(...) "No seu livro 'Pami na Dondo' (2005) a partir de uma história verídica Mário Vicente ficciona as agruras, desventuras e algumas alegrias de uma jovem guerrilheira do PAIGC, capturada pelas tropas portuguesas em meados das décadas de sessenta.
O outro título saído da inteligência e da pena de Mário Vicente é 'Putos, Gandulos e Guerra' (2000). Reformulou, aumentou e melhorou esse texto e publica-o agora como 'Do Alentejo à Guiné, Putos, Gandulos e Guerra'.
"Com laivos e tintas biográficas, este livro fala-nos de um menino nado e criado na aldeia de Vila Fernando, no Alentejo profundo, Calças de Palanco – este o original nome do puto – que será o gandulo e o homem na esteira e por dentro da guerra na Guiné.
A pré-publicação desta versão, no nosso blogue, em formato digital, foi devidamente autorizada, na altura, pelo autor. No cap VI, ele, o Vagabundo, seu "alter ego", revisita as terras de Portugal por onde passou, na tropa, antes de ser mobilizado para o TO da Guiné:
- Tavira,
- Elvas,
- Lamego,
- Amadora
- Oeiras...
É membro da nossa Tabanca Grande desde 26/6/2007. Tem 164 referências no nosso blogue.
ÍNDICE > I Putos | II Putos, Gandulos e o Padre | III Metamorfose | IV Cepa do Zé de Varche | V Vagabundo | VI Por Terras de Portugal | VII Guerra 1 | VIII Brincadeira no Mato | IX Guerra 2 | X Miriam | XI Como se Constrói uma Capela | XII Guerra 3 | XIII Mamadu em Férias no Hospital Militar | XIV Regresso à Guerra | XV Adeus à Guerra | Glossário
A tua bela ilha de fina areia branca, afagada por salgadas ondas transparentes, onde nas dunas se espreguiçam lindas mulheres de tez escura, sangue mourisco e olhos amendoados, como moiras encantadas que de quando em vez se transformam em sedutoras sereias, deixando presos incautos marinheiros, melhor dizendo militares, atirados para a escola do CISMI, onde se perde a vergonha e se aprende a vivência no "Canil da Vida".
Chegou aqui criança, menino de coro virgem para a safadice! Daqui saiu sem vergonha e malandro, perfeitamente enquadrado com a vida militar, como Vagabundo. Confirmando, em pouco tempo, aquilo que o professor da Colónia lhe tinha aconselhado:
– Rapaz, olha e tem calma! Nem bom cavalo, nem bom soldado!... Se és bom cavalo, todos te querem montar. Se és bom soldado, todos te querem mandar.
Verdade matematicamente confirmada: dois mais dois, igual a quatro. A arte de como aprender a roubar foi facílima! Primeira revista à companhia de instrução. O protector de boca, da Mauser, tinha-se misteriosamente evaporado: foi ao ar. Para além de o pagar e comprar outro na Feira da Ladra, levou um corte de fim-de-semana.
Aprendeu nas salinas a mergulhar na lama! Desgraçados do cabo Baidalo, do Churro, e outros, já homens de certa idade, cabos aprovados que para singrarem na Guarda [Nacional] Republicana ou no Exército tinham de tirar a especialidade, assim eram integrados no Curso, juntos àquela malandragem toda. Coitados, já não tinham idade para entrar naquilo!
– O quê?
– Os gajos não querem? Malta, a eles! – incitava o Suiças, acabadinho de sair do tirocínio em Mafra.
Na Atalaia muitas coisas aprendeu para além da ordem unida e armamento. Aprendeu vendo! Como se destrói um homem, despersonalizando-o e transformando-o em farrapo. O tripeiro Pintainho com fobia das alturas, ser obrigado a subir ao muro alto, mão direita erguendo os restos de velha vassoura transformada em facho, lágrimas de raiva contida rolando pela face ser obrigado a gritar:
– Eu sou o Maior, eu sou o Melhor!
Degradante!... Vergonhoso, não só por ver um miúdo homem bom, sincero e honesto ser obrigado a descer tão fundo, anulação completa da sensibilidade humana!
– Não!
Com o ex-seminarista Clemente, frequentou nos primeiros tempos as belas igrejas de Tavira aos domingos. Entretanto, viu o Doutor, vindo do Instituto de Reeducação (onde esteve internado) metido nisto, fazendo leituras na missa misturado com a alta sociedade da terra. Achou demais para tal figurão e infelizmente acertou. Pouco tempo depois falou com o Doutor pelas grades da prisão e verificou que estaria com graves problemas. Só que ali já não seria a transferência para Leiria, mas sim o Forte da Graça em Elvas, ou outro presídio militar, o que seria bem mais complicado. Vagabundo teve pena do Doutor.
Na sua metamorfose constante, Vagabundo transforma-se em abutre. Monte Gordo! Marie Luise! Filha de mãe francesa e de pai emigrante português. Treinou um pouco o francês e não só. Momentos de loucura! A menina de Lyon, em férias e o militar Vagabundo, rolaram nas areias finas da praia e mergulharam nas quentes águas do Atlântico, influenciadas pelo Mediterrâneo. A sensibilidade de Marie Luise transformou Vagabundo, aprendeu comme il faut, doucement. L´étalon! Pourquoi être mâle latin!? [, Como mandava a puta da sapatilha, na maior... O garanhão ! Porquê ser macho latino ?!].
Em pouco tempo as reservas que tinha levado, evaporaram-se. Houve que mandar um SOS para os velhotes, solicitando papel. Neste espaço de pede e recebe, é apanhado por um fim-de-semana, completamente limpo. Com Abledu, saiu dando umas voltinhas pelos cafés junto ao jardim e um saltinho ao outro lado do Gilão, para visitar uns familiares do camarada e amigo elvense. Sábado à noite regressa sem dispensa de fim de semana e de recolher à sua caserna.
Conversa com Clemente, vai aos balneários e vê uma banca de batota montada. Lá estavam os amigos madeirenses doidos pelo jogo. Completamente limpo, volta para o beliche, e tenta cravar o ex-seminarista. Este adivinha do que se trata. Nega e dá-lhe um sermão. Insiste!
– Toma lá as cinco “croas”. Amanhã vamos almoçar a Vila Real [de Santo António], O.K.?
Universidade Aberta, vai aprendendo a sobreviver, no mundo cão. Razão tinha Niotetos (in "Pássaro fora da Gaiola"):
– Eu não devo nada ao cabrão do meu pai! Se sou o que sou, foi porque estudei. O gajo limitou-se a fazer-me numa noite de gozo.
Aula de táctica, mesmo com o estômago vazio, Vagabundo sentiu vómitos e uma forte dor no estômago. As entranhas embrulharam-se-lhe todas. Nunca tinha ouvido tal. Seria possível um indivíduo falar assim do próprio pai? Mais!... passeando com a mulher pela rua, virava-se para trás e, directamente para a malta, dizia:
– É boa, não é!?,,, Mas é minha!
Assim, com estes professores, ia sendo formado um futuro furriel miliciano do Exército Português, em África. Quando em Dezembro de 1963 o já cabo miliciano Vagabundo recebeu a guia de marcha para se apresentar no Batalhão de Caçadores n.º 8 em Elvas, onde tinha sido colocado, não ficava com muitas saudades do CISMI, antes pelo contrário criou uma certa alergia ao próprio Algarve.