quarta-feira, 13 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23428: Historiografia da presença portuguesa em África (325): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Há algo de intrigante na publicação de uma tipografia do Porto, em 1916, de um relatório elaborado para o governador em Bolama em 1914. Aceita-se que o governador tenho autorizado a sua divulgação pública, ou mesmo o ministro, mas o retrato esboçado por Vasco Calvet de Magalhães tem para ali verdades duras como punhos, aquele terço da Guiné tem algum comércio e pouco mais, faltam infraestruturas, o Geba e o Corubal carecem de obras, considera os régulos uns sanguessugas, para quem põe em dúvida o rasto de violência que assola as etnias basta ler o que ele escreve sobre massacres e extermínios, ódios étnicos viscerais que depois alguns historiadores vêm escandalosamente atribuir a insurreições contra a presença colonial, ali, naquele terço da Guiné, de fresca data, quase oferecido de bandeja pela Convenção Luso-Francesa de 1886 as lutas tribais revelaram-se como o acontecimento mais tenebroso do século, pode mesmo dizer-se que o povo afável que hoje conhecemos tem na sua génese um quadro de violência que paradoxalmente conheceu em versão com a crescente administração portuguesa e com as vicissitudes das lutas pela independência.

Um abraço do
Mário


A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (2)

Mário Beja Santos

Com impressão na tipografia Progresso, Porto, 1916, o Administrador da Circunscrição de Geba fazia o seu relatório, seguramente encaminhado para Bolama, terá recebido autorização para edição própria. É um documento de grande importância, como o leitor ajuizará. Permite, em primeiro lugar, apercebermo-nos como mudam os critérios de organização do território, e neste caso é surpreendente a Circunscrição Civil de Geba, tinha uma área aproximada de 13 mil quilómetros quadrados, cerca de um terço do território da colónia, limitada a Norte e a Oeste pela linha de fronteira do marco 58º ao 95º, pelos limites Sul e Leste das regiões de Pateá, Colá e Oio, e limite a Oeste a região do Cuor; ao Sul e Leste o rio Corubal desde a sua confluência com o Geba até ao território do Corubal e a linha de separação deste território do de Badora e Cossé e linha de fronteira do marco 24º ao 58º, e o rio que a separa da região Norte do Forreá. Cerca de 19 regulados, desde Cabu até Mansomine. Impossível não ficarmos impressionados com a extensão desta circunscrição.

O mínimo que se pode dizer é que Calvet de Magalhães conhecia a fundo muitos dos problemas deste terço de território da Guiné onde a presença portuguesa era ténue. Já se escreveu que ele alerta o Governador para a escassez de recursos humanos, para os problemas inerentes ao crescimento de Bafatá que carecia de melhores meios de policiamento, é profundamente crítico quanto ao modelo de instrução, denuncia a exploração dos autóctones pelos comerciantes, onde preponderavam os sírio-libaneses, propõe um novo modelo de imposto substituindo a palhota pela capitação, é também profundamente cético quanto às modalidades de recrutamento do pessoal local, e diz mesmo: “Fui o primeiro funcionário encarregado de fazer um recrutamento nesta região. Até então, o governo só aqui recorria quando precisava do auxílio dos indígenas. Em 1909 embarcou o primeiro contingente de Fulas e Mandingas. A maioria fugiu de Bolama, em primeiro lugar porque não simpatizava com a vida militar e depois porque, em geral, eram maltratados. Esta pobre gente vai mais pela palavra do que pela pancada”. E recorda ao Governador que os recrutados fogem para território francês, não vê conveniência nenhuma em voltar a fazer recrutamento nestes moldes.

Passam-lhe pelo território os dois principais rios da Guiné, ao tempo o transporte percorria à navegabilidade do Geba e em parte à do Corubal. Alerta para o rio Geba estar a assorear-se constantemente e explica como e porquê: “Os locais onde os baixos aparecem numa determinada época, em virtude do lodo e das areias, arrastados pela corrente violenta das águas, mudam constantemente. Assim, uma embarcação é colhida de surpresa, quando navega, porque o rumo que seguiu a última vez tem de ser mudado em sentido contrário, porque a corrente em dias apenas, muda os bancos de lado e areia de uma para outra margem. Entre Ganjarra e Geba há um baixo de pedra e cascalho que na maré baixa não tem mais de 40 centímetros! Estou convencido de que cortadas algumas das curvas do rio Geba, tais como a de Ganjarra e a de Cuor, as correntes das águas, correndo a direito, escorreriam o leito do rio aprofundando-o mais e faria as viagens muito mais económicas e rápidas”. Vaticina igualmente que o rio Cocoli (o Corubal) se se destruíssem as rochas a montante do Xitole seria num curto período um dos rios de maior navegação porque para o comércio se desenvolver nestas regiões falta-lhe apenas a via de comunicação. Refere que anda no ar a ideia de construir um caminho-de-ferro do Xime a Kadé e manifesta o seu regozijo: “As margens da linha férrea transformar-se-ão em vastos campos de amendoim onde os Fulas virão de preferência estabelecer as suas lavras deste produto”.

Vive permanentemente inquieto com a construção das estradas e diz mesmo: “Como é que ocupando nós a Guiné há tantos séculos, ainda não se pensou na construção de uma estrada que ligue o litoral com as povoações mais importantes do interior?”. Espraia-se a descrever as culturas indígenas e releva a ingenuidade comercial destes: “Acontece que os indígenas quando colhem estes produtos, os vendem todos, como acontece com a mancarra, não tendo a previdência de guardarem a quantidade necessária para a futura sementeira. Quando procedem à sementeira, vão ter com os negociantes e compram-lhe o produto que lhes venderam pelo triplo do preço que estes deram por ele!”.

Gosta de mostrar trabalho, põe mesmo a imagem no seu relatório da construção de uma ponte sobre o rio Colufi com 152 metros de comprimento e 7,5 metros de altura que veio permitir a comunicação entre vários regulados com Bafatá; enumera melhoramentos em pontes e mercados e dá-se ao cuidado de apresentar um projeto de regulamento de venda e porte de armas. Não resiste a falar sobre o mosaico étnico da região, a sua origem e história, etnografia, costumes, etc. A história recente das lutas étnicas é tema que lhe interessa muito, faz uma descrição das guerras do Forreá entre Fulas e Beafadas e também a insurreição dos Mandingas que não se conformavam com a imposição dos novos régulos Fulas no Forreá. Narra também que os Mandingas se envolveram contra os Beafadas e que os Futa-Fulas do Futa-Djalon auxiliaram os Mandingas pois desejavam exterminar os Fulas-Forros, só que estes massacravam os Mandingas nas emboscadas. E veio também à baila a revolta de Mólo, pai de Mussá Mólo, Bambarã, ele declarou guerra de extermínio aos Mandingas, foi conquistando regulados onde ia colocando à frente Fulas. Moló submeteu também os Beafadas. E Calvet de Magalhães diz que o seu túmulo é venerado pelos Fulas-Pretos (Fulas cativos). O seu filho Mussá Mólo teve que fugir para a Gâmbia depois de ter praticado uma série de prepotências e infâmias em território português e francês. Gosta de nos contar curiosidades, como esta: “Todos os Fulas-Pretos ou Fulas-Cativos da região de Geba guardam respeito aos Fulas-Forros. Têm consciência da sua verdadeira origem! Todas os Fulas-Pretos da região são descendentes de Mandingas, Beafadas e Soninqués”. O Administrador de Geba diz claramente que considera o régulo um flagelo para o indígena, um sanguessuga.

Caminhando para o final da obra, apresenta um apontamento sobre a língua Fula, deita um olhar atento sobre as indústrias indígenas recordando que existem em toda a circunscrição dispersos tecelões que, com o próprio algodão que os indígenas cultivam, tecem panos de uma única cor ou com vários desenhos. “Estes indígenas, se lhes fossem fornecidos teares modernos e se lhes corrigissem defeitos, tornar-se-iam verdadeiros artistas”. Espraia-se pela fauna e pela flora, dá-nos conta dos diferentes tipos de macacos, da existência do chimpanzé, do leão pequeno, do leopardo pequeno, do pangolim, hipopótamos e raros elefantes, enumera as aves de rapina, os galináceos, os palmípedes, os lagartos, jiboias e cobras e todo o tipo de peixe.

Não deixa de ser curioso apresentar-nos em anexo a lista estabelecimentos existentes na circunscrição civil de Geba. Destaca em Bafatá: Companhia Francesa da África Ocidental; Companhia Francesa do Comércio Africano; Nouvelle Société Commerciale Africaine (antiga Casa Soler); Rudolf Titzck e Comandita; Companhia Franco-Escocesa; E. Salagua e Companhia; Aimé Grenier e Companhia; Osório Pereira Tavares; João Teixeira e José Fernandes, para além de 20 estabelecimentos de sírio-libaneses. Em Bambadinca estavam estabelecidos Francisco Monteiro e Leão Ledo Pontes; no Xime, Rudolf Titzck e Comandita e Domingues Marques Vieira; em Geba destacavam-se os seguintes estabelecimentos: Hans Schwartz, E. Salagua e Companhia, Rudolf Titzck e Comandita, Augusto Fernandes e Paulo dos Reis Pires.

Este relatório de 1914 é uma peça fundamental para entender a presença portuguesa num terço da colónia nesse ano em que eclodiu a I Guerra Mundial.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23413: Historiografia da presença portuguesa em África (324): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (1) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Os textos historiograficos que o MBS nos brinda aqui no Blogue sao de extrema importancia para quem se preocupa em conhecer a historia colonial e dos povos do territorio da Guiné visto com os olhos dos portugueses e sempre na senda da colonizaçao. Todavia ha pouca interaçao e discussao pois, parece que a maior preocupaçao do MBS é deixar informaçao bruta para a posteridade e nao matéria para avaliaçao critica e discussao, mesmo se a quem atire sempre uma farpa, sabendo que nao havera qualquer reacçao.

Sobre o texto de hoje, tenho alguns pontos a esclarecer:

1_”O Administrador de Geba diz claramente que considera o régulo um flagelo para o indígena, um sanguessuga”.

O Administrador Calvet de Magalhaes estava bem posicionado para saber que foi graças a estes régulos que ele abominava que todo o territorio Nordeste/Leste (Bafata/Gabu) passa a fazer parte da Guiné com o acordo de delimitaçao de fronteiras Luso-Francés de 1886, devido a relutancia dos mesmos regulos em continuar sob as ordens do Molo Filho (Mussa Molo) que era aliado dos franceses. Aqui nao houve nenhum milagre, houve sim uma escolha intencional e deliberada das elites fulas, através dos seus regulos, de ficar ao lado de Portugal, facto que, no fundo, muita boa gente ainda nao consegue perceber.

2_“Estes indígenas, se lhes fossem fornecidos teares modernos e se lhes corrigissem defeitos, tornar-se-iam verdadeiros artistas”.

E preciso dizer que nao era o espirito e nem estava nos planos da colonizaçao a promoçao da economia indigena, porque, como sabemos todas as iniciativas locais foram banidas e extirpadas a fim de fazer de Africa um simples mercado consumidor. Aqui vemos que havia contradiçoes entre os colonizadores que nao tinham o mesmo espirito nem os mesmos objectivos sobre como deveria ser feita a colonizaçao, sobretudo quando ele denuncia a exploraçao dos indigenas pelos comerciantes, embora o faça olhando aos Sirio-Libaneses e nao aos Europeus.

3_ “Acontece que os indígenas quando colhem estes produtos, os vendem todos, como acontece com a mancarra, não tendo a previdência de guardarem a quantidade necessária para a futura sementeira. Quando procedem à sementeira, vão ter com os negociantes e compram-lhe o produto que lhes venderam pelo triplo do preço que estes deram por ele!”.

O que o Calvet de Magalhaes nao consegue perceber é que nos paises vizinhos, a responsabilidade de guardar, proteger e fornecer a sementeira aos camponeses era do estado que tinha as capacidades de o fazer. O amendoim é um produto rapidamente perecivel que, sem quimicos, nao aguenta mais de 30 dias e transforma-se em po, devido aos fungos e microbios que o penetram e estragam. Os camponeses nao eram letrados, mas tinham a racionalidade empirica de que trabalha e conhece os problemas que enfrenta. Para remediar esta situaçao, mais uma vez, foi o Governador Spinola que procurou encontrar soluçoes ao problema com a criaçao de cooperativas em todo o territorio e a construçao de armazens que, mais tarde serviram de asilo e casernas ao primeiro contingente destacado para o territorio, os famosos celeiros celebrados por Albano Costa de Guileje.

(continua)

Anónimo disse...

Continuaçao:


4_”E veio também à baila a revolta de Mólo, pai de Mussá Mólo, Bambarã”

O Alfa Molo ja nao era Bambara como ele afirma, era descendente de Bambara, de tal modo que o seu apelido nao era Culubali como o pai, mas Baldé por opçao dos pais e pelos vistos porque estava destinado para vir a ser um grande chefe e lider da comunidade Fula na sua luta contra a secular dominaçao dos mandingas no espaço da Senegambia.

5_”O seu filho Mussá Mólo teve que fugir para a Gâmbia depois de ter praticado uma série de prepotências e infâmias em território português e francês”.

Na verdade, aqui o Administrador esta claramente equivocado, o Mussa Molo estava no seu territorio, no espaço territorial que tinham conquistado aos mandingas, da mesma forma que alguns seculos antes, estes o tinham conquistado das maos dos Beafadas, Banhuns, Padjadincas e Cocolis.

Com um abraço amigo de sempre,

Cherno Baldé



Anónimo disse...

Esclarecimento:

Queria esclarecer que, sobre a primeira iniciativa de construçao de celeiros agricolas, referia-me ao Governador Sarmento Rodrigues, um dos vultos maiores e a quem devemos as mais importantes iniciativas de desenvolvimento do territorio entre 1945/48. O Gen. Spinola seguiu-lhe as pegadas nesse dominio nos anos 70 do seculo XX.

Cherno Baldé

Carlos Vinhal disse...

Muito obrigado irmão Cherno pelas tua intervenções sempre didácticas.
Aposto que se perdeu um bom historiador quando decidiste ir para engenharia.
Estás a tempo de te redimires, publicando em livro o muito que sabes do teu país e das suas origens ancestrais.
Um abraço e votos de que estejas bem assim como todos os teus.
Carlos Vinhal

Antº Rosinha disse...

Calvet de Magalhães como a maioria dos colonizadores (responsáveis)europeus de África passavam a vida de comissão em comissão pelas diversas colónias, mas nunca chegavam a conviver nem a conhecer nenhuma das línguas africanas nem a compreender e interpretar os hábitos dos povos.

E pior, nem a aceitar ou dar qualquer importância e achar normal os seus costumes, e não se estudava a maneira de dar a volta a certos hábitos africanos, o importante era a "exploração dos recursos naturais", fosse mancarra ou ouro e acabou.

Calvet de Magalhães, segundo Beja Santos no post anterior "não deixa de falar na indolência do indígena", tal como um certo Dijsselbloem europeu disse que nós sul-europeus é só copos e mulheres.

Traduzido para crioulo "cá pega tesso".

A colonização europeia em África mais absoluta foi a inglesa, o que revoltava a união soviética que incomodavam todos mas com colónias inglesas nada, e o nosso grande colonialista Norton de Matos, sonhava imitar os ingleses, e temia-os não cobiçassem parte de Angola e Moçambique.

Quem foi o maior inglês em África que Norton de Matos mais temia e admirava? Cecil Rodes, para quem África só representava ouro, minério e mais ouro e mais nadinha.

Nós também só queríamos riquezas mas não tínhamos pedalada.

No caso aqui, Calvet Magalhães já se contentava que os indígenas guineenses produzissem riqueza com o amendoim.

Tivemos pulso para navegar, mapear, pôr o mundo no mapa, comerciar, mas a nossa vocação não era colonizar, eramos "indolentes".

ManuelLluís Lomba disse...

Cherno Baldé:
Acabas de me ministrar uma das mais convincentes lições da história da Guiné Portuguesa/República da Guiné-Bissau.

Abraço

José Teixeira disse...

Obrigado "ermon" Cherno.
Era evidente que o "Sistema político" enviava para as colónias gente que pensava "europeu dominador" para dominar e explorar as gentes - "os gentios" e nos últimos anos, em desespero de sobrevivência enviou-nos a nós.
Os colonos, ou seja, as pessoas que voluntariamente iam para África, levavam o sonho de enriquecer rapidamente. Recordo-me de dois ou três casos de gente minha amiga, era eu um adolescente, que partiram para Angola com esse sonho.
Os poucos brancos com quem me cruzei na Guiné e continuo a cruzar quando lá vou, não estão pobres, bem pelo contrário.
Mas, creio que devemos nos preocupar mais com os novos colonizadores, brancos e negros, onde a corrupção, o compadrio e os grandes "lobies" dominam, alimentados pelos grandes países que dominam o atual "sistema" e nada mais pretendem que fazer o mesmo que os antigos, agora com formas e tecnologias mais apuradas... e o povo fica sempre a perder, como infelizmente acontece na Guiné-Bissau.
Um fraternal abraço do
Zé Teixeira