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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9526: As novas milícias de Spínola & Fabião (1): excerto do depoimento, de 2002, do Cor Inf Carlos Fabião (1930-2006), no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida (Arquivo de História Social, ICS/UL - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa)




A nova força africana... O major Fabião, na altura (1971/73) comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.


In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angol,a Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autores das fotos: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia).




1. Vários camaradas nossos , que estiveram na zona leste como alferes milicianos (estou-me a lembrar do Paulo Santiago, do Luís Dias, do J.L. Vacas de Carvalho...) participaram ativamente na formação das novas milícias criadas no tempo do Gen Spínola, integrando a "nova força africana". 

Carlos Fabião (1930-2006) terá sido o pai do novo corpo de milícias, na sua 3ª comissão de serviço no CTIG (abril de 1971-abril de 1973). No depoimento que prestou no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida (A descolonização portuguesa > Guiné > Depoimento do Coronel Fabião, 11 de abril de 2002), a criação das novas milícias é abordado com algum detalhe. 


Muitos de nós (, foi o meu caso do leste,) convivemos com estes homens que tiveram um papel ativo na guerra, não só defendendo as suas tabancas como participando, integradas no nosso exército, em colunas logísticas, nas picagens de itinerários, fazendo segurança e montando emboscadas, servindo de guias, bem como também acompanhando-nos em patrulhamentos ofensivos. 


Com a devida vénia ao valioso Arquivo de História Social do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, publicamos alguns excertos do Cor Carlos Fabião, que a morte levou prematuramente aos 76 anos. Os parênteses retos são da responsabilidade dos editores do portal (ICS/UL); os parênteses curvos são nossos.


Mas também há o outro lado, perverso, da militarização da Guiné, tanto por nossa parte como por parte do PAIGC. G3 e Simonov estavam distribuídos a todos os elementos válidos da população da Guiné, no meu tempo (1969/71). Houve, por  certo, consequências a nível, não apenas militar, mas também económico, social, cultural e político, decorrentes da militarização da população guineense... O depoimento de Fabião também é interessante por isso.


Recorde-se entretanto alguns dados estatísticos sobre a população da Guiné em 1960 e 1970:


(i) População da Guiné: 519 mil (1960); 487,5 mil (1970).
(ii) Principais grupos etnicolinguísticos: balantas (30%), fulas (20); manjacos (14%) e mandingas (12,5%). Os brancos e os mestiços somavam apenas 3000 e 5500, respetivamente em 1960 e 1970.
(iii) População fora controlo das NT (segundo estimativa das autoridades militares, em 1971): 160 mil: (a) 60 mil no Senegal; (b) 20 mil na Guiné-Conacri; (c) 80 mil no interior do TO da Guiné nas regiões sob controlo do PAIGC… [No setor L1 - Bambadinca, a proporção seria de 1 para 3: 5 mil,  balantas, beafadas e mandingas, do lado do PAIGC; 15 mil, sobretudo fulás, mas também balantas e mandingas, do nosso lado].


 Fonte: Guerra Colonial (1961/74) [, em linha,]> Estatísticas > Teatro de Operações: Guiné. [Consult em 24/2/2012. Disponível em: http://www.guerracolonial.org/graphics_detail?category=10.



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(…) Manuel de Lucena: O senhor coronel, a certa altura, falou nas «minhas milícias». Pôs-me a pensar se há algo em relação às milícias.


Coronel Fabião: Fui eu que as organizei e que as criei, digamos assim. Havia milícias, mas o Spínola, a certa altura, quis … Como disse há bocado, a maioria dos nossos camaradas, dos meus camaradas, a concepção que tinham de guerra era fazer a vontade ao António [Salazar] e repor a situação na mesma. Conclusão: aquilo não dava, realmente não dava. E era costume, quando uma tropa era rendida, fazer um discurso que terminava dizendo: «missão cumprida». Quando chegou lá o Schulz, ao primeiro que diz «missão cumprida», ele pergunta: «O senhor cumpriu alguma missão?» E dá um balde ao homem … Mais ninguém disse que cumpriu a missão.


Luís Salgado de Matos: Foi o Schulz que disse isso?


Coronel Fabião: Não! O Spínola. Tem graça. No meio dessas coisas todas, eu era um dos meninos bonitos do Schultz e passei por o único que saiu incólume do Spínola.


Manuel de Lucena: Voltando às milícias, como é que as organizou? Quem eram exactamente?


Coronel Fabião: A concepção do Spínola era esta: as milícias tinham que ter uma ligação às populações a que pertenciam. Milícias, misturadas com tropa, para ele não dava. Portanto, a concepção de milícia era diferente de tropa. A milícia era o homem duplamente empregue como guerreiro e como economista.


Manuel de Lucena: Administrador?


Coronel Fabião: Não, era o homem que defendia a tabanca e a aldeia e aquilo tudo e, ao mesmo tempo, nas horas vagas, produzia. Era lavrador, camponês, portanto, era um homem com dupla função: combatente e colono, para o desenvolvimento da terra. Viviam lá nas suas aldeias e defendiam-nas quando o inimigo atacava.


Manuel de Lucena: O inimigo atacava muito as aldeias?


Coronel Fabião: Um bocado.


Manuel de Lucena: Mas como represália por não serem seus partidários?


Coronel Fabião: Eu aí teria de estar a falar um bocado sem ter assente. Eu penso que eles se ligavam a nós e estavam connosco por uma razão muito simples. Naquele tempo a força estava connosco, o poder económico estava connosco. Quer dizer, eu nunca tive dificuldades de recrutar gente, recrutava a que quisesse. Por uma razão muito simples, é que o pouco que lhes pagava (e era pouco relativamente, eram 700$00 por mês a cada um) era suficiente para eles viverem.

Um dos falhanços do Spínola (falhanço relativo), foi que as milícias passaram a viver como combatentes. Irem com a enxada para o campo, não foram realmente, não precisavam. As mulheres deles ganhavam muitíssimo bem, muito mais que eles, porque eram as lavadeiras dos soldados. Cada um de nós tinha a sua lavadeira, para alguns a lavadeira tinha vários empregos e esse dinheiro da lavadeira e o dinheiro deles como milícias dava para viver com um nível de vida que nunca tinham tido, imagino eu. Portanto, quando o PAIGC ia lá cheirar, ia prejudicar… E eles defendiam-se bem.


(…)Manuel de Lucena: Milícias, em 1971? Mas em 1968-1970 também já tinha tido algum trabalho com milícias, ou não?


Coronel Fabião: Não, andavam por lá, desgarradas.


Manuel de Lucena: O Spínola só em 1971 é que lançou a sério as milícias?


Coronel Fabião: Porque depois ele passou a fazer isto: eu arranjava-lhe aquela tropa, que era uma tropa fandanga, realmente era. E […] aqui está um outro grande triunfo do Spínola. O Spínola vai buscar milícias que fundou e vai com elas ocupar postos que estão ocupados pelo Exército português. Os pontos mais sensíveis estão ocupados pelo Exército português. Ele diz-me: «Vê se consegues arranjar milícias para […].» E assim aconteceu de facto. Eu consegui, realmente, arranjar tropas e as unidades de milícias passaram a ir ocupar os postos do Exército português. […] e assim ele conseguiu fazer uma arrancada no Sul e reocupar algumas áreas. Mas nessa altura já a gente sabia que estava tudo perdido, porque já o Marcello tinha dito que não.


Luís Salgado de Matos: Já havia tropas de milícias antes dessas?


Coronel Fabião: Com certeza que havia.


Luís Salgado Matos: Há alguma relação entre as suas milícias e as milícias anteriores?


Coronel Fabião: Foram incorporadas as anteriores nas novas […].


Luís Salgado de Matos: E as antigas milícias adaptaram-se bem ao novo [sistema]?


Coronel Fabião: Adaptaram. O velho era praticamente só de fulas. A Guiné foi pacificada em 1914, 1915, e as tropas utilizadas foram milícias fulas. Eu ainda falei com alguns combatentes fulas de 1914 e eles diziam: «É a velha filosofia da caminheira, não tem que saber». Eles, quando havia um levantamento ou uma guerra a fazer, vinham duas caminheiras [camionetas], uma só para mandingas e outra para [fulas?]. Há um termo qualquer que significa «banda», ou coisa do género. Metiam os fulas lá para dentro, eles vinham por ali acima e eram despejados já na área que estava revoltada e faziam eles a guerra.

Essa gente ainda existia algures. Nós o que quisemos foi fazer isso com balantas, mandingas e outros que não tinham nada a ver connosco […]. Aceitaram ser integrados, e foram muito bem.


(…) Luís Salgado de Matos: Voltando um bocadinho atrás, às novas companhias de milícias africanas. Eles viviam isolados? Numa dada aldeia, havia uma secção, havia um grupo, havia só um? Como é que era a organização. E como é que era a cadeia de comando militar, digamos, para eles?


Coronel Fabião: A cadeia de comando deles era um grupo, uma companhia e chega. Em cada aldeia havia, em princípio, um grupo de milícias. Quando a situação era muito má, pedia-se uma companhia de milícias. Quem comandava o grupo era o comandante militar da área, quem comandava a companhia era o comandante da companhia. Na parte final, a certa altura, começámos a ter uns rendimentos tão grandes, digamos, uma série de resultados tão bons, que o Spínola criou grupos especiais de milícias, poucos, três ou quatro, que fizeram um jeitão.


Luís Salgado de Matos: O que eram esses grupos especiais de milícias?


Coronel Fabião: Eram as milícias vulgares de Lineu, simplesmente não tinham outra função, nem de tomar conta da tabanca, nem de plantar a terra. Estavam ali para fazer golpes de mão, assaltos, coisas desse estilo.


Luís Salgado de Matos: Porque é que fixaram os salários dos milícias em 700$00? Era uma enormidade, para a época. Um professor de liceu, na altura, ganhava 900$00, quando começava cá em Portugal. 700$00 não era nada mau. Quem é que teve a ideia dos 700$00?


Coronel Fabião: Isso eu não sei dizer. Não faço a mínima ideia. Eu pensava que era pouco, está a ver.


Luís Salgado de Matos: Pode ser o meu lado financeiro; eu acho que os ordenados são sempre muito altos.
(…)


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Nota de L.G.: Os parênteses retos são da responsabilidade dos editores do Arquivo de História Social. Os parênteses curvos são nossos. As respostas de Carlos Fabião vêm a itálico. As perguntas dos entrevistadores, a negrito. Corrigimos o apelido Schulz (e não Schultz).