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quinta-feira, 15 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18419: Agenda cultural (633): Colóquio: Refugiados em Portugal - História e Atualidade | Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, Telheiras, Lumiar, Lisboa, hoje, das 14h às 18h




1. Chegou-nos, "just in time", a notícia deste evento que se divulga.  A iniciativa é de um grupo de moradores de Telheiras,  com o apoio da Junta de Freguesia do Lumiar. Entrada Livre. Inscrição prévia em vidaculturaarte@gmail.com

Obrigado à nossa amiga Luísa Tiago de Oliveira e ao Gabinete de Comunicação e Planeamento do CIES - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia) / ISCTE - IUL













Avenida das Forças Armadas,
Edifício Sedas Nunes, Sala 2W10,
1649-026 LISBOA Portugal

Tel.: 210 464 018 / 210 464 192 (ext. 291802)

www.cies.iscte-iul.pt | www.mundossociais.com

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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18394: Agenda cultual (632): Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, 10 de março, às 14h30: comemorando o Dia Internacional da Mulher, com vozes no feminino, plurais e lusófonas, na arte e na música

domingo, 17 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15624: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2ª versão, 2010, 99 pp.) - II Parte: I - Os putos (pp.7-16)



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [ Fitas Ralhete], o nosso querido camarada Mário Fitas, ex-fur mil inf, op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67, e cofundador e "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora,  alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.

Esta edição é uma segunda versão, reformulada, aumentada e melhorada,  do livro "Putos, gandulos e guerra" (edição de autor, 2000). A sua pré-publicação, no nosso blogue, em formato digital, está devidamente autorizada pelo autor.

Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


ÍNDICE

I          Putos

II         Putos, Gandulos e o Padre

III        Metamorfose

IV        Cepa do Zé de Varche

V         Vagabundo

VI        Por Terras de Portugal

VII       Guerra 1

VIII      Brincadeira no Mato

IX        Guerra II

X         Miriam

XI        Como se  Constrói uma Capela

XII       Guerra 3

XIII      Mamadu em Férias no Hospital Militar

XIV      Regresso à Guerra

XV       Adeus à Guerra




Elvas > Vila Fernando > s/d> c. 1950 > Calças de Palanco, Marquês e Picolo (p. 10)


Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > I PUTOS (pp. 7 - 16)

por Mário Vicente

A sideral abóbada negra com milhões de estrelas florescentes encantaram-no quando pisou a calçada. Com a forte excitação do momento, nem do medo da noite se recordou, o que seria normal a qualquer criança. Uma alegria interior dava-lhe um alento e uma curiosidade extrema para o seu temperamento calmo e introvertido. Seriam por volta das quatro da manhã! Calças de Palanco nunca se tinha levantado tão cedo.

No Rossio, em frente e por debaixo dos cedros, o rebanho ruminava deitado,  esperando o romper da aurora que, naquele dia, apareceria já com uma hora e pouco de caminho em direcção a terras do lado Norte.

Francisca, encostada na ombreira da porta, os olhos húmidos,  deixando cair uma tímida lágrima, desejou boa sorte e que tudo corresse bem.

António, com um nó na garganta, respondeu um até logo quase inaudível, e com seu filho e o companheiro Jolim dirigiram-se para o rebanho. Acossados por Jolim, o cão, os ovinos foram-se levantando e tomando rumo tocados por António e seu filho, enquanto Francisca,  agora com os olhos rasos de água,  se recolhia ao lar, rodando a chave a avançar na lingueta de segurança da fechadura.

A aurora rompeu a meia légua passada, não era longo o caminho. António embrenhado nos seus pensamentos e o miúdo sonhando com a Feira e como seriam as terras para o lado do Norte. Foram tocando o gado, incapaz de entender porque é que o seu dono os obrigara àquela caminhada a desoras.

Mas era assim!... António ia mudar de vida. Mais certo e seguro sempre seria ter um emprego do Estado do que a errante e incerta dúvida do amanhã da vida que até ali levara. Teria ainda a vantagem de estar junto da mulher, filhas e filho,  que agora saltitava radiante campo fora, rodeando os olivais que davam acesso ao recinto da Feira de Gado nas terras do lado do Norte.

Já no recinto da Feira, enquanto brincava com um pauzinho, fazendo Jolim saltar na esperança de o abocanhar, Calças de Palanco foi ouvindo atento a conversa de seu pai, com aquele sujeito de casaco de bombazina e boné aos quadrados, até que o dito homem pronun­ciou:
– Pronto! Está certo, são minhas!

Apercebeu-se então o puto que voltaria a sua casa ape­nas com o pai e o companheiro Jolim porque as “lanudas” e os cordeiros já eram propriedade de outrem. António ficou duplamente satisfeito. Tinha feito bom negócio, o seu gado ficava em boas mãos e continuaria a ser bem tratado. Últimos acertos quanto a contas e forma de pagamento.

O homem de boné aos quadrados chamou o seu pastor, que começou a encaminhar o gado para o seu novo destino, o qual não seria muito longe, conforme a conversa trocada.

António chamou o filho e com o fiel Jolim seguindo-os, dirigiram-se para a rua onde de um lado e outro se encontravam barracas de quinquilharia, e de comes e bebes. Parou na barraca das farturas e pediu dois pedaços com açúcar e canela, e dois copos de café de cevada. Encostados ao balcão, pai e filho saborearam o pitéu, tendo António de esperar pelo miúdo porque a cevada se encontrava muito quente.

Enquanto tomava o café, quase a queimar a língua, Calças de Palanco ia deitando o olho para as pessoas que iam e vinham, naquele característico movimento de terra em festa, contemplando o céu, onde, de quando em vez estalavam os foguetes anunciando o dia de festa em honra de Nossa Senhora do Paço e da respectiva Feira de Gado, este ano bastante concorrida.

Após ter terminado o improvisado pequeno-almoço, o pai tirou um lenço do bolso e, carinhosamente, limpou a boca suja de melaço gordo açucarado e os bigodes de café do seu filho. Levou-o à frente de uma barraca de brinquedos, e perguntou­-lhe:
– Então, que brinquedo queres?

Calças de Palanco ficou maravilhado e corou pela introvertida admiração e indecisão de tantos brinquedos lindos. Uns de madeira, outros de lata!... Ficou um pouco confuso, mas um ficou gravado no seu olhar encantado, enquanto atento percorria aquele mundo maravilhoso. Era aquele carrinho de lata pintada puxado por um cavalo, com cocheiro e tudo. Seria que o pai lho compraria? Mais uma segunda, e uma terceira volta de olhar mirando tudo ao pormenor, até que o pai o interrompeu no seu maravilhoso vaguear:
–  Como é, filho, não dizes nada? Querias tudo, não era? Pois!... Mas tudo não pode ser! Escolhe lá o que mais gostas!

O indicador do miúdo disparou ágil como seta, e pronunciou:
–  Aquele!

Era o carrinho do cavalo. António pagou e a mulher gorda,  de lenço castanho com flores amarelas amarrado à cabeça, agradeceu o pagamento e entre­gou o brinquedo ao contemplado.

Caminho de retorno, saltitante de alegria, o miúdo ia brincando com Jolim. Ficaram, pela primeira vez, visitadas as ter­ras para o lado do Norte, por onde mais tarde várias vezes passaria com sua mãe, quando iam visitar os primos de Fonte Clara.

Setembro passado, o Outono veio com muita água. Era Natal e ninguém podia entrar nos campos, que se encontravam completamente alaga­dos. Quando a mãe Natureza se distrai, são sempre os mesmos a sofrerem as consequências. Os lavradores mandaram os seus ga­nhões de férias sem vencimento. Claro! Que aguardassem pelo fim da invernia…

Zé do Barrocal, o filho mais velho do ti Manel, viu acabar-se-lhe o último naco de toucinho, pois já eram quatro bocas a comer e de trabalho não havia esperanças. Uma noite, resolveu fazer uma asneira e perder a honra com que era considerado em todas as abegoarias. Escondeu um saco de serapilheira debaixo do coçado casaco, e dirigiu-se sozinho ao mato, pois a vergonha não lhe permitia arranjar companhia, como outros que o mesmo faziam. Mãos geladas, por entre a erva molhada, foi apanhando bolota ou lande, azinho ou sobro, não importava, pois o impor­tante era juntar o suficiente que as costas aguentassem para carrego no regresso.

Madrugada, completamente molhado, escondeu o saco por entre as medas de lenha, dirigindo-se para casa. Tirou as botas de chumbo, com três dedos de barro verme­lho pegado, deixou a roupa enlameada no canto da chaminé e, vestindo umas ceroulas de baetilha enxutas, assim se deitou junto da mulher, que consigo tinha o filho mais pequenino para,  com seu corpo, lhe transmitir o calor e sossegado dormir. Sen­tindo o corpo gelado do marido, ajeitou as costas, até ficarem coladas com as dele, transmitindo-lhe assim um pouco de con­forto e, baixinho, segredou-lhe:
–  Tu dás cabo de ti, homem! E o pior é se te apanham! Já viste? Ai que vida esta!

Ajeitando-se melhor, colou o fraco corpo aos dois com­panheiros de cama tentando numa doação total a sua última rés­tia de calor. Mas, não havia sossego naquela cama. O filho do ti Manel dava voltas e revoltas! A cabeça, num fervilhar insano, não lhe deixava pegar no sono. Quem lhe compraria aquilo? Só quem tivesse um porco para engordar. A mulher,  não dormindo e adivinhando o atormentado pensamento do inquieto marido, como só as mulheres sabem adivinhar, voltou a segredar-lhe:
–  Oh, homem, agora descansa. Amanhã vais falar com a prima Chica, e vais ver que ela é capaz de querer a bolota!

Aí o homem esperançado acalmou e o sono tomou posse daquela mente escaldante e corpo amassado.

De manhã, na sua casa, Calças de Palanco, junto à lareira crepitante, comia uma torrada barrada de banha e polvilhada de açúcar, tomava uma caneca de café com leite, quando alguém, abrindo a porta, entrou dizendo:
–  Prima Chica, posso entrar?

Francisca, dando uma olhadela pela porta do meio, verificou quem era e respondeu:
– És tu, Zé?! Entra, assenta-te aqui ao lume, que está muito frio.
– Prima Chica, eu não me assento, queria era... nem sei como hei-de dizer! ...

Francisca olhou para o Zé do Barrocal e achou-o triste e um pouco nervoso.
– Diz lá Zé, há algum problema? Está algum miúdo mal?
– Não!... Não é isso! É que eu não tenho tido trabalho e esta noite tive de ir arranjar um saco de bolota!

Os olhos do homem estavam húmidos e uma vergonhosa lágrima rolou naquele magro rosto. O puto, no seu cantinho, gravava na mente aqueles dolorosos momentos e raciocinava:
– O primo Zé a roubar bolota para dar de comer aos filhos?! Ele tão considerado e respeitado por todos quantos consigo trabalham!...

Havia qualquer coisa que não entendia. O primo Zé está a chorar de vergonha, não por os filhos não terem de comer, mas por ter apanhado a bolota no mato, não sendo dele!

Instantes confusos. Mais tarde, retendo esta cena na mente e já com entendimento completo, compreendeu não só o problema do primo Zé mas todo o drama do povo da Planície. É que tudo isto acontecia em plena Europa, após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo artigo 25° diz: "Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistên­cia médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invali­dez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua von­tade."

A proclamação foi assinada a 10 de Dezembro de 1948.

As coincidências do destino! Calças de Palanco comia a torrada a 17 de Dezembro do ano seguinte. Francisca acalmou o filho do ti Manel e disse:
– Não te preocupes, diz lá quanto é? Levas já, pois de certeza que te faz falta. Logo, quando vires que podes trazer o saco, trá-lo. Se tiveres de fazer o mesmo, tem cuidado, não sejas apanhado, e escusas de andar à procura de quem fique com a bolota, pois eu só mato o porco lá “p´rós” fins de Janeiro.
– Obrigado, prima Chica! Nem sabe o bem que me está a fazer.

Tinha que saber! Não era favor nenhum, era obrigação, era um dever de solidariedade. Seria um acto de revolta contra todos os que exploravam e amarfanhavam os mais honestos e melhores filhos da Planície. Infelizmente nem sempre assim foi.

Calças de Palanco analisou isto tudo mais tarde e tam­bém os olhos lhe ficaram húmidos. Talvez por vergonha, quem sabe?

Ambos se foram cedo desta vida e com grande sofrimento, apesar da grande ajuda da improvisada enfermeira, a samaritana Xan­dra que muita dor aliviou. Tanto o Zé, filho do ti Manel,  como sua mulher partiram, mas com H e M bem grandes.

O fim de Janeiro chegou, e a matança do porco teve de ser adiada para o primeiro domingo de Fevereiro, por causa do pessoal da cidade, pois era só nessa data que o trem do quartel estava disponível. Mas uma semana passava rápido, menos para Calças de Palanco que estava desejoso de rever os primos da cidade.

Chegou a véspera da matança. António avisou Francisca para nesse dia não dar comida ao porco. À noite, Calças de Palanco não dormiu e manhã cedo, dia da matança, enquanto seu pai ia afiando facas e preparando a banca e todos os apetrechos, mais era satisfeita a sua curiosidade. Saltitava no quintal para ver os preparativos e assistir à chegada dos primos, enquanto seu avô, velhote,  ia atazanando a cabeça do paciente António. Até que o trem puxado por mulas e não cavalos, coisas esquisitas as dos militares, apontou ao portão da Colónia e,  contornando o Rossio, veio parar, em frente da casa de fachada azul e porta castanha. Grande alegria entre miúdos e graúdos!

Comeram-se as fatias paridas ao pequeno-almoço e matou-se o porco. Não era tão fácil assim,  pois havia tarefas complicadas, era necessária força e saber. Teria de se colocar o animal deitado sobre a banca – uma mesa forte –   e posteriormente amarrar-lhe a boca com arame ou corda para não utilizar os fortes dentes e ferrar em alguém.  Depois seria a mão certeira e experiente para aplicar o golpe seguro de forma que o animal tivesse boa sangria para feitura dos enchidos, e não sofresse muito.

Após o porco morto, era chamuscada a pele para empolar e retirar. Interessante para a miudagem era a abertura do porco, pois era satisfeita a curiosidade de verificar os órgãos internos do animal, confirmando o ditado popular “se queres conhecer o teu corpo,  mata um porco”.

A lavagem das tripas, que seriam utilizadas nos enchidos, foi feita no tanque de três bicos no eucaliptal, um pouco abaixo da nora. Toda a miudagem foi assistir, apesar do frio intenso. Fez-se uma fogueira e, enquanto Francisca e Rosária lavavam, a malandragem brincava e corria a mata de eucaliptos, desde a nora até à ribeira.

Almoçadas as sopas de cachola, a tarde correu tão rápida que não se deu por ela. Eram horas de voltar para a cidade! António e o compadre Zé Joaquim, já com um grãozinho na asa, iam-se num despedimento que não tinha fim, enquanto o pessoal.  todo acomodado no carroça, sonhava já com a nova vinda à aldeia. Os compadres fizeram a última despedida, e o trem arrancou com o sol já posto e as velas das lanternas acesas.

Veloz é o tempo quando se brinca e não há obrigações para cumprir! A miudagem, sem dar pela passagem dos anos, viu-se envolvida na vida escolar. Foram assim reduzidas as horas de brincadeira no casão do Baixa com Nanicha, e à noite as tenta­tivas de apanhar mamíferos voadores com Faty e Kinkas levan­tando as canas e gritando:
 – “Morcego, morcego vem à cana que tem sebo!”

Sacola às costas, caderno e lousa dentro, ei-los, no novo ciclo de existência, percorrendo a fase ainda muito incompleta de putos, para tentar alcançar a graduação de gandulos.

Com a cabeça quase rapada, pelo mestre Algêncio que era exímio, um verdadeiro perito na arte de tosquiar os pequenos crânios, e primava quando se lhe pedia um corte como devia, assim circulavam. Metia o pente mais grosso na máquina, e rapava a malta que era uma beleza. Vantagens? Livrava-se a malta dos "selos" ou "caldos" da gandulagem, "cuspinhadela" na mão e uma valente cachaçada.

Assim, geralmente, se apresentava Carrulho. Naquele dia, apressou-se ele a levantar o arame farpado mesmo juntinho à acácia enraizada no valado que dava acesso à eira da Colónia Correccional.

Imediatamente a canalha passou de gatas, não havia tempo a perder, para quê dar a volta pelo portão? Depois do Pato Marreco passar o último, como era cos­tume, o batalhão formou. A malta da Aldeia tinha ganho aos do Rossio de Cima. Braços sobre os ombros uns dos outros, todos engancha­dos, fazendo dos braços cangalhas, começou a lenga lenga do festim:

"Na quero trabalhar!
Porquê na quero!
A malta d´Aldeia ganhô ò Rossio!
Por três a zero!"


Eram comandados por Alacrau, incontestado capitão e chefe de muitas aleluias, a “tradição Pascal”. Não era brincadeira! Doze voltas à Igreja correndo, finalizando com a entrada na mesma, subida até ao altar, ostentando e badalando uma manga ou outra espécie de chocalho ao pescoço, geralmente cedidos pelo Zé da Defesa para o evento.

Desceram direito ao Joaquim dos Vinagres que, como di­ria meu avô, era seu vizinho. Cada voz com seu timbre, todos queriam berrar mais alto que o companheiro, numa desafinação total, tornando o "chinfrim" maior. Por cima da algazarra, sobressaia trombeteira a voz de Alacrau, pregoeiro-mor da aldeia, também incontestado, fosse qual fosse o produto.

Torreca seguia ladeado por Carrulho e Calças de Palan­co, Alacrau por Malhado e Binito. Na segunda linha seguia uma confusão de Ramada Curta, Narciso, Pegado, Laroso, Cabeçudo, Nanicha, Papo-seco, e outros de idades diferentes. Por último Pato Marreco, como habitualmente.

Não se compreendia bem! Havia coisas que não eram entendíveis. Calças de Palanco e Torreca, sendo do Rossio (de baixo),  alinhavam pelos da aldeia. O Narciso do Rossio (de cima) gritava também pelos da aldeia.

Confuso não era!... Calças de Palanco, mais tarde no sul Guiné, já vagabundo mas não ainda maltês,  compreenderia então perfeitamente, enterrado na lama, bolanhas e tarrafo dos rios Cumbijã, Manterunga e Quaiquebam. Enrolado e cheirando a morte no emaranhado das matas de Camaiupa, Afiá, Cabolol, Cadique e Cantanhez aprenderia como os homens se tramam uns aos outros, transformando o "amai-vos uns aos outros" em "mamai-vos e matai-vos”.

Era mesmo assim! Ricos, pobres ou remediados, os homens delimitavam as suas próprias fronteiras, as relações e a vida. Eram as castas exactamente: fulas, futa-fulas, fulas-pretos, fula­-forros, mandingas, balantas, papéis, manjacos, bijagós, felupes, beafadas, nalus e mais a puta que os pariu com estas divisões todas.

Todos um dia morrerão e voltarão a ser terra. Regressemos então, aos gloriosos que aplicaram três "secos" aos do Rossio.

A meio da rua do Monte  – assim se chamava nos tempos que a Duquesa de Bragança, dona e senhora daquelas terras, por ali passava no seu coche a caminho do Monte de Vila Fernando quando a aldeia ainda era conhecida por Conceição –, Kinkas,  por entre o postigo semiaberto, viu o pessoal passar e não resistiu a um olhar mais prolongado a Calças de Palanco. Tão embevecida estava, que nem reparou que também ele ia descalço e não só, a cabeça do dedo grande do pé direito deitada abaixo. Que impor­tava? Os do Rossio tinham levado três "secos"!...

“Na quero trabalhar!
Porquê na quero!”


A ladainha continuou até todos se abraçarem nos degraus do adro em frente ao Cruzeiro de granito, comemorativo e recordante de Guerras,  é claro, da Independência e Restauração, ali colocado em 1940.

Sentaram-se e descansaram um pouco as cordas vocais. Fez-se por momentos, silêncio apenas perturbado pelo ralhar da ti Marilopes contra aquela canalha toda.

Joaquim acabou de dar a ração às mulas. Saindo pelo portal grande do cabanão, ao passar pelo chafariz, deu uma lava­dela nas mãos e tirando o lenço das calças de bombazina casta­nha, as foi limpando, dirigindo-se para a vereda que dava aces­so ao caminho mais curto para casa. Bamboleante na sua manei­ra pesada de andar, olhou em frente e parou. Firmou bem a vista e confirmou:
– Uns sapatos! Malandragem!

Andaram aqui toda a tarde e nem se lembraram dos sapatos. Pegou neles, chegou a casa e gritou à entrada:
– Marizabel!
– Que queres, homem?

Respondeu-lhe a esposa.
–Toma lá!

Entregando os sapatos á mulher, sentou-se à chaminé, um sorriso malandro surgiu-lhe no rosto. Deve andar algum à rasca a saber deles, pensou consigo. Torreca tinha a quem sair!

Maria Isabel mirou os sapatos e reconheceu-os imediatamente. Desceu a rua cem metros e, ao chegar à casa de fachada azul e porta castanha, abriu o postigo e chamou:
– Chica! Ó prima Chica!
– Já vou! – respondeu Francisca do fundo do quintal, pedindo desculpa a Ti Catrina, pela interrupção da conversa.

Quando se aproximou da porta de entrada, Maria Isabel estendeu o braço pelo postigo mostrando os sapatos, e disse:
– Olha, toma lá que devem ser do teu, foi o meu Jaquim que os encontrou na "êra."
– Pois são, prima Marizabel! Deixa estar que ele vai levar uma sova!... Mas deixa-o andar , ele há-de aparecer descalço!

Abandonando os degraus do adro, Calças de Palanco correu até à fonte e molhou o dedo que agora lhe ardia com in­tensidade. Imediatamente lembrou-se dos sapatos e, numa cor­rida louca, voltou à eira. Os ditos cujos tinham ficado a servir de poste da baliza, mas… de sapatos nada, tinham-se evaporado!...

Já estava a ficar desorientado, quando de repente olhou para as eiras de baixo, e viu o acampamento de ciganos.
– Foram eles!

Tinha de ser! Tudo o que aparecia e acontecia de mau,  era obra de ciganos, não era?!. .. A cabeça de Calças de Palanco entrou em confusão. Porquê? Mas há coisas que aparecem feitas e não são eles?,,,
Tão estranho!.... E voltou a aflição dos sapatos:
– Como posso entrar?

Os ciganos? Não era má ideia. Mas... e se não tivessem sido eles!? Com a cabeça ardendo em louca confusão voltou ao Rossio. Sorrateiro, foi até ao pinheiro mais próximo de casa, esperou uns momentos para se certificar que a porta estava aberta e que ninguém se encontraria na sala de fora. Mal calculado! Assim que pôs os pés descalços em casa, aparecendo milagrosamente, dona Francisca gritou:
– Descalço? Então os sapatos!?

A cabeça de Calças de Palanco ficou como se lhe tivesse caído em cima um calhau do tamanho do sino da igreja. Os ombros mirraram-se-lhe num encolher ignorante, mais parecendo frango acabado de depenar. Um "glu glu" saiu-lhe da garganta como engasgamento de migalha no goto.
– Ai meu Deus! Como tens o pé filho!  – pronunciou Francisca, ao verificar o dedo do pé de seu filho. 

Oh! divina topada na pedra em vez da bola! Oh bom Deus que fizeste o milagre de plantares pedras na eira!. .. Estava assim salvo! Os sapatos passaram à história. A grande priorida­de era tratar daquele dedo. Que alívio, que sorte!

Calças de Palanco cantou de novo interiormente: 
– Não quero trabalhar, porque eu não quero!

Dona Francisca pôs no chão os sapatos que mantinha escondidos no avental, e foi procurar mercurocromo para tratar do pé de seu filho, esquecendo a sova que tinha para lhe dar. O pensamento de Calças de Palanco voou para as eiras de baixo e saiu-lhe:
– E os ciganos?
– Quais ciganos, filho?

Calou-se, viu que tinha sido injusto. Era verdade. Nem tudo era obra dos ciganos. Mais tarde compreenderia a perseguição que os seres humanos se movem uns aos outros como bárbaros. Compreenderia melhor quando seu pai lhe contou as atrocidades da guerra de Espanha por ele presenciadas. Ainda hoje, a visão do momento e palavras se mantêm intactas nos olhos, cérebro e ouvidos de Calças de Palanco.

Subiam os dois a estrada que dava acesso ao Monte do Lago, lá bem em cima no alto onde funcionava a queijaria. Cá em baixo, encoberto pelos silvados, choupos e salgueiros, corria o fio de água da ribeira das Espadas. Os contornos do Forte da Graça bem definidos, com um céu azul aveludado como pano de fundo, forneciam uma tela de beleza extraordinária. Já quase no cimo junto ao Monte, António parou! Passou docemente a mão pela cabeça do miúdo e disse:
– Olha filho, a besta humana é capaz de tudo!
– Vi-os! Mãos amarradas com arames em torniquete!
– Desses dos fardos, pai?
– Sim,  filho, desses com que vocês fazem carrinhos para brincar.
– Homens e mulheres,  até crianças como tu, mãos amarradas atrás das costas, direitos à praça de touros de Badajoz. (**)

António dizia isto e os olhos húmidos transmitiam a realidade do passado, agora bem presente. A metralha martela­va-lhe a cabeça. A Ribeira das Espadas e os seus silvados, onde escondidos, lhe distribuía as “perrumas” (pão de farelo cozido para cães), pequena dádiva por vezes para tanta gente. Uma atrevida e sentida lágrima rolou por aquele rosto seco, tisnado pelo sol.

O pensamento de António regrediu no sofrimento e na dor.  E Soledade!?... Seria viva?... E se estivesse grávida, como desconfiava!? Fizeram amor por gosto, em emaranhados de angústia.

Mais tarde, já homem, Calças de Palanco sonhou uma noite que tinha um irmão, chamado António, do outro lado da fronteira.

Voltando aos sapatos! Foram os ciganos perdoados, mas não só, a partir dessa data a maneira de pensar do puto mudou radicalmente. Prometeu a si próprio que havia de falar com ciganos, tendeiros e malteses.

Malteses!...  Gostava de ser maltês. Deveria ser bom, sem ter nin­guém a mandar e andar por montes e vales!... Ser dono dos dias e das noites, de estradas e caminhos. Que bom!...

Não seria maltês! Mas na Guiné, o seu grupo de combate seriam "Os Vagabundos" e ele próprio "O vagabundo", como que fruto de se ter armado em herói e em maluco quando andou a aprender a matar nos “Rangers”, em Lamego. Saberemos mais tarde coisas tristes desta louca história.

O tempo voava, corcel alado, eternidade para os putos, cegos na ânsia de se tomarem gandulos. Seria tarde já, quando compreenderiam que aqueles eram os tempos mais puros e belos da sua existência.

Era vê-los nos invernos: pés descalços, mãos e, por vezes, até as orelhas sangrando cheias de frieiras, por causa daquele vento leste, frio, trespassante que varre a Planície. Sem desistirem, na terra barrenta em água gelada. Aí brincavam desco­brindo as suas nascentes, dando asas à sua extraordinária engenharia, construindo barragens, albufeiras e rios.

Aos inver­nos seguiam-se os "pós de Maio" que os livrava das frieiras e lhes dava azo a iniciarem-se como predadores armando laços nos ninhos às "pardalas" e tentando meter em gaiola (prisão) quem nasceu com asas livre para sulcar os céus.

Seguindo o ciclo da mãe natureza, viria o Verão com a sua canícula. A Planície, transformada em braseiro, obrigava à procura de uma sombra amiga. Divergiam então os putos da engenharia civil para a mecânica agrícola e outras da sua universidade imagina­tiva. Tudo servia para construção das suas fabulosas máquinas. À sombra dos pinheiros do Rossio, o arame, matéria-prima mais utilizada e roubada aos fardos de palha ou de enfardadeiras exis­tentes nas proximidades, era trabalhado por hábeis mãos, de onde saíam os mais maravilhosos brinquedos. Mulas, bois, arados e charruas, tractores e respectivos atrelados, fazia-se tudo. A criação inventiva levava a tudo aproveitar: latas de conserva para atrelados e comboios; as latas de graxa dos sapa­tos davam para rodas, telefones e outros engenhos; a cortiça para carroças, rodas e barcos. O Rossio transformava-se num Instituto Superior de Sabedoria. Brincava-se ruidosamente até se ter a certeza que toda gente dormia a sesta.

Esse seria o momento de lançar o golpe dos putos, uma escapadela até à Ribeira Velha para dar uns mergulhos no pego Salgueiro. Isto se o Sombra Negra não andasse por perto, pois, caso contrário, lá teria a malta de enrolar a trouxa debaixo do braço e todos nus, fugirem como setas pelo eucaliptal direito à nora ou ribeira acima até à ponte, conforme ele aparecesse e não fosse o gajo soltar o “Alsácia Andaluz”.

No Rossio a ciência tomava-se livre. Era a pura liberda­de! Liberdade?!... Quem falou nisso?  Risco azul imediato sobre essa palavra.  A palavra liberdade nem lhes era comunicada, não fossem mais tarde fazerem uso dela e trazer perigo para a Ordem e Progresso do (velho) Estado Novo. Era uma causa gravíssima,  esta da Liberdade, constando-se até que tal palavra não era conhecida pela própria Guarda Republicana, por não constar nos dicioná­rios existentes nos respectivos Postos.

Puto, mas gostando de ouvir o que as pessoas mais velhas diziam, Calças de Palanco ouviu um dia comentar ao tio Catorze aquele caso bastante falado de proibirem as mulheres de cantar quando, madrugada bem escura, seguiam para as ceifas. E foi triste este verdadeiro acontecimento!...

Madrugada fora, as manageiras de porta em porta, iam chamando o pessoal. Batida na porta e a normal pergunta e resposta:
– Quinita? Sim! Vá, rapariga, vamos lá!...

Alzira, Amélia, Catrina, Antónia, Felizbela, Chica Rosa, Elvirica, etc. etc etc.  Assim, sucessivamente, Chica ou Cipriana ou outras, todas as madrugadas funcionavam como despertadores humanos, até se ter o rancho todo avisado, e que começava a juntar-se à esquina do Vinagre ou da Requêta ou outro local, conforme fosse o destino.

Como seria este sistema doloroso aliviado? Como?
– Olha, mulheres, vamos mas é cantar!

Rouxinóis da madrugada. Elvirica, voz certinha e bem timbrada, dava o tom e todo o rancho começava a subir a ladeira cantando as "Saias":

“Mesmo agora aqui cheguei,
Mais cedo não pude vir,
Ainda cheguei a horas
Da tua linda voz ouvir.

Oh, lua não dês luar
Na campa da minha amada,
Não vá ela acordar
Na sua triste morada.

Adeus, ó Vila Fernando,
Colónia Correccional,
Prenderam o meu amor
C'uma fita cardinal."



Nunca ficou definido o sentido deste último verso. Alguns diziam por ser da fita cardinal, que era de cor vermelha; outros opinavam ser por incomodar uma excelência que passava as manhãs na cama. O certo é que um dia, ainda madruga­da, o cabo e uma praça da Guarda Republicana interromperam a alegria daquelas mulheres escravas, cujo crime era única e sim­plesmente cantar para suas tristezas afastar.
– Ficam avisadas que daqui p'rá frente acabou a cantoria, e não há mais avisos, senão for com multa, vai com prisão.

Palavras certas as do tio Catorze a bailarem na cabeça de Calças de Palanco:
– É um crime! Até o canto tiram ao Povo!
– E o padre?

Nestes assuntos não se metia ele! Falaremos ainda do padre e dos problemas existentes, à sua vol­ta, com os putos, gandulos e não só.

Quando Abril abriu, da terra prenhe deste Alentejo brota­ram as mais lindas e belas cantigas. Mulheres e homens alente­janos voltaram a sentir a força da sua terra,  cantando-a. Vitorino, Janita, Paco, "Oh, Elvas, Oh, Elvas". Quantas vezes me cruzei e falei desta bela cidade com meu irmão Picolo!

Havia agitação nos putos. D. Maria Alice aos rapazes e D. Maria Amélia às raparigas, já tinham avisado a data das provas de passagem e dos exames. Estes seriam na Direcção Escolar na sede do Concelho. Haveria explicações extras para as provas de admissão dos que continuassem a estudar. Grandes senhoras estas, que bem souberam fazer a esta terra!... Graças a elas muitos miúdos de então virão a ser homens e mulheres de muito saber. A outras, ou outros que, antes ou depois delas, tive­ram o mesmo comportamento, o meu agradecimento pela sua obra e desculpa por os não nomear, apenas por desconheci­mento.

Como ia dizendo, os putos da agitação passaram às dores de barriga dos exames. Estava prestes a primeira separação,  tendo só o tempo suficiente para, sentados nas pedras à sombra da mimosa na esquina da Requêta, ouvir as histórias do ti Russo.

Pequeno, cabelo aloirado (daí a alcunha).  olho azul, um já coberto de névoa catarata que não definia a cor, ar ladino, grande contador de histórias e “cascarrilhos”, lá ia desfiando o que a malta mais gostava.

Na sua voz calma começava então:
–Naquele dia o Arronches ia a atravessar a ribeira quando lhe apareceu o diabo.
– Pára lá!

Disse o diabo ao Arronches.
– Só passas se me deres um cigarro dos fortes!

O Arronches era homem sem medo! Ia dizendo, olhando e mirando com ar maroto, a reacção dos putos. Mas o diabo sempre era o diabo! Lembrou-se então o Arronches que levava a espingarda e gritou para o diabo:
– Ó diabo, abre lá a boca!

O diabo abriu a boca, o Arronches  puxou da escopeta, dedo no gatilho, e pum! Uma chumbada em cheio na boca do diabo!

Com a sua calma habitual o ti Russo continuava:
– O diabo engoliu o chumbo, deu um arroto, deitou uma fumarada pelas ventas e disse: "Ó Arronches podes passar, este é do forte, é do bom!!"

Assim passava as horas o velhote, contando histórias, mudando o tema conforme a reacção provocada nos putos. Seguia-se a do Ti Cagaporras, no tempo em que os homens se procuravam como os bois para lutar. Depois lá vinha mais uma de bruxas e lobisomens, etc. etc. etc...

Passaram as férias, as últimas da instrução primária. Para alguns, o tempo de criança acabaria aqui, pois rumariam para os campos onde já buliam irmãos e pais. Outros, mais afortunados,  bafejados pela sorte e sacrifício dos pais, continuariam tentando subir mais um degrau na vida.

Calças de Palanco rumou à cidade onde encetou nova etapa, agora na companhia de seus primos irmãos Auta, Picolo e Marquês. Aos fins-de-semana regressava à sua aldeia para a compa­nhia de seus pais e irmãs Adelaide e Amália.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 10 de janeiro de  2016 >  Guiné 63/74 - P15603: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2ª versão, 2010, 99 pp.) - Parte I: capa, dedicatória, introdução e prefácio (, este com a assinatura de António Graça de Abreu)

(**) Vd. Fundação Mário Soares > Guerra Civil de Espanha > Mário Neves e a guerra civil de Espanha > A chacina de Badajoz

(...) Quando Mário Neves [, 1912-1999], com apenas 24 anos, e ainda estudante de Direito, foi incumbido da sua primeira e derradeira prova como repórter do Diário de Lisboa, nunca iria imaginar as repercussões internacionais que iria ter o seu testemunho da tomada violenta de Badajoz por parte das tropas nacionalistas. (...)

(...) A “Matança de Badajoz” foi presenciada em primeira mão por três jornalistas: Reynolds Packard, da United Press, Jacques Berthet, do Temps, acompanhados por Mário Neves. Estes jornalistas, e mais tarde Jay Allen, correspondente do Chicago Tribune, foram os primeiros a denunciar a violência e a “inflexível justiça militar” realizada pelo Exército de África, comandado pelo tenente-coronel Yagüe. (...)

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13372: Notas de leitura (609): "Às 5 da tarde", por António Loja; Âncora Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
O antigo capitão de Mejo ali bem ao pé do corredor de Guileje, autor de uma obra ímpar. As Ausências de Deus, recua até à Guerra Civil de Espanha. Deliberadamente ou não, socorre-se de uma escrita enxuta, uma envolvente emocional sóbria, e dá-nos um fulgurante retrato que tem como pano de fundo os alvores do conflito fratricida até ao triunfo nacionalista. O herói, como numa tragédia grega, toma posição no arrastar dos acontecimentos, vai de condenação em condenação, e assim chegará ao Tarrafal, um campo de concentração com que o salazarismo nos brindou.

Um abraço do
Mário


Às 5 da tarde, por António Loja

Beja Santos

O escritor António Loja volta aos temas da guerra. Se As Ausências de Deus (Âncora Editora, 2013) espelham as suas memórias como comandante de uma companhia num dos teatros de operações mais ásperos da Guiné, “Às 5 da tarde” impele-nos diretamente para a guerra civil de Espanha, desde as primícias até à derrocada republicana, em 1939 (O Liberal, 2013, email: comercial@oliberal.pt). Um poema icónico de Federico Garcia Lorca, “Llanto por Ignacio Sanchez Mejias” onde, recorrentemente, quase como um metrónomo, se escreve “A las cinco de la tarde. Eran las cinco en punto de la tarde”, serve de moldura para os acontecimentos da trama.

Em 1957, na Escola Prática de Infantaria, Carlos Magalhães faz amizade com Pedro Fonseca. Este vem do Norte, é minhoto, recorda saudosamente o seu tio António que combateu ao lado dos anarquistas numa brigada internacional na Guerra Civil de Espanha. Este tio António fora para Madrid, em 1935, pretendia fazer uma investigação sobre quem eram os rebeldes madrilenos fuzilados em 3 de maio de 1808 e imortalizados no quadro de Goya, com o mesmo título. Palavra puxa palavra, Pedro informa Carlos que em Madrid o tio António conhecera no Museu do Prado uma outra estudante de Goya, Clara, também portuguesa. Vários enigmas rodeiam a morte do tio António, em 1944. E veio à baila que na casa da aldeia havia umas caixas com papéis que pertenciam ao tio António. Os dois acordam em ir mexer no passado. E nas férias de Natal de 1957 rumam para Covas, no alto de Vila Nova de Cerveira.

Iniciam investigação, a primeira tarefa foi reunir o material encontrado e datá-lo. Descobriu-se um maço de cartas que parecia ser um diário, três cadernos de capa preta cuidadosamente manuscritos e datados a partir de outubro de 1935. E o leitor mergulha no diário de António Tomás, a viagem de Entroncamento para Madrid, a primeira visita ao Prado, o encontro ofuscante com a obra-prima “Os Fuzilamentos de 3 de Maio”. Sente-se altamente perturbado e justifica-se: “No quadro de Goya o realismo retratava a cruel violência sempre presente através dos séculos nas relações entre os homens. Perante os seus olhos, os soldados apontavam as armas aos lutadores da Liberdade violentados pela brutalidade dos invasores. Covardemente disfarçados nos seus uniformes, os soldados chacinavam sem piedade os miseráveis que emergiam, vindos de uma prisão-catacumba que se mostrava à superfície apenas como uma abertura negra rasgada no ventre da terra. Como pano de fundo, a imagem trágica da indiferença e da frieza: uma cidade entrevista apenas em silhueta, que aceitava passivamente a violência e a crueldade”.

As investigações não levam a nenhuma resposta, a documentação da época aparecia rasurada, as provas comprometedoras tinham sido destruídas. Dá-se o encontro com Clara Noronha, estudante de arte. A relação estreita-se. No início de 1936 visitam Aranjuez e amam-se. Madrid fervilha, perfila-se no horizonte uma cruzada dos nacionalistas contra socialistas, comunistas e anarquistas. A PVDE, a antecessora da PIDE, desconfia das razões da presença de António em Espanha, a família pede-lhe para voltar. António decide ficar, pretende alcançar Barcelona, uma rede de anarquistas amigos prepara-lhe um itinerário dissuasor. A guerra civil entra em cheio na trama do romance. António assiste a fuzilamentos na Andaluzia. A complexidade da trama cresce, Pedro e Carlos vão visitar Clara a Vilar de Monforte, Clara entrega-lhes mais um maço de cartas, as cartas que António passa a escrever nessa deambulação, autêntica fuga à PVDE e aos nacionalistas, os documentos concatenam-se, a viagem prossegue de Algeciras para Málaga onde António assiste ao rescalde de um bombardeamento aéreo, prossegue para Valência, e em Barcelona alista-se nas brigadas, começam, diante dos seus olhos, as disputas brutais entre comunistas e trotskistas.

Um ortodoxo soviético pretende catequizá-lo, António rejeita o fanatismo e marcha para a Frente do Ebro, estamos em 1937, entremeiam-se os relatos do diário e o desenvolvimento dos acontecimentos, os recontros, as cidades destruídas, a selvajaria dos assassinatos, António regressa a Madrid, escreve lancinantes cartas de amor e depois volta para Barcelona, já não tem ilusões, os grupos republicanos estão totalmente desentendidos, os nacionalistas possuem toda a classe de apoios, avançam imparavelmente. António atravessa os Pirenéus e refugia-se em França. E vem a guerra, as tropas de Hitler atravessam fulminantemente a França, depois de muitas peripécias António chega a Vilar de Monforte, traz indícios de tuberculose, é preso e envido para o Tarrafal. Estamos em 1942, a descrição do campo de concentração é, por si só, um libelo acusador do humanismo salazarista: alimentação indígena, condições de higiene abomináveis, o castigo da “frigideira”, onde são postos os presos punidos com isolamento. O médico do Tarrafal adverte que António é uma ameaça com a sua tuberculose, regressa e é conduzido a um sanatório no Caramulo. Os amantes reencontram-se, fazem planos, o afeto parece fazer ultrapassar todas as inquietações. E chega o desfecho fatal. Numa cadeira junto à cama, hirta, aparentemente ausente, lágrimas correndo silenciosamente pela face. Clara murmura como se fosse um autómato:
A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.

E, depois de um breve silêncio:
Lo demás era muerte y solo muerte
A las cinco de la tarde.

O que há de profundamente tocante nesta incursão de António Loja pela Guerra Civil de Espanha é o seu tom de escritura em tempo antigo, cadenciado, uma mescla de arrebatamento entre aqueles dois seres humanos e a explosão sanguinolenta do conflito fratricida. É uma prosa cadenciada, bem mesurada, tornando plausíveis aquele diário, aquelas cartas. Os dois cadetes de Mafra, daquele ano de 1957, são um mero pretexto para a intermediação daquele enigma de uma paixão e de um compromisso com a solidariedade política. Num tempo em que o romance histórico arrebata as atenções dos leitores, tem-se aqui uma excelente oportunidade para descer aos infernos da Guerra Civil de Espanha, revisitar a insânia do fascismo, a truculência dos conflitos na esquerda e ver o funcionamento do campo de concentração do Tarrafal. O mote está dado: os fuzilamentos pintados por Goya fascinam e arrepiam. E alertam para a possibilidade da sua repetição.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13364: Notas de leitura (608): "África" - Literatura-Arte e Cultura - Os Djumbai (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2538: Guineenses da diáspora (2): António Rocha, economista, casado com Juvelina Cabral, irmã de Amílcar Cabral

Guiné-Bissau > Bissau > 1998 > "Almoço no Clube de Caça da Anura, em 1998. Eu sou o segundo do lado direito, no primeiro plano. O segundo do lado esquerdo, no primeiro plano, é o Rocha, economista, casado com a Juvelina Cabral (irmã do Amílcar Cabral), que moravam na altura em Bissau (estão actualmente em Angola).

"Mesmo de frente, o homem de bigodes é o comandante do navio mercante que trouxe os portugueses quando se deu o golpe de Ansumane Mané (1); ao seu lado direito está o gestor da GUIPOR (empresa detentora da exploração do Porto de Bissau, na altura em mãos de portugueses)" (2).

Foto e legenda: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.


1. Mensagem do António Rocha, enviada ao A. Marques Lopes, com conhecimento ao editor do blogue:


Assunto - Guiné da minha saudade, Guiné da minha tristeza

Caro A. Marques Lopes:

Eu sou o Rocha, o economista casado com a Juvelina Cabral e que agora reside e trabalha em Angola e que, num dia de 1998, creio que pouco tempo antes da guerra civil da Guiné (1), teve o prazer de o conhecer, curiosamente na companhia daquele que seria o nosso Comandante salvador.

Creio que já há cerca de dois anos quando fazia uma pesquisa relacionada com a família Cabral, descobri, num dos primeiros sites da lista de resultados, a vossa tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné, que no excerto de apresentação fazia referência a mim e à minha mulher.

Claro que fui imediatamente ao sítio do blogue e lá descobri o seu artigo com a fotografia no Clube de Caça de Anura (publicado em 7 de Agosto de 2005)(2), e resolvi escrever o texto seguinte, o qual enviei para o e-mail do Professor Doutor Luís Graça.

Curiosamente hoje, quando estava a reorganizar o Outlook (que há muito tinha deixado de usar) descobri que o tal e-mail ainda estava no arquivo de "a enviar".

Então revisitei o Blogue e entendi reenviar o texto mas, agora, também para si uma vez que lá descobri o seu endereço.

Já agora também lhe digo (porque vi que é de ou mora em Matosinhos ou Porto) que sou nascido e criado no Porto e durante muitos anos trabalhei em Matosinhos e em Leça, na Petrogal.

O texto que na altura julguei ter enviado foi o seguinte:

"Luís Graça e amigos,

Não poderei considerar-me do vosso grupo, no sentido em que não fui combatente nem na Guiné, nem na guerra colonial.

Consegui escapar, com muita artimanha e também por real incapacidade física (visual). Fui, sim, um combatente contra a guerra colonial, nas trincheiras da oposição anti-fascista, nos débeis períodos eleitorais e nas manifestações da universidade.

Respeito muito quem foi forçado a entrar nessa triste guerra, mas também respeito quem, na altura, se sentia na obrigação e com vontade de defender a pátria e o "glorioso império" português.

Mas entendo ter algo a ver com o vosso grupo porque amo e choro, todos os dias, a minha querida Guiné. A Guiné para onde quis dar o meu contributo voluntariamente em 1985 e me mantive até 2000 (com ano e meio de interregno causado pela guerra), a Guiné onde encontrei a mulher da minha vida, a Guiné que eu vi nascer para a democracia, a Guiné pátria do ídolo da minha juventude - Amílcar Cabral -, mas também a Guiné onde deixei amigos vivos e muitos mortos, a Guiné da minha tristeza diária, a Guiné que tarda em encontrar o caminho e que tanto me faz sofrer.

Eu sou o Rocha, o tal economista que o Coronel A. Marques Lopes refere no Blogue Nove Fora Nada, aquando da sua visita à Guiné em 1998 e que está na fotografia do Clube da Anura (2).

De facto ainda me encontro em Angola, juntamente com a Juvelina, minha mulher, e o nosso neto/filho João Carlos, há quase 7 anos!

Mas, não há um único santo dia que a primeira coisa que faça, não seja ler as notícias sobre a Guiné. Sou um viciado amante da Guiné que há muito só me tem dado motivos para chorar, para me revoltar.

Por isso não serei a melhor companhia para vocês que, passados tantos anos conseguem ver as coisas doutra maneira, que conseguem encontrar sempre algo de positivo ou até de belo nas vossas andanças por aquelas terras.

Isso é muto bonito e encorajo-vos a continuarem a recordar esses tempos tão significativos das vossas vidas, com a serenidade de quem consegue, hoje, ver no antigo adversário um amigo.

Eu só quis intervir para vos dizer que aprecio o vosso blogue, a vossa amizade e solidariedade e, sobretudo, o vosso contributo para o esclarecimento desta época, talvez a mais importante da nossa história contemporânea.
Por mim, despeço-me com amizade, até um dia em que possa intervir com mais serenidade e com o distanciamento e lucidez que vocês conseguem.

Até lá serei vosso atento leitor.

Desejo a todos muitas felicidades e muita saúde e que esta tertúlia se prolongue por muitos e bons anos.

António Rocha - O tuga-guineeense."


Creio que, apesar de decorridos 2 anos, nada teria a mudar deste texto. Continuo a ter os mesmos sentimentos pela Guiné e a sofrer da mesma maneira porque, infelizmente, as coisas não melhoraram, antes pelo contrário...

Só gostaria que um de vós me fizesse o favor de me informar se o endereço da v/ tertúlia é o mesmo pois constato (no que acedi, http://blogueforanada.blogspot.com/) que não foram acrescentadas mensagens recentes (3).

De qualquer modo desejo a todos muita saúde e até um dia.

Grande abraço

António Rocha

2. Comentário do editor L.G.:

António (e Juvelina):
É bom saber de vocês... Gostei muito de ler a tua mensagem que esteve dois anos à espera de ser enviada (permite-me que te trate por tu, por que isso simplifica muita coisa). É de um grande tuga e de um grande guineense.... Lamento muito que tenhas sido obrigado a sair da tua Guiné, e que haja tanta amargura e tanta saudade no teu coração... Fico feliz por saber que te faz bem ler o nosso blogue e que aprecias muitas das coisas que por cá publicamos... Formamos uma Tabanca Grande onde tu e a tua Juveliana seguramente que cabem... Aparece mais vezes, sempre que quiseres e puderes. Se for a Angola, gostaria de te conhecer pessoalmente. Um abraço solidário.

__________

Notas de LG:

(1) O brigadeiro Ansumane Mané liderou, em Junho de 1998, um levantamento militar, a partir do quartel de Mansoa, e que levaram a uma sangrenta guerra civil. Na altura, cerca de 3 mil estrangeiros, incluindo portugueses, tiveram que fugir do país. Ao fim de onze meses, a rebelião acabaria por levar ao afastamento do então Presidente Nino Vieira, e colocar no poder uma Junta Militar liderada pelo brigadeiro.
Ansumane Mané será entretanto morto, alegadamente em combate, nos finais de Novembro de 2000, no decurso de uma também alegada tentativa de golpe de Estado contra o Presidente Kumba Ialá, entretanto eleito.
(2) Vd. poste de 7 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLV: Bissalanca, Bambadinca, Anura... ou três fotos com legenda (1) (A. Marques Lopes)

(3) Desde Junho de 2006, estamos na 2ª série do blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné. E formamos uma tertúlia ou Tabanca Grande onde cabem todos os amigos da Guiné e do seu povo... Reservamos, naturalmente, a palavra camarada para os ex-combantentes, portugueses, independentemente da sua posição (político-ideológica) face à guerra colonial / guerra do ultramar...

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

Moçambique > 1969 > O Alf Mil Carlos Sampaio, o grande amigo de Beja Santos, com quem se correspondia regularmente. Os dois tinham projectos para a vida civil, como por exemplo criar uma editora livreira. O Carlos nasceu em Anadia, a 19 de Novembro de 1946 e morreu, em combate, em Moçambique, em Nambude, em 2 de Fevereiro de 1970 (1) (LG).

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto enviado pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), em 27 de Novembro de 2007:

Luís,

Aqui vai novo episódio. Não sei como vai ser, mas este novo livro deverá estar pronto até Julho, não sei se tenho saúde para tanto. Os dois livros citados seguem hoje pelo correio. Muito obrigado pelo acolhimentro que deste aos pedidos de imagens do Círculo de Leitores. Estou convencido que aquela imagem do Humberto, na travessia da bolanha bem aguada, vai dar uma capa fabulosa. Segue igualmente uma fotografia do José Braga Chaves, referido neste episódio.

Um abraço,
Mário


Operação Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVII > Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal e outras paragens em África
por Beja Santos (2)

(i) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

Mal recebi as tuas notícias, e porque tinha que ir buscar o correio a Bafatá, fui de novo à administração tratar da procuração onde faltava o nome e idade dos teus pais (já enviei por correio a procuração anterior, que ficou sem efeito). Confirmo com muita tristeza que não terei direito a férias em 1970, pelo que teremos que decidir o casamento por procuração, aguardando o meu regresso para a cerimónia religiosa.

Lembro-te que continuo sem descanso, Dezembro é sempre um mês com mais medidas de segurança, sobretudo junto ao Natal e ao Ano Novo. Não vejo circunstância, pois, para pensar em casarmo-nos aqui. Vamos esperar serenamente o desenrolar dos acontecimentos.

Pouco mais posso adiantar sobre o meu futuro do que aquilo que já sabes: esta penosa intervenção com idas às tabancas, emboscadas nocturnas, patrulhas, períodos nos Nhabijões e no tal local horrível de que te falei, a ponte de Udunduma. Além disso, temos as operações. Participei há dias numa operação na região de Mansambo a que puseram o nome de Lua Nova. Tu estarás porventura esquecida mas logo a seguir à operação Anda Cá, em Fevereiro, fomos a Mansambo, pouco antes de eu ir a Bissau. O objectivo era bater uma área onde os guerrilheiros tinham feito um santuário e que foi destruído pela aviação. Como sempre acontece na guerrilha, aproveitando-se das dificuldades naturais, sobretudo da floresta galeria que é muito comum naquelas áreas, eles voltaram de novo a instalar-se relativamente perto de Mansambo, supondo-se que em Biro e Galoiel, onde tínhamos estado em Fevereiro. Antes de fazermos esta operação, tinham lá estado forças helitransportadas que destruíram um acampamento em Biro e capturaram material.

O comando de Bambadinca decidiu que voltássemos a Biro para confirmar se os guerrilheiros tinham voltado. Falei-te há algum tempo que tínhamos ido fazer uma coluna de reabastecimento ao Xitole. A natureza ali não é particularmente bela, excepto quando nos aproximamos do Corubal. Disseram-me que os rápidos de Cusselinta são um deslumbramento, penso que para a semana teremos nova coluna de reabastecimento e iremos até ao Saltinho, e então terei a oportunidade de confirmar se esses rápidos são tão impressionantes como dizem.

Bom, os guerrilheiros podem atacar a estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole mais facilmente se conseguirem ter bases avançadas nesta região que se chama Bissari. Saímos a 12 de Bambadinca, fomos até Samba Juli, até aí não é preciso picar, mais à frente um pelotão de milícias e um grupo de combate de Mansambo patrulharam a estrada e chegámos ao quartel a meio da tarde. Lá encontrei o capitão Neves e o Jorge Cabral, o irmão da tua colega Suzete, que está em Fá, povoação não muito longe de Mero e Santa Helena. Saímos de Bambadinca com dois grupos de combate de uma companhia de caçadores africanos. Tivemos um grande sofrimento com o frio, para quem não acredita que não há frio em África, seria bom que tivesse vindo connosco. Lá tivemos emboscados perto do Galoiel que assaltámos ao amanhecer.

Não te sei explicar a sensação de visitar um local que tu sabes que já teve vida, e até recentemente: os vimes e o colmo bem disfarçados sob a floresta serrada, os caminhos que estavam bem batidos, sem nenhum capim no seu interior, as marcas dos refúgios das armas pesadas, os restos das fogueiras. Transidos pelo frio mas muito tensos, lá percorremos todo o antigo acampamento onde não há vislumbre dos grupos que partem de Galo Corubal terem voltado.

Nós não temos ilusões, é tudo uma questão de tempo, logo que eles estejam reforçados hão-de regressar, já te escrevi a dizer que eles estão a fazer muita pressão à volta de Bambadinca, atacam as tabancas, raptam, exigem comida, sempre que podem recrutam guerrilheiros. Regressámos sem problemas mas eu vou demorar a esquecer esta emboscada com um cacimbo de rachar os ossos.

Guiné > SPM 3778 > 5 de Dezembro de 1968 > Envelope de carta estampilhada, enviada pelo Alf Mil Beja Santos, do Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/69), à sua noiva Maria Cristina Allen. Na época, o custo em selos uma carta por via aérea (?) não era barato: 2$50...

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Obrigado pelas notícias que me dás do Alcino, também a minha Mãe já me tinha dito que ele está pouco falador e recupera lentamente. Fiquei também a saber que o Jolá Indjai está a tratar da sua tuberculose num sanatório embora fale que quer voltar rapidamente. Sentimo-nos muito orgulhosos com as notícias que recebemos de que o Mamadu Camará, Adulai Djaló e Mamadu Djau vão ser condecorados, o processo do Cherno ainda está a ser analisado. O nome desta condecoração é Cruz de Guerra, por heroísmo em combate.

Estou nas lonas, nomearam-me gerente de messe, o que veio introduzir mais actividades como as de comprar chávenas, queijo e conservas para os meus exigentes clientes de bar. Confesso-te que não sei como vou recuperar energia, as insónias persistem e eu às vezes tenho medo de me esgotar. Recebe muitos beijinhos de quem vive sempre saudoso de ti.

(ii) Para Ruy Cinatti

Obrigado pela sua carta, obrigado pelos livros do Erich Maria Remarque e do Francis Ponge. Fico-lhe também a dever a atenção de ter ido visitar ao Hospital da Estrela os meus amigos Fodé, Paulo e Casanova. Desculpe andar arredio da escrita, não consigo habituar-me a este ritmo, não é um problema de caminhadas mais ou menos longas ou operações muito duras. É o ritmo, o viver separado dos meus homens, num estranho quartel onde há um porto importante, de onde partem colunas militares para outras regiões do Leste, a diversidade de tarefas deste patrulhas e emboscadas, vigiar estradas, ir buscar correio, acompanhar trabalhos de um reordenamento de populações que vivem junto ao rio Geba e, claro está, participar nas operações.

Neste lapso de tempo em que não lhe escrevi fui numa coluna ao Xitole, o comandante arranjou-me aqui uma historieta com uma professora gentil e de idade indefinida, a verdade é que até a fiquei a estimar e ela prometeu-me dar-me informações sobre a história do regulado do Cuor antes da guerra. Antes de começar a escrever estar carta, fui chamado ao major de operações que me informou que a partir de amanhã à tarde descansamos um dia pois vamos fazer uma operação numa região do Xime que se chama o Buruntoni, que envolve bastante risco. E à volta do Natal vou para um pseudodestacamento que se chama a ponte de Udunduma para proteger a estrada de Xime-Bambadinca.

O Carlos Sampaio escreveu-me da região de Cabo Delgado, há muitas minas e emboscadas, nesta região do Norte de Moçambique a guerra não dá tréguas. Sinto-o muito triste e vou hoje responder-lhe à carta que me escreveu na semana passada. Como V. é um grande poeta quero dizer-lhe que a capela do quartel do Xitole me tocou muito, pedi protecção a uma cruz em bissilão antes de partir para a estrada que me trouxe de novo a Bambadinca. E ontem, no regresso de Mansambo, parei junto de um poilão à entrada da estrada de Moricanhe onde vi um pedaço de camisa a flutuar ao vento e um dos meus soldados disse-me que aquela roupa está colada com carne e sangue, é o resto de um milícia que se volatilizou quando picava a estrada e foi atingido por um fornilho.

Não querendo abusar da sua generosidade, peço-lhe que visite o cabo Alcino Barbosa que está nos serviços de ortopedia da Estrela. Aproximando-se o Natal, louvo os meus amigos mais queridos, por quem cantam anjos e serafins, desejo-lhe toda a paz, todas as bençãos de Deus e agradeço-lhe todo o bem que me faz e aos quem mais estimo.


(iii) Para Carlos Sampaio

Meu querido Carlos,

Gostei muito que me tivesses escrito mas estou apreensivo com as dificuldades que atravessas. Vejo bem que essa tua guerra não é muito melhor que a minha, mas chocou-me que tenhas escrito dizendo que destruíste todos os teus quadros e praticamente todos os teus poemas, quando estivestes em férias. Para estes há remédio, ficaram cópias e tu não podes entrar em nossas casas. Quero só lembrar-te que deixei ao cuidado da minha Mãe aquele quadrinho que pintaste na Anadia e a quem eu chamo “A noite de Águeda”, em homenagem a toda a noite em que andámos de bicicleta, aproveitando o luar e petiscando nas tasquinhas. Bom seria que não te esquecesses dos projectos que teremos em comum, quando a guerra acabar: nós vamos ser editores, Carlos, escolher os autores, lançar obras de acordo com um bonito projecto editorial.

Vá, não esmoreças, não deixes de fazer poesia, escreve-me um pouco mais, tu não imaginas o contentamento que tenho quando chegam as tuas cartas, a surpresa dos livros que me mandas. Um abraço muito grande, desculpa acabar aqui, vou jantar e depois partimos para uma emboscada a escassos quilómetros de Bambadinca, mas prometo escrever mais antes do Natal, que Deus te acompanhe sempre.


(iv) Para José Braga Chaves

Soldadão e amigo,

Recebi carta da tua irmã que quer estudar enfermagem e também tive notícias da Lúcia de Fátima, muito saudosa de ti. Obrigado pela tua fotografia, tens que me explicar que arma é aquela que pões à ilharga e para que é que precisas da faca de mato ao ombro. Já não estou na região de Missirá, agora estou na sede de batalhão, onde não me consigo aclimatar, são afazeres e obrigações que não matam mas moem. Tanto posso emboscar ou patrulhar como partir subitamente para uma operação ou ficar num destacamento para impedir que os guerrilheiros avancem sobre Bambadinca. Sempre dormi bem, mesmo a vida duríssima que levei em Missirá não me impediu de ter energia, coisa que aqui não consigo e começo a sentir muitas preocupações com as insónias, quero evitar comprimidos para dormir. Mas o médico já me avisou, se isto continuar tenho que ir fazer uma curta cura de sono.

Desejo-te umas boas férias em Lourenço de Marques e fica prometido que vou ao teu casamento, quando a guerra acabar para nós. Muitas felicidades, despeço-me aqui, faço votos para que tenhas um Natal feliz, e agora vou escrever para os Açores.


(v) Para Marino Teves

Meu inesquecível Marino,

Foi tão bom receber as suas orações, saber que não me esqueceu, que todos vós, aí nos Açores, estão em cuidado comigo. Ora quem está em falta sou eu. Nunca lhe agradeci esse admirável romance que é Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway. Li e reli este drama pungente sobre a Guerra Civil de Espanha, nunca mais vou esquecer Robert Jordan, Maria, Pilar, Anselmo, Pablo e tantos outros combatentes. O que me cativa em Hemingway é essa característica de documentário e narrativa tão humanas, a singeleza das frases, a autenticidade dos diálogos. Documentário por que temos ali a crueldade da guerra, os fuzilamentos, o ódio dos fascistas pelos republicanos e vice-versa, ele recorre a expressões duras, a imagens compactas mas elucidativas. Por exemplo, quando ele se refere à pureza de sentimentos que desaparece nos sobreviventes e nos vencedores a propósito da defesa de uma posição e da verdadeira camaradagem, a dureza da disciplina:

Capa do famoso romance sobre a Guerra Civil Espanhola (1936/39), de Ernest Hemingway, Por quem Os Sinos Dobram. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Dois Mundos, 24). Capa de Bernardo Marques.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

“Sob os obuses os homens acovardavam-se e fugiam, e ele viu esses homens a serem fuzilados e abandonados à beira dos caminhos, sem que ninguém se preocupasse com eles se não para lhes tirar os cartuchos e tudo o que tivessem que valesse alguma coisa. Tirar os cartuchos, as botas e os casacos de couro, era coisa normal. Tirar os valores era apenas realista, o meio de impedir que os anarquistas o fizessem”.

Como se recordará, a missão de Roberto Jordan é de dinamitar uma ponte para impedir a progressão dos exércitos fascistas, quando o general Golz ordenar. Roberto vive num acampamento com os partisans, algures não muito longe de Segovia, é aí que nasce a sua relação com Maria, aí que vem ao de cimo todas as memórias da sua América, as razões da sua luta, são inesquecíveis as suas recordações no Hotel Gaylord, onde encontra Karkov e Kachkine. Jordan é o Inglés para os seus camaradas espanhóis.

Meu querido Marino, a mensagem de Jordan/Hemingway quando vai morrer depois de ter dinamitado a ponte é eloquente, como numa oração ele recorda que o seu combate foi a certeza da sua vida, o mundo é belo e merece que se lute por ele, dói-lhe deixá-lo. Jordan teve uma vida boa, lamenta não poder transmitir o pouco que aprendeu, questiona quem é que aceita melhor este momento de morrer, a religião conforta muito e morrer só é mau quando demora muito tempo e faz sofrer tanto que nos oprima. Serenamente, ele aguarda a passagem do tenente Berrendo para o matar. Agora percebo bem a citação que Hemingway faz de John Donne: “E não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Neste preciso instante, estou cheio de saudades do Natal de 1967. Lembro a emoção com que vocês participaram na organização da festa de Natal nos Arrifes, arranjámos lembranças para todos os meus soldados marienses que ficaram retidos em S. Miguel. Fui numa Ford Canadá até à Ribeirinha, com serrotes e machados para cortar ramos de araucária, a finalidade era forrarmos as paredes de uma garagem onde se ia realizar a festa de Natal. No regresso houve um curto-circuito na Ford Canadá mas ao amanhecer entrámos triunfalmente nos Arrifes, ali se montou o presépio com o vosso lindo Menino Jesus, houve cânticos ensaiados pelo padre Agostinho e depois percorremos as ruas dos Arrifes a saudar a população.

Ainda hoje escrevi ao José Braga Chaves, mas esqueci-me de recordar esta história. Lembro-me dos meninos que iam comer as sobras do rancho, o que me doía era a sua alegria espontânea no meio daquela terra de verdura que me lembrava a Suíça. Mudei de quartel mas não mudei de trabalhos. Como estamos no Natal, não vos canso mais com as minhas atribulações. Hossanas para todos vós, a minha gratidão é enorme e beijo-vos muito. Deus permita que vos possa visitar em breve.

Lisboa > s/d > O Mário Beja Santos, com a senhora sua mãe.

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


(vi) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Agradeço-lhe muito as visitas que faz aos meus feridos. Gosto muito de receber os seus postais e de saber que viaja mesmo cheia de dores com as suas artroses. Olho para o calendário e vejo que dentro de oito, nove meses nos iremos reencontrar. Não lhe quero esconder que estou profundamente exausto e contínuo a não compreender porque é que me diz coisas tão duras nas suas cartas.

Deu-me satisfação ter recebido os livros que me mandou, aproveito logo os policiais para meter no bolso do camuflado e ler aos poucos, nas colunas de transporte ou nas pausas. Achei interessante O caso da Fotografia Misteriosa, de Erle Stanley Gardner. Desta vez Perry Mason confronta-se com um cliente muito inteligente e astuto J. R. Bradbury que lhe vem pedir que contacte Frank Patton, um aldrabão que contratava jovens bonitas para uma empresa cinematográfica à procura de novas beldades. Patton enganava tudo e todos, desaparecia de um local e reaparecia noutro. Agora estava em Nova Iorque, era preciso metê-lo na cadeia ou então obrigá-lo a indemnizar uma rapariga, vítima da sua última maquinação, fazendo Patton confessar a sua intenção fraudulenta. Inicia-se a investigação, Mason descobre Patton assassinado, todas as pistas apontam para um médico que gosta da jovem enganada pelo agiota assassinado.

Capa do romance policial deErle Stanley Grardner, O Caso da Fotografia Misteriosa. Livros do Brasil: Lisboa, 1948. (Colecção Vampiro, 16). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


A dedução de Perry Mason, e estou em crer que o seu diálogo com J. R. Bradbury no desenlace final, vai passar à história da literatura policial. Confesso-lhe estar muito cansado, aproxima-se o Natal, redobram as medidas de segurança, não paramos um só dia, felizmente que tenho um excelente relacionamento com todos os meus camaradas de Bambadinca.

Vou amanhã a Bafatá enviar-lhe as suas lembranças de Natal. Nós aqui não faremos festa, haverá um rancho melhorado, não sei onde passarei o Natal com os meus soldados. Prometo escrever em breve, tenho muitas saudades tuas, às vezes vou até ao cais de Bambadinca e olha de lá longe até Finete e junto as recordações todas, há momentos de tristeza mas é a quase certeza de que em breve os vou rever que me mantém cheio de vida e optimismo.

Despeço-me escrevendo uma homenagem para si:

“Guardo toda a tua memória, minha querida Mãe, dentro desta caixa com atilhos onde as palavras gravitam o meu ego coral: Missirá, helicóptero, não posso mais, um ferido às costas, a derradeira saudação. Daqui remete fulano tal, SPM 3778. O meu nome não existe ou melhor está desfigurado e transformado noutros como sejam: Cibo, Adulai, Alcino, Cherno ou Teixeira. Isto passa-se porque estou em África e o meu nome renova-se noutros, neste fasto onde me cerco de espelhos voláteis. Às vezes escrevo cheio de raiva, retalho, esventro e entrego à pira os meus soluços, a minha solidão, a minha coabitação, a escrita torna-se pássaro, sol posto, sol coado, tabaco agridoce. Em todos esses momentos cinzelo o teu nome e amo-te sem medir as distâncias, comprovando que o nosso sangue é espesso e que tu és luar textual”.

Um grande beijinho e até amanhã.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

21 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1979: Da Guiné a Moçambique, era (também) assim que comunicávamos a nossa dor (Beja Santos)

11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1833: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (49): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (4)

(2) Vd. poste de 18 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2449: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (16): Aqueles dias cinzentos e nómadas de Bambadinca em Dezembro