1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, enviou-nos, com data de 5 de Novembro de 2010, uma mensagem cuja primeira parte foi publicada ontem no poste P7261 e vinha acompanhada da seguinte introdução:
Camaradas,
Envio-vos um texto e fotos, sobre um menino balanta-mané, o JM meu "familiar" desde 1967, quando o trouxe da Guiné e que hoje ronda os 50 anos de idade (estou mesmo velhote!).
Tentei que o relato não fosse tão extenso mas não consegui. Aliás, o tema tem bem por onde se pegar e se desenvolver.
Mas este relato limita-se a dar uma ideia do porquê da vinda do menino para Portugal e suas peripécias, do ambiente familiar que encontrou, do seu regresso à Guiné em 1978, do encontro com seus pais e do seu regresso a Portugal, onde reside atualmente.
As fotos são minhas. Não sei se acham interessante a formatização do texto do Apêndice com selos da Guiné-Bissau. Fi-lo porque este texto é quase todo composto por excertos de correspondência por mim recebida, vinda do meu JM.
[O texto segue as normas do acordo ortográfico em vigor].
2. ADILAN, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços (2ª Parte)
APÊNDICE
Texto e imagens: © Manuel Joaquim (2010). Todos os direitos reservados.
Oito meses após a sua chegada à Guiné, JM escreve aos padrinhos para os informar que tinha encontrado os seus pais. Seguem-se excertos de correspondência:
Bissau, 1/9/1978
(...) Agora tenho-lhes a dar uma excelente notícia que não irão acreditar! A descoberta da minha família, não acreditam? Então aí vão os nomes: pai, Adjula (...); mãe, Fati (...); irmã, Fulô (...) e eu, ADILAN (…).
Através do (...) de Bissorã, um dia eu e uns tipos do Partido resolvemos fazer umas buscas pela zona de (...), antes de lá chegarmos já lá tinham ido (...) interrogar as pessoas (...), acerca de um jovem que tinha sido levado pequenino para Portugal, não conhecia as suas famílias, (...) morava naquela região, enfim manga de coisas (...).
(...) uma pessoa da tabanca sobressaiu-se dizendo que tinha um filho muito pequenino (4 anos) que estava a guardar o milho com um outro miúdo qualquer e que os tugas (desculpem-me a expressão) tinham-no prendido e levado para Bissorã e mais tarde para Portugal. (...) lhe perguntou se o filho tinha qualquer sinal (...) ela respondeu:
- Sim, tem uma cicatriz no lado direito (na cara). Tem uma orelha furada no lado esquerdo. Um pouco atrapalhado a falar.
( ... ) estas respostas levaram-nos no dia 26/8/78 a ir certificar-nos. ( ... ) eu + 3 pessoas, incluindo um intérprete especial do balanta ( ... ). Chegámos a um lugar totalmente diferente daquele ( ... ) que eu tinha em mente, terreno plano ( ... ) arroz por todos os lados ( a minha cabeça começou em funcionamento como se estivesse a jogar xadrez com o padrinho e tivesse perdido a raínha, as torres e os bispos todos sem que o adversário sofresse nada e chegou o momento da pergunta, «Como será possível que estas pessoas passem tanta fome com tanto arroz semeado?» Veio logo o xeque-mate. «Não vês que esse arroz depois de cortado vai para Bissau e aí é consumido ( ... ) o que chega aqui é um tudo de nada que mal chega para a cova de um dente?» ( ... ) e calei-me, pois com o xeque- mate não há nada a fazer).
A tabanca estava quase vazia, só duas criancinhas mal sabiam o que era a vida é que estavam cá fora a brincar (o resto estava tudo na bolanha) mal tentamos aproximar-nos destas, sumiram-se logo ( ... ) Não havia nada a fazer senão esperar ( ... ).
( ... ) começam a chegar pessoas da bolanha (o meu coração aumentava cada vez mais enquanto o seu batimento era triplicado), esqueci-me de referir que as pessoas de ( ... ) se tinham refugiado no Senegal, a maioria delas, lá ao fundo uma velhinha ( ... ) vem calmamente andando com o seu cesto de encomendas à cabeça, chega junto de nós, pára e calmamente põe o cesto no chão e a primeira coisa em que ela põe o sentido é em mim, olha-me dos pés à cabeça, de trás e de frente enquanto eu me limitava a seguir os seus gestos até que chega um momento e o intérprete lhe pergunta em balanta:
- A senhora (mulher-grande) foi quem perdeu um filho?
- Fui.
- E como o perdeu, em que lugar, como era ele, em que altura foi?
Respondeu ( ... ) igual ao que está escrito atrás.
- Acredita que ele está vivo? ( ... )
A mulher grande baixou a cabeça chorando que nem uma perdida e respondeu não, um não de raiva, ele está morto e mesmo se ele estiver vivo nunca voltará aqui ( ... ) o pessoal da tabanca juntou-se todo à nossa roda, escutando com atenção o que se estava a passar, chorando também. No meio ( ... ) estava uma jovem, olhos castanhos, orelha furada do lado esquerdo, a mesma cicatriz e do mesmo lado, cor igual à minha ( ... ) de nome FULÔ ( ... ), e que a mulher-grande dizia ( ... ) era a minha única irmã, era autenticamente o meu retrato ( ... ).
Para acalmar os choros todos o intérprete disse que o tal rapaz era eu, euforia por parte da Fulô que se lança aos meus braços, beijando-me e abraçando-me com toda a sua força ( ... ) a mulher grande dançava, pulava, gritava, enfim foi uma tarde triste-alegre.
As pessoas juntaram-se todas à minha volta e levaram-me ( ... ). ( ... ) diziam que é o meu pai, que estava de cama (doente), este saltou da cama abraçou-me beijou-me até nunca mais parar. Queriam matar galinhas, porcos, ( ... ), enfim manga de coisas, falavam sempre comigo em balanta mas eu limitava-me a abanar a cabeça, eu disse-lhes que não podia ser, ( ... ). ( ... ) era muito tarde e a visita era curta e que ficaria para outro dia, comprenderam e guardaram tudo para Dezembro ( ... ) para eu não faltar em Dezembro.
Regressamos ( ... ), queriam que levasse um porco para Bissau mas era grande de mais ( ... ).
Quase um mês após este encontro, JM volta a falar dele e a relatar algumas cenas com mais pormenores, aflorando algo que o está a incomodar e que é o grau de emoção sentida, que sente muito abaixo do nível que tinha imaginado:
Bissau, 28/9/78
( ... ) Não tenho a certeza se a carta que lhes escrevi ( 1/9/78) irá aí parar ( ... ) mas vou-lhes relembrar ( ... ) passagens de interesse que nela iam.
Desde o primeiro dia que cheguei à Guiné-Bissau, perguntavam-me sempre pela minha família! a resposta era sempre estão mortos. Eles estão vivos e tu é que não os conheces (diziam-me).
( ... ) há uns dias atrás um ( ... ) de Bissorã ( ... ) descobriu uma família reduzida a três pessoas ( pai, mãe e filha ), faltando um filho que essa família dizia que tinha ido para Portugal levado por um soldado ( ... ) se ele estivesse vivo nunca mais voltaria ( ... ) por várias razões, condições melhores, com 4 anos já não se lembra nada da família ( ... ).
Então num fim de semana do mês passado fomos certificar-nos ( ... ) eu poderia pertencer a essa tal família ( ... ).( ... ) A mulher-grande da família foi interrogada em balanta por um intérprete ( ... )
- Qual o nome do seu filho que perdeu? R: - ADILAN ( ... )
- Em que ano o perdeu? R: – Em 1966.
- Idade que tinha quando o perdeu? R: – 4 anos.
- Que sinais tinha? R: – Um corte nas costas, quando lhe estava a cortar o cabelo caiu-me a faca, ( ... ) lado esquerdo orelha furada, olhos castanhos, um pouco gago ( ... ) sinal do lado direito marca dos meus filhos.
E baixou a cabeça chorando e dizendo: Ele nunca mais voltará... nunca mais voltará... um filho é uma fortuna que uma mãe nunca poderá perder mas eu perdi o meu... (...).
( ...) apresentado a essa família que sem perder um mínimo de tempo se lançou aos meus braços dizendo que eu era o seu filho . Será verdade pelas interrogações feitas e pelas respostas dadas, mas o meu coração não se inclina a aceitar por enquanto esta nova família, porque será? Esta é para vocês me darem a resposta o mais urgente possível. S.F.F. não se esqueçam.
Mas dentro desta família houve uma pessoa que me confundiu muito a cabeça, a tal filhinha de cor mulata, olhos castanhos, lábios finos, sinal do lado direito da cara, uma só orelha furada do lado esquerdo ( ... ) diziam que ela era realmente o meu retrato e devia sem dúvida ser a minha própria irmã, eu acredito que seja , não só pelas suas características serem idênticas às minhas mas também pela reacção quando me abraçou: ADILAN, ÉS TU PRÓPRIO O MEU IRMÃO! ADILAN, FALA! ( ... ). Eu não podia fazer nada senão limitar-me a fechar a boca porque não só o meu coração não se inclinava para o sim mas também residia e ainda reside a incerteza em mim.
Depois de um grande choro e lágrimas por todos os cantos veio ( ... ), canções de alegria, palavras de carinho, ( ... ) uma farra que não foi grande farra pelo meu coração não o querer e não sentir ainda aquele amor que devia sentir pela família ( ... ).
Fiquei preocupado com os problemas de índole afetiva que surgiram ao JM, ao encontrar seus pais e irmã, e não demorei a responder-lhe. Se bem me lembro, a minha resposta é um derramar de afetividade mas também leva como que um pedido de desculpas da minha parte, por me ver o causador de tais problemas. A contra-resposta aparece já um pouco fora de tempo (mais de três meses depois) e, surpresa, é muito agradável para mim, um alívio, um “docinho”.
Bissau, 6/2/79
( ... ) Na frase seguinte, o padrinho diz: “ se achas que eu teria feito melhor deixando-te pelo Oio, não me recrimines. Perdoa lá. Não foi com más intenções ( ... )”. Esta frase, apesar de ser optativa, deixou-me um pouco aborrecido, o que seria agora de mim se eu tivesse ficado no Oio? Estava agora vivo? Seria um Adilan vestido com calças e camisa? Seria um rapaz sentado numa secretária? ( ... ) a melhor coisa que fez, e agradeço-lhe por isso, foi levar-me como menino e trazer-me como homem, muito obrigado padrinho (as boas intenções nunca se recriminam). ( ... )
Mas o problema continua por resolver, mais de um ano depois:
Bissau, 1/5/80
( ... ) pois o problema trata-se da família. Família essa que dentro de mim não a sinto ainda (não sei porquê ) como verdadeira minha família e que neste momento me está trazendo várias complicações ( ... ) quer que eu siga todos os seus costumes, religião, que faça juntamente com eles os seus festejos (comprando vacas e porcos) e tradições ( fanado, chôro e demais coisas existentes nestas tradições ) e que finalmente case com a mulher que eles entenderem que devo casar, ( ... ) até a este momento não chegamos a um entendimento, o que pensarão vocês acerca deste assunto? (queria que me dessem uma opinião, se possível na próxima carta). ( ... )
O padrinho, eu, bem tenta entrar nestes problemas, dá os conselhos comuns e começa a vislumbrar o caso como difícil. Confia no tempo e aposta na desdramatização. Mas, perante o tipo de incompatibilidades surgidas, o que se prenuncia é o afastamento emocional da família pois a distância cultural é muito grande para haver hipóteses de aproximação funcional e afetiva entre estes dois mundos.
E o tempo foi passando, assim.
Bissau, 13/1/81
( ... ) Quanto à minha família tudo continua como dantes, as dúvidas persistem, até quando? Eu propriamente não sei explicar-vos porquê mas não consigo, mesmo que queira, considerá-los como um verdadeiro filho considera os seus pais e os estima verdadeiramente, eu não consigo adaptar-me e como farei, padrinho?
Bissau,17/3/81
( ... ) O amor de um filho pelos pais não existe ainda em mim ( na Guiné ). ( ... ) para mim esse amor existe e existirá sempre em Lisboa. Não quer isto dizer que eu nego os meus parentes, nada disso ( ... ). ( ... )
De vez em quando aparecem as saudades de Portugal (um contra-peso ?).
Bissau, 19/10/81
( ... ) Quando falam no nome de Casal Novo sinto uma coisa dentro do meu coração, recordar esta bela aldeia, as suas gentes, a amabilidade desta pequena povoação, enfim um paraíso para não esquecer nunca mais - ali nasceu e cresceu a infância de um pretinho de nome ( ... ) - obrigado CASAL NOVO, obrigado madrinha PIEDADE, padrinho ZÉ BISPO, ti JQUINA e ti MANEL, ti SANTIEIRA e ti RAINHO, mas não perdi a esperança de um dia poder voltar a essa belíssima aldeia... não perdi a esperança ( ... ).
Uma das últimas vezes em que se refere ao tema, que o tempo parece estar a resolver, aborda mais uma vez a aldeia da sua infância:
Bissau, 25/1/82
( ... ) A família continua a ser um caso cheio de casos ( ... ), continuo com aquele pensar que sempre tive desde a infância, que não tenho família e que ela morreu na guerra ( ... ) e, como não poderia deixar de ser, continuo a pensar cada vez mais em vocês, e no Casal Novo, ninguém me tira ou tirará esta ideia ( ... ).( ... )
E o tempo, em vez de consolidar os vínculos com a família natural e com a tabanca natal, vai os desvanecendo e, em contrapartida, vai fortalecendo a ligação afetiva com a família portuguesa e com a aldeia da sua meninice. Nota-se alguma emoção no relembrar o Casal Novo e seus habitantes.
Bissau, 29 de Setembro de 1983
( ... ) Essas belíssimas férias como foram passadas? Foram até ao Casal Novo? Falando daquela terra, as saudades são imensas, lembro-me ( ... ) a ajudar a madrinha no corte do milho, na apanha da azeitona por aqueles cerrados abaixo, encostas e ladeiras, aquele amor que os vizinhos tinham por mim, enfim lembro-me sempre do Casal Novo e da sua gente, daqui um abraço para eles todos, dêem-lho por minha conta e digam-lhes que ainda estou vivo e não perdi a esperança de ir visitá-los, era este ano mas gorou-se, penso que será para o ano. ( ... )
Não foi “para o ano”, como ele pensava. O ansiado encontro só se concretizou sete anos depois.
FIM
Sintra, Outubro de 2010
Um abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419 do BCAÇ 1857
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados.
Fotos: © Manuel Joaquim (2010). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
10 de Novembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)