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domingo, 15 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26269: Blogpoesia (802): "O sonhador é um fazedor de carências", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

O sonhador
é um fazedor de carências


Tu és uma profunda sonhadora
a minha carência
de um belo sonho de uma noite de luar
à beira de um imenso mar azul
o colo cintilante de estrelas
e os lábios húmidos de poemas.

Os olhos são os mesmos
a boca não mudou de lugar
e os beijos ainda lá estão
a atear a última chama do verão.

Diz-me onde tens a alma
gostava tanto de saber
gostava tanto de beber
um cálice de Vodka
ou de Porto
à saúde da tua alma
Ou de fel…não importa.

Vagueio horas a fio
preso aos dias e às noites
se calhar a vida inteira
à procura de um verso que perdi
não sei onde nem quando…
não sei se na vida errando
não sei se dentro de ti.


adão cruz
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Nota do editor

Útimo post da série de 2 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26002: Blogpoesia (801): "Preso à cidade", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 1 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26221: (In)citações (258): Era ele... Todo inteiro (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


ERA ELE… TODO INTEIRO

adão cruz

Hoje, ao meio-dia, estava eu sentado na mesa do costume, virado para a porta do restaurante. Vi-o entrar pela mão de um jovem, muito provavelmente seu filho, ou algum dos raros seres humanos que ainda guardam dentro do peito um coração em vez de uma pedra. Rosto chupado, coberto de pelos, desde o cabelo enrodilhado à barba grisalha e emaranhada, olhos lá no fundo de umas órbitas arroxeadas, fitava o infinito de uma qualquer galáxia para lá das paredes do restaurante. Vestia um casaco escuro muito coçado, de trespasse, caído do lado direito por força do uso e abuso.

Era mesmo ele, não tive dúvidas, o sem-abrigo que eu encontro todos os dias na Avenida dos Aliados, enfiado numa caixa de cartão, soerguendo a cabeça à passagem de alguém que lhe pareça suficientemente humano para se desapegar de uma moeda.

Sentaram-se na mesa frente à minha. O jovem, provavelmente seu filho, leu pausadamente o menu três ou quatro vezes, tentando libertá-lo da alienação da sua paisagem cósmica. Bacalhau assado na brasa… bacalhau à Braga… vitela na caçarola… bifinhos de frango…, mas o olhar fixo, sabe-se lá onde, não se desfazia. Pensei que estava pousado na televisão que ficava atrás de mim, mas olhando de esguelha, vi que estava preso no lado oposto, na parede nua.

Ao fim de uns minutos e de carinhosa paciência, o presumível filho conseguiu um assentimento no bacalhau na brasa. Pressentia-se que o apetite era pouco, ou melhor, já não era capaz de sentir o que é ter apetite. Habituado à fome, ter um nutrido prato na sua frente era um incongruente desábito. Lembrou-me os tempos da guerra, em que nós nos ríamos do perigo, tão habituados que estávamos a ele.

Quando esperava deste anónimo sem-abrigo uma sofreguidão faminta, nem consciência tive de um organismo que se habituara a desdenhar da fome e do apetite devorador dos que tudo comem e não deixam nada. Esboçou um sorriso desdentado nascido lá do fundo do desânimo, conseguiu lamber umas lascas do bacalhau, tragar dois goles de vinho e rir, não dando por isso, dos apetites do mundo, assim testemunhando, sem disso ter consciência, o ridículo de “O Mito do Normal”, de Gabor Maté.

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Nota do editor

Último post da série de 28 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26205: (In)citações (269): Hoje, Dia de Acção de Graças, o Thanksgiving Day, nos EUA: que haja paz entre os homens (José Câmara)

domingo, 3 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26112: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887) (9): Um buraco na parede

1. Mais um conto verdadeiro da Guiné, do nosso camarada Adão Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

9 - Um buraco na rede

(Mais um conto – verdadeiro – da Guiné)

Acordei a meio da noite e não fechei mais os olhos. A insónia levou-me onde bem lhe apeteceu. Gemi ao estalar do coração de uma mãe, senti o amargo do choro convulso de um pai, reabsorvi a minha dolorosa resignação… um barco e as amarras que o prendem aos olhos esbugalhados do cais, amarras que se despedaçam, pois ninguém lhes sabe desfazer os nós.

A madrugada de hoje começa a clarear. Quem olha através da rede da janela, sem vidros, julga que vai nascer uma amena manhã de primavera, mas em breve ela parecerá vomitada do ventre de uma fogueira.

Passarinhos coloridos salpicam de gorjeios o silêncio morno do amanhecer. Um grande inseto marra nervosamente de encontro à rede, numa volúpia incontida de liberdade. Eu e aquele moscardo à procura de um buraco na rede!

De um salto, corri da cama até ao chuveiro improvisado que borrifava sobre mim os mais deliciosos minutos do dia. Enquanto a água escorria em fios esganados, eu ia antevendo o prazer de uma caçada matinal às rolas. Iria pedir a carabina ao libanês senhor Heyle, o qual, àquela hora, ensonado, não se lembrava que não gostava de a emprestar. De qualquer forma, a mim nunca a recusaria, pois precisava de mim como médico.

Postar-me-ia a cem metros do arame farpado, por detrás do poço do jagudi, bem perto do canavial. Vindas das árvores que se encontram no baixio junto à bolanha, as rolas atingem, sem qualquer desconfiança, o mangueiro que está mesmo por cima da minha cabeça.

Será só apontar. Mas… nem apontar foi preciso, pois, as rolas não vieram, e as que vieram, fugiram, sem hesitações de pouso, como se, do lado de lá do canavial, alguém as tivesse avisado.

Quando se vive no isolamento, sobretudo na solidão da guerra sem sentido, o tempo jamais passa, mas as frações de tempo parecem voar como estas rolas que escarnecem de mim. Não sei se adormeci, penso que sim, movido pelo zumbido melífluo e hipnotizante de um desses enxames de abelhas selvagens que, à volta de um galho de cajueiro, ordenam a sua inquietante anarquia.

Quando acordei e olhei para cima, uma rolita inocente, vestida ainda com o castanho-torrado da primeira penugem, esticava o pescoço curioso para ver quem eu era. Estava tão perto, que eu lhe enxergava os olhitos faiscantes e quase ouvia as primeiras falas que as cordas vocais começavam a ensaiar. Instintivamente, colei-me à arma e só vi a cabecita inquieta estremecendo na ranhura do ponto de mira. Se ao menos ela fugisse! Se ao menos ela fugisse! Apertei o gatilho, e como estava tão perto, nem dei pela queda do seu minúsculo corpo.

Caiu o meio-dia sob a forma de um sol escaldante que só as árvores mais frondosas conseguiam coar. Espetei os olhos na avezita moribunda e vi que um fio de sangue lhe pintava o bico. Senti profundamente o gosto acre daquele sangue. Soube-me à guerra, a roubo, a crime, a futuro sem vida e vida sem futuro, à terra calcinada, à chacina. Torci-lhe três vezes o pescoço e atirei-a ao regato mais próximo. Puxei de um cigarro e tentei, com ele, acabar a tristeza e a amargura desta manhã.

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Nota do editor:

Vd. postes da série de:

25 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene

2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher

6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros

11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

16 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico

6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16453: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (6): Pequenas Grandes Verdades

13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk

27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque

domingo, 27 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26084: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (41): "A gema de fora"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


A gema de fora

Mal a luz do dia beliscou a frincha da janela, o homem acordou, acordou, como sempre, com pedaços do passado agarrados ao pijama, às mãos e aos cabelos.

Sentou-se na beira da cama e um sonolento: Oh! Que merda! Soltou-se da garganta ainda seca do bagaço da véspera. Quando os pés apalparam a falta dos chinelos, moldou os passos ao chão de modo a evitar o mais possível a madeira fria do soalho. Sobre a cómoda, continuava a tristeza à mistura com águas-de-colónia de vários tipos. Abriu um sorriso quando viu no tapete o artigo que acabara de escrever na véspera e que o sono fizera escorregar-lhe das mãos, dera-lhe o título Orgasmo, inspirando-se numa dessas tardes em que o fim do domingo abre as portas à demência. A caminho do quarto de banho, ia pensando nas palavras que nada dizem e na flatulência da comunicação que o fizera deitar-se tão tarde e acordar, assim, com a gema de fora.

Sempre nele permanecera uma grande dúvida quanto à eficácia de debates como o da véspera, será que têm algum valor como profiláticos da deterioração mental que a idade e os tempos acarretam ou são, eles próprios, catalisadores dessa mesma deterioração? Sobretudo se tais debates não passam de regateirices, confusões, dessintonia de mediocridade e estupidez, discutindo pessoas reles, factos ridículos, ou ideias banais, estafadas e apodrecidas, sobretudo se tais debates se processam entre corruptos, golpistas e terroristas que invadem as casas, maquilhados de gente de bem e cobardemente espantalhados de homens dignos. Sempre pensara que não se deve transformar em espetáculo o perigo da lavagem de muitos rostos pelo sabão da ingenuidade das pessoas, a verdade é só uma, e ele não aderia, de ânimo leve, à tese de que cada um teria a sua verdade, a verdade existe, está lá, está sempre lá, dentro das coordenadas humanas, há quem dela se aproxime e quem dela se afaste, mas o único caminho da verdade é o caminho da lucidez e não há lucidez que não assente na razão. Sem deixar de considerar que a irracionalidade é o caminho das trevas, cada um tem o direito a escolher o seu caminho da verdade, mas aí tem-se o direito de o julgar pela escolha, se se lhe conhece a formação ou a deformação, a inteligência ou a indigência, a humildade ou a petulância, o rigor ou a confusão, a seriedade ou a manigância. Grande respeitador do relativo e da cultura da diferença, o homem que não tinha nome consideravase adversário do consenso, do consenso acima de tudo, que destrói e anula o indivíduo, e da tolerância, tolerância como virtude, que implica sempre a presença de alguém que tolera e de alguém que é tolerado. O homem acordou maldisposto porque não acreditava na existência de debates fluidos, corajosos e pedagógicos e, mesmo assim, cedera-lhes parte do seu tempo de sono.

Convidar tanta gente de caras e tantas caras de gente, fazer cócegas em temas profundos, inacessíveis a mentecaptos, meter num mesmo saco capazes e incapazes, lúcidos e ineptos, fazer de assuntos sérios, estéreis, discussões, criar espetáculos de feira sem o mínimo receio de sujar a consciência e ofender a verdade, era mais do que razão para o incómodo acordar dessa manhã. A visão político-filosófica assente na maior preciosidade do homem, a razão, ao contrário do que muitos pensam, é a única visão profunda, dinâmica, mentalmente produtiva, constante recriação de vivências, ideias e utopias, inexoravelmente ausentes do pensamento irracional, retrógrado, estagnado e paralítico.

Já no café da esquina, o homem deu de caras com a mulher de longos cabelos negros, rosto comprido e olhos paradoxalmente achinesados, a quem pedira, há cinco anos atrás, para posar para si, nada tendo conseguido. Esguia, quase linear, de uma beleza que parecia desenhada, a sua figura prendia os olhos que nela tocavam. Sempre que o homem a via, recordavalhe alguém e bulia-lhe com qualquer coisa que havia dentro dele, ela própria, alguém que já vira, alguém que gostaria de encontrar?

Na mesa do lado, via-se que um outro homem, seguramente um habitante dessas inúmeras ilhas que se escondem no ventre da cidade, tentara encontrar uma camisita de riscas verdes a condizer com o verde das calças, se bem que mais escuro, aceitava-se, não era muito boa a combinação, mas percebia-se a ideia, já não era de aceitar tão facilmente aquela senhora vista de trás, relativamente escorreita, blusa na moda e saia quase mini, moldando formas enganadoramente jovens, que o virar da cara logo atraiçoava ao denunciar as engelhas dos setenta anos. Ninguém tem nada com isso e se ele mentalmente o comentava é porque considerava o sentido do ridículo quase um irmão gémeo da inteligência.

Uma outra senhora tentava limpar, com um guardanapo de papel, os pingos de baba que o marido, por força de tentar sorrir, deixava escorrer dos lábios inertes sobre a gravata cinzenta, deve ter sido acometido de acidente vascular cerebral, pelo menos assim o descrevera o genro à saída do banco: “O meu sogro teve um ataque celebral e ficou com a boca a tocar flauta e a pôr açúcar nas farturas.” Mas ele, provavelmente, nunca entrara num banco, não era desses, não, à esquina do banco, onde costuma fazer umas horas no engraxa, como está de baixa pela caixa, aproveita para andar de caixa pela baixa, pelo que não deve ser este o seu sogro, este tem ar de quem tem massa, o que vale é que o acidente vascular cerebral dos ricos é igual ao acidente vascular celebral dos pobres. Mesmo hemiplégico, nem por isso deixou de sugerir, com a mão válida, que a mulher esfregasse suavemente o guardanapo um pouco abaixo da fivela do cinto, ao que ela acedeu de maneira afável e sorridente. Em paga, ele abriu o livro de cheques e mostrou o que havia por lá, ela arregalou os olhos e inspecionou-lhe, com falsa displicência, o pavilhão auricular, tentando arrancar-lhe docemente uns pelos esbranquiçados e eremitas que teimaram isolar-se do mundo cabeludo. Ciente de que a poderosa e autêntica dinâmica da vida, quer se queira quer não, reside no sexo, não tinha dúvidas em aceitar que o homem do livro de cheques optaria, se fosse possível, dar-lhe a escolher, por poder levantar o pénis em vez da mão paralítica.

Do outro lado do homem sem nome, uma mulher cheirava a perfume que tolhia, bafejou os óculos, limpou-os a um pequeno lenço e pô-los em contraluz para ver o resultado, mas os seus olhos em vez de fitarem o vidro, fizeram esguelha para o companheiro que tinha na frente o generoso cruzar de pernas de uma dessas liberais criadoras de pulsões. Foi para isto que se levantou tão cedo, afinal, o que veio ele ali fazer? Um súbito silêncio, um silêncio esquisito instalou-se à sua volta, o silêncio daqueles momentos em que não se sabe o que fazer, em que se entrechocam o querer e o não querer, o sentir e o não sentir, ele tinha pedido um café e lia o jornal, lembrava-se de que não há nada mais saboroso do que faltar ao trabalho e ir para o café ler o jornal, ou melhor, algumas coisas boas que o jornal comporta, no meio de tanto lixo, levantar os olhos de vez em quando, presenciar as descarnadas cenas da vida, dar cem ou duzentos paus a um mendigo andrajoso ou a uma prostituta bem vestida que os pede emprestados, levantar os olhos de vez em quando e pensar na grandiosa obra daquilo a que chamam criação e, ao que parece, nunca fora criado nem inventado, apenas desenvolvido dentro da ordem natural, obra toda errada por adulterada, é certo, mas grandiosa.

O homem acreditava que o equilíbrio entre o que somos e o que acreditamos e o que os outros são e o que pensam é de tal modo difícil, que a forma mais sábia de nos mantermos verticais neste mundo é colocarmo-nos na posição de deitados, isto é, na posição de aprender. O comum das pessoas que escrevem não difere do comum das pessoas que leem, tudo estaria bem se as pessoas que leem não se sentissem os educandos dos sábios que escrevem, e as pessoas que escrevem não inchassem com as banalidades que dizem, há os que merecem ser lidos e os que não o merecem, simplesmente, só a meio da leitura a gente se dá conta e lá se vai aquele tempo por água abaixo. A nossa cabeça é invadida pela cobarde e revoltante ideia de pensar que a única hipótese que nos resta é não perder o sentido de humor e marimbar-se para os que não respeitam, nem de longe nem de perto, a capacidade que os outros têm, apesar de estarem calados, de ver que eles não sabem nada do que dizem, e que os seus comentários, sem vivências sérias a escorá-los ou solidez cultural a estruturá-los, não passam de mastigada para inglês ver, é sobremaneira penoso e ridículo um qualquer medíocre pegar na caneta ou na língua para analisar figuras cuja vida, formação e inteligência ele não tem capacidade para entender. Pensamos logo como se comportariam tais sábios, se tivessem uma dor no peito, uma dor no peito, porquê uma dor no peito? Tudo é secundário e virado do avesso quando há uma dor no peito, o rico diz que é pobre, o que é, quase sempre, verdade. O político de direita diz que é de esquerda e, algumas vezes, vice-versa, que é o que eles acham que os outros gostariam que eles fossem. O forte não desmente a sua fraqueza, o vigarista confessa o desejo de ter sido a pessoa mais séria, o articulista ou o comentador prestam-se a engolir o que disseram se nisso residir a analgesia.

Toda a hipocrisia vem ao-de-laço de uma dor no peito, a dor no peito despe até à nudez aquele que a sofre, dissolve a vaidade e coloca qualquer homem perante si mesmo, é o detergente que embranquece o espírito e lava a memória. A dor no peito é uma espécie de fronteira entre a vida e a morte, perante ela, ninguém tem vergonha de ser ou parecer ignorante. Não sabem que a dor no peito pode ser, apenas e exclusivamente, a somatização da consciência da nossa insignificância, se o soubessem e disso tivessem a certeza, talvez nem se importassem. Era isso que assustava o homem que não tinha nome, não a dor no peito, mas a fraqueza de um mundo que morria assustado, a grandeza delapidada no esgotar da razão, o vaguear dentro do ciclo vicioso de um sonho desfocado e confuso de que se não acorda, a sensação asfixiante de que o mundo se estreita e se dissolve no fim do corpo abalado por uma dor no peito.

Dobrou o jornal, enfiou o sobretudo e sentiu que aquela manhã não era bem igual às outras, mediu, de novo, todas as caras, perguntou a si mesmo o que estava ali a fazer no meio de uma sociedade de olhos vendados, cega, sem horizontes, que nega a razão como única riqueza do homem, voltou a perguntar a si mesmo o que fazia ali e o que tinha ele a ver com tudo aquilo, na imensidão apaixonante do Universo o que era, afinal, aquele café e aquele jornal, o que era o viver, o ter vivido, e o que se há de ter de viver.

Levantou-se e saiu, o ar fresco da manhã ainda lá estava para o acariciar.

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Nota do editor

Último post da série de 20 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26061: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (40): "O homem sem nome"

domingo, 20 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26061: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (40): "O homem sem nome"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


O homem sem nome

Quando nasceu, trazia entranhados em si dois grandes pecados: o pecado original e o pecado de ter sido gerado em mãe solteira.
Para além disso, fora parido quase moribundo.

Imagine-se o terror de sua mãe que já o via a arder no fogo do Inferno.
O pai, mais racional, não tinha assim tão maus pressentimentos. Para ele, Deus não seria capaz de condenar, e logo com penas eternas, um ser indefeso, pelo simples facto de a pia batismal distar três quilómetros do local de nascimento.
Pegaram na mulher mais à mão e no homem mais ao pé, embrulharam num cueiro este escarro de gente e correram a sete fôlegos em direção à igreja.
Ambos conheciam a gravidade do pecado original.
“As almas dos que morrem em pecado mortal ou apenas de pecado original descem ao Inferno”, anunciava o concílio de Florença em 1439.

Todos sabiam que o batismo era a única terapêutica que salvava e apagava o pecado original.
Se chegasse à pia do batismo com vida, não seria este pecado, marca da infâmia do seus longínquos e primitivos antepassados, que o levaria à condenação eterna.
Quanto ao outro, o pecado de amor, o pecado de sua mãe, nada constava na tradição que o considerasse passaporte direto para as profundas, embora fosse exatamente igual ao primeiro, mas muito mais recente.
No mínimo, em cima do outro, agravaria, certamente, a sentença divina.
Portanto, as perspetivas não eram animadoras.
Na correria para a salvação, nada mais dominava o pensamento dos hipotéticos padrinhos, - assim o permitisse serem-no, efetivamente, a graça divina - senão o terror.

Já com alguma idade, esse esperançoso par lembrava-se de ter ouvido da boca de um padre velhinho, de quem se dizia ser pai de onze filhos, que um papa chamado Bento XIV e outros seus sucedâneos aprovaram o batismo de fetos e abortos, bem como dos fetos das mulheres grávidas mortas, aos quais faziam chegar a água benta através de um sifão especial ou de uma cesariana.
O medo era tão grande que chegaram a arranjar fórmulas especiais para batizar abortos ainda sem forma humana ou mesmo aberrações e monstruosidades resultantes, eventualmente, de distrações ou falhas nos cálculos divinos.

Já a meio do caminho da igreja, os corações dos dois estafetas salvadores quase pararam ao sentirem que nada pulsava naquele montinho de carne.
Apertaram-no contra o peito e deram-lhe algumas palmadinhas suaves, não fossem acabar com o sopro de vida em que ainda acreditavam.
Aquele minúsculo projeto, à falta de melhor resposta, reagiu com o intestinal ruído que precede ou acompanha uma pequena dejeção de ferrado, o que aliviou um tanto os padrinhos, embora soubessem que esse facto não constituía, propriamente, uma manifestação de vida.

No último minuto, provavelmente já na fronteira do entroncamento onde divergem os caminhos para o céu e para o inferno, o recém-nascido usou pela primeira vez as cordas vocais, soltando um pequeno gemido que logo se fez choro convulso ao sentir a água benta e fria na cabeça.
Crê-se, hoje, que não fora a água fria, mas o nome que pretenderam dar-lhe, a razão do seu choro.
Era como que voltar à estaca zero, uma espécie de restitutio ad integrum do pecado original, tornando inútil toda aquela corrida para a pia da salvação.

Os seus gritos devem ter ecoado como ribombante trovão para lá dos séculos, no ex-paraíso, hoje deserto, no lugar onde os pais da humanidade condenada, não sabendo para o que servia aquilo que tinham entre as pernas, pagaram com a felicidade eterna por terem-no descoberto.
Para que ele parasse de chorar, não tiveram outro remédio senão, esquecerem o nome.
A força do sacramento venceu, o Diabo recuou e assim ficou sem nome o homem que não tinha nome.
Na verdade, o agora filho de Deus sobreviveu.

Revigorado com o sopro divino, chegou ao seio da mãe onde algumas gotas de leite lhe seguraram a vida e sadicamente o impediram de seguir logo, diretamente, sem necessidade de vir a sofrer as provações de todo um futuro incerto e traiçoeiro, para a garantida felicidade eterna.

Passaram os anos.

Acordava com a voz dos melros e rouxinóis e saltitava com os pardais.
Vestia-se de sol e despia-se de luar.
Estreou o mundo no abraço das árvores e no beijo dos rios.
Seus olhos dormidos casavam a noite e o dia no mesmo silêncio de sonho-menino.
A vida viveu nele crescendo todos os tamanhos e medindo todos os céus.

Mas os homens comeram as crianças.
Os homens comeram-se crianças e neles foram matando a criança que crescia.
Um dia, meteram-lhe uma coisa na boca e disseram-lhe que era Deus.
Como se Deus coubesse na sua boca!
Como se Deus coubesse na sua boca!
O mar, infinitamente mais pequeno do que Deus, não cabe em todas as bocas juntas.

Também lhe disseram que ele era filho de Deus.
Ou gozaram com ele ou pretenderam fazê-lo acreditar em paranoias.
Como se Deus andasse para aí a fazer filhos como ele!
Seria preciso que fosse um Deus muito fraco e muito irresponsável!

Revelaram-lhe, ainda, que sua mãe era uma virgem, o que ele não era capaz de entender.
Deus, pelos vistos, seu pai, ao gritar ao mundo que crescesse e se multiplicasse, ou se enganara ou se arrependera ou não acreditara no que tinha feito.

Disseram cada coisa que ele chegou a pensar que mandava nos pássaros, que era capaz de pôr as cobras de joelhos e que o céu era trigo limpo!
Sendo ele filho de quem era!
Apesar de tudo, sempre foram para ele um tanto estranhas as atitudes de seu divino pai.

Ouvira falar de comboios com milhões de pessoas a entrar nas câmaras de gás.
Deus estava lá, Deus está em toda a parte.
Morreram e morrem milhões de crianças às mãos da fome e Deus, seu pai, atafulha as mesas dos que não têm fome.
As guerras crescem como as moscas, correm rios de sangue ao sabor dos interesses dos que mais rezam a Deus e seu pai, com poderes para desligar a máquina, não o faz.
Milhões de mortos esventrados, despedaçados, violentados!
E eles até são seus irmãos!

O mundo abarrota de doentes, crianças doentes, e logo crianças!
Ainda noutro dia, o seu celestial pai dissera alto e bom som: “Deixem vir a mim os pequeninos!”
Pensa ele que o pai se referira aos meninos ricos, porque os pobres são sempre os mesmos, e ele nunca os vira em casa de seu pai.
Os das barracas, os famintos, os esfarrapados.

As más-línguas até proclamam que ele é filho ilegítimo.
Argumentam dizendo que um pai que tanto faz sofrer os seus filhos não pode existir.
E ele começa a ter vergonha porque nenhum filho gosta que o pai o atraiçoe.
Pensava.

Os que comem tudo e não deixam nada, os que geram a fome para que não lhes falte a fartura, têm casas de ouro, férias para descansarem de não fazerem nada, luxo em cima de luxo, o céu garantido aqui na Terra e lá em cima nas primeiras filas que o Vaticano sempre lhes reservara, enquanto os outros vão para a vala comum, agora que o inferno faliu.

O Inferno lá de baixo, o das almas penadas, perante o grito de sofrimento dos povos, imbuídos da fé que tanta e tanta felicidade lhes trouxe nestes místicos séculos, até parece que não era tão mau como o de cá.
Talvez o Diabo não seja como o pintam.

Os fervorosos comungadores, não tanto da sagrada hóstia como do ouro, acham que os espoliados ainda têm pele, eventualmente rentável e utilizável para fazer tambores.

E a vida continua, na sua tradicional canção de louvor a Deus!
No fim de contas, o homem sem nome pensa que seu pai enlouquecera ou perdera a vergonha.
Faz-se surpreendido com tudo o que vê, ele que é omnividente, omnisciente e omnipotente, e otimiza facciosamente as condições de vida dos fortes para que não sofram.
Cria, descaradamente, todas as condições para que as catástrofes, as torres de Babel e os dilúvios se abatam sempre sobre as cabeças dos mais fracos.

A estupidez invade a cidade como uma avalancha de merda e seu pai permite que façam dela a bandeira com que a bolorenta metafísica apodrece a razão de todos os criados e reciclados à sua imagem e semelhança.

O homem que não tinha nome, não sendo estúpido, foi crescendo no seio da estupidez.
Uma noite, altas horas da madrugada, um novo pecado haveria de entrar na sua alma.
Ficara muito assustado.
Lembrara-se, de imediato, do pai de todos, o colega grandalhão da escola primária quando, em segredo, lhe confessara a sua primeira sensação: “Uma estranha mijadela com muito, muito açúcar.”

Tinha razão.
Coisa estranha, nunca sentida!
Era, certamente, um grande pecado.
Não tinha memória do pecado original do qual se livrara à rasquinha.
Pelo que lhe haviam contado, deveria estar, de novo, no caminho das profundas.
Só agora conseguia atingir o significado das palavras do padre prefeito quando este lhe perguntara o número de vezes que havia pecado com o corpo.
Maldito corpo.

Bendita luz.
A luz do sol era azul, lembrava-se como se fosse hoje.
A luz azul azulava os claustros, as caras e o sentir.
Imaterial, pálida e fria.
As grandes janelas filtravam a luz azul que entrava dentro dele como chuva miudinha.
Pela vida fora sentira sempre um arrepio ao recordar essa luz azul e fria.
As batinas negras eram azuis e frias, frias e azuis como os olhos, a alma e a sombra.
A alma não era, nessa altura, designação académica.
Por isso ela punha os braços de fora e estrangulava a sua frágil personalidade de adolescente, sem sexo nem liberdade.

A saudade excitava-o, vivia-o de dia e adormecia-o de noite.
Saudade da sua fogueira quente e vermelha, do seu sol vermelho e quente, do seu campo, do seu rio, da sua noite de estrelas e luar.
A imposição do azul desfaz as formas e os sons e remete para a cidade da morte.
O medo do azul abre as portas do Inferno e mostra, lá dentro, a razão e a coragem a arder.
As horas inverteram-se e perderam o tempo.
Correm agora fora das veias à velocidade de uma luz azul e fria.
Pela mão do pai, passou a vida a correr tropeçando nas sombras.

Arrumou, ao canto da luz, mil horas vazias, sangradas a curricular futuros para ser gente na praça dos homens.
Pisou os passos pequeninos nos avessos da verdade e palmilhou léguas a tossir poeira.
Vestido de ausências, foi renascendo de amor.
Bendito corpo.
Maldita luz.

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Nota do editor

Último post da série de 13 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26042: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (39): "Um simples periquito"

domingo, 13 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26042: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (39): "Um simples periquito"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Um simples periquito

Não sei muito bem o que fazer nas férias. Não gosto de praia, não gosto de viagens programadas em grupo, não gosto de cruzeiros, enfiarem-me num resort qualquer é pior do que me enfiarem em Custóias. Gosto de viajar, mas de carro, sem destino, ao deus-dará. Foi o que fiz na passada semana. Vi, por acaso, uma exposição de André Brasilier no Château de Chenonceaux e, mal cheguei, fiz dois quadros, mais ou menos dentro da sua linha, a qual tem algumas semelhanças com a minha, ou melhor, a minha tem algumas semelhanças com a dele. Provavelmente, amanhã farei deles um post. Cheguei de férias.

Mas onde eu queria chegar era ao periquito. Não é que eu não goste de animais. Gosto, sim senhor, mas sempre que possível em casa dos outros. Um amigo meu, pintor, ofereceu-me um periquito. Em princípio, tudo bem. Um periquito não é assim uma coisa que atemorize. Porém, este periquito foi o único ser e produto que, em toda a minha vida, funcionou de alergénio e me ofereceu uma bronquite aguda asmatiforme que me obrigou a enfiar com o gajo na marquise. Entre a marquise e a cozinha, há uma janela através da qual eu vejo e converso com o periquito. Sim, converso com ele. Cheguei ontem. Quando chego e abro a janela, o bichinho está mudo que nem uma pedra.

Então chamo várias vezes por ele: pilinhas, pilinhas, pilinhas! Venha daí uma sinfonia. Ele concentra-se, mantém alguns minutos de silêncio e manda três assobiadelas estridentes. Um pouco como aqueles três morteiros que antecedem o fogo de artifício no rio Douro. Daí em diante, é um ver se te avias. Sonatas, serenatas, zarzuelas, música de câmara, sinfonias, eu sei lá! Quando eu lhe digo, Pilinhas agora é mesmo de escacha-pessegueiro, ele abre a goela e chilreia de tal modo que parece uma estrela de rock, até se empoleira de papo para o ar.

Eu vivo sozinho, embora tenha a frequente presença dos meus filhos e netos. Estou cheio de mulheres, melhor dizendo, estou cheio das incomensuráveis complicações que as mulheres acarretam. De mulheres não estou cheio, obviamente, até porque as vejo na rua e sei o prazer que delas conseguiria obter. Mas vivo sozinho. E em vez de mulher… há um periquito. Nunca na vida pensei que um insignificante periquito fizesse a companhia que faz. Ao fim e ao cabo, tudo nesta vida é relativo.

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Nota do editor

Último post da série de 6 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26016: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (38): "Vidas por um fio" (II)

domingo, 6 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26016: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (38): "Vidas por um fio" (II)

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Vidas por um fio (II)

Que bem estava assim de papo para o ar, quando minha mãe entrou no quarto e me disse:
- Meu filho, está lá fora o António e pede encarecidamente que vás ver o seu filho, que está a morrer.

Eu havia chegado nesse momento a Vale de Cambra para um fim de semana, vindo do quartel militar da Amadora onde aguardava o meu embarque para a Guiné. Estava cansado porque os trezentos quilómetros da altura, não eram os de hoje.

Em toda a minha vida clínica, vi muitas vidas por um fio. Mas nenhuma, como esta, se manteve tão enraizada na minha memória. O rapazito, de cinco ou seis anos, estava estendido numa pequena cama, inconsciente, branco como a cal, exangue. Tinha leucemia, segundo o diagnóstico de um pediatra de Espinho. A seu lado, sentada num pequeno mocho, a Tia Alzira esperava o último suspiro para o preparar.

- Amigo António, o seu filho está a morrer e precisa sem mal nem morte de uma transfusão de sangue. Tenho de o levar a qualquer lado.
- Nem pense, Sr. Doutor, o meu filho morre, mas morre em casa.

Foi aí que a minha força de jovem médico e o meu sangue na guelra me deram a crueza para lhe responder:
- Pois se você não mo deixa levar, ficará para sempre como culpado da sua morte.

Numa golfada de lágrimas, o pobre do homem, vencido, cedeu:
- Leve-o consigo, Sr. Doutor, para onde bem entender.

Eu tinha um velho Hillman Minx que era do meu pai.

Já noite cerrada, fui chamar um vizinho, o Urgel, e pedi-lhe que viesse comigo. Sentou-se no banco de trás com a criança ao colo e com a velocidade possível dirigi-me ao pequeno hospital de Oliveira de Azeméis. Contactei um colega que ali trabalhava, mais velho do que eu e que eu conhecia, a quem esmolei um pouco do sangue que por ali houvesse.

- Lamento muito, meu caro colega e amigo, mas não temos uma gota de sangue.

Corri para a minha carripana que eu muito desejaria que fosse um avião e rumei ao velho Santo António do Porto. Pouca gente se deve lembrar da urgência antiga do Santo António, com seus velhos claustros de paredes escuras e frias. O menino, deitado numa maca e embrulhado num cobertor, fez duas transfusões durante a noite. Ao raiar do dia abriu os olhitos espantados. A cal das suas pequenas bochechas tornara-se levemente rósea.

Foi internado na pediatria onde permaneceu nove meses. O diagnóstico de leucemia nunca foi confirmado, mas sim, uma grave doença hemolítica que, muito lenta e progressivamente, se foi compensando.

Hoje é pai de filhos e avô de netos.

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Nota do editor

Último post da série de 29 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25993: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (37): "Vidas por um fio"

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26002: Blogpoesia (801): "Preso à cidade", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

©Foto de Manuel Cruz


PRESO À CIDADE

Preso à cidade
nesta inquietante angústia das sombras
ao redor de um tudo-nada que nos prende e constrange
cai dos telhados o pó cinzento de uma neblina estranha
que definha as ruas e arrasta as horas na lentidão dos passos.

Lá atrás
uma réstia de luz presa ao vidro de um candeeiro partido
sob as janelas podres
lembra que se alma houvesse
seria fácil presa de um qualquer rígido corpo
enjoado de farsas e falácias amontoadas no lixo.

A noite caiu de forma estranha sobre a cidade sem corpo
definhada de luz e consciência
deixando atrás de si os últimos passos de uma existência
presa a todas as obscurantistas ordens estabelecidas.

Até o vento se foi
para não arrastar a neblina estranha
e para não calar o pesado silêncio que se prende ao corpo
como mortalha do tempo que desfaz a réstia de luz
presa ao vidro de um qualquer candeeiro partido.

Ainda ontem era dia nos braços do trabalho
e nas carnes que não conheciam o exílio
recusando morrer fora dos sonhos e da vida
e o vento varria o silêncio
para libertar o corpo e a mente
da neblina das noites pegajosas.

Havia certezas por entre os tremores da indecisão
havia sorrisos verdades e ilusões
e havia brisas sonâmbulas calando os medos
e havia rios arrastando as paredes negras
e todas as sombras dos candeeiros partidos.

Preso à cidade
na tristeza que nos envolve e nos liberta o pensamento
cai dos telhados a poeira do tempo
que cala as ruas e prende as horas na lentidão dos passos
e abre no chão quadriculado um espelho negro
com um menino tocando o céu azul
rodeado de pássaros e flores e rios cristalinos
e nos estende a mão num gesto de paz que nos acalma e nos perdoa
e carinhosamente
e sigilosamente
nos devolve ao nada por um caminho oculto
irreversível.


adão cruz

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Nota do editor

Último post da série de 19 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25660: Blogpoesia (800): "O Amor e a Vida", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 29 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25993: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (37): "Vidas por um fio"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Vidas por um fio

Eu acabara de comer a canja. Na minha juventude, os casamentos da minha aldeia tinham canja, frango estufado com ervilhas e vitela assada. Mas nem ao frango eu cheguei. Alguém me veio chamar para ir ver uma mulher que estava muito mal lá para os confins da Serra da Gralheira.

Enfiei-me no meu velho Hillman Minx e fui até Junqueira, no alto da serra, onde um homem me esperava. Daí em diante o trajeto seria feito a pé por montes e vales. Quase uma hora depois, chegámos a um casebre: em cima uma humilde habitação e em baixo o curral da vaca.

Uma mulher, ainda nova, jazia numa enxerga em posição de opistótono. Uma posição em que o corpo se encontra arqueado, em forma de gatilho de espingarda, apoiado apenas pela nuca e pelos calcanhares, em razão de uma forte contractura dos músculos da espinha. Logo deduzi tratar-se de uma meningite grave ou de um tétano em estado avançado. Após algumas perguntas a duas ou três pessoas que rodeavam a cama, cheguei à conclusão de que seria mesmo um tétano, cuja porta de entrada dos esporos e da toxina teria sido uma cova de um dente, escarafunchada com um pau do quinteiro da vaca.

Fiquei paralisado e senti-me, eu próprio, por momentos, com todo o meu corpo em contractura. Outra coisa não era de esperar num jovem médico, receoso e perdido no fim do mundo, perante situação tão inesperada, quanto complicada. Sentei-me num pequeno banco e pensei: se tentasse retirar dali a mulher, para onde a levaria? Os únicos hospitais que havia ficavam muito longe, em Águeda ou no Porto, o velho Santo António. A mulher teria de ser transportada em padiola até onde pudesse ser recolhida por uma ambulância, se existisse. Mas nestes estados, todos os movimentos e estímulos agressivos são perigosos. Aos trambolhões pelos caminhos da serra, seria profundamente penoso e poderiam facilmente ocorrer fraturas, nomeadamente da coluna. Além disso, como pressupunha que a doente, naquele estado, tinha lavrada a sua sentença de morte, achava tal decisão injusta, imprudente e mesmo atrevida para a época.

Decidi fazer, ali mesmo, tudo o que estivesse ao meu alcance. Felizmente, para sorte dela, os músculos respiratórios não tinham sido afetados e, por outro lado, para minha sorte, havia entre as pessoas presentes, um rapaz que tinha sido enfermeiro na tropa.

Precisávamos de uma algália, de uma sonda nasogástrica para alimentar a doente, de soros, de antibióticos, de relaxantes musculares, de sedativos, de clisteres, de seringas e agulhas, de álcool e de outros desinfetantes. Precisávamos, acima de tudo, de soro antitetânico, embora, numa fase tão avançada, a sua eficácia fosse mais do que duvidosa. E aqui é que residia o grande problema. Uma dose de 300.000 unidades não existia em lado nenhum. Só num hospital central. Nas farmácias das redondezas, havia ampolas de 1500 unidades, utilizadas na profilaxia. Por mais ampolas que conseguíssemos, só por milagre juntaríamos tal dose.

Mãos à obra. O enfermeiro, que tinha em Junqueira uma motorizada, correria todas as farmácias que houvesse no concelho de Arouca e Vale de Cambra. Pelo meu lado, iria a Sever do Vouga, S. João da Madeira e Oliveira de Azeméis.

Era já noite quando chegámos de novo à beira da doente. Trazíamos dois caixotes cheios, daqueles que, antigamente, constituíam as embalagens de sabão amarelo. Conseguimos tudo o que queríamos, menos a dose necessária de soro antitetânico que se ficou pela metade, não chegando a 100 ampolas.

Ao ver a doente algaliada, com a sonda nasogástrica no nariz, com uma garrafa de soro em cada braço, com tanta agulha espetada nas veias, nos músculos dos braços e na face lateral das coxas, um a encher seringas e outro a injetar, o enfermeiro, de olhos desmesuradamente abertos, disse-me ao ouvido: “Sr. Doutor, eu nunca vi fazer tal coisa!” Ao que eu respondi: Pois, eu também nunca na vida fiz tal coisa!

Lá para a meia-noite, com as mais pormenorizadas indicações e todas as recomendações possíveis ao valioso enfermeiro, caído do céu, abandonei o local com todas as esperanças de rastos, mas com uma sensação de alívio que me havia de acompanhar durante muito tempo.

Um mês depois, a doente passou no meu consultório a caminho de Fátima, a pé, trazendo-me um queijo.

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Nota do editor

Último post da série de 22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25966: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (36): "Terra e poesia"

domingo, 22 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25966: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (36): "Terra e poesia"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"

Terra e poesia

Tenho falado com alguns poetas sobre o que entendem por poesia, poetas de muito nome. Cada um deles, diz-me o que sente, mas ninguém me diz que a poesia nasce como nasce a água da fonte.

O homem veio consultar-me. Sentia, sobretudo ao levantar da cama e com os esforços, uma dor em barra sobre a tábua do peito que o imobilizava por completo. Era um homem alto, seco, de carnes magras e duras, sem qualquer mazela que se visse. Nunca estivera doente, por isso, este bloqueamento o intrigava tanto, parecia que tinha a mó de um moinho em cima do peito, quebrando-lhe as costelas.

Não era homem de queixumes, mas coisa séria haveria de ser para o pôr naquele estado. Até já lhe haviam dito que o mal seria, sabe-se lá, uma angina de peito.

- O senhor tem, de facto, uma angina de peito.
- Sr. Doutor, eu nunca estive doente em oitenta anos de vida, sou um privilegiado, não tenho medo da morte, pois todos temos de morrer mais tarde ou mais cedo, mas tenho pena de deixar o trabalho, sem trabalhar não sei viver.
- Diga-me, Sr. Doutor, com a verdade que muito lhe agradeço, se poderei fazer alguma coisa. Faço-lhe esta pergunta porque sempre trabalhei no campo, casado com a natureza e beijado pelo nascer do sol. Tenho pena, porque a enxada nas minhas mãos era uma viola e eu fazia nascer da terra a música que queria.

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Nota do editor

Último post da série de 15 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25946: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (35): "O Paquete"

domingo, 15 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25946: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (35): "O Paquete"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"

O Paquete

O Paquete entrara no serviço de urgência, inchado como um tonel, tenso como um balão a que só faltava o alfinete para estoirar. Fígado, pulmões, ventre de pandeiro, tudo estava encharcado como uma esponja por um coração entupido. Sem ar, como se morresse afogado ou, dentro da linguagem médica, como peixe fora de água, insuficiência cardíaca grave, insuficiência cardíaca descompensada, anasarca, os vários termos para rotular o sofrimento atroz de um jovem sem culpa, igual a tantos outros que jogam ténis.

Socorrido na primeira fase de compensação e um tanto aliviado, é internado para estudo. De manhã, veio fazer um ecocardiograma.

O Paquete tinha vinte e seis anos e uma cara aciganada, morena de si e roxa da cianose. Começara a trabalhar como moço de trolha aos treze anos, vergado ao peso da tábua e do balde. À força de cachaços, lá se erguia quando aninhava com o abafa. Nunca alguém o levara ao médico.

Não tive coragem de colher a sua história antes desta idade, a história da sua infância. A meio do exame, disse-me o Paquete, a medo e quase em segredo: “Sr. Doutor, estou à rasca para mijar. Deixe-me ir mijar, pelas almas.”

No meio de tais máquinas, perante aquela gente de bata branca que ele nunca vira mais gorda, o sofrimento da sua vida levava-o a pensar que pedir para mijar era quase um crime.

O Paquete tinha uma gravíssima estenose mitral com severa insuficiência mitral e tricúspide e um coração do tamanho de uma melancia. Estava numa fase inoperável, a rebentar pelas costuras. Se operado fosse, tudo não passaria de remendo em calças a desfazeremse.

Sem a mínima ideia do que se passava, ele submetiase, humilde, desconfiado, medroso como sempre acontecera em toda a sua vida. Tinha medo de que lhe pusessem a tábua à cabeça ou o balde na mão. E com aquela falta de ar! Ele que sempre pedira para o deixarem respirar um pouco, antes do peso de outra tábua e de outro balde.

O Paquete nunca fora ao médico e nunca ninguém lhe dera a mão para se erguer. Todos lhe esfacelaram o coração e a vida até rebentar! Pobre Paquete! Pobre barco tão frágil!

Com as lágrimas nos olhos, saí do hospital e escrevi esta história de hoje, de há séculos. Escrevi-a em especial para os meninos e jovens que brincam, que jogam, que sonham e que vão ao médico.
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Nota do editor

Último post da série de 8 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25922: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (34): "Canção de Natal"

domingo, 8 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25922: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (34): "Canção de Natal"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Canção de Natal

Sábado à noite, dia vinte e um, vésperas do Santo Natal.
O frio enrugava os ossos. A rua de Santa Catarina era um rio de gente, um rio de águas desencontradas sem destino nem rumo, umas correndo para baixo, outras para cima e mesmo para os lados, se algum dia se viu! Gente por cima, gente por baixo, gente saindo e entrando não se sabe bem onde. Tanta porta aberta, tanta porta fechada, não se sabe ao certo.
Pessoas em cima de gente embrulhadas em pessoas e sacos e mais gente e mais sacos pendurados nas mãos, nos ombros, no pescoço, nas orelhas, nos olhos.

Uma velha andrajosa, suja e gorda, - de doença seria a gordura e não de fartura! Uma provável anasarca cardíaca - que faz do doente uma espécie de boneco Michelin rebentando de inchaços.
Uma velha gorda excrescente tumoral (de trapos seria a gordura também! O frio enroscara-lhe o corpo com todos os farrapos do lixo).
Uma velha feia tentava subir a rua por entre a multidão limpa. Com grande agonia, arrastava pelo chão, puxada por um cordel, uma caixa de papelão que dentro continha outras caixas e restos de caixas e mais papelão (provavelmente toda a sua mobília de quarto que haveria de montar nesse arrastado andar lá para o meio da noite no vão de uma porta muito acima do 575, mais fora dos olhos dos enxotadores de pobres).

A velha, cuja idade lhe mirraria as carnes se os inchaços se escoassem, não ia bem-disposta, nem dava ideia de estar bem no meio daquele mar de gente, antes de tudo, sentia-se afogar, não era inveja dos sacos nem dos cheiros nem dos casacos nem do luxo (sabia lá ela o que era o luxo! Importava-se lá ela com todo o papelão dos outros todo o papelão que ia dentro daquele mundo de sacos!), ela só queria o seu papelão e que não estorvassem os seus bocados de passos que juntos não dariam mais passos do que dez à hora.
Ela só queria que aquela gente toda ali, parida pelo diabo, não a impedisse de arrastar a sua casa, então praguejava bem alto:
- Vão todos pró caralho, vão-se todos foder.

Ouvia-se como música de fundo um lindo cântico de Natal...
- Filhos da puta, deixai-me passar, vão-se todos foder.

Dois putos atiçaram a velha: - Vai-te foder, tu, velha ranhosa, ao mesmo tempo que ironizavam à gargalhada:
- Avariou-se o Mercedes à gaja!

A velha não se agastou mais do que já vinha, estava treinada na cena para não perder energias com a inutilidade de erguer a voz e ripostou num grunhido cavo:
- Vai levar no cu, paneleiro de merda.

A melodia de Natal escorria pelos ouvidos cheios de sacos de paz e harmonia.

Já quase exausta, com voz mais cava, a velha dizia: - Deixai-me passar, bandalhos.

Lá em cima, Deus não deve ter levado a mal.
Como reza o Divino Testamento, dos pobres é o reino dos Céus.
Em breve, ela estaria com Ele para usufruir da eterna justiça e.… na altura devida, Ele lhe daria com ternura um puxãozito de orelhas.
Deus não é bandalho.

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Nota do editor

Último post da série de 1 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25902: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (33): "Na senda do poema azul"

domingo, 1 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25902: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (33): "Na senda do poema azul"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Na senda do poema azul

Cruzaram as portas, correram os campos das árvores novas e os olhos de trabalhar não cederam ao sono nem triangularam o medo nem cavaram rugas no solo imponente das alamedas sombreadas de tílias.

Nesse dia, demorou um pouco mais o beijo que ele habitualmente depunha na sua face sedosa e apertou-a levemente contra o peito. Era uma mulher cheia de ternura e singularmente bela, uma daquelas belezas que roubam tudo o que se é no curto instante em que os olhos se cruzam.

Não se erguem pedestais de peso vazio, nem mulheres de vitrina são granito de amor ou seara ondulante que o vento não quebra, ou lágrima doce de criança com cheiro a alecrim.

Anos mais tarde, abraçou-a longamente e apertou-a fortemente, tentando beijá-la, mas ela cruzou o dedo sobre os seus lábios. De ambos, era apenas a poesia seu único elo de ligação.

Força centenária nunca inventada, criada dia a dia na cultura do percurso, na perenidade do ser, na alegria renascida da memória revisitada sem mágoa num espelho de lágrimas pode, um dia, o amor renascer e ganhar flor na miragem do deserto.

Tempos depois, beijou-a sofregamente e disse que tinha de fazer amor com ela, pois morreria se tal não acontecesse.

- Nem pense, respondeu. Não porque também o não desejasse ardentemente, mas não conseguiria ultrapassar a barreira que a impedia. Não… não eram os vinte anos a menos, mas o facto de ser casada.

Na posse de um presente incerto, de nada valem carismas de futuro nem linguagem detergente, nem jogos de vitrina nem letras ficcionais de reinvento externo, encenando convulsas narrativas de amor eterno.

Um dia, ela veio. Veio firme e decidida. Os cabelos caídos, a beleza amadurecida pela idade e por um lindo rosto ardendo de fogo. Beijou-o suavemente na testa, roçou os lábios pelos seus e espetou o dedo indicador no sítio onde o beijara, avisando com firmeza: “A primeira e última vez, nunca mais.”

O amor, naturalmente estético, não faz profecias nem confere paradigmas de futuro nas assimetrias das almas, o amor triunfa na força de ser fraco, na doçura decisória do dilema, na transparência da lágrima, na equação matemática da razão, que reduz harmoniosamente o tempo e o espaço a uma alma louca de paixão.

Sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés e começou a voar, estonteado pelos céus vibrantes da emoção, quando ela começou, delicadamente, a despir-se.

Abraçou-a pela cintura como chama escaldante e os dois ajoelharam num fino tremor que lhes atravessava o corpo como prenúncio de terramoto. Ela apertou-lhe a face entre as mãos e colou a sua boca à dele numa avidez devoradora. Abriu as entranhas num vulcão de lume e, a um passo do céu, sentiram um novo tempo a eternizar a vida.

Uma hora depois, seus corpos jaziam abraçados no chão, envoltos num pegajoso manto de suor. Um sorriso doce caía dos olhos semicerrados e dos lábios ligeiramente entreabertos dessa eterna imagem que nunca mais haveria de libertar-se do Poema Azul. O poema, onde a luz de sempre, que a noite amanhece, muda o espaço, inverte o tempo, descobre o sonho. E no mais fundo do ser, a dimensão aparece.

Uma hora mais até que os corpos se descolassem, e uma profunda tristeza começasse lentamente a invadirlhes a alma à medida que o sangue arrefecia e o coração insistentemente repetia: Nunca mais, nunca mais!

Voltou a vê-la, dois anos depois, num cruzar de olhos e quatro anos mais tarde, quando ela lhe ofereceu a face e um sorriso, onde umas finas rugas se inscreviam e diziam: Nunca mais!

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Nota do editor

Último post da série de 25 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25879: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (32): "Ciência e poesia"

domingo, 25 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25879: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (32): "Ciência e poesia"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Ciência e poesia

Encontrava-me num café de Paris, na Place de Contrescarpe, onde Edith Piaf, un petit oiseau, iniciara a sua carreira como cantora de rua.

Eu sonhava… Nessa altura não era proibido sonhar. Pelo contrário, era obrigatório sonhar.

À medida que a luz da manhã crescia, insubstancial e fria, eu descia a rue Mouffetard. À minha direita, descia Tchaikovsky e, à minha esquerda, subia Van Gogh.

Madrugavam ambos as suas inquietas e inflamadas personalidades nessa horizontal e fresca manhã do século dezanove.

- Bonjour, monsieur Van Gogh!
- Bonjour, monsieur Pyotr Ilitch!
- Bom-dia, rapaziada!
- Une merde, une merde, cochicharam os dois!

Sorridente e feliz, segui o meu caminho para a Salpêtrière. Estávamos nos primórdios da ecocardiografia, e debatia-se a soberania da famosa vertente E - F da válvula mitral.

A melodia e a cor entraram em mim pelas mãos da ciência. Para lá do frio, academismo, ciência e poesia confundem-se. A chama da poesia acende os dedos da paixão, onde mora o brilho da inspiração, na conquista da harmonia do saber a caminho do horizonte. A ciência enriquece a poesia. Ciência sem poesia é violino sem alma, mas disso nada entendiam nem Van Gogh nem Tchaikovsky.

Na entrada do anfiteatro, um busto holográfico de Hipócrates falava-nos mansamente. A mim piscou-me o olho e disse-me, por entre dentes: mon fils la vie de la science est le chemin pour la rencontre de nous mêmes.

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Nota do editor

Último post da série de 18 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25854: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (31): "A luz era azul"

domingo, 18 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25854: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (31): "A luz era azul"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


A luz era azul

A luz do sol era azul... lembro-me como se fosse hoje, a luz azul azulava os claustros, as caras e o sentir. Imaterial, pálida e fria.

As grandes janelas filtravam a luz azul que entrava dentro de nós como chuva miudinha. Pela vida fora senti sempre um arrepio, ao recordar essa luz azul e fria.

As batinas negras dos jesuítas eram azuis e frias… frias e azuis como os olhos, a alma e a sombra. A alma não era, nessa altura, apenas designação académica, por isso ela punha os braços de fora e estrangulava a minha frágil personalidade de adolescente, sem sexo nem liberdade.

Se Deus existisse e fosse justo teria poupado Ignacio de Loyola à mística cristocêntrica e ter-lhe-ia dado Catarina, Germana ou Leonor. Se Deus existisse e fosse humano teria posto A Freira no Subterrâneo dentro da pureza dos meus lençóis, aquecidos de saudade e vazio azul e frio.

A saudade excitava-me, vivia-me de dia e adormeciame de noite. Saudade do Caminho Novo, da minha fogueira quente e vermelha, do meu sol vermelho e quente, do meu campo, do meu rio, da minha noite de estrelas e luar.

A luz azul e fria reacendeu-se ao fim de quase meio século e eu tive medo. A imposição do azul desfaz as formas e os sons e remete para a cidade da morte.

Discordo de Kandinsky no movimento do azul para o infinito solene e metafísico a caminho da eternidade tranquila. E a culpa foi daquela luz azul e fria.

O medo do azul abre as portas do Inferno e mostra lá dentro a coragem a arder. Sem coragem não há saudade, último reduto da liberdade. Coragem, liberdade, saudade inverteram as horas e perderam o tempo. Correm agora fora das veias, à velocidade de uma luz fria e azul, azul e fria.

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Nota do editor

Último post da série de 11 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25831: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (30): "Impunidade e justiça"

domingo, 11 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25831: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (30): "Impunidade e justiça"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Impunidade e justiça

Ele não morreu nem matou ninguém. Do mal, o menos. Atrás de mim, ele esbracejava como um possesso. Mesmo sem nada ouvir, não tenho dificuldade em traduzir as palavras que esses gestos significavam:
- Anda para a frente, lesma, mexe-te filho da puta, ó velho do caralho!

O carro vinha mesmo em cima do meu, ameaçando, já não digo abalroar-me, mas tocar-me. Seguia pela marginal do Douro, do Freixo a Entre-os-Rios, estrada com muitas curvas e quase sempre com traço contínuo. Sessenta, setenta era a velocidade do meu carro, velocidade legal e perfeitamente adequada ao trajeto.

Acima desse limite, tornava-se não só ilegal como perigosa. O gajo queria passar sem mal nem morte e só não o fazia, mesmo nas curvas e no risco contínuo, porque a fila de carros em sentido contrário tornava a manobra impossível. Então, o bode expiatório do seu desespero era eu. Atirava-me com gestos obscenos e gritos que eu não ouvia perfeitamente condizentes com o fácies de atrasado mental que eu conseguia enxergar pelo retrovisor.

Da minha parte, em nada alterei a minha postura e a minha marcha. Até que a estrada se desfez, por momentos, das curvas, mantendo, no entanto, o risco contínuo. Vi logo que o animal aproveitaria aquele momento, a despeito de um carro que surgira de repente ao fim da reta. E como já conheço estas diárias aberrações mentais que infestam as nossas estradas de Norte a Sul, vi logo que ele ia esboçar o gesto de travagem brusca à minha frente. Claro que tomei as devidas precauções.

Ele não morreu nem matou ninguém, mas uns quilómetros à frente, ali para os lados de Gramido, afocinhou na valeta encolhendo a frente do carro até meio capot. Reconheci a pobre viatura e reconheci o gajo a olhar com ar de lorpa para o carro vermelho. Vi que não havia vítimas. Apesar de o ter observado somente através do retrovisor e de ele me ter parecido um néscio e um atrasado mental, a sua figura, fora do carro, era a de um gajo vulgar e normal. Para tristeza minha.

Como são os sentimentos humanos! Como pude eu sentir tão grande satisfação ao vê-lo estampado! Penso que esta minha pequena perversão não existiria se houvesse vítimas, mesmo que a única vítima fosse a própria alimária. Mas quando vi que era só chapa, soltou-se-me uma destas espontâneas e fundas gargalhadas que não sabemos de onde vêm, mas vêm certamente do eterno conflito entre a impunidade e a justiça, quando esta sai vencedora.

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Nota do editor

Último post da série de 4 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25807: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (29): "Um bramido de raiva"

domingo, 4 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25807: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (29): "Um bramido de raiva"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Um bramido de raiva

Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória, velocidade rebentando a dor, direto à morte que está em pé na berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.

Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.

Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô, trabalhador-milionário, desiludido porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas, sem força nem entreatos que te enxergassem melhor sorte do que a morte.

O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.

E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.

Quando vi que eras tu, o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.

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Nota do editor

Último post da série de 28 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25785: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (28): "O presépio de Laila"

domingo, 28 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25785: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (28): "O presépio de Laila"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


O presépio de Laila

Lembram-se, com certeza, da Laila1, aquela menina de um pequeno conto que anda por aí na net, aquela miúda que procurava, sem que ninguém entendesse bem o porquê, viver a vida às avessas.

Aquela moça que nunca fora feliz, que nunca atravessava a rua pela passadeira, que entrava nas portas sempre às arrecuas e não beijava o Senhor na visita do compasso, que puxava o manto do Senhor dos Passos na procissão da Paixão, que não rezava, nem comungava e fazia caretas às zeladoras do Coração de Jesus, aquela a quem o padre, quando ela era criança, queria pôr, à sua maneira, a alma direita e os sentimentos dentro do corpo.

Pois ela encontrara-o há mais ou menos um ano. Ele subia a rua pelo lado direito em direção à igreja e ela descia pelo lado esquerdo em direção ao cemitério.

Reconheceu-o, apesar de não levar batina nem cabeção, e pediu-lhe desculpa por descer a rua do lado oposto ao seu. Sentiu no peito um súbito impulso, como que um repelão, atravessou a rua de costas para ele e deu-lhe tamanho apertão na ferramenta que ele gemeu, ao mesmo tempo que lhe desejava Bom Natal.

Para ela, o Natal fora sempre uma quadra desenquadrada, uma espécie de buraco negro sem fundo que a arrepiava. Lembrava-se, ainda pequena, de que era pelo Natal que ele lhe enfiava a mão pela saia acima e lhe dizia: “Ai, meu menino Jesus!”.

Mas o que lá vai, lá vai. Só que não foi, nem vai, ficou-lhe de tal modo agarrado à pele, que não há sabão que a lave. Todos os natais, ela sente-se a tresandar a virtude e a mofo de sacristia. Só faz xixi em casa e de luz apagada, lava-se a toda a hora e momento, besunta-se de cremes e perfumes e veste sempre um vestido vermelho. O psiquiatra cansara-se de lhe dizer para ela encarar o presépio como uma coisa natural, um sonho bonito cheio de ternura, mas ela sempre cismara em desfazer todos os presépios que encontrasse pela frente.

A Laila tem 20 anos e, neste Natal, arranjou um namorado. O Lauro, da mesma idade, trabalha como ajudante de eletricista, habituado a fazer faísca. Mas com Laila a coisa custa a pegar. Comprou-lhe uma fiada de pequeninas lâmpadas de muitas cores e com elas envolveu-lhe o colo e a cintura do vestido vermelho, dizendo que ela era a sua luz e que nunca mais a apagaria. Ela nunca ouvira coisa tão linda e pela primeira vez, desde há muitos anos, sorriu. E o moço reparou que ela tinha um sorriso muito bonito e que tinha ficado contente.

Mas o Lauro, sempre à espera de alguma descarga, tem-se visto às aranhas para lhe dar a volta, que é como quem diz, inverter a ficha, alternar a corrente, virá-la do avesso, isto é, pô-la definitivamente a viver a vida às direitas. Ele sabe da aversão de Laila pelo Natal e pelo presépio, ele que é tolinho pelas luzes do Natal e tem um jeitão para fazer e iluminar presépios!

Não teve outro remédio senão moldar-se à feição de Laila, pois já o psiquiatra dissera que não havia outra forma de cura. Combinaram então uma vida a meias, entre direito e avesso, entre passado e futuro com o presente no meio, e fazer um presépio a gosto dos dois.

Ele encarregava-se da cabana, das luzes e da estrelinha e ela, dos bonequinhos. Assim nasceu o presépio de Laila, com o burrinho no lugar do menino, a vaquinha no lugar da mãe e, imaginem, nem Lauro sabe o porquê, o Batman no lugar do pai!
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Notas do editor:

[1] - Vd post de 28 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25455: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (15): "Laila"

"Laila nunca fora feliz. Nem muito nem pouco. A felicidade não engraçara com ela, talvez por ser feia. Feia não era. Até era muito bonita por fora, o que não acontecia por dentro. Tinha sempre a alma do avesso e os sentimentos fora do corpo. Nunca atravessava a rua pela passadeira, entrava nas portas sempre às arrecuas e não beijava o Senhor na visita do compasso. Puxava o manto do Senhor dos Passos na procissão da Paixão e fazia caretas às zeladoras do Coração de Jesus. Assistia à missa de costas para o padre. Não rezava nem comungava. A bruxa já havia dito que algum mauolhado caíra sobre ela quando era criança ou que o Diabo lhe cravara as garras na gola do casaco."

Último post da série de 21 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25767: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (27): "Um beijo no cinzeiro"