
Queridos amigos,
Há algo de intrigante na publicação de uma tipografia do Porto, em 1916, de um relatório elaborado para o governador em Bolama em 1914. Aceita-se que o governador tenho autorizado a sua divulgação pública, ou mesmo o ministro, mas o retrato esboçado por Vasco Calvet de Magalhães tem para ali verdades duras como punhos, aquele terço da Guiné tem algum comércio e pouco mais, faltam infraestruturas, o Geba e o Corubal carecem de obras, considera os régulos uns sanguessugas, para quem põe em dúvida o rasto de violência que assola as etnias basta ler o que ele escreve sobre massacres e extermínios, ódios étnicos viscerais que depois alguns historiadores vêm escandalosamente atribuir a insurreições contra a presença colonial, ali, naquele terço da Guiné, de fresca data, quase oferecido de bandeja pela Convenção Luso-Francesa de 1886 as lutas tribais revelaram-se como o acontecimento mais tenebroso do século, pode mesmo dizer-se que o povo afável que hoje conhecemos tem na sua génese um quadro de violência que paradoxalmente conheceu em versão com a crescente administração portuguesa e com as vicissitudes das lutas pela independência.
Um abraço do
Mário
A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (2)
Mário Beja Santos
Com impressão na tipografia Progresso, Porto, 1916, o Administrador da Circunscrição de Geba fazia o seu relatório, seguramente encaminhado para Bolama, terá recebido autorização para edição própria. É um documento de grande importância, como o leitor ajuizará. Permite, em primeiro lugar, apercebermo-nos como mudam os critérios de organização do território, e neste caso é surpreendente a Circunscrição Civil de Geba, tinha uma área aproximada de 13 mil quilómetros quadrados, cerca de um terço do território da colónia, limitada a Norte e a Oeste pela linha de fronteira do marco 58º ao 95º, pelos limites Sul e Leste das regiões de Pateá, Colá e Oio, e limite a Oeste a região do Cuor; ao Sul e Leste o rio Corubal desde a sua confluência com o Geba até ao território do Corubal e a linha de separação deste território do de Badora e Cossé e linha de fronteira do marco 24º ao 58º, e o rio que a separa da região Norte do Forreá. Cerca de 19 regulados, desde Cabu até Mansomine. Impossível não ficarmos impressionados com a extensão desta circunscrição.
O mínimo que se pode dizer é que Calvet de Magalhães conhecia a fundo muitos dos problemas deste terço de território da Guiné onde a presença portuguesa era ténue. Já se escreveu que ele alerta o Governador para a escassez de recursos humanos, para os problemas inerentes ao crescimento de Bafatá que carecia de melhores meios de policiamento, é profundamente crítico quanto ao modelo de instrução, denuncia a exploração dos autóctones pelos comerciantes, onde preponderavam os sírio-libaneses, propõe um novo modelo de imposto substituindo a palhota pela capitação, é também profundamente cético quanto às modalidades de recrutamento do pessoal local, e diz mesmo: “Fui o primeiro funcionário encarregado de fazer um recrutamento nesta região. Até então, o governo só aqui recorria quando precisava do auxílio dos indígenas. Em 1909 embarcou o primeiro contingente de Fulas e Mandingas. A maioria fugiu de Bolama, em primeiro lugar porque não simpatizava com a vida militar e depois porque, em geral, eram maltratados. Esta pobre gente vai mais pela palavra do que pela pancada”. E recorda ao Governador que os recrutados fogem para território francês, não vê conveniência nenhuma em voltar a fazer recrutamento nestes moldes.
Passam-lhe pelo território os dois principais rios da Guiné, ao tempo o transporte percorria à navegabilidade do Geba e em parte à do Corubal. Alerta para o rio Geba estar a assorear-se constantemente e explica como e porquê: “Os locais onde os baixos aparecem numa determinada época, em virtude do lodo e das areias, arrastados pela corrente violenta das águas, mudam constantemente. Assim, uma embarcação é colhida de surpresa, quando navega, porque o rumo que seguiu a última vez tem de ser mudado em sentido contrário, porque a corrente em dias apenas, muda os bancos de lado e areia de uma para outra margem. Entre Ganjarra e Geba há um baixo de pedra e cascalho que na maré baixa não tem mais de 40 centímetros! Estou convencido de que cortadas algumas das curvas do rio Geba, tais como a de Ganjarra e a de Cuor, as correntes das águas, correndo a direito, escorreriam o leito do rio aprofundando-o mais e faria as viagens muito mais económicas e rápidas”. Vaticina igualmente que o rio Cocoli (o Corubal) se se destruíssem as rochas a montante do Xitole seria num curto período um dos rios de maior navegação porque para o comércio se desenvolver nestas regiões falta-lhe apenas a via de comunicação. Refere que anda no ar a ideia de construir um caminho-de-ferro do Xime a Kadé e manifesta o seu regozijo: “As margens da linha férrea transformar-se-ão em vastos campos de amendoim onde os Fulas virão de preferência estabelecer as suas lavras deste produto”.
Vive permanentemente inquieto com a construção das estradas e diz mesmo: “Como é que ocupando nós a Guiné há tantos séculos, ainda não se pensou na construção de uma estrada que ligue o litoral com as povoações mais importantes do interior?”. Espraia-se a descrever as culturas indígenas e releva a ingenuidade comercial destes: “Acontece que os indígenas quando colhem estes produtos, os vendem todos, como acontece com a mancarra, não tendo a previdência de guardarem a quantidade necessária para a futura sementeira. Quando procedem à sementeira, vão ter com os negociantes e compram-lhe o produto que lhes venderam pelo triplo do preço que estes deram por ele!”.
Gosta de mostrar trabalho, põe mesmo a imagem no seu relatório da construção de uma ponte sobre o rio Colufi com 152 metros de comprimento e 7,5 metros de altura que veio permitir a comunicação entre vários regulados com Bafatá; enumera melhoramentos em pontes e mercados e dá-se ao cuidado de apresentar um projeto de regulamento de venda e porte de armas. Não resiste a falar sobre o mosaico étnico da região, a sua origem e história, etnografia, costumes, etc. A história recente das lutas étnicas é tema que lhe interessa muito, faz uma descrição das guerras do Forreá entre Fulas e Beafadas e também a insurreição dos Mandingas que não se conformavam com a imposição dos novos régulos Fulas no Forreá. Narra também que os Mandingas se envolveram contra os Beafadas e que os Futa-Fulas do Futa-Djalon auxiliaram os Mandingas pois desejavam exterminar os Fulas-Forros, só que estes massacravam os Mandingas nas emboscadas. E veio também à baila a revolta de Mólo, pai de Mussá Mólo, Bambarã, ele declarou guerra de extermínio aos Mandingas, foi conquistando regulados onde ia colocando à frente Fulas. Moló submeteu também os Beafadas. E Calvet de Magalhães diz que o seu túmulo é venerado pelos Fulas-Pretos (Fulas cativos). O seu filho Mussá Mólo teve que fugir para a Gâmbia depois de ter praticado uma série de prepotências e infâmias em território português e francês. Gosta de nos contar curiosidades, como esta: “Todos os Fulas-Pretos ou Fulas-Cativos da região de Geba guardam respeito aos Fulas-Forros. Têm consciência da sua verdadeira origem! Todas os Fulas-Pretos da região são descendentes de Mandingas, Beafadas e Soninqués”. O Administrador de Geba diz claramente que considera o régulo um flagelo para o indígena, um sanguessuga.
Caminhando para o final da obra, apresenta um apontamento sobre a língua Fula, deita um olhar atento sobre as indústrias indígenas recordando que existem em toda a circunscrição dispersos tecelões que, com o próprio algodão que os indígenas cultivam, tecem panos de uma única cor ou com vários desenhos. “Estes indígenas, se lhes fossem fornecidos teares modernos e se lhes corrigissem defeitos, tornar-se-iam verdadeiros artistas”. Espraia-se pela fauna e pela flora, dá-nos conta dos diferentes tipos de macacos, da existência do chimpanzé, do leão pequeno, do leopardo pequeno, do pangolim, hipopótamos e raros elefantes, enumera as aves de rapina, os galináceos, os palmípedes, os lagartos, jiboias e cobras e todo o tipo de peixe.
Não deixa de ser curioso apresentar-nos em anexo a lista estabelecimentos existentes na circunscrição civil de Geba. Destaca em Bafatá: Companhia Francesa da África Ocidental; Companhia Francesa do Comércio Africano; Nouvelle Société Commerciale Africaine (antiga Casa Soler); Rudolf Titzck e Comandita; Companhia Franco-Escocesa; E. Salagua e Companhia; Aimé Grenier e Companhia; Osório Pereira Tavares; João Teixeira e José Fernandes, para além de 20 estabelecimentos de sírio-libaneses. Em Bambadinca estavam estabelecidos Francisco Monteiro e Leão Ledo Pontes; no Xime, Rudolf Titzck e Comandita e Domingues Marques Vieira; em Geba destacavam-se os seguintes estabelecimentos: Hans Schwartz, E. Salagua e Companhia, Rudolf Titzck e Comandita, Augusto Fernandes e Paulo dos Reis Pires.
Este relatório de 1914 é uma peça fundamental para entender a presença portuguesa num terço da colónia nesse ano em que eclodiu a I Guerra Mundial.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23413: Historiografia da presença portuguesa em África (324): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (1) (Mário Beja Santos)