procura o sensacionalismo publicando textos que vêm em todos os blogues, nunca se consentindo no contraditório, nunca se confrontando o cenário internacional com os ideários do regime deposto.
Há para ali uma enorme saudade do tempo em que Henrique Galvão, a propósito da I Exposição Colonial, se realizou em 1934 no Porto, publicou o mapa "Portugal não é um país pequeno", em que se enchia a Europa com Angola, Moçambique e outros espaços coloniais. Enfim, a "questão fraturante" permanece mas já não se pode esconder o vazio ideológico de quem promove a sustentabilidade da guerra como a suprema nostalgia do império que desapareceu.

Um abraço do
Mário


Mitos e enganos sobre o fim do Império Colonial português (2)

Beja Santos

É preciso ler do princípio ao fim “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, com prefácio de Jaime Nogueira Pinto, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015, para se perceber a orfandade ideológica destes expoentes do nacionalismo radical que brandem a argumentação de que a guerra de África estava ali para durar, não havia qualquer inevitabilidade de derrota, o que houve foi um certo desfalecimento de alguns oficiais a que se juntou o envenenamento ideológico trazido pelos oficiais milicianos, daí o desastre do fim do Império e as suas tremendas sequelas.

É um livro mal alinhavado, para dar um ar de seriedade resolveram lançar uma pergunta em mau português a uma série de oficiais e dois civis, nestes termos: “Na sua perspetiva, considera que as operações anti-subversivas e de contraguerrilha desenvolvidas em Angola, Guiné e Moçambique, em defesa da soberania portuguesa sobre aqueles territórios e populações que viviam há seculos debaixo da bandeira das Quinas, estava militarmente perdida?”.

Nas respostas há de tudo, como na botica. Não estava perdida nem estava ganha, o importante era que o poder político encontrasse uma solução política (não se diz qual, aduz-se que servisse para terminar o conflito, sabe-se lá se incorporando todo o corpo de guerrilha nas forças armadas locais…) dizem uns. Há respondentes que não confundiram a nuvem com a floresta, equacionaram a evolução da guerra com o contexto internacional e a mentalidade da sociedade portuguesa. O Coronel Moura Calheiros recorda que também havia um cenário interno e elenca as suas razões: o entusiasmo inicial da população pela defesa do Ultramar foi-se desvanecendo; esta falta de entusiasmo, mesmo de fadiga, teve consequências nos quadros das Forças Armadas; a preparação das tropas que partiam para África era cada vez mais deficiente; o caso mais influente era o que ocorria nas universidades, aqui o ambiente era de intensa e permanente propaganda contra a guerra em África e a favor da “independência para as colónias”. E conclui: “Não vejo como seria possível manter, a partir de 10 a 15 anos da nossa data de referência, a política relativa ao Ultramar seguida pelo governo de então. É que não haveria cidadãos com capacidade para a governação do país que não estivessem afetados e bem doutrinados pelas lutas estudantis. Toda ou, no mínimo, a esmagadora maioria da população portuguesa com formação académica estava doutrinada contra a guerra no Ultramar”.
Nesta mesma linha discorre Adriano Moreira quando diz: “Da minha observação, e não de escutar outros, a guerra, em 74, como tal não estava perdida: mas estava ultrapassado pela população o conhecimento histórico do Ultramar pelo conhecimento adquirido da realidade ultramarina, acrescendo o cansaço da juventude, a fadiga das tropas incluindo a articulação dos estatutos entre profissionais e milicianos; por isso, em relação ao Ultramar, o movimento que assumiu o controlo das forças militares, pôs um ponto final na guerra, porque o ambicionado e prometido tempo para encontrar soluções políticas, que foram desencadeadas e interrompidas, foi por ele dado por esgotado. Não teve programa de descolonização”.

Há respondentes que pretendem trazer originalidades históricas. É o caso do Tenente-General José Vizela Cardoso que nos vem falar das orientações acordadas no Pacto de Paris (subscrito por Álvaro Cunhal e Mário Soares, numa quinta-feira, a 27 de Setembro de 1973, e que não estavam preconizadas no programa do MFA. Fico absolutamente seguro que esta descoberta irá revolucionar toda a investigação sobre as origens do 25 de Abril e o processo de descolonização.
O Coronel Caçorino Dias também traz revelações que poderão levar a estudos edificantes. Por exemplo, quando diz: “A maioria dos cozinheiros das unidades militares eram autóctones, mas nunca se registou um caso de envenenamento; não há memória de um soldado ter sido assassinado, ou de ter ocorrido um rapto de um familiar de um militar. Os militares movimentavam-se por todo o lado, à vontade, mesmo nos bairros tidos por mais problemáticos. Nem lhes passava pela cabeça que se lhes fizessem mal”.
Um outro respondente, o Tenente-General José Francisco Nico, apresenta nas suas conclusões o seguinte: “Não se pode afirmar que a derrota de Portugal, concretizada internamente no 25 de Abril foi uma vitória dos movimentos de libertação como é voz da opinião pouco informada e esclarecida. Os movimentos de libertação sem todo o apoio político, militar, financeiro, de espaço e em material que foram recebendo dos outros subsistemas nunca teriam alcançado o seu objetivo. No entanto, é preciso reconhecer que o sistema adversário necessitava da ação dos movimentos de libertação para conferir dinâmica ao processo e dar-lhe visibilidade na opinião pública”. Branco é, galinha o põe.

O Coronel Raúl Folques, experimentado combatente, e que comandou o Batalhão de Comandos da Guiné, sobretudo na operação “Neve Gelada”, em que se capturou ao PAIGC uma bateria de morteiros 120, afirma o seguinte: “Considero que o PAIGC, em 1973/74, tinha muita dificuldade em recrutar combatentes, sendo certo que muitos dos guerrilheiro capturados ou abatidos eram já veteranos, homens calejados na guerra e muito experientes. Pelas razões apontadas, é minha opinião que a guerra estava longe de se poder considerar, em termos militares, perdida. O fator principal que jogava contra nós e que era significativo era a desmotivação que grassava nalguns quadros e o facto do poder executivo não ter conseguido revitalizar o esforço de guerra”.

Os ultranacionalistas continuam apegados a fórmulas fanatizadas, com especial relevo para a existência de um Império multisecular, para a agressão dos terroristas, etc. Louvam encomiasticamente o comportamento do soldado português como se alguma vez o seu denodo tivesse sido posto em causa. Nunca utilizam o contraditório, citam os seus autores de confiança, promovem a efabulação da sustentabilidade da guerra desviando o olhar de cruéis realidades como a própria crise económica que se instalara em Portugal e que se saldava numa inflação superior a 30% no primeiro trimestre de 1974. É possível que nunca venhamos a saber as motivações de fundo que levaram Caetano à mesa das negociações com o PAIGC e a incitar Santos e Castro e Jorge Jardim a promoverem independências brancas. É dentro desta indigência ideológica que os nacionalistas radicais se comprazem, exultantes, promovendo falsa História com o pretexto de que predomina a historiografia dos vitoriosos do 25 de Abril, o que eles chamam uma historiografia vesga que insiste em glorificar desertores…
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14859: Notas de leitura (735): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14859: Notas de leitura (735): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
Voltemos à questão dita fraturante da guerra colonial que estaria perdida, ganha ou controlada.
Como se sabe, é um dos arremessos e pontos de honra dos nacionalistas radicais, que alegam ter havido traição, e com a retirada emergiram dramas sem conta a juntar a guerras civis extremamente sanguinárias, caos económico, tratamento iníquo com aqueles que tinham sido fiéis à bandeira portuguesa.
Todas estas tiradas emocionais de vez em quando passam a escrito, estamos diante de autores impreparados, aqui até se diz que Amílcar Cabral era mestiço e que fundou um partido em 1952 (deve ter sido por via digital, antes de chegar à Guiné nessa data, onde procedeu ao recenseamento agrícola com a mulher...).
Antes de vociferarem, leiam o livro de uma ponta à outra, é preciso abonar a idoneidade destes novos fanáticos, que nem à guerra foram.

Um abraço do
Mário


Mitos e enganos sobre o fim do Império Colonial português (1)

Beja Santos

Entre as chamadas questões fraturantes da sociedade portuguesa, o fim do Império Colonial português e a descolonização subsequente têm um peso desmesurado, entrechocam-se fatores emocionais, ideológicos e político-culturais por vezes extremados. Há os que pretendem alegar que o MFA, movido por uma questão corporativa, arrastou, de colaboração com forças da esquerda e esquerdistas, o país para negociações precipitadas e um abandono desalmado do que consideram apelar das nossas províncias ultramarinas. Este grupo, se bem que minoritário, porque constituído por nacionalistas-radicais que até desprezam a direita euro-satisfeita, argumenta que os teatros de operações ainda possuíam sustentabilidade, houve traição no abandono do Império que não era de pura exploração económica, que tratava muito bem os autóctones, esses descolonizadores foram os responsáveis diretos por guerras civis, assassinatos bárbaros e catástrofes económicas que se seguiram à retirada dos portugueses. Há, por seu turno, os que procuram estudar a guerra no contexto da situação internacional do seu tempo, acompanhando a evolução das elites africanas e a formação dos movimentos de libertação, dissecando as peculiaridades de cada um dos teatros de operações, o armamento e sustento, o comportamento da insurreição e da contrainsurreição, procurando descodificar o estado desses teatros de operações nomeadamente a partir de 1973. Foram precisas décadas depois da quebra do regime ditatorial para se conhecer como Marcello Caetano procurou negociar o cessar-fogo e o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e acirrou vários responsáveis para instaurar independências brancas em Angola e Moçambique. Pelo caminho, desvelou-se que o teatro guineense caminhava para o caos, perdera-se a iniciativa, a guerrilha possuía um armamento incomparável e o reconhecimento do Estado da Guiné-Bissau estava a preparar cenários que anteviam a humilhação das forças portuguesas. E estamos nisto, são pontos de vista irredutíveis.

É na sequência desta escrita dogmática dos nacionalistas radicais que se deve entender o livro “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, prefácio de Jaime Nogueira Pinto, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015.

Jaime Nogueira Pinto que já escreveu a dizer que depois de muita reflexão descobrira que uma mais justa solução para a descolonização não andaria muito longe daquela que se viveu entre 1974 e 1975, vem agora exaltar esta iniciativa e até com inocência diz uma bojarda: “Até ao 25 de Abril de 1974, nunca se registou um caso de uma povoação ou um aquartelamento importante que tivesse sido tomado ou ocupado pelo inimigo”.

Trata-se de uma investigação sem contraditório, as duas premissas já trazem a conclusão, e descurando regras elementares da lógica dos textos, o leitor vai ter que suportar uma resposta detalhada, ainda que redigida na maior das indigências argumentativas aos comentários de dois coronéis a propósito de um seminário que ocorreu em Abril de 2012 no Instituto de Estudos Superiores Militares. Os ditos coronéis ter-se-ão insurgido a uma frase que no seu todo era falaciosa: “A situação nos três teatros está controlada pelas Forças Armadas portuguesas e era sustentável em termos militares”. Nunca se viu dar réplica num livro sem publicar o texto original. Um dos autores revela a sua compulsão em se falar de guerra colonial quando na verdade o que houve foi guerra em África, pelo caminho faz comparações terminológicas com guerra do ultramar e guerra de libertação, e tem uma saída para a designação de Guerra de África que ultrapassa o delírio: “A designação apresenta vantagens de caráter historiográfico. Na realidade, não existindo nenhum outro momento na História de Portugal, desde 1415, que designemos por Guerra de África parece, pois evidente que nenhuma outra classificação que lhe assenta de modo tão objetivo, claro e abrangente”.

É pena os autores não terem tido tempo para estudar a fundo a nossa gloriosa presença em África. Caso da Guiné, por exemplo, onde aportámos em meados do século XV e cuja independência, em 1974, irá marcar o fim do Império. Essa presença, até ao século XIX, confinava-se a praças, feitorias e presídios, uma meia-dúzia, pagando tributo de arrendamento. Fomos cedendo a Senegâmbia aos franceses e ingleses, a atual Guiné, que decorre da Convenção Luso-Francesa de 1886 acabou por ser um enclave no protetorado do Futa Djalon. Nas constituições portuguesas do século XIX nunca se fala na Guiné, fala-se me “Bissau e Cacheu”. Em simultâneo com o fim do tráfico dos escravos, móbil comercial dominante da presença portuguesa, assomam conflitos brutais entre Fulas e outros grupos, e como não havia ocupação portuguesa no interior as guarnições militares viram-se confrontadas com sucessivas guerras, não vale a pena enumerá-las, foram muitas. A acalmia só chegou com as campanhas militares do capitão Teixeira Pinto, de 1913-1915. A situação muda radicalmente com a chegada de Sarmento Rodrigues, ele aspirou transformar a Guiné numa colónia-modelo e teve sucesso. A economia da região era dominada por duas grandes empresas, a CUF e a Ultramarina, pertencente ao Banco Nacional Ultramarino. De Teixeira Pinto em diante, formaram-se alianças, conseguiram-se neutralidades. Se os autores se tivessem decidido a estudar a guerra da Guiné a fundo, teriam descoberto que ao longo de 1962 a insurreição abateu-se no Sul e quando em Janeiro de 1963 começou a luta armada, a posição portuguesa tornou-se periclitante, e assim foi até ao fim da guerra. Mas são coisas que os fanáticos pretendem iludir, exploram as emoções daqueles combatentes que viveram noutros cenários de guerra e que se deixam embalar por estas meias-verdades de que havia sustentabilidade para continuar o esforço de guerra, o que se passou foi a tal traição dos oficiais mancomunados com as forças de esquerda e esquerdistas. Como o livro é uma manta de retalhos, aproveitando até textos elaborados com outros propósitos, apanhamos com as acusações à retirada de Guileje. O autor não esconde o seu espírito onzeneiro: “O comandante do COP 5 (major Coutinho e Lima) voltou ao quartel apenas para saber pelos seus subordinados – em quem segundo o jornal da caserna não tinha grande comandamento – que o último ataque sofrido tinha destruído o posto de rádio e parte da artilharia. A retirada fez-se nessa noite, sendo feita em boa ordem de marcha e com todos os cerca e 500 elementos da população” e daí a questão sibilina: “Até que ponto haveria ação subversiva feita por eventuais infiltrados simpatizantes, idos da Metrópole?”.

Segue-se o documento do comando-chefe, reunião dos comandos de 15 de Maio de 1973, não há nenhum blogue que não tenha já reproduzido, mas dá para encher 60 páginas do livro.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14840: Notas de leitura (734): A Guiné Portuguesa em 1928: Segundo o anuário da Escola Superior Colonial de 1929 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5791: Controvérsias (64): Os efeitos colaterais da guerra (Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519)



1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem, em 5 de Fevereiro de 2010:



OS EFEITOS COLATERAIS DA GUERRA


Por volta do fim de Março de 1971, tive de me deslocar ao Hospital Militar da Estrela, por motivos das análises que tinha efectuado ao Paludismo, aquando da desmobilização no RAL 3 em ÉVORA.


Nessa minha deslocação, apanhei um eléctrico no Largo de Camões com destino à Estrela. Como sempre viajava junto ao guarda-freio (na frente do eléctrico junto ao condutor), quando de repente disparou a protecção do circuito eléctrico, que liga o trólei aos cabos condutores aéreos de alimentação da energia.

O disparo provocou um forte estrondo, e eu acabado de regressar das lides guerreiras, reagi instintiva e instantaneamente, saltando do eléctrico e enfiando-me na primeira porta aberta de um prédio em frente.

Perante o espanto geral de toda a gente, que no viajava no veículo e vários citadinos, que, apeados, circulavam na rua e que foram os primeiros a chegar junto de mim, indagando sobre o que me tinha acontecido.

Dei a minha explicação, dizendo que eram efeitos da Guerra do Ultramar, da qual tinha regressado recentemente, nomeadamente da Guiné.

Sem saber como e donde, apareceu um indivíduo, intitulando-se jornalista do jornal “O Século”, que me informou que gostava de relatar o acontecimento, ao qual não me opus e eu compus a notícia.


A redacção dizia, mais ou menos, o seguinte:


"Ontem, pelas 10h00 da manhã, um militar recém-regressado da Guerra da Guiné, atirou-se dum eléctrico em andamento (carreira 28), perante o espanto geral de todos os passageiros, quando o circuito eléctrico do carro disparou estrondosamente. O mesmo encontra-se bem apesar de alguns ferimentos ligeiros.

Este é um dos efeitos colaterais de que sofre uma boa parte da nossa juventude, cicatrizada pelas vicissitudes da Guerra do Ultramar e que lhes marcará as memórias, para todo o sempre."


É obvio que esta notícia foi sujeita ao “lápis azul” dos censores da época, que depois de censurada foi recomposta do seguinte modo:


"Ontem, pelas 10h00 da manhã, um cidadão regressado à pouco tempo do Ultramar, caiu de um eléctrico em andamento, da carreira 28, perante um movimento brusco do mesmo veículo, quando viajava pendurado no estribo do mesmo."


Para os mais jovens esclareço que, nessa época, o regime político de Salazar/Caetano, tinha os seus acólitos sempre atentos sobre todas as notícias da Guerra do Ultramar, exercendo severa censura sobre todas elas, inclusive as de menor interesse, como era esta agora descrita.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


sábado, 15 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2646: A Guiné, a Guerra Colonial e o 25 de Abril. Comentários e Nota do Coronel Gertrudes da Silva (Virgínio Briote)

Apresentação do Diário da Guiné, Na Terra dos Soncó, na Sociedade de Geografia de Lisboa. Mário Beja Santos, Jorge Cabral, Henrique Matos e Joaquim Mexia Alves, Comandantes do Pel Caç Nativos 52.

Foto: © Mário Fitas (2008) . Direitos reservados.

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A nossa História recente em debate, sem outra precaução que não seja o respeito pela opinião do outro.
Destaques da responsabilidade de vb.
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A Guiné, a Guerra Colonial e o 25 de Abril de 1974

Comentários ao artigo publicado pelo Coronel D. Gertrudes da Silva

1. de Henrique Matos:

Porque será que se omite que o movimento dos capitães tem a sua génese na contestação dos oficiais do quadro permanente ao diploma - DL 353/73 - que colocava oficiais milicianos no posto de capitão sem passar pela Academia.

2. de Joaquim Mexia Alves

A visão aqui expressa da guerra do ultramar/colonial/África, é uma visão um pouco pessoal e em certos pontos não retrata a realidade. Basta dizer, por exemplo, que ao afirmar que em Angola, também pelo facto de ali lutarem contra nós e por vezes entre si três movimentos de libertação, a situação apresentava um certo equilíbrio, se está completamente fora da realidade.

Em Angola a guerra só muito esporádicamente e por conta da UNITA, tinha alguma actividade.

3. Nota do Coronel D. Gertrudes da Silva ao comentário do Henrique Matos, enviada ao co-editor:

Mando-lhe isto a si.
Faça-lhe o que entender, mas eu tinha que reagir.
Mas não estou zangado, não.

Um abraço.

O João Parreira e o Artur Conceição, do BArt 733 (Mansoa, Bissorã, Farim, Cuntima, Jumbembem, Canjambari...), em primeiro plano na cerimónia de apresentação do Diário da Guiné, do M. Beja Santos. Na 2ª fila, o Coronel D. Gertrudes da Silva (sorridente).
Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.

A UM ANÓNIMO

Se não se apresentasse sem dizer o nome, já que mais não fosse por razões de pertença, dirigir-me-ia a si como caro ou até como amigo ou camarada (da tropa, naturalmente). Mas aí vai.

Eu não omiti nada no escrito (*) que alguém com esse direito tratou de publicar no, já agora, nosso blogue. Não me propunha aí falar propriamente do 25 de Abril, e tão só no enquadramento desse facto (marco) histórico no contexto da Guerra Colonial.
Aliás, se se desse (ou der) ao cuidado – pode não ter tempo … ou disposição – de ler o que muitos militares que participaram no 25 de Abril escreveram sobre esse incontornável evento da história contemporânea portuguesa, se tivesse esse cuidado, prazer ou maçada, veria que nunca omitem esse determinante facto dos decretos.

Só a título de exemplo, e por de memória os ter aqui mais à mão, convido-o a passar uma vista de olhos por qualquer um dos seguintes escritos publicados:

- “Origens e Evolução do Movimento dos Capitães”, de Dinis de Almeida;
- “Alvorada em Abril”, de Otelo Saraiva de Carvalho;
(Para se conhecer tem de se ler de tudo …)
- “História Contemporânea de Portugal”, (vários), Vol. II.


E, já agora, e passe a publicidade, o livrito do autor destas pouco cuidadas linhas com “Quatro Estações em Abril” de nome de baptismo.
Porque isto não é três ou quatro mânfios, desculpe-me a expressão, marcarem um encontro no café da esquina, trocarem para ali uns blá-blá e pronto, vamos fazer um 25 de Abril.


O Capitão Gertrudes da Silva, Cmdt da CÇAÇ 2781. (Guiné, 1970/72).
Foto: © Gertrudes da Silva. Direitos reservados.

É claro que a questão dos decretos é muito importante e até determinante porque, por boas ou menos boas razões, marca o arranque do “Movimento dos Capitães”, porque levou os capitães a juntarem-se e falarem, assim uma coisa, mal comparada, com o que agora leva à rua os professores.

Diga-se ainda que o protesto dos capitães (do quadro) não era contra os capitães milicianos, mas tão só contra o Governo que pretendia resolver os engulhos em que se metera com a teimosia da Guerra Colonial, a tal “Magna Questão”, à custa dos capitães.
E também lhe posso dizer que para além do grosso das tropas, que era constituído por praças, das centenas de cabos, furriéis, sargentos, aspirantes e subalternos milicianos, também os tais capitães (milicianos) acabaram por tomar parte no Movimento Militar do 25 de Abril.


A mim, por exemplo, competia-me comandar o Agrupamento November que integrava tropas de Viseu, Guarda, Aveiro, Figueira da Foz e um grupo de capitães de Águeda. Pois, olhe, depois de abordarmos o Forte-Prisão de Peniche e continuarmos, não em direcção de Fulacunda mas de Lisboa, ficou a tomar conta daquela fortaleza uma Companhia de Atiradores reforçada com peças de artilharia comandada por um desses capitães milicianos.
Não, não é gente chegar aqui e vamos fazer um 25 de Abril, não.
Quando o capitão Vasco Lourenço e mais alguns camaradas andavam por aí a recolher as assinaturas para o telegrama a enviar ao Congresso dos Combatentes, ainda não se tratava de decretos e não tinha de certeza em mente o 25 de Abril.
Quando uns meses mais tarde, em 09Set73 cerca de centena e meia de capitães se juntaram num monte alentejano nas proximidades de Évora para discutirem as formas de atalharem às consequências dos ditos decretos, o que dali saiu foi um requerimento por todos assinado, em que veementemente protestavam junto do Governo da Nação.

Ainda muita coisa se viria a passar, muita reunião, até à que foi realizada em S. João do Estoril, em 24Nov73, em que por impulso do Sr. Ten. Coronel Ataíde Banazol, que estava para embarcar com um Batalhão (e embarcou), o Movimento resolveu avançar para o projecto de derrubar o Regime através de uma acção militar.

Por fim, que se diga aqui também que não foi por medo que estes capitães enveredaram por este radical caminho.
Ninguém poderá negar – discordar, sim – que os que naquela noite saíram das suas casas corriam grandes perigos. Medo, nos lugares, nos momentos e em tempo de medos, todos nós tínhamos. O que era decisivo, disso todos nós sabemos, não era a questão de ter ou não ter medo, mas de se ser ou não capaz de o superar.

Depois do 25 de Abril, os capitães a quem competia por escala continuaram a ser mobilizados, alguns deles para viverem bem piores momentos do que os que já antes tinham suportado em plena Guerra Colonial.

E não me levem a mal por vir para aqui defender com alguma paixão a minha dama.
Viseu,14 de Março de 2008
Gertrudes da Silva
Cor.Ref.


(*) Texto para intervenção no encontro do Blog “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que teve lugar em Lisboa, em 06Mar2008.
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Nota de vb: ver artigo de

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2632: Coronel Gertrudes da Silva: A Guiné, a guerra colonial e o 25 de Abril (Virgínio Briote)

quinta-feira, 13 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2632: Coronel Gertrudes da Silva: A Guiné, a guerra colonial e o 25 de Abril (Virgínio Briote)



Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > 7 de Março de 2008 > Um lugar repleto de história e de histórias... Visita no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje. Na foto, o Coronel Carlos Matos Gomes, na situação de reforma, um homem do MFA da Guiné e um celebrado autor de romances de guerra como Nó Cego, Soldadó ou Fala-me de África (sob o pseudónimo literário de Carlos Vale Ferraz); a seu lado, o o catalão Josep Sánchez Cervelló, professor universitário, em Tarragona, especialista em história sobre o 25 de Abril e a descolonização portuguesa... Por detrás, o edifício, em ruína, da antiga 2ª Rep do Comando-Chefe, a famosa Rep Apsico, onde trabalhou Otelo Saraiva de Carvalho e Ramalho Eanes. Matos Gomes, na altura capitão dos comandos, foi um dos protagonistas do 25 de Abril neste palco da história... Na Amura repousam os restos mortais de Amílcar Cabral e de outros heróis da pátria guineense, como Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Tina Silá, Pansau Na Isna, etc., a qume nesse dia prestámos homenagem (LG).

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Texto base da intervenção do Coronel Diamantino Gertrudes da Silva na apresentação do Diário da Guiné, do Mário Beja Santos.

O Coronel D. Gertrudes da Silva, ele próprio escritor de crónicas de Guerra, teve a ambilidade e deu-nos o gosto não só de estar presente mas também de responder à solicitação que lhe foi feita para enquadrar a Guerra da Guiné no contexto da Guerra Colonial.

vb
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A Guiné no Contexto da Guerra colonial e do Regime do Estado Novo (*)

1. Notas Prévias

Antes de falar propriamente no assunto que aqui nos traz interessa, talvez, avançar com algumas notas prévias relativas ao próprio título e aos pressupostos de que parte o autor destas linhas.


Vamos falar de guerra, no caso, a da Guiné, guerra que aqui é tomada no sentido próprio de um conflito armado entre dois contendores com interesses antagónicos, cada um deles pugnando para derrotar o outro ou para quebrar a sua vontade de continuar a combater.
Que esta era uma guerra singular, sim, isso era, não convencional, dizem, insurreccional e subversiva para uns, de libertação e patriótica para outros, diferente do entendimento do Regime de então que em vez de guerra teimava em afirmar que era um conflito interno, portanto, uma questão de ordem pública que não tinha de se conformar, nomeadamente, com a Convenção de Genebra sobre o tratamento devido aos prisioneiros de guerra.

Guerra … colonial. E aqui está outra coisa que convém esclarecer, até porque há pessoas que quase instintivamente se abespinham quando ouvem alguém a referir-se à nossa guerra em África como “guerra colonial”. Acham que não – e estão no seu direito –, que nós nunca fomos colonizadores, que não tínhamos colónias, que Portugal era um caso muito especial, que organizado em províncias se estendia do Minho a Timor. Esquecem-se essas pessoas que como na questão da natureza da guerra, também na das colónias versus províncias havia da parte do Regime uma descarada manipulação. Se não vejamos:
Para não irmos lá mais atrás, reza o Artº. 3º do Acto Colonial de 1930 que “Os domínios ultramarinos (porque ultramarinos eram, já se vê) de Portugal denominam-se colónias e constituem o Império Colonial Português” (parênteses e itálico nosso).

Em 1938 era emitido nas oito colónias portuguesas de então um conjunto importante de selos que tinham impressas as palavras “Império Colonial Português”. A Nação pluri-racial e pluri-continental ficaria lá mais para tarde.


Que foi o que veio a acontecer no início da década de cinquenta, quando a comunidade internacional começou a apertar connosco, mormente nos pelouros da ONU. Nada que atrapalhasse o Regime que, de pronto, resolveu a questão passando a designação dos territórios de além-mar de colónias para províncias ultramarinas, designação que, por teimosia e depois por inércia se manteve até 1975.

Se tivermos que nos pegar (na discussão, claro), que não seja por aqui. Que tão simples já não será a questão que vem a seguir, a própria designação do Regime de então, que uns teimam em chamar fascista e outros de Estado Novo, estes últimos com o argumento de que não era comparável nem ao regime instaurado em Itália por Benito Mussolini e muito menos ao implementado na Alemanha por Adolfo Hitler.


O nosso (e digo nosso de propósito) não seria uma coisa nem outra. Seria para aqui uma coisinha, como todas as nossas coisas, terminadas em inho e inha, pobres de nós, que somos uns coitadinhos.

É certo que ao contrário dos outros dois aqui referidos o regime de Salazar e Caetano nunca se reclamou de fascista ou de nazi, reservando para si o nome com que António Ferro, em 1934, categórica e enfaticamente o designa no “Decálogo do Estado Nono”. Novo, porque assume e reclama a ruptura com o anterior feita pela Revolução de 1926.

Por mim, com mais inho menos inho, o regime derrubado em 25 de Abril de 1974 tinha e assumia muitas das características tanto do nazismo como do fascismo. Entendimento meu, claro, que, como tudo o que da minha parte aqui for dito, deve ser entendido como uma opinião pessoal, portanto, sem relevância política ou pretensões científicas.

E, já agora, que nunca das minhas palavras se infira que aqui se ponha em causa a justeza da nossa participação na Guerra Colonial … ou do Ultramar, para os mais resistentes e convictos, que não será por aí …

Profissionais ou não, voluntários ou obrigados, nós, os militares, cumprimos a parte que nos cabia, que era a de dar tempo e margem de manobra aos políticos para que resolvessem a Questão Colonial.

De resto, como dizia o mestre Kierkgaard, “A vida só pode ser vivida para a frente e explicada para trás”. E agora, sim, vamos a isto.

2. A Descolonização

Pois vamos começar mesmo por aqui. Porque a Guerra da Guiné só poderá ser entendida no contexto da Guerra Colonial, e esta no âmbito de factores históricos de natureza mais ampla, como é o caso da descolonização, que pressupõe, obviamente, um outro anterior a este, e que na história ficou arquivado com o título de “colonização” na lombada.

Pois a descolonização, para não irmos lá mais atrás, já tinha levado à formação dos EUA na segunda metade do século XVIII, alastrando depois a outras partes da América por todo o século XIX. E foi nos finais deste século e princípios do século XX que por circunstâncias que não dá para aqui tratar que se verificou uma notável corrida para a ocupação e reivindicação de domínios coloniais, nomeadamente por parte da Inglaterra, da França e também da Alemanha.

Portugal, nessa altura, enfraquecido pelas lutas liberais, perdeu em parte essa corrida, como se veio a verificar na Conferência de Berlim (1884/85), onde as potências europeias procuraram regular as questões decorrentes do assalto colonizador ao Continente Africano.

Mas as coisas não ficaram bem e aí vinha a 1ª Guerra Mundial (1914-18) que entre outras coisas visava, da parte de quem a fomentou e desencadeou, uma nova partilha das possessões coloniais. E todos sabemos que dela saíram derrotados os Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano. No final, a Alemanha, para além das condições humilhantes que lhe foram impostas, viu-se privada das suas possessões coloniais que passaram a protectorados sob administração de potências vencedoras, enquanto os outros dois impérios pura e simplesmente se dissolveram.

As condições em que se verificaram as dissoluções destes impérios e a emergência dos protectorados, vão explicar muito do que veio a seguir e, até, muito do que ainda hoje se passa, nomeadamente nos Balcãs e no Médio Oriente.

Seja como for, alguém ficou com umas tantas coisas encravadas na garganta e, na primeira oportunidade, aí estava a 2ª Grande Guerra Mundial (1939-45), guerra em que, em boa verdade, todos perderam, com excepção dos EUA que, vacinados com a Guerra de Secessão, assentaram que, a entrar em guerras, então que fosse na terra dos outros, o que neste caso os levou, no fim, a afirmarem-se como uma grande potência mundial. E assim se entende que de tão depauperadas as potências coloniais europeias, com mais ou menos resistência ou relutância, começassem a abrir mão de grande parte dos seus domínios coloniais.

Só para se ficar com uma ideia do vertiginoso movimento independentista que se segue, e só no que ao Continente Africano diz respeito, aí ficam alguns dados:

1947 – Independência da Libéria
1956 – Sudão
1957 – Gana
1958 – Guiné-Conakry
1960 – Benim – Camarões – Chade – Congo-Brazzaville – Costa do Marfim – Gabão – Madagáscar – Mali – Mauritânia – Níger– Rep. Centro/Africana – Congo Zaire – Senegal – Somália – Togo.
1961 – Serra Leoa – Tanzânia e início da Guerra em Angola
1962 – Argélia – Burundi – Ruanda
1963 – Quénia e início da Guerra na Guiné
1964 – Malawi – Zâmbia e início da Guerra em Moçambique (…)

Em Portugal, orgulhosamente sós, resistimos aos ventos de mudança, representando teimosamente a nossa comédia, pela Guerra Colonial transformada em tragédia, sob o pano de fundo da Guerra-Fria. Guerra-Fria que nos finais dos anos sessenta, princípios da década de setenta – atenção que vem aí o 25 de Abril – apresentava sinais contraditórios, uns de mudança outros de consolidação de um certo statuo quo.

Recordemos aqui, então só alguns desses sinais: Maio 68; Primavera de Praga (68); Conferência de Helsínquia (70) …); Conferência de Paris s/ Guerra do Vietname (68/74); Caso Watergate (72/74); Golpe de Pinochet (11 Set 73) e, por fim, como a culminar, a Guerra do Yom Kippur (73/74) que carregava no seu bojo a famosa Crise do Petróleo, que em três meses vê o seu preço ser multiplicado por quatro, interrompendo, de forma súbita e trágica aquilo que os economistas designam pelos trinta anos gloriosos de crescimento das economias ditas ocidentais a partir do rescaldo da 2ª GG.

3. A Guerra Colonial na Guiné

Mas deixemos lá, por agora, as potências ocidentais a debaterem-se com os problemas da Crise do Petróleo e regressemos à nossa Guerra Colonial e, no âmbito desta, que todos sabemos que se estendeu a três frentes (sem contar com a da retaguarda), à Guerra da Guiné, que se considera “oficialmente” iniciada com o ataque ao Quartel de Tite em 23 de Janeiro de 1963, seguido logo depois pela captura dos navios Mirandela e Arouca em 1 de Março do mesmo ano na região de Cacine.

E, mais do que a narrativa do que a partir daí foi acontecendo, terá maior interesse apontar alguns aspectos que caracterizam o que de específico teve a Guerra da Guiné no conjunto das três frentes da Guerra Colonial.

Comecemos, então, pelo que ela tem de comum com as outras duas:
- A guerra é conduzida nas três frentes por organizações que se reclamam do estatuto de “movimentos de libertação”.
- Todos eles beneficiam, como não poderia deixar de ser, de refúgio e apoios no exterior.
- Todos reclamam como finalidade a independência total.
- Com excepção da UPA/FNLA, marcadamente apoiada pelos EUA, todos os outros movimentos recebiam apoios, de entre outros, dos países do bloco socialista.

Depois vêm as diferenças que, como veremos, são muitas:


- Enquanto em Angola se nos opõem três movimentos de libertação, tanto na Guiné como em Moçambique, só há um movimento em luta contra as tropas portuguesas.


- Já no que respeita a vizinhanças – e aqui pensamos em refúgios e apoios –, nos casos de Angola e de Moçambique há países vizinhos amigos e inimigos de cada uma das partes em conflito, enquanto que na Guiné, tirando o Atlântico que vamos considerar neutro, as vizinhanças – Senegal e Guiné Conakry – são tudo do mesmo, ou seja, amigos do PAIGC e adversos a Portugal.


- Numa outra perspectiva, enquanto que em Angola e Moçambique no fulgor da Guerra Colonial ainda é possível distinguir um Norte (em guerra) e um Sul (poupado), na Guiné nem Norte nem Sul, é tudo mais ou menos por igual.


- No que respeita especificamente aos “movimentos de libertação”, em Angola opunham-se-nos a UPA/FNLA, o MPLA e a UNITA, liderados, respectivamente por Holden Roberto, Agostinho Neto e Jonas Savimbi; em Moçambique era a FRELIMO, primeiro liderada por Eduardo Mondlane e depois por Samora Machel; na Guiné era o PAIGC liderado por Amílcar Cabral, morto ainda não se sabe bem por quem antes de almejar a independência da Guiné e Cabo Verde, que era esse o objectivo final da sua luta.


- Quanto a recursos, então, as diferenças são quase abissais, o que, não explicando tudo, explica quase tudo o que se estava e depois viria a passar. Angola era uma terra de promissão com os diamantes, o petróleo e tudo o mais que aqui não dá para especificar; Moçambique, ainda assim, lá se ia safando com o chá, o caju e, principalmente, os direitos de transportes logísticos dos países vizinhos do interior.

A Guiné, valha-nos Deus, não tinha quase nada: um pouco de arroz nas imensas bolanhas e uns restos da cultura de mancarra que lá ia sobrevivendo ao esgotamento de terras, já de si tão fracas, fomentado pela acção monopolista da Casa Gouveia.

Angola, das três, era assim justamente considerada a jóia da coroa, expressão que sugere o Império, aquele, que era o Quinto, imaginado e arquitectado pelo Padre António Vieira a seguir à Restauração e mais recentemente retomado pelo Prof. Agostinho da Silva, tudo inspiração no famoso sonho de Nabucodonosor decifrado pelo Profeta Daniel, isto só por mera curiosidade.

Mas voltemos à Terra e às terras da Guiné para concluir que, das três, ela constituía o elo mais fraco, onde, portanto, e logicamente, o esforço de guerra era natural que fosse mais forte. E, para além desta circunstancial singularidade, o líder e dirigente do PAIGC, Amílcar Cabral, era de todos os outros dirigentes que se nos opunham o mais prestigiado e em alguns casos, até, representante e porta-voz do conjunto dos restantes, nomeadamente dos que com o PAIGC eram alinhados, concretamente, o MPLA e a FRELIMO.

4. A Guerra Colonial e o Regime

Já alguém disse, e suponho que acertadamente, que se não fosse a Guerra Colonial muito provavelmente não teria havido nenhum 25 de Abril. Vamos ver.

Em 1968 o país é surpreendido com a queda de Salazar, primeiro da cadeira da biblioteca e depois da do poder. É substituído na governação por um delfim do Regime, o Prof. Marcelo Caetano, que ensaiou e deixou passar a ideia de uma “Primavera” política que viria aí.

Pois, por muito boas intenções que tivesse o Professor, uma coisa havia de que ele bem cedo se apercebeu, e que o amarrava de pés e mãos – a Questão Colonial.


A Questão Colonial era, de facto, nessa difícil encruzilhada, a “Magna Questão” do Regime. E de tal maneira estas duas coisas – Guerra Colonial e Regime – estavam tão intimamente intrincadas, que era bom de ver que quando caísse uma, a outra ruiria logo atrás. Felizmente, diga-se, desde já, que com o 25 de Abril caiu primeiro o Regime, pois doutro modo tudo seria ainda muito mais complicado e dramático.

Entretanto, o cerco vai-se apertando cada vez mais com o agravamento da situação militar e as sucessivas resoluções da ONU num tenaz esforço, na altura liderado pelos EUA.


No terreno, e situemo-nos já nas imediações de 1974, a situação militar se, em Angola, também pelo facto de ali lutarem contra nós e por vezes entre si três movimentos de libertação, a situação apresentava um certo equilíbrio, pior, bem pior estava no Norte de Moçambique e praticamente insustentável na Guiné.

5. A Caminho do Fim

No elo mais fraco da Guerra Colonial que nós já vimos ser a Guiné, a partir do ano de 1972 tudo se precipitou. Esgotada a solução “Por Uma Guiné Melhor”, a ilusão da “Paz Podre” com a tragédia da “Morte dos Majores”, a degradação da situação militar entrou numa fase quase vertiginosa e sem solução que se descortinasse.

Já em Maio de 1972, após negociações secretas com Leopoldo Shengor, o General Spínola, em carta enviada a Marcelo Caetano escreve a dado passo: Em resumo, creio não haver grande controvérsia quanto à opinião de que não ganharemos esta guerra pela força das armas … E, sendo assim, apenas se nos apresentam duas alternativas como resposta à oportunidade que nos foi oferecida: ou uma viragem da ordem política ou uma prolongada e inútil agonia.

Em resposta, feita de viva voz, Marcelo Caetano, por cegueira ou por que outra coisa não podia fazer, tanto não deu acolhimento às propostas do General, como admitia com obscena naturalidade a hipótese da derrota militar, o que parece claro no excerto que se segue e onde a “Magna Questão” nos aparece aqui bem nua e crua:

Observei ao general que por muito grande que fosse o seu prestígio na Guiné – e eu sabia que era enorme – ao sentar-se à mesa das negociações com Amílcar Cabral ele não teria na frente um banal chefe guerrilheiro, e sim o homem que representava todo o movimento anti-português apoiado pelas Nações Unidas, pela Organização da Unidade Africana, pela imprensa do mundo inteiro. Assim, ia-se reconhecer oficialmente o Partido que ele chefiava como sendo uma força beligerante e reconhecia-se mais, que essa força possuía importante domínio territorial, uma vez que aceitávamos negociar com ela um armistício (ou cessar-fogo) como preliminar de um acordo. (…)

A dificuldade do problema da Guiné estava nisto: em fazer parte de um problema global mais amplo, que tinha de ser considerado e conduzido como um todo, mantendo a coerência dos princípios jurídicos e da política que se adoptasse.

E foi aqui que, no decurso da conversa, fiz a afirmação chocante para a sensibilidade do general, dizendo mais ou menos isto:

- Para a defesa global do Ultramar é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo o caminho a outras negociações.


- Pois V. Ex.ª preferia uma derrota militar na Guiné? – exclamou escandalizado o general.
- Os exércitos fizeram-se e devem lutar para vencer, mas não é forçoso que vençam. Se o exército português for derrotado na Guiné depois de ter combatido dentro das suas possibilidades, essa derrota deixar-nos-ia intactas as possibilidades jurídico-políticas de continuar a defender o resto do Ultramar. É isso que eu quero dizer.
” (sublinhados nossos).

E o General, perante a evidente reedição do pesadelo do estigma do “Caso da Índia” não aguentou e o sentimento de inconformismo mais se acentuou, sendo este, talvez, um dos factores mais determinantes do Movimento Militar do 25 de Abril.

De degrau em degrau, em Março de 1973 vêm os mísseis terra-ar e com eles o comprometimento do apoio aéreo às nossas tropas, tanto em aviões como em helicópteros e uma grande ofensiva – assim como uma mini-ofensiva do Tet à nossa escala – das forças do PAIGC, que culminou nos mais conhecidos casos de Guidage e de Guileje e anunciava o desastre com que os militares não se conformavam, mas que estava dentro dos planos do Regime, como vimos mais atrás. Regime que, decisivamente, tinha entrado num caminho sem retorno. Em desespero de causa, ainda tentou fazer reverter a seu favor o denodado esforço de guerra dos militares, promovendo e apoiando o famigerado “Congresso dos Combatentes” em Julho de 1973.

Mal imaginavam os senhores do Regime, que nessa mesma altura começava efectivamente aquilo que veio a ser o “Movimento dos Capitães”, com alguns militares na rua – e lembro aqui o Coronel Vasco Lourenço – a recolher assinaturas dos seus pares com vista ao envio de um telegrama de repúdio daquele congresso que veio a ter o seguinte teor:

“Cerca de quatro centenas de militares dos quadros permanentes e combatentes do Ultramar com várias comissões de serviço, certos de interpretarem o sentir de outras centenas de camaradas que, por motivo de circunstâncias múltiplas, ignoram verdadeiramente o Congresso, desejam informar V. Exas. e esclarecer a Nação do seguinte:


1. Não aceitam outros valores nem defendem outros interesses que não sejam os da Nação.


2. Não reconhecem aos organizadores do I Congresso dos Combatentes do Ultramar e, portanto, ao próprio Congresso, a necessária representatividade.


3. Não participando nos trabalhos do Congresso, não admitem que pela sua não participação sejam definidas posições ou atitudes que possam ser imputadas à generalidade dos combatentes.


4. Por todas as razões formuladas se consideram e declaram totalmente alheios às conclusões do Congresso, independentemente do seu conteúdo ou da sua expressão.
Subscrevem o presente telegrama, em representação simbólica das quatro centenas de militares referidos, dois militares que publicamente e por diversas vezes a Nação Portuguesa consagrou:


Capitão-tenente Alberto Rebordão de Brito (oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, Valor, Lealdade e Mérito; Medalha de Prata de Valor Militar com palma; Cruz de guerra de 1ª classe); 1.º Sargento graduado em alferes Marcelino da Mata (cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; Cruz de Guerra de 1.ª classe; Cruz de Guerra de 2.ª classe).


Solicita-se que ao presente telegrama seja dada publicidade igual à utilizada para as conclusões do Congresso.”


O esforço das Forças Armadas – e não só do exército, como parece confundir Marcelo Caetano – vai continuar, mesmo depois da proclamação unilateral da independência feita pelo PAIGC nas matas de Madina do Boé em 24 de Setembro de 1973, logo reconhecida por mais de 80 países.


O fim da Guiné enquanto colónia portuguesa parecia inevitável e próximo. Já em desespero, em 25 de Março de 1974 Marcelo Caetano aceita o envio de um emissário secreto que em Londres e num apartamento facultado pelo governo de Sua Majestade se vai encontrar com uma delegação do PAIGC chefiada por Victor Saúde Maria com vista a negociar as condições da independência da Guiné. As coisas ficaram encaminhadas. Só que entretanto ocorreu o 25 de Abril.



Academia Militar, 1963, Amadora. Cadetes do Curso do Cor Gertrudes da Silva.
Foto: © V. Briote. Direitos reservados.

Com um Regime orgulhosamente só (lá fora e cá dentro), com 40% do Orçamento afectado aos encargos da defesa, com milhares de mortos, milhares de feridos e muitos estropiados, com um esforço militar cinco vezes maior, em termos proporcionais ao dos EUA no Vietname, com a sangria das melhores energias da Nação na Guerra Colonial e na emigração, com a privação de todas as mais elementares liberdades, com um povo profundamente triste por tanta ausência e tanta perda era absolutamente necessária e, mesmo, inevitável qualquer coisa como foi o 25 de Abril, levado a cabo pelos militares, porventura porque sentiam melhor que ninguém a inutilidade da tragédia da Guerra Colonial, porque lhe preparavam uma saída ultrajante como a da Índia, porque talvez só eles estariam em efectivas condições de o fazer.


Viseu, 8 de Março de 2008
Gertrudes da Silva
Cor Ref

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(*) Texto para intervenção no encontro do Blogue “Luís Graça & Camaradas da
Guiné”, que teve lugar em Lisboa, em 06Mar2008.



1 António de Spínola, “País sem Rumo, pag. 29/31
2 Vários, “História Contemporânea de Portugal”, Vol. II, pag. 232.
3 “Hist. Contemp. de Portugal”, Vol. II, pag. 257.
4 Orlando Raimundo, “ A Última Dama do Estado Novo”, Temas e Debates, pag.117/118.

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Nota de vb:

O Coronel Diamantino Gertrudes da Silva foi admitido na Academia Militar em Outubro de 1962. Nº 1 do Curso de Infantaria, com o posto de Alferes foi mobilizado para Angola (região de Bessa Monteiro), integrado na CCaç 1642.


Em 1970, comandou a CÇAÇ 2781 na Guiné, que esteve destacada em Bissum, permanecendo no território até 1972, data em que a Companhia regressou à Metrópole. Colocado nesse ano em Viseu, no RI 14, aí permaneceu até à véspera do 25 de Abril de 1974. À frente das tropas que conseguiu reunir, deslocou-se para Lisboa e Peniche onde teve acção preponderante no desenrolar dos acontecimentos que se seguiram ao movimento militar.

Tem publicadas as obras:

Quatro Estações em Abril
Autor: Gertrudes da Silva
Colecção Imagens de Hoje
Género: crónica/romance
Ano: 2007
Páginas: 312
P.V.P.: € 18.90


A personagem que, na trilogia que aqui se completa, nos vai abrindo o caminho e guiando os nossos passos, por uma só vez revela a sua inteira identidade e, mesmo assim, não o faz de moto próprio, mas através do endereço de uma carta onde se pode ler: “Para/ Alf. Júlio dos Santos Parente”. E é com o nome de Júlio que anda em Deus, Pátria e... a Vida, para depois seguir com o apelido Santos em A Pátria ou A Vida e continuar aqui a sua caminhada apresentando-se como Parente (dos santos, naturalmente).

Júlio dos Santos Parente – e a muitos acontece – para simplificar as coisas é mais conhecido por Silva, ou então por este apelido com um outro dependurado, e que não é para disfarçar, embora se lhe reconheçam algumas ambiguidades não propositadas, tanto no género como na ascendência, mas que nada tem a ver com uma velha primeira dama do antigamente.

Júlio, Santos, Parente, ou simplesmente Silva, é sempre o mesmo. Um militar que se entregou por inteiro, de corpo e alma ao 25 de Abril; que o viveu em lutas, exaltações, temores e angústias; que comandou as tropas afectas ao MFA que da Região Centro partiram no encalço de Peniche e de Lisboa; e que aqui nos dá conta da sua visão dos acontecimentos e da sua pessoal reflexão sobre os factos e vicissitudes da “Revolução dos Cravos” que mudou para sempre a face de Portugal. Um homem que é, simplesmente... um dos Capitães de Abril.Fonte: Da descrição do livro.
A Pátria ou A Vida

Autor: Gertrudes da Silva
Colecção Imagens de Hoje
Género: Romance/crónica de guerra (colonial)
Ano: 2005
Páginas: 268
P.V.P.: € 16.80

(…)


Em "A Pátria ou a Vida" vive-se, sofre-se e morre-se sem heroísmos nem honrarias; caminha-se sempre sobre o arame que marca a fronteira entre dois valores que temos como sagrados. Porque a Pátria – lugar comum – nesses tempos era madrasta, tratando como estranhos os seus próprios filhos. Não de sua própria natureza, que essa era boa, e por isso sempre lhe fomos afeiçoados; mas por força dos homens a que, ilegitimamente, se foi entregando, todos com jeitos de abastados morgados, a largar-nos por aí, feitos filhos bastardos.
Da descrição da obra.
Deus, Pátria e…a Vida

Autor: Gertrudes da Silva
Colecção Imagens de Hoje
Género: Crónica de guerra (colonial) / romance
Ano: 2003
Páginas: 280
Preço com desconto: € 12.6

(Um livro que narra o percurso de um jovem que cedo conhece as agruras da guerra colonial e que sempre leva na memória os cantos da sua aldeia da Beira, bem interior...


Relatos por vezes sanguinários, em contraste com alguma pureza ingénua e original, revelam como pode passar-se dos "brandos costumes" para uma violência e crueldade de difícil entendimento. Momentos da nossa História recente que ainda nos incomodam mas que é preciso contar).
(…)


Extracto da descrição da obra.