Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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sábado, 25 de outubro de 2025
Guiné 61/74 - P27352: Os nossos seres, saberes e lazeres (706): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (227): Do Alto Tâmega até Pedrógão Grande, acabou-se a semana de férias – 6 (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Não escondo que saímos da Galiza de monco caído, aquela sensação que mais uns dias de vadiagem na região nos poria o astral em cima, mas levantou-nos o ânimo saber que havia uma paragem numa belíssima cidade no Alto Tâmega, Chaves, falei da presença romana e de uma ponte chamada de Trajano, como não há outra igual em Portugal, e das fortificações, porque os flavienses tiveram muito que penar, logo o Rei de Leão que quis abocanhar este território; pelas minhas contas, não vinha a Chaves há quase meio século, com que prazer fiz a sua famosa Rua Direita, toda ela cheia de história, os vestígios medievais, barrocos, as prosperidades oitocentistas e novecentistas - e o resultado da gestão autárquica em democracia. Foi tudo a correr, pretende-se chegar a Pedrógão Grande, um estirão, ainda com luz do dia. Férias magníficas, temperaturas mais do que amenas, a canícula veio na semana seguinte. E, moral da história, vimos a Lousã, o sul da Galiza e Pedrógão Grande antes da devastação dos fogos. Amarga coincidência, findámos o roteiro desta viagem junto ao monumento das vítimas do grande incêndio do Pedrógão Grande de 2017. Nem nos passava pela cabeça que outros fogos vinham a caminho, poucas semanas depois.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (227):
Do Alto Tâmega até Pedrógão Grande, acabou-se a semana de férias – 6
Mário Beja Santos
Era ponto assente que quando regressássemos do sul da Galiza havia uma paragem na cidade de Chaves, mais do que aqui amesendar os concelebrados pastéis e bom fumeiro que a região oferece tinha saudades de regressar a Aquae Flaviae, se a memória não me falha andei por aqui nos tempos em que fiz programas de televisão, isto entre as décadas de 1970 e 1980, estava mortinho de curiosidade de ver a diferença de quase meio século. E ganhei muito com a surpresa. Arrumado o carro, seguimos para a ponte romana, concluída no tempo do Imperador Trajano, entre o fim do século I e o princípio do século II d.C. Nos preparativos da viagem, folheei umas resmas de papel sobre Chaves, recordar a história faz sempre bem. Até porque há vestígios da Pré-História, a presença romana foi muito significativa, seguiram-se suevos e godos, muçulmanos, veio a Reconquista Cristã, foi um não mais parar de acontecimentos desde que a Póvoa de Chaves surgiu por iniciativa de D. Afonso III. Num livro de Paulo Dordio intitulado Chaves e as suas Fortificações andei a ver desenhos dos tempos medievais, da vila renascentista, das estruturas de fortificação e baluartes, tudo fruto da posição de Chaves, que foi muito apetecida por Leão, que se preparou para os embates da Guerra da Restauração.
Também pedi ajuda ao Google, para saber o que havia de mais significativo para admirar: a Torre de Menagem e o que resta do Castelo, há uns panos de muralha dispersos; a Igreja Matriz; não perdera a ocasião de mirar a meio da ponte os dois documentos epigráficos que falam do tributo das gentes flavienses e dos dez povos que ajudaram na sua construção; no meio daquela informação recordei as minas de volfrâmio, as águas minerais Campilho e Vidago, lembro-me perfeitamente de as ver em cafés e restaurantes; quer no Google quer na papelada lida recordava-se os Paços do Duque de Bragança, que aqui morrera e tem túmulo o primeiro Duque, D. Afonso, no Convento de S. Francisco; recordava-se também que se deveria visitar a Igreja da Misericórdia em estilo barroco, revestida de azulejos. Ponto final, começamos a atravessar a ponte de Trajano, à cautela, numa tentativa de dar a dimensão da ponte sobre o Tâmega, tirei a imagem à distância.
É uma obra notável de engenharia com cerca de 150 metros de cumprimento. Os doze arcos visíveis são de volta perfeita e formados por enormes e robustas aduelas de granito. Há pelo menos mais seis arcos soterrados pelas construções, de um lado e do outro do rio.
Um dos dois belos exemplares epigráficos vindos de outras proveniências. Recorde-se que por aqui passava a Via de Augusto.
Igreja Matriz, de raiz medieval, desse período conservou a imponente torre, rasgada por duas sineiras; tem portal românico. As transformações que ocorreram no século XVI são particularmente visíveis nos portais. O templo estava fechado, não pude contemplar os belos painéis de azulejos, ficará para a próxima.
Igreja da Misericórdia, construída no século XVII, portanto barroca. A fachada do templo granítica, antecedida de uma escadaria também de pedra, está pormenorizada e cuidadosamente decorada por pilastras e janelas. Pelo que me foi a ler, tem o interior de uma só nave, paredes inteiramente revestidas de azulejos. A fachada posterior do edifício tem a particularidade de assentar e aproveitar o paramento externo da cerca urbana medieval.
Câmara Municipal, começou por ser palacete para residência de António de Souza Pereira Coutinho, morgado de Vilar de Perdizes. Foi adquirido pela Câmara. Do seu corpo central sobressai o portal principal, ladeado por dois óculos ovalados, e no topo o frontão triangular com brasão no tímpano, encimado por relógio. Ainda fui espreitar a entrada da Câmara, a sua imponente escadaria em granito e os azulejos azuis com cenas campestres.
Há reminiscências da Chaves medieval. Reza um dos documentos que consultei que nesse tempo a população alojava-se em edifícios estreitos com dois ou três andares, onde predominavam varandas estreitas no primeiro andar e no segundo e terceiro andar varandas suspensas. As varandas avançadas para a rua eram a forma de rentabilizar o espaço intramuros. Hoje, as ruas conservam o velho aspeto medieval, exibindo da tipologia das suas casas elementos da construção dessa época. As varandas coloridas, em madeira de castanho ou pinheiro subsistem, ainda, por toda a cidade velha.
Esta é a Torre de Menagem. Mostro-vos a informação que encontrei ali perto, achei-a bem esclarecedora, é, sem margem para dúvida, de uma grande beleza este ponto de referência do que foi o Castelo de S. Estevão.
Condicionado pelo tempo, ainda calcorreámos a Rua Direita, era inevitável ver a fachada dos Paços do Duque de Bragança e o belo pelourinho. Porquê o Duque de Bragança em Chaves? Pela simples razão de que o senhorio foi doado a Nuno Álvares Pereira que o cedeu ao genro, o Conde de Barcelos, entrando assim na Casa de Bragança.
Tenho de voltar, e com alguma presteza. Esta sede de concelho, com uma área total de cerca de 591Km2, esta cidade de Chaves que é cidade desde 1929, tem monumentos nacionais relevantes, bem me apeteceu entrar na magnificente biblioteca, mas não me podia esquecer que íamos pernoitar a Pedrógão Grande, para uma outra romagem de saudade. Logo que possa, manda a curiosidade, hei de ler qualquer coisa sobre Chaves na Guerra de Restauração e como foram os combates de Chaves entre as forças de Paiva Couceiro e as do Governo Republicano.
Agora vamos amesendar e segue-se um estirão de viagem, ala morena que se faz tarde, fechei provisoriamente o livro flaviense e já começo a recordar os anos que passei em Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno, temos passado férias com um tempo magnífico, a canícula vem para a semana, e era impensável imaginarmos, quando fomos contemplar o monumento desenhado por Souto Moura em homenagem aos mortos do incêndio devastador de 2017 que estava para breve uma nova tempestade de fumo em 2025.
Não vou causticar o leitor repisando imagens desta região chamada Pinhal Interior, já mostrei as belezas do Cabril, uma região que fascinou o pintor Alfredo Keil, dizem que tirou elementos para a coreografia da sua ópera A Serrana, vinha acompanhado por Giuseppe Cinatti, cenógrafo do Teatro de São Carlos, por pudor não mostro as paredes incendiadas de uma casa recuperada no meio da floresta, mas não escondo o júbilo de mostrar a praia fluvial de Mosteiro, aprazível, na memória de familiares e amigos que fizerem vilegiatura em Pedrógão Grande ou Pedrógão Pequeno, a região tem belíssimas praias fluviais, esta está na memória de todos.
Antes de partirmos para Lisboa, viemos recordar os mortos daquele abominável incêndio de 2017, perto da estrada onde tanta gente morreu ergue-se uma fonte de vida, obra traçada pelo arquiteto Souto Moura, ao fundo, como se fossem lápides, estão esculpidos os nomes dos falecidos. Ensimesmados com tal tão dolorosa recordação, entramos no carro, é o regresso a Lisboa. E na conversa começamos a idealizar a próxima viagem, fala-se muito no Planalto Mirandês, há quem alvitre o início da primavera, há para ali um parque natural, de nome Montesinho, que se cobre de tapetes de flores. Porque a viagem nunca acaba, e aqui dentro do carro estão viajantes impenitentes. Até à próxima!
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Nota do editor
Último post da série de 18 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27331: Os nossos seres, saberes e lazeres (705): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (226): Em S. Estevão de Ribas de Sil, no passeio termal de Ourense – 5 (Mário Beja Santos)
sábado, 26 de junho de 2021
Guiné 61/74 - P22320: Efemérides (348 ): Foi há 50 anos, a partida da CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 (Buba, 1971/73) (Pinto Carvalho, ex-alf mil, poeta, músico e régulo da Tabanca do Atira-te ao Mar)
Unidade Mob: BC 10 - Chaves
Cmdt:
TCor Inf José Fernando de Oliveira Barros Basto
Maj Inf José Fernando de Oliveira Barros Basto
Maj lnf Raul Pereira da Cruz Silva
OInfOp/Adj: Maj Inf Raul Pereira da Cruz Silva (acumulava)
CCS: Cap SGE Augusto Ferreira
CCaç 3398: Cap Inf Filipe Ferreira Lopes
CCaç 3399: Cap Inf Horácio José Gomes Teixeira Malheiro
CCaç 3400: Cap Inf Gastão Manuel Santos Correia e Silva
Cap Mil Inf Manuel de Sousa Moreira
Partida: Embarque em 26Jun7l; desembarque em 2Jul71 | Regresso: Embarque em 1Set73 (CCaç 3398), 2Set73 (CCaç 3399), 6Set73 (Cmd e CCS) e 8Set73 (CCaç 3400)
Impulsionou e coordenou a execução dos trabalhos de realojamentos das populações recuperadas e da sua promoção sócioeconómica, em particular em Colibuia e Afiá, garantindo ainda a segurança, protecção e apoio da construção e reparação dos itinerários logísticos, com especial destaque para as reacções a fortes e frequentes flagelações a aquartelamentos e aldeamentos situados junto da fronteira.
Em 10Ag073, foi rendido no Sector S2 pelo BCaç 4513/72 e recolheu, em 14Ag073, a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
A CCaç 3398, após o treino operacional e a sobreposição com a CCaç 2616 desde 1Ag071, assumiu a responsabilidade do subsector de Buba em 26Ag071.
Em 18Ag073, foi rendida pela 2ª Comp/BCaç 4513/72, seguindo para Buba e no dia seguinte para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
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sábado, 20 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21924: (Ex)citações (382): O 1º Cabo RD "Estraga a Tábua" que eu conheci em 1962, no então BC 10, mais tarde, RI 19, Chaves (E. Esteves Oliveira)
Data: segunda, 15/02/2021 à(s) 19:38
Assunto: O Estraga a Tábua
Caro Luís,
Que fantástico ler no post do Joaquim Costa a história do Estraga a Tábua, que eu conheci no BC 10 (mais tarde RI 19) em 1962, era ele então 1º. cabo RD [Readmitido] mas já senhor da alcunha - o homem era o faz-tudo mais desajeitado do Exército português, mas ia-se safando das porradas e das mobilizações (estas graças aos chamados autos de amparo). (*)
Do Forte de São Francisco também tenho boas recordações: quando por lá passei albergava duas companhias de recruta e os respectivos graduados - apesar de curta, a distância entre o Forte e o quartel dava-nos uma relativa independência, além de as inúmeras divisões desocupadas proporcionarem "actividades não curriculares" com algum conforto, comparadas com a do Ferreira, camarada do Costa. (**)
Um alfa-bravo do
Esteves de Oliveira
(*) Vd. poste de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira
Era sargento, excelente pessoa, mas rezava a história, no quartel e na cidade, sem grande jeito para os trabalhos manuais. Contava-se que um cão rafeiro apareceu no quartel e logo foi adotado por todos, desde o comandante ao soldado raso. Dado que o canino não tinha sitio para dormir e abrigar-se dos dias mais agrestes, foi decidido construir-lhe uma casota. Logo o bom sargento se ofereceu para a tarefa, tendo sido feita uma coleta para comprar a madeira necessária para a obra.
O homem comprou a madeira e muniu-se das ferramentas necessárias, nas oficinas do quartel, e dum projeto de casota elaborado por um habilidoso em desenho. Mede e volta a medir, corta aqui, corta ali, corta acolá, e montadas as peças nenhuma bateu certo com o projeto. Volta a medir a cortar aqui, a cortar ali e acolá, voltou a montar e ainda pior.
O comandante, que também tinha contribuído para a casota, ao fim de uns dias, vendo que o cão continuava a dormir em todo o sítio manda chamar o sargento para saber da casa do cão. O sargento, muito constrangido, e à espera do pior, lá foi contando as peripécias da construção da dita casota acabando por confessar que nem tinha casota nem tinha tábuas. O bom comandante, dando uma grande gargalhada, virou-se para o velho Sargento e diz-lhe:
sábado, 13 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira
Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da publicação da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", da autoria de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)
Chaves: Férias, O Estraga a Tábua...e o Forte de S. Francisco
Depois de Tavira, só mesmo Chaves para recuperar (boas águas, bons pasteis de carne e bom presunto...), física e mentalmente.
Mas que boas férias.! A minha única tarefa era dar instrução a um pelotão de mancebos, quase todos da região transmontana. Tudo muita boa gente, a quem nunca conseguimos acertar o passo na marcha e muito menos sincronismo na ordem unida, de resto tudo bem…
Quando recebo a guia de marcha de Tavira para Chaves, pensei: "Bem! Bom mesmo era fazer toda a nacional n.º 2, de Faro a Chaves, na minha (ou seja! do meu irmão) Zundap (estilo Che Guevara na sua poderosa)."
Mas, verdadeiramente radical foi fazer a viagem de comboio do Porto a Chaves (terra da Pedra Bolideira) (1) na admirável linha do Corgo, hoje desativad [., foto à esquerda].
Esta viagem só foi superada pela viagem que fiz na nacional n.º 222. no maravilhoso Douro Vinhateiro, com a minha Diane. (2)
Muitas histórias ouvi sobre a viagem de comboio do Porto para Chaves, em que os passageiros saltavam com este em andamento, iam apanhar umas uvas e, em andamento, voltavam a entrar. Constatei que a realidade superava as histórias que me tinham contado. As curvas e contracurvas quase que se tocavam passados uns quilómetros. Em dez quilómetros de marcha na sinuosa linha avançava um na direção do destino.
Não obstante toda a informação recolhida sobre as peripécias da viagem, a surpresa foi avassaladora.
Estava eu a saborear as belas paisagens e a respirar os puros ares, na plataforma do comboio (uma zona exterior estilo varandim), quando o mesmo para no meio do nada, ouço um assobio, e de repente vejo-me rodeado de cabras por todos os lados. Uns quilómetros à frente, o comboio volta a parar, e, ao apito do pastor, de uma forma ordeira e organizada, o rebanho saiu, com um cumprimento efusivo da parte do revisor e do maquinista, denunciando estarmos na presença de passageiros habituais. Penso hoje que mais facilmente conseguiria sincronizar a marcha deste grupo do que o que tive à minha guarda no quartel de Chaves.
Contudo, sendo certo que nunca iria com estes homens para um desfile militar, se pudesse escolher, era com certeza com esta gente que iria para a guerra. Gente simples, rija, com um coração do tamanho da Serra do Marão e capaz de tudo (mesmo de tudo!...) para defender um amigo.
Guardo com emoção a festa que estes maravilhosos homens fizeram aos três graduados que lhe deram a instrução, pagando o jantar e oferecendo a cada um de nós uma lembrança. Foi um momento muito bonito e muito emotivo, particularmente para mim que já tinha recebido a mobilização para a Guiné bem como guia de marcha para Estremoz.
Foi neste moderno e agradável quartel que tive o grato prazer de conhecer o pai do malogrado e excelente jogador de futebol do FCP, Pavão, que teve morte súbita em pleno estádio das Antas no fatídico dia 16 de dezembro de 1973. (3).
Era sargento, excelente pessoa, mas rezava a história, no quartel e na cidade, sem grande jeito para os trabalhos manuais. Contava-se que um cão rafeiro apareceu no quartel e logo foi adotado por todos, desde o comandante ao soldado raso. Dado que o canino não tinha sitio para dormir e abrigar-se dos dias mais agrestes, foi decidido construir-lhe uma casota. Logo o bom sargento se ofereceu para a tarefa, tendo sido feita uma coleta para comprar a madeira necessária para a obra.
O homem comprou a madeira e muniu-se das ferramentas necessárias, nas oficinas do quartel, e dum projeto de casota elaborado por um habilidoso em desenho. Mede e volta a medir, corta aqui, corta ali, corta acolá, e montadas as peças nenhuma bateu certo com o projeto. Volta a medir a cortar aqui, a cortar ali e acolá, voltou a montar e ainda pior.
O comandante, que também tinha contribuído para a casota, ao fim de uns dias, vendo que o cão continuava a dormir em todo o sítio manda chamar o sargento para saber da casa do cão. O sargento, muito constrangido, e à espera do pior, lá foi contando as peripécias da construção da dita casota acabando por confessar que nem tinha casota nem tinha tábuas. O bom comandante, dando uma grande gargalhada, virou-se para o velho Sargento e diz-lhe: Áh! Homem do “diacho”, fizeste-me à tábua o que o diabo fez à “coisa”: para além de não construires a casota ainda me estragaste a tábua!...E assim nasce a alcunha do Sargento Neves – O estraga a tábua.
O Comandante do quartel era um bom homem, bonacheirão, preocupado com o bem estar de todos os seus homens… e até da mascote do quartel – o cão. Fazia questão de manter o quartel, um lugar limpo e asseado, fosse as casernas o refeitório ou a parada.
Um dia, estava eu de sargento de dia ao quartel, vejo-o em altos berros, no meio da parada, a gesticular e a chamar por todo o pessoal de serviço. O primeiro a chegar fui eu, pelo que se vira para mim e me diz:
– Você não está a ver que eu não consigo passar com este enorme tronco de árvore à minha frente!
Eu olhava para a frente do homem e não via tronco nenhum nem se quer um pequeno pau. O homem cada vez gesticulava e gritava mais, pelo que temi que as minhas férias terminassem ali. Felizmente, um cabo já velhinho, chega perto de mim e diz-me:
– Deixe que eu resolvo.
Vai ao chão e pega num fósforo, de madeira, que alguém inadvertidamente tinha deitado para o chão ao acender um cigarro...
– Uff... – disse eu para com os meus botões – nais uma batalha ganha… siga a tropa...sigam as férias!
![]() |
Chaves > Forte de São Francisco |
Dado o número reduzido de pessoal que aí fazia guarda e o recato do local, muitas histórias ouvi sobre as atividades noturnas que aí tinham lugar.
Acabado de chegar ao quartel, fui escalado para comandar o pequeno grupo de homens (eu, um cabo miliciano e cinco soldados), para ir render o grupo que passou o dia e pernoutou no referido Forte de S. Francisco.
De manhã cedinho, depois de um bom pequeno almoço com pão sempre quentinho e muita manteiga a derreter-se no mesmo, formado o grupo, lá fomos nós, todos catitas, a marchar até ao forte de S. Francisco.
Chegados à porta de armas, um soldado aparece ao portão, com um leve sorriso nos olhos brilhantes, e, baixinho diz-me ao ouvido:
– O seu colega Ferreira pede para aguardar só uns segundos.
Achei estranho, geralmente nestes casos já todo e pessoal costumava estar à porta “mortinho” por se ir embora depois de 24 horas passadas naquele buraco. Aproximo-me mais um pouco do portão e vejo o Ferreira ainda a vestir as calças e uma loira a esgueirar-se, escondendo-se por trás dos soldados. Logo a seguir aparece o Ferreira, com um sorriso de felicidade, com um malmequer bravio, colhido no forte, colocado na orelha e a cantarolar a celebre canção, hino do movimento hippie e do amor livre: “Se vais a San Francisco, leva flores no teu cabelo…”
_________
Notas do autor:
(1) Grande pedra, no caminho de Chaves a Bragança, que se move com um pequeno toque de um dedo.
(2) A Estrada Nacional 222 (EN 222) – considerada a estrada mais bonita do mundo - tem 226 km de extensão e liga o centro de Vila Nova de Gaia a Almendra, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, (todos deviam fazer, pelo menos uma vez, o caminho de Santiago e a Nacional Nº 222!)
Vista da EN 222 > Douro vinhateiro; De cortar a respiração. Bem disse Miguel Torga em S, Leonardo de Galafura: "um excesso da natureza"....
(3) Pavão, não de nascimento mas pela forma peculiar de jogar com os braços bem abertos.
(4) - Utilizado como quartel general pelo general Soult no tempos das invasões francesas. Foi recentemente restaurada e recebe hoje um Hotel de 4 estrelas.
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Nota do editor:Último poste da série > 3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)
terça-feira, 11 de agosto de 2020
Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)
Galeria dos meus heróis > A Rosemarie e os seus dois maridos...
Parte I
por Luís Graça
− Não, não foi o
coração que me levou a fugir para França, a
salto, escondida na mala do carro de um passador…
Foi assim que a Rosemarie começou o seu relato de vida: um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.
− A salto !... Como se dizia então em
francês ?!... Le saute, até há um
filme que passou na televisão de cá…
− Ah!, oui?!... Nunca vi.
− E no
entanto a Rosemarie já não era nenhuma jeune
fille…
− Une balzacienne, uma mulher de 30 anos
já feitos!...Nasci em 1937, mon chérie.
− Ah!, sim, uma
balzaquiana, como dizemos nós…
Morto o
Antoine [lê-se: "antu-ane"], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á libertado de algumas grilhetas
que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro… Afinal, por
decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido,
de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um
processo litigioso com outros herdeiros. os filhos do primeiro casamento.
Libertou-se
sobretudo de uma estranha relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que
só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos
e interesses da Rosemarie.
− Passei a
ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou remediada em França… Enfim, tenho o
meu pé-de-meia.
Só nessa
altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se
referia ao falecido segundo marido. Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie,
uma drôle de vie, como ela repetia
amiudadas vezes, com humor, sem azedume, quase sem rancor. E, no entanto, foi
uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos…
Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela.
Foi uma vida
passada entre o Portugal dos sombrios
anos 30, 40, 50, e a França gloriosa, da V República.
− Voltei à
minha terra natal, para morrer… mas só aos 100 anos. E agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não
passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.
Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.
Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu "accent": não carregava suficientemente os "erres"...
− L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.Eu havia-a
conhecido, há já uns bons anos, quando ela andava perto dos 75, conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.
− Quando
tinha quinze anos, mon chéri, eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas
era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa
altura, criada de servir em Chaves.
Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente, tendo-me autorizado a publicar a sua história de vida que "até dava um filme” (sic), com uma única
ressalva:
− Só depois
de ser chamada ao Reino dos Céus!... (Como ela queria viver até aos 100, perdi
a esperança de poder publicar a sua história em tempo útil!... Charmosa, tratava-me por mon chéri.)
Era “crente
sem ser beata”… E agora que “Deus a chamou ao seu reino”, fica o caminho aberto
para partilhar as suas confidências. De facto, acabou de morrer,
estupidamente, de Covid-19, logo no
início da pandemia. Constou-me que foi por infeção hospitalar… Ia fazer 83
anos.
Sinto-me, de
qualquer modo, à vontade para evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura.
Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na
terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por
razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconheço se deixou herdeiros,
mas deve ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.
Resta-me
dizer onde a conheci. Foi na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses,
que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão. Agora, professores reformados, passavam cá mais tempo. A Rosemarie era visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos.
Nunca soube
exatamente quais eram as suas afinidades mas, pelo que me apercebi das nossas
conversas, haviam-se tornado amigos
desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.
Sem ter uma
voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa
parecença de corpo, com dezassete anos de diferença em termos de idade… Não sem
uma incontida vaidade, acrescentava:
− A Amália
tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos verdes… '
Estes nossos
amigos franceses adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises.
E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido, em vida, e aclamado no Olympia de Paris.
Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado, em que conheci a Rosemarie, rapidamente ganhei a sua confiança e até afeição. Falávamos ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos nossos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras. Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só comigo.
Disse-lhe
que estava muito interessado em conhecer a
histoire de vie de mulheres
portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da
rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.
Acabámos por
criar laços afetivos, de empatia e até de amizade. Ainda nos encontrámos três
ou quatro vezes e falámos ao telefone. Com tristeza soube da sua morte,
vítima da pandemia do século. Tratava-me, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal. Nunca
teve filhos, ao que eu saiba.
Era da
região de Basto, ou Terras de Basto, sendo os seus pais oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.
− Sou a
filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas, uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.
E
acrescentava:
− Criada de
servir, femme de ménage, era o
destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes
filles.
Naquele
tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O
mais longe era para o Porto, para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da
Baixa.
− Ganhava-se
uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.
E mesmo
assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa
cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso
mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…
As raparigas
não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de
uma mestra particular ou uma “regente escolar”.
No caso da
Rosemarie, já era uma moçoila quando abalou
para Chaves, em 1952, como “criadita de
servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…
− Fidalgo ?! – indaguei eu, curioso.
− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom
João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada ou muito
pouco.
Eu sabia que
tinha casado, já depois de atingida a maioridade, que naquela época era aos 21
anos.
− Foi a
minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.
Para fugir
da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves, casou com "o primeiro fils de putain, o primeiro filho da puta", que conheceu num baile, já em Resende, em 1961. E que a “desonrou” (sic).
Tratava-o
sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o
companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine, de quem voltaremos a falar, mais à frente.
A Rosemarie
era muito "desbocada", não se coibindo
de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor. Para mim, era
a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio.
Perdia-se muitas vezes com histórias laterais, obrigando-me a reformular ou
repetir a pergunta…
Nascida em 1937, a Rosemarie casou aos 24, "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...
− Pela santa
madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época.
− Já tinha
provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é que percebi o sentido que os padres, no confessionário, davam à
expressão 'comer a maçã'.
O vestido de
branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante
cerca de 7 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.
Não se
atreveria naquele tempo, a casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de
“curta e comprida”. Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que
rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda, que tivessem a desdita de ser mães solteiras.
− Ninguém
mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com
filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' !
À medida que
se entusiasmava com a conversa,
Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pêlo na
venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a inibia de todo. A sua história, as suas
confidências, mesmo as mais íntimas, não me deixavam todavia de surpreender, talvez por sermos de
gerações diferentes, eu já filho do pós-guerra e criado em ambiente urbano, ela bem mais velha do que eu.
Afinal, isto
passava-se no meu país, ainda nos anos 50 e 60. E eu não podia deixar de sentir
um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem duras.
− No meu
tempo, as moças repudiadas, ou fugiam para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à
sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.
− A
liberdade paga-se sempre cara!... Não nos é dada, conquista-se
− Ah!, sim,
veja o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro…
depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.
− A
sério?!... A tiro ?!... Agora percebo por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para
não dar certo…
− Não durou
mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos, para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão
por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau
olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de
refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no
intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas,
ao bufete!”…
Os “bailes mandados” ? Explicou-me ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador', no meio, a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras…
Mas os
feitios de ambos, e sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não
ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe
encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de
bebedor social se tornara alcoólico e… violento.
Não
trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois.
Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a maior parte
dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e
pagar as dívidas.
− Mas como é
que vocês se conheceram ? – quis eu saber, intrigado.
− Num baile,
tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…
− Em Chaves
?...
− Não, já em
Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à
terra com um bom pé de meia e quis
celebrar… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…
− A tuna ?
− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro
ferrinhos… E ele que tocava rabeca. Juntavam-se a outras tunas, ali da região
do Marão e Montemuro, de Baião a Cinfães, do Marco a Resende…
Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre
ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa, dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe
vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.
− E tocava
bem, o seu homem ?
− Isso, sim, se
tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o
cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a
gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e
sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a
contradança… Já havia rádio, mas pouca gente
tinha rádio e telefone… E a televisão,
então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele
começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto,
que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que
ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele
tempo éramos umas atrasadas…
− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria,
miséria mesmo ?
− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu
cahier – começou-me a tutoyer,
a tratar por tu, a que eu não respondi do mesmo modo, continuando a ser
deferente e cerimonioso, para com ela, até como estratégia defensiva enquanto
entrevistador…
Miséria para
ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de granito, tosca, o interior com paredes de tabique, um quarto
para os pais, outro para as raparigas, com
os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos
animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.
Dois irmãos,
entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir
para Cabo Verde e Guiné. Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a
Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do
patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família,
que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá
uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à pequena nobreza rural, decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo.
− E porquê
Resende, Rosemarie ? – perguntei-lhe eu.
Os pais
tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a
precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de
construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização
dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As
condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham
arranjado emprego, ou promessa de emprego, numa empresa encarregue, já em 1964, dos trabalhos preparatórios da construção da
barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).
Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E, também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.
Depois da separação (de facto mas não de jure), a Rosemarie ainda irá trabalhar
para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca.
Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu
muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...
− Separação
?!... Como foi isso, Rosemarie ?
Ela
contou-me tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos
factos.
A Rosemarie
sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia bailes, desde que os
pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 15 anos, ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de
varapau”.
− Varapau
?...
− Um pau de
lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens…Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.
− O seu
irmão ?!...
− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. ´
− Mas vamos
lá fazer o ponto da situação, que eu já estou perdido... Estávamos a falar do
baile…
− Ah!, sim,
o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes
e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente,
mas naquela época eu era uma raparigaça
que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar…E, depois, como
também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões,
andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.
−…Até ao dia
em que...?
− Até ao dia
em que conheci... aquele cabrão!... A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha
razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...
− Um amor de perdição!... Mas como assim
?!...
− Andávamos
os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido
nada parecido!...Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo em qualquer sítio, em
qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?, 'desavergonhada'!...Desculpa a expressão, mas eu era
uma cadela com cio…
− Oh!,
Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!... Não me parece que o termo desavergonhada seja
apropriado no seu caso...
− D’accord!, é uma maneira de dizer, às
vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque, era o que eu era nessa altura…
− Oh!
Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…
− Oh!, oui, éramos os dois animais de
sangue quente, na força da idade, se bem que ele fosse mais velho do que eu… E deixa-me dizer-te que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.
− E a tuna, os
bailes, as tainadas?... –
perguntei-lhe eu.
− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...
− Ficou, portanto, o caldo entornado – comentei eu.
− Ele dava em
sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real,
Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.
− Mas também
ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…
− Sim, e à
volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…
− Começaram
os problemas no casal, é isso ?!…
− Passaram-se
os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!... Ele achava que eu não lhe dava
filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um
cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…
− Portanto,
a culpa só podia ser "dela"!…
− Ah!, oui!...
Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso, estúpido… Um animal!… E
eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões',
desculpa-me o termo.
E aqui
começa outra estação do calvário da Rosemarie.
− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar a vizinhança... Eu desculpava-me, que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim, uma vergonha para a minha família... Até um dia em que bati com a porta e voltei para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende…
− E depois ?...
− Lá conseguiu arranjar
um passaporte, meteu-se um barco e fugiu para o Brasil… Nunca mais na vida lhe
pus a vista em cima… Houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval
do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando me
quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia
se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, com mais de 50 anos…
− Mas a fuga
para França é outra aventura da Rosemarie…
− Se foi!...
Dava para outro filme… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée…
© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
Nota do editor:


























