sábado, 8 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10774: Álbum fotográfico do ex- fur mil José Carlos Lopes, amanuense do conselho administrativo da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1): Embarque de vacas no porto de Bambadinca


Foto nº 28 > Porto fluvial de Bambadinca, no Rio Geba... Enmbarque de vacas... Do outro lado era a bolanha de Finete e o caminho para Missirá, o destacamento mais avançado do Setor L1 na região do Cuor


Foto nº 32 > Embarque de vacas, muito provavelmente para o BINT (Batalhão de Intendência)


Foto nº 29 > Não tenho a certeza, mas na foto parece ser o fur mil amanuense do CA [Conselho Administrativo] da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70), o Manuel António Rodrigues Brás


Foto nº 30 > Mais um aspeto da atribulada operação de embarque de vacas


Foto nº 31 > Em primeiro plano, à direita, o fur mil Lopes, de camuflado, o autor destas fotos


Foto nº 33 > Dois barcos civis acostados à margem esquerda do Rio Geba (Estreito) em Bambadinca... Em geral eram barcos fretados pelo BINT (Batalhão de Intendência, de Bissau)


Foto nº 34 > Rio Geba (Estreito)... O cais acostável de Bambadinca... Estes fotos (as de cima, de 28 a 32) devem ser de finais  de 1969, já no tempo da CCAÇ 12, e da autogrua Galion, chegada a 24/11/1969, e que veio melhorar as operações de cargas e descargas.

Na foto, vê-se por detrás do cais o entreposto do pelotão de intendência.


Foto nº 35 > Esta  foto e as anteriores (33, 34) não tenho a certeza se são da mesma época. Estas gruas, azuis, mais pequenas foram substituídas em 24/11/1969 pela autogrua Galion, mais potente.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Fotos do álbum do nosso camarada José Carlos Lopes, que era fur mil, amanuense do Conselho Administrativo (CA) da CCS... Não se percebe muito bem se é um embarque ou desembarque de vacas no porto fluvial de Bambadinca... (Provavelmente a numeração das fotos é arbitrária, não é sequencial...). Mas é mais provável tratar-se de um embarque. A zona leste fornecia gado vacuum para outras partes da Guiné, incluindo o "ventre" de Bissau (onde o bifinho com batatas fritas e ovo a cavalo era o prato favorito da tropa que vingam do "Vietname", sinónimo de "mato & porrada").

O CA da CCS era presidido pelo 2º comandante do batalhão. O chefe da contabilidade era o alf mil Nelson de Sousa Ribeiro Adão, o tesoureiro o alf mil Carlos Augusto Correia... Havia dois furriéis amanuenses, os já supracitados José Carlos Lopes e Rodrigues Brás...

Do Lopes lembro-me muito bem, de resto já nos temos encontrado (, a última das quais, em circunstâncias infortunadas, no funeral da nossa querida amiga Teresa Reis, esposa do Humberto Reis), somos de resto quase vizinhos, e ainda ontem falei com ele ao telefone, a pedir-lhe autorização para publicar estas fotos que me vieram parar às mãos, em Coimbra,  num dos últimos encontros do pessoal de Bambadinca (1968/71)... Havia ainda dois 1ºs  cabos escriturários,  o Manuel Ferreira da Costa e o Rui Manuel de Matos M. Flor. 

Estou grato ao Lopes por querer partilhar, connosco, estas fotos, de grande valor documental... Quem terá comido os bifes destas vacas ? Talvez a malta do BINT possa (e queira) ajudar a melhorar as legendas das fotos. Em Bambadinca, havia um Pelotão de Intendência (PINT), e um grande entreposto junto ao rio. O movimento portuário era constante, obrigando-nos a montar segurança, na outra margem,  na zona do famigerado Mato Cão (onde será mais tarde, no tempo do BART 2917, montado um destacamento permanente).

Nesta altura (finais de 1969) já estava  a operar a autogrua Galion,  no cais (um pontão de madeira!) de Bambadinca... O Rio Geba era navegável até Bafatá, mas do Xime para cima o curso do rio, sinuoso e mais estreito, só permitia a navegação de pequenas embarcações militares (LDM, LDP, lanchas) ou civis (por exemplo, da Casa Gouveia)...

O transporte desta grua,  do Xime até Bambadinca,  foi uma epopeia, a cargo da CCAÇ 12!,,, Fazia anos o Tony Levezinho no outro dia, 24 de novembro de 1969... A grua atascou-se na estrada  Xime-Bambadinca, bebemos o "champagne" refrescado com a água da bolanha, na noite de 23 para 24, enquanto montávamos segurança à "prenda" enviada pela Engenharia Militar...

O pai do nosso amigo e grã-tabanqueiro Nelson Lopes Herbert, de seu nome Armando Duarte Lopes, uma antiga glória do futebol caboverdiano e guineense ("Armando Bufallo Bill, seu nome de guerra, o melhor futebolista da UDIB, do Benfica de Bissau, internacional pela selecção da antiga Guiné Portuguesa"...) , trabalhou na administração do porto fluvial de Bambadinca, entre 1969 e 1971... O que só vem comprovar que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande! (L.G.)

Fotos editadas por L.G., com a devida autorização do José Carlos Lopes (a quem já foi formulado o convite para ingressar na Tabanca Grande).

Fotos: © José Carlos Lopes (2012). Todos os direitos reservados.

Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 4 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (33)

O Grupo do Cifra

Perdoem lá, mas este texto é um pouco mais longo, pois o Cifra quer apresentar-vos as personagens que o acompanharam durante dois anos neste conflito, em que esteve envolvido, sem nunca ter dado um tiro, e para ele uma granada, era um bloco de ferro que o Curvas, alto e refilão às vezes carregava no bolso.

O Cifra tem fotografias de alguns, mas como devem compreender, não as pode publicar, pois não sabe se estão vivos, o seu estado de saúde, ou o seu estado social, portanto não quer de maneira alguma ferir a sua muito digna personalidade, oxalá estejam vivos, leiam estes textos e se retratem nestas personagens, pois foram os seus companheiros, os seus “heróis”, dos quais guarda as suas imagens, no fundo do seu coração, e o acompanharam em momentos de angústia, amargura, também com muitos sorrisos e às vezes até chorando, durante o tempo em que esteve neste conflito. Esta é a homenagem que lhe presta. Portanto cá vai, com a vossa também muito digna compreensão.

O Setúbal, para o Cifra, era mais do que o companheiro, o militar, o guerreiro ou o amigo, era qualquer coisa como aquele “garoto”, que todos nós tivemos na infância, que vivia na porta ao lado da nossa casa, na mesma rua ou na mesma aldeia, com quem brincávamos, jogávamos à berlinda, à bola, roubávamos fruta do quintal do vizinho, às vezes zangávamo-nos e andávamos à porrada, mas sempre amigos. Sim, era isso tudo, mas adultos e confidentes, pois o Setúbal, contava coisas ao Cifra da sua vida privada com aquela que iria ser a sua esposa amada, e que às vezes o Cifra não queria ouvir e lhe dizia:
- Essas coisas não se devem contar, são coisas tuas e da tua noiva, pensa nelas, nesses momentos que são única e simplesmente vossos, e que ao pensar neles, mais faz fortificar o desejo de a tornar a ver, e deste modo, não a vais esquecer nunca, e o amor entre vocês, cada vez vai ser maior.

Ele ao ouvir isto, começava a chorar, mas ao fim de algum tempo, voltava ao normal, e com a chegada até eles do Curvas, alto e refilão, que vocês já conhecem a sua desafortunada história, de relatos anteriores, que foi abandonado pela sua mãe, que andava “na vida”, ainda criança, e viveu “ao Deus dará”, como é costume dizer-se, sem nunca ter um carinho ou alguém que lhe limpasse o ranho do nariz, e sem nunca ter conhecido a palavra “mãe” ou a palavra “família”, passando quase a sua adolescência em escaramuças, negócios ilícitos e em esquadras e cadeias da capital, a perguntar:
- O que é que passa com este agora? Eu não disse, que depois que veio de férias e viu a noiva, veio um pouco “amaricado?

Mas adiante, o Cifra, o Setúbal e o Curvas, alto e refilão, eram amigos e faziam um grupo unido, era uma espécie de “Trempe”, era um “Triângulo”, a quem outros companheiros, às vezes queriam modificar, como por exemplo, o Mister Hóstia, a todo o momento, nunca perdendo nenhuma oportunidade de tentar convertê-los em bons cristãos, dizendo-lhes:
- Toda a vossa força unida tem que estar ao serviço de Deus, rezem e ajoelhem-se perante Jesus, que é o vosso Salvador, no lugar de andarem sempre a fumar e a beber, só pensarem no mal e nas “bajudas”, que vão ser a vossa perdição.

Como isto não chegasse, o Pastilhas, sempre que via qualquer um deste grupo aproximar-se da enfermaria, logo ia esconder o frasco do álcool, e dizia:
- Bêbados, vão morrer queimados por dentro e eu tenho muito prazer em ir ao vosso funeral.

Claro que o Curvas, alto e refilão, logo lhe respondia, naquela linguagem porca e agressiva:
- Oh pastilhas, deixa-te merdas, pois nós sabemos que às vezes ao fim da tarde, essas faces rosadas na cara, não são só do sol e o teu nariz às vezes também vermelho não engana, o que tu queres é o álcool só para ti.

O Furriel Miliciano, era tratado por este nome, porque era o seu posto militar, mas no tratamento, era simples, amigo, parecendo mais um companheiro, soldado combatente e sofredor. Do seu grupo de combate fazia parte entre outros o Trinta e Seis, o Marafado, o Setúbal, o Mister Hóstia e o Curvas, alto e refilão, e diziam que esse sim, era o líder. Quando saíam em patrulha, ele gostava do grupo, convivia, pois via neles uns “gajos fixes”, que fumavam cigarros feitos à mão, e sempre prontos para uma farra.

O Arroz com Pão tinha as suas queixas, mas passageiras, e no fundo, tirando o roubo do pão e de algum vinho, até gostava deles, pois às vezes ajudavam a descascar batatas, mas só em última necessidade, mesmo quando não houvesse mais ninguém, pois estragavam mais batatas do que o normal e queriam sempre a caneca do café cheia de vinho, às vezes dizendo:
- Fora daqui, vai-te lucro que me dás perca!

O Trinta e Seis, um soldado telegrafista, era um homem adulto no seu proceder, até responsável de mais para a sua idade, tinha algum poder de influência sobre o Curvas, alto e refilão, que o ouvia e só a ele obedecia, sem refilices. Diziam que quando saíam em patrulha, o Trinta e Seis ia sempre junto do Curvas, alto e refilão, e além de se protegerem um ao outro, o Trinta e Seis, controlava-o nas suas, por vezes, descontroláveis acções.

O Marafado, no princípio era alegre, gostava de vinho, e até cantava uns fados desafinados, mas depois que presenciou uma cena de uns prisioneiros mortos, onde os seus corpos foram queimados e enterrados numa vala, nunca mais foi o mesmo homem, para o final era um homem calado e marcado pela guerra, raras vezes se juntava, passava o tempo ouvindo música, o relato do seu Benfica e notícias no seu rádio portátil.

O sargento da messe compreendia o grupo, facilitava o acesso ao bar dos sargentos, talvez porque precisasse da ajuda do Cifra nas contas, pois era este que lhas acertava todos os meses, pois tinham sempre que terminar em zero, sem lucros nem perdas, e ele não era lá muito bom com algarismos, até diziam que era “burro”, passe o termo, pois era uma excelente pessoa, pelo menos para o Cifra.

O Comandante não queria que lhe fizessem a saudação, talvez para não saberem que era comandante e que dava ordens que matavam pessoas, dizia que estavam todos no mesmo barco mas com diferentes responsabilidades, o Cifra mais tarde veio a saber que era um apaixonado pela arte de fotografar, queria respeito, às vezes quando as coisas não corriam bem ficava com cara de Comandante, e quase todos o evitavam.

Também havia as filhas do Libanês que eram importantes para os militares estacionados em Mansoa, havia até quem dissesse que elas eram as causadoras de os militares tomarem banho mais frequentes vezes, vestirem roupa lavada e fazerem algumas vezes a barba, e pentearem o seu cabelo, portanto tinham mais poder e influência nos militares do que os seus superiores, que podiam dizer mil vezes para terem mais higiene pessoal, que a esses mesmos militares não lhes importava qualquer ordem nesse sentido, e que acima de tudo enchiam a igreja de perfume exótico, também se dizia que se não fossem elas a igreja talvez, em alguns dias, ficasse vazia. Talvez não fosse verdade.

Havia o “Life Boy”, de quem ainda não falei, mas irei falar lá mais para a frente, que veio para o aquartelamento algum tempo depois, que parecia um chinês, já sei que vão dizer que só faltava o “chinês”, e tinha uma costela de “Libanês”, pois passado pouco tempo de ter chegado ao aquartelamento, já se andava a fazer a uma das filhas do Libanês, era um pequeno comerciante dentro do aquartelamento.

A menina Teresa era quem escrevia as cartas que a mãe Joana mandava ao Cifra, tinha alguma influência nas decisões da família do Cifra e as referidas cartas tinham sempre o seu aval final, portanto quando o Cifra lia uma carta da mãe Joana, mais de metade eram opiniões dela, que vai ser protagonista de uma história um pouco bizarra.

Só havia o tal Major das Operações Especiais, o tal que deu uma bofetada, que mais parecia um murro, na cara de um guerrilheiro fardado, com as mãos amarradas, e que caiu no chão desamparado, por lhe ter dito que queria ser tratado como prisioneiro de guerra. O apelido do Major era Sardinha, portanto o Major Sardinha logo foi rebaptizado de Major “Petinga”. Queria a saudação sempre que com ele nos cruzávamos, o Cifra pensava que devia de ter sido promovido há pouco tempo, pois andava sempre vestido de camuflado, com um cinto, onde trazia uma pistola, os galões novos e reluzentes nos ombros, as botas sempre engraxadas, e como no comando a que o Cifra pertencia, tirando militares condutores auto, era tudo pessoal de gabinetes, que não deviam de saber acertar com um tiro duas vezes no mesmo sítio, alguns nunca tinham pegado numa G-3 nem nunca tinham tirado uma cavilha a uma granada, aquele Major vestido assim e com aquelas atitudes, fazia rir o pessoal, portanto, com tanto exagero, tornava-se ridículo.

A apresentação das personagens vai já terminar à frente. Um dia, este grupo do Cifra, do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, mais o Trinta e Seis, regressando da sede do Clube de Futebol, juntos, passa pelo tal Major, que logo diz, com uma cara séria, mostrando autoridade:
- Vocês não podem andar assim em grupos, portanto a partir de agora separem-se, só podem andar dois militares juntos.

Nesse momento, o tal Major estava na companhia de mais dois ou três militares graduados, e o Curvas, alto e refilão, como era seu costume, pois não recebia ordens, logo lhe respondeu, colocando-se na posição de sentido, com a sua medalha Cruz de Guerra ao peito, fazendo o tal Major “Petinga”, também colocar-se na mesma posição, dizendo com a maior das calmas:
- Essa lei é só para nós ou para todas as patentes militares?














O Major “Petinga”, que era muito mais baixo na estatura, virou os olhos para o chão e respondeu:
- Vão lá embora, por esta passam.

Pouco depois, o Curvas, alto e refilão, quando junto do seu grupo, disse:
- Gostava de apanhar este filho da p..., lá no mato, debaixo de uma emboscada dos guerrilheiros, pois deixava-o lá sozinho.

Passado uns dias, quando o Cifra foi entregar uma mensagem decifrada no comando, o major “Petinga”, pergunta ao Cifra:
- Ouve lá, sabes se aquele soldado, a que chamam Curvas, alto e refilão, já matou alguém? Ele olhou-me com uma cara!

Pronto, já ficaram a conhecer esta “cambada”, que se forem simpáticos, pacientes e se também tiverem um pouco de heróis combatentes, mas mesmo muito pacientes, ao ponto de terem pachorra e resistência para estarem tanto tempo sentados e ler até ao fim estes textos, que às vezes a brincar, conta a verdade das situações de dor, sofrimento, angústia e também de algumas ocasiões menos más, não muitas, que todos nós vivemos nessa maldita guerra, na então província da Guiné.

Oh meu Deus, só agora é que vi, o texto é mesmo longo, desculpem lá!

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10772: Parabéns a você (505): Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil do Pel Canhões S/Recúo 2054 (Guiné, 1968/70)

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10761: Parabéns a você (504): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10771: Notas de leitura (437): "Amílcar Cabral, Essai de biographie politique", por Mário de Andrade (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
Mário de Andrade organizou esta biografia política de Cabral quase como um manual de consulta para leitores que fossem eventualmente quadros do PAIGC mas também curiosos que quisessem conhecer a formação cultural, a aprendizagem política, a organização do pensamento político e do tipo de intervenção pragmática que Cabral teve na história do PAIGC.
Utiliza a correspondência dos dois, e o produto final leva à conclusão que não se pode estudar a obra de Cabral e o seu relacionamento com o PAIGC sem ler este Mário de Andrade.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral, uma biografia intimista de um grande intelectual africano

Beja Santos

Em 1980, as edições François Maspero davam à estampa o livro “Amílcar Cabral, Essai de biographie politique”, por Mário de Andrade. É do conhecimento de todos que os dois líderes trabalharam conjuntamente, Andrade e Cabral nutriam uma estima e uma admiração reciprocas. Cabral confidenciava-lhe memórias, pedia-lhe conselho, mostrava-lhe em primeira mão documentos de tese. Por todas estas razões, Andrade dispunha de meios singulares para escrever esta biografia que se distingue de todas as outras, as que a precederam e as que a antecederam. E ele não esconderá, ao longo deste trabalho, que se rende perante as excecionais qualidades de Cabral como organizador, teórico, diplomata e revolucionário. Não exagera quando diz que o nome de Cabral estava associado a duas outras grandes figuras dos anos 60, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah, o mártir do Congo e o visionário da unidade continental.

Cabral propõe-se reconstituir o itinerário político intelectual do líder do PAIGC, passando pelos escritos da juventude até às intervenções mais significativas no período mais fulgurante e de maior apogeu das suas faculdades.

Pouco há a comentar ao que escreve sobre as raízes do líder. Julião Soares Sousa na sua indispensável bibliografia sobre Cabral já procurou dilucidar alguns mitos em que incorre Andrade e não só: o papel que tiveram na sua formação Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora, seus pais; a sua cultura assumida de caboverdianidade nos tempos de liceu, a sua clara preparação em moldes praticamente europeus, que se veio a acentuar em Lisboa, quando ele ingressa no Instituto Superior de Agronomia e frequenta a Casa dos Estudantes do Império. A primeira mulher de Cabral depõe sobre o recém-chegado do Mindelo, transcreve-se uma poesia que lhe foi recusada na Seara Nova e que acabou por ser publicada num boletim praticamente desconhecido, O Metalúrgico. Andrade cita a correspondência trocada com Cabral onde sobressai o seu desejo de regressar a África. Reflete profundamente sobre a condição cabo-verdiana, sabe que os mestiços são em número mais elevado que os brancos e num número três vezes maior do que os negros e escreve mesmo: “Um grupo de homens – seres humanos – comporá uma raça ou um grupo étnico na medida em que eles afrontam problemas comuns e lutam por aspirações comuns”. Estamos em 1949, ele começa a usar repetidamente na sua correspondência a palavra libertação. Volta a Cabo Verde e procura intervir em palestras radiofónicas, escreve sobre a erosão dos solos, continua a escrever poesia e no seu livro de curso vem o seu poema “O adeus à Tapada” e na página que lhe é reservada ele dedica uma tocante homenagem à sua grande referência, a Mãe Iva.

A sua formação em Lisboa, observa Andrade, decorre da leitura de obras marxistas ou de conotação social; milita no MUD juvenil e fala constantemente na identidade africana e na “reafricanização” dos espíritos. Estamos no tempo em que se fala nos meios intelectuais do new negro norte-americano, na negritude de Léopold Senghor e nos contactos estabelecidos com a revista Presença Africana. Andrade considera que Cabral tinha um relacionamento privilegiado em Lisboa com Marcelino dos Santos e Viriato da Cruz. Todos esses estudantes africanos faziam a sua formação ideológica e política inequivocamente junto da esquerda marxista-leninista.

Dá-se o regresso à Guiné, Cabral faz o recenseamento agrícola e estabelece contactos clandestinos. Está lançada a semente para mais tarde criar o PAI, a primeira designação do PAIGC. Todo o percurso subsequente analisado por Andrade é hoje matéria consensual: a frente conjunta anticolonial, a conferência das organizações nacionalistas das colónias portuguesas, a ida pra Conacri, a ascensão dos nacionalismos e o reconhecimento de muitos países independentes.

Debruçando-se sobre o pensamento político de Cabral, Andrade sublinha a sua abundantíssima produção constituída por notas, estudos e relatórios e, ao longo dos anos, textos de conferências, entrevistas, artigos e o rico material das suas notas relacionadas com o seminário de quadros do PAIGC, em 1969.
Primeiro, o escopo teórico da luta contra o colonialismo português, na sua ampla abrangência das diferentes lutas anticoloniais mas com a identificação das características específicas da Guiné, em termos socioeconómicos e culturais.
Segundo, a aliança entre a teoria e a prática, a implementação de uma estratégia que irá apanhar completamente de surpresa as autoridades portuguesas: os guerrilheiros não vêm das fronteiras, instalam-se no interior do território, conquistam a adesão de população, demarcam áreas de influência.
Terceiro, a construção do modelo de guerra popular acompanhado de um projeto revolucionário do poder, mediante um esquema que compreendeu a mobilização, a propaganda armada, uma organização social, uma supervisão do esforço militar pelos dirigentes políticos. Cabral não tem ilusões da extensão da guerra e de igual modo escreve sobre as taras e os desvios que surgem no seu do partido e que ele designa claramente: a regulundade, o espírito do chefe guerrilheiro que procura organizar clientelas; a catchorindade ou o servilismo e a mandjoandade, o espírito de clã, o resquício do tribalismo. E dirige-se continuamente aos seus quadros, alertando-os para o grande perigo de se ficar enquistado pelas tradições ou pelo desejo de um qualquer domínio étnico, verdadeiro fator desagregador do espírito da unidade.
Quarto, a capacidade e a dinâmica que imprime aos trabalhos do congresso de Cassacá e as consequências na organização política e das forças armadas. Com o avançar da luta, desenhou e fez com que se praticasse os princípios de um poder popular através de comités de base e da submissão do chefe guerrilheiro ao comissário político. Entretanto o pensamento de Cabral era dominado por uma ideia central: a luta teria que se traduzir por uma melhoria real das condições de vida e repetiu para quem o quis ouvir: “Não serve de nada libertar uma região ou um país se o seu povo não puder dispor de artigos de primeira necessidade para a vida corrente". Isto saldou-se durante a luta pela criação de armazéns do povo e pela tentativa de distribuir equitativamente os produtos provenientes da ajuda internacional, bem como pela criação de equipamentos para a saúde e educação.
Quinto, a sua teoria política, se bem que revelasse uma enorme flexibilidade quanto à relação com todos os povos, era inequivocamente socialista, anti-imperialista e equidistante dos blocos erguidos pela Guerra Fria. Sabia que o proletariado agrícola/camponês não dispunha de condições para ser a força mobilizadora, mas alertou a pequena burguesia dirigente que devia estar permanentemente atenta às expectativas do povo em armas. E por isso mesmo foi atribuindo um papel de primordial importância à cultura como a força galvanizadora do movimento de libertação, o homem novo iria liquidando progressivamente os restos da mentalidade tribal e feudal, os tabus e até as crenças animistas.

No termo da sua biografia política, Andrade considera que o pensamento de Cabral era suficientemente forte para manter a sarça-ardente do processo revolucionário.

Este texto foi concluído em Março de 1980, em Bissau. Sabe-se o que aconteceu depois do 14 de Novembro.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10754: Notas de leitura (436): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10770: O Nosso livro de estilo (7): Cerca de 400 abreviaturas, siglas, acrónimos, expressões idiomáticas, gíria, calão, crioulo... Para rever, aumentar, melhorar...







Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Duas fotos do álbum do fur mil, amanuense,  José Carlos Lopes, que mora em Linda A Velha e que foi meu camarada durante quase um ano, em Bambadica  (entre julho de 1969 e maio de 1970)... 

Na foto de cima, o Lopes, em 8 de junho de 1970, no Xime, na LDG que o levaria  a Bissau, no final da comissão,  ostenta um pano com os dizeres "Guarda de honra à velhice...Piriquitos desejamos-vos sorte"... Os "piras" era o novo batalhão, o BART 2917 (1970/72) que os foi render, ao pesssoal do BCAÇ 2852.

Na segundo foto, vê-se uma chapa, pintada, pregada a uma árvore, com os dizeres: "Termas del Xime" com setas apontando Café, hotel, piscina, ténis, bowling, berlinde,  e com "stands" de vendas: cachorros, farturas, mancarra, gelados, pregos, sumos... Um macaco-cão, à direita, em primeiro plano, tem por detrás uma seta que  diz "Reclamações"... O bom humor de caserna foi imprescindível para se sobreviver a quase dois anos de comissão nas duras condições da Guiné... A capacidade de reinventar o português também fazia parte dessa estratégia de adaptação e  sobrevivência,,,

Fotos editadas por L.G., com a devida autorização do José Carlos Lopes (a quem já foi formulado o convite para ingressar na Tabanca Grande).

Fotos: © José Carlos Lopes (2012). Todos os direitos reservados.

1. Ao fim de quase nove anos a blogar, já juntamos aqui cerca de quatro centenas de abreviaturas, siglas, acrónimos, etc., que utilizávamos nas nossas comunicações militares (relatórios, transmissões...), mas também no nosso dia a dia, na caserna, no mato, na tabanca, na guerra e na paz...

Pedimos aos nossos editores, colaboradores permanentes, autores e leitores para reverem, melhorararem e aumentarem este fabuloso património linguístico, que é de todos. Podem fazê-lo, através das caixas de comentários, ou através do nosso endereço de email. Novos contributos serão  bem vindos, apreciados, acarinhados, editados e divulgados. A lista que se segue já tem uns anos, não tem sido atualizada e sobretudo está longe de esgotar o linguajar (escrito e falado) do "tuga" da Guiné, dos seus aliados e do(s) seu(s) adversário(s) (no passado, dizia-se IN)... 

Amigos e camaradas: É para uma boa ação... Sei que faltam ainda muitas expressões castiças que usávamos na Guiné, umas do nosso calão de caserna, outras do nosso delicioso crioulo... Bem como abreviaturas, siglas, acrónimos, os mais diversos... Cada arma e especialidade tinha o seu léxico... Aceitam-se sugestões, comentários, reclamações, críticas... Já vamos em 400 termos, mas há mais... Bom fim de semana. Xicorações (que no Natal gastam-se mais do que os Alfa Bravo)... Luis Graça.


BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA  GUINÉ > MAIS DE 400 ABREVIATURAS, SIGLAS, ACRÓNIMOS, EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS, 
GÍRIA, CALÃO, CRIOULO... (de A a Z)

1º Cabo Aux Enf - Maqueiro, auxiliar de enfermagem
2TEN FZE RN - 2º Tenente Fuziilerio Especial da Reserva Naval
5ª Rep - Café Bento, de Bissau



A/C - Mina anticarro
A/D - Autodefesa (tabanca em)
A/P - Mina antipessoal
AB - Alfa Bravo, abraço (alfabeto fonético internacional, usado pelos nossos Op Trms)
Abo - Você, tu (crioulo)
ACAP - Assuntos Civis e Acção Psicológica (REP / ACAP)
ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas
Aero - Aerograma, carta, bate-estrada, corta-capim
Afilhado - Militar que tinha uma Madrinha de Guerra
Agr - Agrupamento
AKA - Kalash, Espingarda Automática Kalashnikov (AK) Cal. 7,62 mm
AL II - Alouette II, heli
AL III - Helicóptero Alouette III, de origem francesa (FAP)
Alf - Alferes
Alf Mil - Alferes Miliciano
Alf Mil Med - Alferes miliciano médico
Alfa Bravo - Abraço
Alfero - Alferes (crioulo)
Amura - Velha fortaleza militar colonial, em Bissau; sede do Com-Chefe; hoje Panteão Nacional da Guiné-Bissau
AN/GRC-9 - Rádio, equipamento de transmissões (NT)
AN/PCR-10 - Rádio transmissor-receptor (NT)
Animistas - Povos (balantas, manjacos e outros) que praticam o culto dos irãs
AOE - Associação de Operações Especiais
Ap - Apontador
Ap Arm Pes Inf - Apontador de Armas Pesadas de Infantaria (morteiro, canhão s/r, metralhadora 12.7...)
Ap Dil - Apontador de Dilagrama
Ap LGFog - Apontador de Lança-granadas-foguete
Ap Met - Apontador de Metralhadora
Apanhado - Diz-se do combatente afectado pela guerra e pelo clima; cacimbado (em Angola)
Arre-macho - Tropa de infantaria, tropa-macaca (termo depreciativo, usado pelas tropas especiais)
Arv - Arvorado (Soldado)
Asp Of Mil - Aspirante a Oficial Miliciano
At Art - Atirador de Artilharia
At Cav - Atirador de Cavalaria
At Inf - Atirador de Infantaria
ATAP - Missão resultante de um pedido de fogo imediato, com a saída da parelha de alerta (FAP)
ATIP - Missão de apoio de fogo, pré-planeada (FAP)


BA12 - Base Aérea nº 12 (Bissau, Bissalanca)
Bacalhau - Aperto de mão
Badora - Regulado da região de Bafatá; morteiro 120 mm (IN)
Baga baga - Termiteira
Baguera - Abelha (crioulo); Baguera, baguera!!!, era a expressão de aflição dos africanos quando atacados por abelhas, no mato
Bajuda - Rapariga, donzela, moça virgem (crioulo; lê-se badjuda)
Balafon - Instrumento da música afromandinga, antecedor do xilofone
Balaio - Cesto grande (crioulo)
Balanta Mané - Balanta islamizado
Banana - Rádio, equipamento de transmissões, AVP-1
Bandim - Mercado de Bissau
Bandoleira - Correia permitindo o transporte de uma espingarda ao ombro ou a posição de tiro a tiracolo
Bandoleira - Correia permitindo o transporte de uma espingarda ao ombro ou a posição de tiro a tiracolo
Barraca - Acampamento temporário no mato (PAIGC)
BART - Batalhão de Artilharia
Bate-estrada - Aerograma, corta-capim
Bazuca - LGFog (NT); cerveja de 0,6 l
Bazuca China - Lança Granadas-Foguete RPG-2 (IN)
BCAÇ - Batalhão de Caçadores
BCP - Batalhão de Caçadores Pára-quedistas
BENG - Batalhão de Engenharia
Bentém . Banco, baixo, onde os homens grandes se sentam, a conversar, em geral, sob um poilão
Biafra - Clube de Oficiais, em Santa Luzia, Bissau; Bar dos pilotos, na BA12, Bissalanca
Bianda - Comida; arroz, base da alimentação da população na época (crioulo)
Bicha de pirilau - Progressão, em fila, no mato, mantendo cada homem uma distância regulamentar
Bideiras - As vendedeiras ambulantes, que andam nas ruas Bissau
Bigrupo - Força IN equivalente a 50/60 homens
BINT - Batalhão de Intendência
Blufo - Rapaz balanta não circuncidado; rapaz inexperiente
Boinas Negras - Fuzileiros
Boinas Verdes - Pára-quedistas
Boinas Vermelhas - Comandos (depois de 1974); na Guiné, usavam a boina castanha do exército
Bolanha - Terreno alagadiço, próprio para a cultura do arroz
Bombolom - Intrumento musical, feito a partir do tronco de uma árvore; instrumento tradicional de comunicação entre aldeias balantas e manjacas
Bonifácio - Obus 11,4 cm, TR m/917, da I Guerra Mundial (Termo da gíria dos artilheiros)
BOP - Bombardeameno a picar (FAP)
BOR - Embarcação civil, que navegava no Geba, com umas estranhas pás na popa
Brandão - Família da região de Tombali (Catió)
Bunda - Cú, traseiro (crioulo)
Burmedjus - Mulatos, mestiços, crioulos, caboverdianos
Burrinho - Viatura automóvel Unimog 411, a gasolina (mais pequena que o 404, a gasóleo) (NT)
Bué - Muito, manga de (Não vem de Boé; termo do quimbundo de Angola; não se usava no nosso tempo)
Básico - Soldado dos serviços auxiliares (afecto sobretudo à cozinha)


Ca bai - Não vai (crioulo)
Cabaceira - Árvore e fruto do embondeiro (não confundir com Poilão)
Cabaço - Hímen, virgindade (crioulo)
Cabeça Grande - Bebedeira (crioulo)
Cabo Aux Enf - 1º Cabo Auxiliar de Enfermeiro
Cabo Enf - 1º Cabo Enfermeiro
Caco / Caco Baldé - Alcunha do Gen Spínola (mas também 'Homem Grande de Bissau')
Cal - Calibre
Camarigo - Camarada e Amigo (por contracção)
Cambar - Atravessar um rio (crioulo)
Candongas Transporte colectivo privado, usado no interior da GB
Canhota - A espingarda automática G3 (NT)
Canhão s/r - Canhão Sem Recuo
CAOP - Comando de Agrupamento Operacional
Cap - Capitão
Cap Mil - Capitão Miliciano
Cap QP - Capitão do Quadro Permanente
Capim - Nome comum de planta gramínea, típica da savana arbustiva; graveto, dinheiro
Capitão-proveta - Cap Mil, oriundo do CPC
Carecada - Castigo disciplinar, imposto pelo superior hierárquico, e que consistia no corte de cabelo à máquina zero
CART - Companhia de Artilharia
Casa Gouveia - Principal empresa colonial, fundada por António da Silva Gouveia em finais do Séc. XIX: em 1927 é adquirida pela CUF
Catota - Orgão sexual feminino; partir catota = ter relações sexuais (crioulo, calão)
Cavalos duros - Feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus, sintomas de doença venérea
Cavalos moles - Sintomas de sífilis, doença venérea (fendas no pénis)
CCAV - Companhia de Cavalaria
CCAÇ - Companhia de Caçadores
CCAÇ I - Companhia de Caçadores Indígenas
CCM - Curso de Capitães Milicianos
CCmds - Companhia de Comandos
CCP - Companhia de Caçadores Pára-quedistas
CCS - Companhia de Comando e Serviços
CEME - Chefe do Estado Maior do Exército
Cento e vinte - Morteiro pesado (IN)
Cesca - Pistola de 7,65 mm, de origem checoslovaca (IN)
CFA - Franco da Communauté Francofone Africaine, moeda actual da GB (1 Euro = 655,597 CFAA -
CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval
Checa - Pira, periquito (em Moçambique)
Choro - Conjunto de rituais celebrados por ocasião do falecimento de uma pessoa, parente ou vizinho (sobretudo entre os animistas)
Chão - Território étnico (vg, chão fula)
Cibe - Palmeira; utilizam-se rachas de cibe como barrotes na construção; é resistente à formiga baga-baga
Cilinha - Nome de guerra de Cecília Supico Pinto, a fundador e líder do MNF
Cipaio - Elemento nativo da polícia administrativa; sipaio, sipai, termo de origem indiana
Circuncisão - Vd. Fanado, MGF
CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria
CM - Cabo de Manobra (Marinha)
Cmdt - Comandante
COE - Curso de Operações Especiais
COM - Curso de Oficiais Milicianos
Com-Chefe - Comando-Chefe
Conversa giro - Fazer amor, ter relações sexuais (crioulo)
COP7 - Comando Operacional 7
Cor - Coronel
Corpinho - Sutiã, soutien
Corta-capim - Aerograma, carta, bate-estrada
Costureirinha - Pistola metralhadora PPSH (IN)
CPC - Curso de Promoção a Capitão do Quadro Complementar
CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
CSM - Curso de Sargentos Milicianos
CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné
CUF - Companhia União Fabril
CUF - Companhia União Fabril (representada pela Casa Gouveia)
Cupilom - Pilão, bairro popular atravessado pela estrada para o aeroporto; Cupelon, Cupilão
Cá - Não; negação em crioulo (Cá tem, não tem)
Cães Grandes - Oficiais superiores


DO 27 - Dornier 27 (Avioneta) (NT)
Dari - Chimpanzé (da mata do Cantanhez)
Degtyarev - Metralhadora ligeira 7,62 mm, de origem soviética (IN)
Degtyarev-Shpagim - Metralhadora pesada 12,7 mm, de origem soviética (IN)
Desenfianço - Escapadela (... até Bissau)
Dest - Destacamento
Dest A - Destacamento A
DFA - Deficiente das Forças Armadas
DFE - Destacamento de Fuzileiros Especiais
Diorama - Maqueta (v.g., aquartelamento de Guileje)
Djila - Vd. Gila
Djubi - Olha! (crioulo)
Djídio - Cantor ambulante que ia de tabanca em tabanca, transmitindo as notícias


Embondeiro - Cabaceira, baobá (Senegal)
Embrulhanço - Contacto pelo fogo com o IN, ataque, emboscada
Embrulhar - Ser atacado (pelo IN)
Enf - Enfermeiro

Enf Para - Enfermeira paraquedista
EP - Exército Popular (PAIGC)
EREC - Esquadrão de Reconhecimento de Cavalaria
Esp - Espingarda
Esp Aut - Espingarda Automática
Esp MMA - Especialista Mecânico de Manutenção Aeronáutica (FAP)
Esq - Esquadrão
Esq Mort - Esquadrão de Morteiro
Esquentamento - Blenorragia, doença venérea (corrimento de pus pela uretra)
Estilhaços de frango - Pouca comida


Fala mantenha - Partir mantenha, cumprimentar, saudar (crioulo)
Fanado - Festa da circuncisão, ritual de passagem da puberdade para a vida adulta
Fanateca - Mulher que pratica a MGF
FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, a elite combatente do PAIGC
FBP - Fábrica Braço de Prata (Nome dado a uma pistola metralhadora portuguesa, usada no início da guerra)
Ferrugem - Serviço de Material; termo depreciativo, para o pessoal não-operacional, ligado ao SM
Festa, festival - Ataque aparatoso, ou flagelação, do PAIGC a aquartelamento ou destacamento das NT
Fiju - Filho (crioulo)
Firma - Estar, ficar, morar (crioulo)
Firminga - Formiga (crioulo)
Fogo de artifício - Flageações ou ataques, a aquartelamentos ou destacamentos vizinhos, vistos de longe
Fornilho - Armadilha com cordão de tropeçar
Fur - Furriel
Fur Enf - Furriel Enfermeiro
Fur Mil - Furriel Miliciano
Fuzos - Fuzileiros especiais

FZE - Fuzileiro Especial (Marinha)


G3 - Espingarda Automática G-3 (NT)
Gaita à bandoleira (Andar de) - Ter uma doença sexualmente transmissível, em geral blenorragia (ou 'esquentamento')
GB - Guiné-Bissau
Gen - General
Genti di mato - Turras, pop sob controlo do IN
Gila - (Lê-se djila) - Comerciante, vendedor ambulante, contrabandista (que circula pela Guiné e países vizinhos)
GMC - Viatura automóvel pesada, de rodado duplo atrás, de fabrico americano (NT)
GMD - Granada de Mão Defensiva
GMO - Granada de Mão Ofensiva
Gorro Novo - Metralhadora Pesada Goryounov, Cal 7,62 mm M-943 SG (IN)
Goss, goss - Depressa (vg, retirar no goss-goss) (crioulo)
Gouveia - Casa comercial ligada ao grupo CUF
Gr Comb (+) - Grupo de Combate reforçado
Gr Comb (-) - Grupo de Combate desfalcado
Gr Comb - Grupo de Combate; pelotão
Gr M Of - Granada de mão ofensiva
Grã-tabanqueiro - Membro da Tabanca Grande (blogue)


Heli - Helicóptero
Helicanhão - Helicóptero armado com canhão de 20 mm (vd. Lobo Mau)
HK 21 - Metralhadora Ligeira (NT)
HM 214 - Hospital Militar de Bissau
HMP - Hospital Militar Principal (Estrela, Lisboa)
Homem Grande - Chefe de Família


IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional
IN - Inimigo; guerrilheiros e população sob o seu controlo
INT - Intendência
Ir no mato - Fugir (ou ser levado) para uma zona controlada pelo PAIGC
Irã - Ser sobrenatural que, para os animistas (balantas, manjacos, etc.) habita as florestas (e em especial os poilões)


Jacto do Povo - Foguetão 122 mm; Graad (IN)
Jagudi - Abutre (crioulo)
Jambe (llê-se djambé) - Instrumento de percussão africano, em forma de cálice inverttido


Kacur - Cachorro (crioulo)
Kalash - Espingarda Automática AK 47 (IN)
Kasumai - Saudação em dialecto felupe
Kora - Instrumento musical mandinga, de cordas, tipo cítara, inventado pelos antepassados do mestre Braima Galissá (músico do Gabu, a viver em Portugal)


Lassas - Abelhas selvagens; alcunha por que era conhecido, pelo PAIGC, o pessoal da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)
LDG - Lancha de Desembarque Grande
LDM - Lancha de Desembarque Média
LDP - Lancha de Desembarque Pequena
Lerpa - Jogo de cartas, geralmente a dinheiro
Lerpar - Perder (à lerpa), apanhar um castigo, morrer
LFG - Lancha de Fiscalização Grande
LGFog - Lança-granadas-foguete, bazuca (NT)
Lifanti - Elefante (crioulo)
Lion Brand - Marca de repelente de mosquitos

Lobo Mau - Helicanhão (FAP)
Lubu - Hiena (crioulo)


MA - Minas e Armadilhas
Macacada - Tropa, forças do Exército, tropa-macaca
Macaco-cão - Babuíno (Macaco Kom, em crioulo)
Macaréu - Vaga impetuosa que, no Rio Geba, precede o começo da praia-mar. É mais sentida no Geba Estreito
Madrinha - Madrinha de guerra, jovem do sexo feminino, maior de 16 anos, que se correspondia com um militar no Ultramar
Mafé - Acompanhamento da bianda, conduto (muitas vezes, peixe, peixe seco, kasseké) (crioulo)
Maj - Major
Maj Gen - Major General, Gen de 2 estrelas
Mama firme - Peito direito (bajuda) (crioulo)
Mancarra - Amendoim (crioulo)
Manga de ronco - Sucesso militar
Manga de sakalata - Muita confusão, muitos sarilhos (crioulo)
Manga di chocolate - Barulho, grande ataque, com muito fogachal, embrulhanço; corruptela de Manga di sakalata
Mantenhas - Saudades (crioulo); partir mantenhas = saudar
Marabu - Sacerdote muçulmano, de vida ascética, considerado sábio e venerado como santo, tanto em vida como depois da morte
Marmita - Mina A/C (Moçambique, Cancioneiro do Niassa)
Matador - Veículo automóvel pesado usado como reboque do obus (e transporte de tropas)
Mato (1) - Muito, grande quantidade, manga de (expressão comum, ´É mato')
Mato (2) - Zona de guerra, zona de controlo do PAIGC
Maçarico - Pira, periquito (Guiné); checa (Moçambique); termo mais usado em Angola
Mec Aut - Mecânico de viaturas automóveis
Med - Médico (vg, Alf Mil Med)
Meta - Bar e salão de jogos, em Bissau, no tempo colonial
Metro e oito - Alcunha do Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira (BCAÇ 2879, 1969/71)
MG 42 - Espingarda-metralhadora, de origem alemã (usada por páras e fuzos)
MGF - Mutilação Genital Feminina; excisão do clitóris e grandes lábios; fanado
Mil - Miliciano; milícias
Mindjer - Mulher (crioulo)
Minino - Menino, rapaz (crioulo)
Misti - Querer, queres (bo misti) (crioulo)
ML - Met Lig / Metralhadora Ligeira
MNF - Movimento Nacional Feminino (fundado em 1961 por Cecília Supico Pinto, a Cilinha)
Morança - Casa, núcleo habitacional de uma família, alargada, com o respectivo chefe (de morança) e em geral com uma cercadura
Mort - Morteiro
Mort 81 - Morteiro 81 mm (NT)
Mort 82 - Morteiro 82 mm (IN)
Morteirete - Morteiro ligeiro, de calibre 60 (mm), podendo ser usado sem prato
MP - Met Pes / Metralhadora Pesada
MSG - Mensagem
Mudar o óleo - Ir às... putas
Mulas - Sintomas de sífilis, doença venérea (inchaços nas virilhas)
Mun - Municiador
Mun Mort - Municiador de morteiro


N/M - Navio da Marinha
Nharro - Africano; preto
NM - Número mecanográfico (do militar)
NNAPU - Normas de Nomeação e de Apoio às Províncias Ultramarinas
NRP - Navio da República Portuguesa
NT - Nossas Tropas


OB - Oscar Bravo, obrigado
Obus 14 - Obus, de calibre 14 cm (NT)
Oitenta - Morteiro (IN ou NT)
ONG - Organização não-governamental
Onze quatro - Peça de artilharia, de calibre 11,4 cm (NT)
Op - Operação (vg., Op Lança Afiada); operador)
Op Cripto - Operador Cripto
Op Esp - Operações especiais ou ranger


P2V5 - Avião de luta anti-sumarina, também usado no Guiné, no início da guerra, para ataque ao solo
Pachanga - Pistola-Metralhadora SHPAGIN Cal 7,62 mm M-941 (PPSH) (IN); costureirinha
PAI - Partido Africano para a Independência, fundado em 1956
PAIGC - Partido Africano Para a Indepência da Guiné e Cabo Verde
Panga bariga - Caganeira (crioulo)
Parafusos - Familiares, amigos ou vizinhos de pára-quedistas ou de fuzileiros, convivendo com ambos
Parte peso - Dá-me dinheiro
Partir catota - Dar o pito (expressão nortenha); ter relações sexuais (a mulher com o homem)
Partir punho - Ser masturbado por outrem, à mão (crioulo)
Pastilhas - Enfermeiro (em geral, Fur Enf)
Patacão - Dinheiro, pesos
Pau de Pila - Lança Granadas-Foguete Pancerovka P-27 (IN)
PC - Posto de Comando
PCV - Posto de Comando Volante
Pel Caç Nat - Pelotão de Caçadores Nativos
Pel Mil - Pelotão de Milícias
Pel Mort - Pelotão de Morteiros
Pel Rec Daimler - Pelotãod e Reconhecimento Daimler (Cavalaria)
Pel Rec Daimler - Pelo~
Pel Rec Fox - Pelotão de Reconhecimento Fox (Cavalaria)
Pel Rec Info - Pelotão de Reconhecimento e Informação
Pelicano - Café de Bissau, do tempo colonial
Pelicano - Esplanada em Bissau, na marginal
Peluda - Vida civil (depois da tropa)
Periquito - Militar novato; pira, piriquito (sic)
Peso - Unidade da moeda local; escudo guineense (no tempo colonial)
PG - Prisioneiro(s) de Guerra
Picador - Soldado ou milícia que faz a picagem
Picagem - Detecção de minas num trilho ou picada
PIDE/DGS - Polícia política portuguesa
PIFAS - Programa de Informação das Forças Armadas
Pil - Piloto (miliciano)
Pilav - Piloto aviador, saído da Academia Militar (Os milicianos são apenas Pil)
Pilão - Bairro popular de Bissau, muito frequentado pelas NT nas horas de lazer
Pira - Periquito, militar recém-chegado à Guiné; maçarico (Angola); checa (Moçambique)
Piurso - Pior que um urso, zangado
Piçada - Repreensão de um superior
Poilão - Designação comum a algumas árvores da família das bombacáceas. Ceiba Pentandra
Ponta - Herdade, exploração agrícola
Pop - População
Porrada - Contacto com o IN; punição disciplinar
PPSH - Metralhadora ligeira, 7,72 mm (a famigerada costureirinha) (IN)
Psico - Acção psicológica e social das NT junto da população (também Psique)
Páras - Pára-quedistas


QG - Quartel General
QP - Quadro Permanente (Pessoal)
Quebra-costelas - Abraço, AB, Alfa Bravo
Quico - Boné especial da tropa


Rabecada - Vd. piçada
Racal - Equipamento portátil, de origem americana, podendo ser usado em viaturas e aviões, transmitindo em fonia entre as frequências de 38 a 54,9 Mc/s.
RAL - Regimento de Artilharia Ligeira
RCacheu - Rio Cacheu
RCorubal - Rio Corubal
RCumbijã - Rio Cumbijã
RDM - Regulamento de Disciplina Militar
Ref - Militar na Reforma
Reforço - Aumento das medidas de segurança dos nossos aquartelamentos
Reordenamento - Aldeia estratégica, construída pelas NT, reagrupando uma ou mais tabancas
Rep - Repartição (do Quartel-General)
REP / ACAP - Repartição do QC / Assuntos Civis e Acção Psicológica
Res - Militar na Reserva
RGeba - Rio Geba
RI - Regimento de Infantaria
RN - Reserva Naval
Rockets - Granadas lançadas pelo RGP 2 ou RPG 7 (IN)
RPG - Lança-granadas-foguete (IN)
RVIS - Voo de reconhecimento aéreo
Rôz kuntango - (ou simplesmente Kuntango) Arroz cozinhado (bianda) sem máfé


SA-7 - Míssil Sam-7, Strela, de origem russa (IN)
Sabe sabe - Gostoso (crioulo)
Sakalata - Confusão, conflito, chatice (crioulo)
Salgadeira - Urna funerária, caixão
SAM - Serviço de Administração Militar
Sancu - Macaco (crioulo)
Sec - Secção; equipa (Um Gr Comb ou pelotão era composto por 3 Sec)
Setor L1 - Setor 1 da Zona Leste
Sexa - Sua Excelência, mas também Sexagenário
SGE - Serviço Geral do Exército; oficiais oriundos da classe de sargentos
Siga a Marinha - Embora, vamos a isto!
Sintex - Pequena embarcação, de fibra, com mortor fora de bordo, de 50 cavalos, usado para cambar um rio; parecia uma banheira (NT)
SM - Serviço de Material (vd. Ferrugem)
SNEB - Rocket antipessoal, de calibre 37 mm, que equipava o T-6 e que também era usado pelos pára-quedistas como LGFog
Sold - Soldado
Sold Arv - Soldado Arvorado
Solmar - Cervejaria de Bissau, do tempo colonial
SPM - Serviço Postal Militar
Srgt - Sargento
STM - Serviço de Transmissões Militares
Strela - Flecha, em russo (стрела); míssil russo terra-ar SAM 7 Strela
Suma - Como, igual (crioulo)
Supintrep - Relatório de informação suplementar
Supositório - Granada de obus (calão)


T/T - Navio de Transporte de Tropas
T6 - Avião bombardeiro, monomotor; equipado c/ lança-roquetes e metralhadora (NT)
Tabanca - Aldeia (crioulo); mas também morança, cubata, casa (NT)
Tarrafe - Vegetação aquática, típica das zonas ribeirinhas
Taufik Saad - Casa comercial, de origem libanesa, em Bissau
Tchora - Chorar (crioulo)
Tem manga di sabe sabe - Muito gostoso
Ten - Tenente
Ten Cor - Tenente-Coronel
Ten Gen - Tenente General, Gen de 3 estrelas
Tigre de Missirá - Nome de guerra (Alf Mil Beja Santos, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
TN - Território nacional
TO - Teatro de Operações
Toca-toca - Transporte colectivo, privado, nas zonas urbans (carrinha tipo Hyace, de cores azul e amarela)
Tokarev - Pistola de calibre 7,62 mm, de origem soviética (IN)
TPF - Transmissões Por Fios
Trms - Transmissões
Tropa-macaca - Por oposição a tropa especial (páras, comandos, fuzos)
TSF - Transmissões Sem Fios
Tuga - Português, branco, colonialista (termo depreciativo) (crioulo)
Turra - Terrorista, guerrilheiro, combatente do PAIGC (termo depreciativo)


Ultramarina - Casa comercial
Uma larga e dois estreitos - Galões de tenente-coronel
UXO - Unexploded (Explosive) Ordnance (em inglês); Engenhos Explosivos Não Explodidos (em português)


Velhice - Militares em fim de comissão
Vietname - Guiné, para lá de Bissau; mato


ZA - Zona de Acção
Zebro - Barco de borracha com motor fora de borda, usado pelos fuzileiros -
ZI - Zona de Intervenção (do Com-Chefe)

ZLIFA - Zona Livre de Intervenção da Força Aérea

________________

Nota do editor:

Ultimo poste da série > 20 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10409: O Nosso Livro de Estilo (6): O que fazer com este blogue ? (Parte II ): Depoimentos de A. Pires, C. Pinheiro, D. Guimarães, L. Ferreira, B. Santos, C. Rocha, F. Súcio, B. Sardinha , T. Mendonça e JERO

Guiné 63/74 - P10769: Tabanca Grande (371): João Carvalho Meneses, ex-2º TEN FZE RN, DFE 21, 1972, grã-tabanqueiro nº 591



Notícia do juramento de bandeira do 19º CFORN, na Escola Naval, em 14 de abril de 1972... Foto: Revista da Armada, junho de 1972, p. 24 (Com a devida vénia...)


1. No passado mês de novembro, "assinou" o nosso livro de visitas o camarada João Meneses, na sua qualidade de 2º Ten FZE RA, antigo oficial do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, na Guiné, no ano de 1972, e DFA - Deficiente das Forças Armadas, ferido em combate na provincia do Cubisseco [, a sudoeste de Empada, vd.carta de Catió,] em 27 de Setembro desse ano (*).

Hoje mandou-nos a seguinte mensagem:

Caro Luís:

Já vi publicados os meus últimos mails, que muito agradeço. Junto agora algumas fotografias, duas em que é o meu juramento de Bandeira, outra a Imposição das Boinas, e outra em Homenagem ao Rebordão de Brito, com quem servi na Guiné, na data da sua medalha de Torre e Espada. Foram tiradas da Revista da Armada, exemplares que tenho em meu poder. Junto também uma fotografia "actual", cópia da que tenho no meu cartão DFA.

Com um grande abraço
2ºTen FZE Carvalho Meneses


 O João Meneses, ou Carvalho Meneses, como era conhecido na Guiné,  pediu formalmente o ingresso na nossa Tabanca Grande, tendo para o efeito entregue uma foto atual [ vd. acima, à direita,] e fotos de grupo do seu  tempo de tropa.

De seu nome completo João Frederico Saldanha Carvalho e Meneses, nasceu a 5/1/1948, fez parte do 19.º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval, tendo sido alistado a 19/9/71, e jurado bandeira e promovido a aspirante em 12/4/1972.



Notícia da imposição das boinas a 130 novos fuzileiros especiais, do 27º Curso de FZE, em cerimónia que decorreu a 16 de março de 1972. Notícia dada pela Revista da Armada, maio de 1972, p,. 24.


19.º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval


Segundo elementos informativos que recolhemos da página Reserva Naval, do nosso camarada Manuel Lema Santos, o 19º CFORN incorporou 115 cadetes assim distribuídos pelas várias classes: (i) 23 cadetes na classe de Marinha, (ii) 1 cadete da classe de Médicos Navais, (iii) 6 cadetes da classe de Engenheiros Maquinistas Navais, (iv) 32 cadetes da classe de Administração Naval, (v) 28 cadetes na classe de Fuzileiros e (vi) 25 cadetes na classe de Técnicos Especialistas.

Vinte 20 oficiais deste curso serviram no TO da Guiné, incluindo o João Menezes. Aqui vai a lista completa (Fonte: Reserva Naval)

2TEN RN Alfredo Augusto Cunhal Gonçalves Ferreira e 2TEN RN José Manuel Soares Dionísio na LFG “Sagitário”,

2TEN RN Emídio Branco Xavier na LFP “Alvor”,

2TEN RN Virgílio Manuel da Cunha Folhadela Moreira na LFP “Aldebaran”,

2TEN RN José Aparício dos Reis na LFG “Cassiopeia”,

2TEN RN José Alfredo Queiroga de Abreu Alpoim na LFG “Argos”,

2TEN RN Luís Alberto Moreira Pires e Pato na LDG “Alfange”,

2TEN AN RN José Manuel do Nascimento e Oliveira Covas,

2TEN AN RN Miguel Ângelo da Cunha Teixeira e Melo,

2TEN FZ RN António Patrício de Sousa Betâmio de Almeida e 2TEN FZ RN José Manuel Correia Pinto no Comando de Defesa Marítima da Guiné,

2TEN FZ RN Celestino Augusto Froes David na CF 12,

2TEN FZ RN João Pedro Tavares Carreiro e 2TEN FZ RN Manuel Maria Romãozinho Alves Ferreira na CF 2,

2TEN FZE RN João Carlos Cansado da Costa Corvo e 2TEN FZE RN José Manuel de Carvalho Passeira no DFE 22,

2TEN FZE RN João Frederico de Saldanha de Carvalho e Meneses e 2TEN FZE RN Manuel Maria Peralta de Castro Centeno no DFE 21,

2TEN FZE RN José Manuel da Silva Morgado e 2TEN FZE RN Luís Pereira Coutinho Sanches de Baena no DFE 12.


Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 21 (DFE 21)


O nosso novo grã-tabanqueiro Carvalho Meneses serviu no prestigiado DFE 21, mas por pouco tempo, dado ter sido ferido gravemente em combate e evacuado para o Hospital Principal, em setembro de 1972 (*).

Veja-se, entretanto,  o interessante apontamento sobre a história do DFE 21, escrito pelo Manuel Lema Santos. Aqui vão alguns pontos:

(i) Para ingressar nos quadros de Fuzileiros Especiais Africanos do Comando de Defesa Marítima da Guiné foram seleccionados 150 de um total de 900 voluntários (!);

(ii) Foi dada preferência aos assalariados do Comando de Defesa Marítima, dos Serviços de Marinha, guias das Unidades de Fuzileiros, impedidos das câmaras dos navios e das messes de oficiais, pessoal na generalidade familiarizado com a vida na Marinha; também foram admitidos estivadores e pessoal que já cumprira o serviço militar em companhias de milícias ou caçadores nativos;

(iii) Na formação do DFE 22 (inicialmente comandado por 1º TEN FZE Rebordão Brito, foto à esquerda,  cortesia da Revista da Armada) já teve em linha o critério étnico ou o chão, o que não aconteceu com o DFE 21 (, o que terá sido um erro, segundo Manuel Lema Santos);

(iv) O centro de instrução situava-se em Bolama; os oficiais e sargentos bem como alguns cabos e marinheiros eram metropolitanos, de rendição individual;

(v) O recrutamento inicial de elementos guineenses para integrar o DFE 21 ocorre em Setembro de 1969;

(vi) Depois de activado, em 21 de Abril de 1970, participou, até Maio, em diversas operações no sul da Guiné,  tendo sofrido pesadas baixas entre mortos e feridos, entre os quais se incluíram alguns oficiais e sargentos;

(vii) Juntamente com o DFE8, passou a estar sedeado na vila de Cacheu;

 (viii) Em Agosto de 1970, depois de uma curta passagem por Buba, o DFE 21 foi transferido para Brá, para se juntar aos preparativos que antecederam a organização da Op Mar Verde, já em curso na ilha de Soga e na qual viria a participar.

O comando do DFE 21 integrou maioritariamente oficiais da Reserva Naval. Na sua estrutura inicial, teve como Comandante o 1º TEN FZE Raul Eugénio Dias da Cunha e Silva que tinha ingressado nos Quadros Permanentes, na classe de Fuzileiros, depois de ter efetuado uma primeira comissão de serviço na Guiné, como terceiro oficial do DFE 4, de 1965 a 1967. Pertenceu originalmente à Reserva Naval onde integrou o 7.º CEORN.

Em 21 Junho de 1971 o comando do DFE 21, foi sendo parcial e progressivamente rendido, ainda que alguns dos elementos que o constituíam continuassem voluntariamente até 1 de Abril de 1973. Passou a ser Comandante o 1TEN FZE José Manuel de Matos Moniz, também ele originário da Reserva Naval (8º  CEORN) e, no final do curso foi integrado no DFE 1 (Moçambique, 1967/69), depois do que concorreu aos Quadros Permanentes na classe de Fuzileiros.

Composição do DFE 21:

Comandantes:

1TEN FZE Raul Eugénio Dias da Cunha e Silva, 7.º CEORN, ingressou nos QP's

1TEN FZE José Manuel de Matos Moniz, 8.º CEORN, ingressou nos QP's

Oficiais Imediatos:

1TEN José Maria da Silva Horta, QP's

2TEN Luis António Proença Maia, QP's

2TEN FZE RN António José Rodrigues da Hora, 11.º CFORN, ingressou nos QP’s

2TEN FZE RN Manuel Maria Peralta de Castro Centeno, 19.º CFORN, ingressou nos QP’s

Oficiais:

2TEN FZE José Carlos Freire Falcão Lucas, 13.º CFORN

2TEN FZE RN Eduardo Madureira da Veiga Rica, 14.º CFORN [, ferido em serviço em evacuado]

2TEN FZE Manuel José Fernandes Guerra, 15.º CFORN

2TEN FZE RN Jaime Manuel Gamboa de Melo Cabral, 16.º CFORN

2TEN FZE RN Francisco Luis Saraiva de Vasconcelos, 16.º CFORN

2TEN FZE RN João Frederico Saldanha Carvalho e Meneses, 19.º CFORN [, ferido em combate e evacuado; João Meneses passa a ser hoje membro da nossa Tabanca Grande]

2TEN FZE RN Cândido Alexandre Lucas, 20.º CFORN

2TEN FZE RN José Joaquim Caldeira Marques Monteiro de Macedo, 21.º CFORN [Zeca Macedo: nasceu na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951; vive nos Estados Unidos, onde é advogado; é membro da nossa Tabanca Grande,foto à direita, quando jovem cadete da Escola Naval].


O João tem um grande orgulho de ter servido o país como fuzileiro, e uma especial preocupação pela sorte dos seus camaradas guineenses do DFE 21. Eis um excerto do seu último mail:

(...) Não deixarei de procurar saber se ainda tenho homens vivos e se ainda poderei fazer qualquer coisa por eles, pois aquela terra está ainda muito longe da calma e estabilidade, com sucessivos golpes. Infelizmente está-lhes na massa do sangue, tanto pela guerras étnicas, como pelo dinheiro fácil - a droga, como também por ganâncias pessoais. Mas isso são problemas que eles têm que resolver e amadurecer (infelizmente à custa de sangue), mas há histórias giras para contar. Vivências, pura e simplesmente.E é sobre isso que gostaria de contar mais.

Quanto ao nome que prefiro, a malta dos Fuzos conhecem-me por Meneses.  Mais acima era o Tenente Meneses, Gostaria no entanto de ter antes do nome próprio o FZE do DFE21, que me honra, dá peneiras, Eh Eh Eh!,  e tenho muito orgulho. Foi assim que servi Portugal quando era activo nas Forças Armadas. Meu Bisavô, meu Avô também morreu em Angola, etc. Família,  sabes. (...)


2. Comentário dos editores:

João, já te desejámos as boas vindas, esperamos que se te sintas confortável entre esta maltosa toda, filha das mais diversas mães (e pais), a grande maioria da qual serviu na Guiné, como tu.  Temos uma representação da Marinha, pequena, discreta mas condigna. (Vocês, embora bons, também não eram assim tantos...).

Agora é preciso que contes as histórias do teu tempo. E que tragas também mais camaradas, nomeadamente fuzileiros (**). O nosso blogue é  um como um animal  carnívoro que precisa de muitos milhares de calorias por dia para se alimentar... Não, não somos predadores: somos apenas um espaço de partilha de memórias e de afetos, e estamos todos aqui, numa boa, sem querer fazer ajustes contas com ninguém, nem sequer com o passado. Achamos, por outro lado, que blogar faz bem à saúde (mental). Também podes aparecer no Facebook, na nossa página Tabanca Grande...


_______________

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10768: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4): Eu tinha dois doutores

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) com data de 3 de Dezembro de 2012:

Meu Caro Luís Graça.
Camaradas Editores.
Em anexo, segue o 4º texto com que dou seguimento à série " furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Dado que somente após o Natal voltarei a dar o meu modesto contributo ao acervo histórico do nosso Blog, aproveito para a todos os camaradas envolver no meu desejo de que esta Festa seja o continuar da Glorificação da vossas Famílias.

Abraços do
armando pires


Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4)

Eu tinha dois doutores

 "... Só com a criação das carreiras médicas, em 1971, é que se começou a melhorar a formação especializada dos nossos médicos e cirurgiões... Para muitos camaradas médicos, o HM 231 (Bissau) e o "tirocínio" no mato foram uma "grande escola"...
Luís Graça, em comentário ao P10622

Eu tinha dois doutores.
Era para ter três, mas perdi um mesmo à saída da escada de portaló.
Era um oftalmologista em quem alguém descobriu, logo ali, insuspeitadas capacidades para ver fundo na raiz dos dentes, razão porque ficou em Bissau para uma especialização de três meses em medicina dentária, findos os quais percorreu todos os quadrantes dessa Guiné, em socorro de algum militar carente dos seus serviços.
O que é preciso é que tudo tenha corrido bem. Portanto, o meu Batalhão ficou com dois médicos.
Os alferes milicianos médicos Chaves Ferreira e José Manuel Oliveira.
Tão parecidos e tão diferentes.

Dermatologista, o Ferreira, licenciado em psiquiatria o Oliveira. Ambos eram altos, muito altos, para a época. Andavam devagar, falavam como se sussurrassem, sorriam como se não houvesse amanhã, faziam amigos como se fosse obra fácil.

O Chaves Ferreira, lisboeta nascido no casco velho, gingava nas palavras que traziam consigo saudades da Madragoa.

Natural de Matosinhos, o Oliveira era todo ele sotaque. Afável no trato, senhor da fina ironia com que me respondeu daquela vez, em Bissorã, quando recebemos a visita do tal oftalmologista que se tornou dentista. Era um tipo moreno, de média estatura, onde ganhava destaque uns óculos com um par de lentes, daquelas que parecem fundos de garrafa.

- Mas ó dr., ele era mesmo oftalmologista?
- Ouve lá pá - respondeu-me – então não lhe estás na cara?

A minha amizade com o dr. Chaves Ferreira nasceu ainda no quartel de cá, quando descobrimos que ambos eramos sócios do C. F. os Belenenses.
A amizade com o dr. Oliveira foi cimentada no dia a dia da Guiné, e permanece tal qual ainda hoje.
Mal chegados à Guiné, o dr. Chaves Ferreira foi direitinho a Bissorã, e mais tarde a Binar, dividindo os seus cuidados, nomeadamente, entre as CCAÇ 2444 e 2464.
O dr. Oliveira ficou junto da CCS, mas a seu cargo tinha a vigilância médica de todas as unidades dentro do sector do BCAÇ 2861.

Quem esteve no Olossato, Biambe, Bissum ou em Encheia, por exemplo, naqueles anos de 69/70, deve lembrar-se da sua passagem por lá. Nestas suas andanças era o Chaves Ferreira que vinha substituí-lo à sede do Batalhão (ver P10629).

Fev. 1969 - Uíge - Algures no mar, entre Lisboa e Bissau, o alf. mil. médico Chaves Ferreira crava um cigarrinho ao fur. mil. Pires, tendo como testemunha o cap. Pratas, comandante da CCAÇ 2466. 

Não cuidem que cometo o atrevimento de aqui me debruçar sobre o perfil profissional destes dois homens. Era o que mais faltava. Evoco-os porque o comentário do Luís Graça me sugeriu que o fizesse, mas evoco-os como homens, sobretudo ao Dr. Oliveira, aquele com quem mais tempo e mais de perto trabalhei. Mais do que o médico que a tudo e a todos acudia, o dr. Oliveira, talvez face à sua especialidade, ganhou rapidamente a confiança dos homens sobretudo pela sua disponibilidade para os ouvir.

Ele era aquele em quem se podia confiar, o único capaz de tratar e compreender a mais grave doença que tolhia o corpo e a devorava a alma daqueles rapazes feitos homens. A saudade.

E também lhes ganhou o respeito quando certa noite, em Bula, enfrentou o capitão Pinto, comandante da CCAÇ 2466, que pretendeu passar por cima de ordem sua.
Três homens daquela companhia encontravam-se num estado de saúde que exigia repouso. O capitão, reclamando dos seus galões, pretendeu obrigá-los a sair para uma operação, porque “quem mandava era” ele. Lá do alto do seu metro e oitenta e picos, diz-lhe o Oliveira:
- E aqui o médico sou eu. Se aqueles homens saírem, o senhor capitão assume todas as responsabilidades e eu terei de participar.

Surpreendido pelo desafio “do alferes”, o capitão Pinto foi queixar-se ao major Candeias, então oficial de operações.

- Bem, se o doutor diz que estão doentes é melhor não brincar com a saúde dos homens. Se não estão em condições ficam aqui.

Naquele quartel, até as conversas mais secretas corriam velozes. A admiração pelo dr. Oliveira e a pouca estima que os homens tinham pelo seu capitão, foram silenciosamente festejadas com uma ovação na caserna.

1969 - Bula - A parada do aquartelamento era o consultório dilecto do alf. mil. médico J. M. Oliveira, na foto ouvindo as confidências do cabo Lamelas, da CCS do BCAÇ 2861. 

Ao longo da comissão, entre o enfermeiro que eu era e o médico que era ele, sempre existiu grande convergência na acção. Nem eu era capaz de me deitar cedo nem ele de se levantar tarde. Nem eu me importava que ele chegasse à enfermaria pontualmente às nove, nem ele se agastava por eu chegar à hora de assinar o expediente.

Certo dia, fui forçado a trocar-lhe as voltas. Cansado das queixas do Filipe, o furriel vagomestre que partilhava o quarto comigo e que naquela noite não me deixara dormir com as suas queixas gastro intestinais, levantei-me para ir à enfermaria buscar uma boa dose de bicarbonato de sódio, com o qual pretendia pôr fim ao sofrimento dele e, já agora, também ao meu. Boquiaberto, o Machado, o meu 1º cabo enfermeiro, ao ver-me entrar consultou o relógio, que marcaria para aí umas oito e meia da manhã, e com aquele sorrisinho sacana que Deus lhe tinha dado, cumprimentou-me:
- Muito bom dia, meu furriel.

Com o bicarbonato nas mãos preparava-me para sair quando avisa o Machado:
- Vem aí o chefe.
- Qual chefe? - perguntei eu.
- O doutor Oliveira.
- O doutor Oliveira agora é chefe? – atirei-lhe com a aspereza capaz de contrabalançar a sacanice do seu bom dia.
- Ó furriel, a esta hora já vem lixar a cabeça à gente? É o chefe, não sabe que a malta aqui na enfermaria trata-o por chefe? Pronto.

O chefe entrou, fez um compasso de espera entre a porta e a secretária, e perguntou-me:
- Estás doente, pá?
- Não doutor – retorqui-lhe – É o furriel Filipe que não se limita a envenenar o pessoal no refeitório e envenenou-se também a ele.

Como se não tivesse bastado a sacanice do Machado, também o doutor me despediu com aquele sorriso que ficava ali a meia distância entre o mercado de Matosinhos e o Bolhão. Nunca lhe disse que a malta o tratava por chefe. E reconheço hoje que fiz bem. Considero-me assim vingado por ele só muito mais tarde me ter contado o que se passou naquela distante noite de 18 de Novembro de 1970.

Estávamos a um passo de terminar a comissão. Já se encontrava em Bissorã o BCAÇ 2927, para nos render. Já noite, depois do jantar, cruzei-me com o doutor que me disse, “eles andam aí”.
Subi à enfermaria e avisei o Machado que não deixasse sair a nossa malta para as tabancas. Desci ao bar de sargentos, onde já todos tinham feito o mesmo que eu, isto é, prevenir os seus homens, e com o Johnnie Walker do costume, dei de beber à espera. Foi um pouco longa, mais longa do que era hábito, mas pelas 22h45 o IN fez saber da sua presença.

O ataque, felizmente, levou muito pouco trabalho à enfermaria. Meia dúzia de feridos, todos da população, sem gravidade por aí além, quase não deu para os “piras” enfermeiros do 2927 saberem o que era trabalho. Já íamos no rescaldo quando me veio à cabeça que o doutor não aparecera. Também, não havia nada de especial para o ocupar. Mas se mais depressa pensasse nele, mais depressa ele aparecia.

Vi-o assomar à porta e perguntar:
 - Está tudo bem?

Deu-me vontade de lhe responder que ele é que não parecia grande coisa. Assim num repente, pareceu-me vê-lo com a roupa algo “desarrumado”. Mas, c’os diabos, acabáramos de sofrer um ataque, era natural que tivesse entrado no abrigo que tinha mais a jeito. E como ali estava tudo bem, ele foi indo e eu nada disse.

Tempos depois, recordava-lhe o que fizera ele para salvar vida a uma mulher e aos gémeos que estavam em posição muito difícil para nascer, quando lhe ouvi:
- É pá! – se há expressão que se transformou em parte identitária do dr. Oliveira, foi esta.
- É pá, a pior não sabes tu.

E por entre desvairadas gargalhadas, eu ouvi-o fazer o relato que, com a sua autorização, aqui reproduzo no melhor que for capaz.

“Naquela noite do nosso último ataque em Bissorã, apareceu-me o Zé, aquele manjaco que era cozinheiro da messe de oficiais, a pedir-me que lhe acudisse a casa que a mulher estava para ter filho. 
- Qual mulher, ó Zé? – o gajo tinha três mulheres, pá. 
- Ó senhor doutor, é a mais nova. 
E eu, já tínhamos informações de que os gajos podiam atacar naquela noite, comecei a pensar – e se eles atacam e sou preciso na enfermaria, como é? -, digo ao manjaco: 
- Mas olha lá, ó Zé, achas que ela vai ter menino agora? 
- Vai sim, senhor doutor, ela já está muito aflita. 
- Ó Zé, e se eles atacam esta noite? 
- Ó senhor doutor, não tem preocupação. Eu tenho tudo preparado. A mulher já está dentro do abrigo, à espera. 

Estás a ver Pires, o gajo já sabia que íamos mesmo ser atacados. Mas como já passava das dez, pensei que se calhar o ataque já não era nessa noite e pronto, lá fui a casa dele. 
Entrei no abrigo, a mulher estava deitada na esteira, e à volta dela as duas outras mulheres do Zé. 
Ajoelhei-me na esteira para começar a ajudá-la, e não é começou mesmo o ataque? Ó pá, aquilo foi o fim do mundo. Ela a gritar, as outras duas mulheres a gritarem, as bombas a caírem e as galinhas, que o Zé também metera dentro do abrigo, doidas, a esvoaçarem por cima da mim, e à volta da mulher a parir, penas por todo o lado… o fim do mundo, pá. Já viste, Pires, e logo comigo, que a última coisa que gostava de fazer era partos.”

Pronto, Chefe, já passou.

1970 - Binar - Depois de uma semana passada em Binar, onde estava sediada a CCAÇ 2464, o alf. mil. médico J. M. Oliveira despede-se do soldado maqueiro Lopes, à esquerda, e do Patricio, soldado que era seu conterrâneo.

O Dr. José Manuel Soares de Oliveira, foi Assistente de Psiquiatria na Faculdade de Medicina do Porto e reformou-se quando era Chefe de Serviço de Psiquiatria do Hospital de S. João.
Na sua juventude jogou voleibol na equipa do Leixões e, mais tarde, foi médico da equipa de futebol sénior leixonense, na época dos famosos “Bebés de Matosinhos”.
No passado dia 28 de Novembro, a ilustre Tabanca de Matosinhos convidou-o para um dos seus almoços.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)