quinta-feira, 14 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 11 de Julho de 2022, trazendo-nos a segunda estória para a subsérie de Amores em tempo de guerra.

Amores em tempo de guerra

II - Correspondência desviada

Depois da passagem de rotina pelos postos de sentinela, o alferes recolheu aos seus aposentos e adormeceu rapidamente. Acordou-o um ruído de vozes, onde sobressaía a fala do Joaquim Santos, o “perna-marota” onde se fundia a língua portuguesa com o crioulo. Vestiu uns calções e seguiu ao encontro dos desordeiros. O tempo de regresso à Metrópole aproximava-se, provocando nos seus homens uma certa inquietação e alguma euforia, que era preciso conter, sobretudo, era preciso evitar ruído noturno, e mais redobrada atenção quanto aos comportamentos.

O tempo de Guiné já ia longe demais, as vicissitudes da guerra impunham as suas marcas, era preciso calma, atenção e respeito pelo caminho que cada um dos seus homens estava a fazer. Para si, como comandante daquele grupo, o sonho era fazê-los regressar a casa, na Metrópole. O Cais da Rocha em Lisboa, de onde partiram, era a meta de chegada, onde todos deviam apresentar-se, pelo menos os que restavam: três já tinham partido, sendo que um fora num doloroso sobretudo de pinho, e os outros feridos em combate.

Imbuído deste espírito, o Alferes José Barbosa dirigiu-se ao abrigo de onde provinha o ruído. Três soldados brancos e um africano, discutiam. Cansados de acordar nas noites anteriores com o ruído que o Joaquim Santos produzia e os palavrões que lhe saltavam pela boca fora, quando acabava a sua hora de sentinela, os camaradas rodearam-no para uma chamada de atenção e ele reagiu de forma incorreta, como era seu costume.
- Joaquim chegue aqui! E vocês vão deitar-se. Acabou a festa!

Ao deparar com o Joaquim de G3 na mão, um pouco alcoolizado, o que não era seu hábito, e bradando palavras inconsistentes, logo pensou em admoestá-lo e redigir uma participação ao comandante da Companhia. Avaliando melhor a situação, filou-o por um braço e conduziu-o à porta da sua habitação. Sentaram-se, silenciosamente, num monte de cascalho, e a G3 entrou em descanso na mão do alferes. O pobre do soldado começou a chorar.

O Joaquim Santos, a quem fora dado pelos camaradas da recruta a alcunha “perna marota”, porque sofria de um pequeno tique na perna direita, era uma pessoa irritante, pela forma provocadora como reagia aos seus superiores e na relação com os camaradas. Até a voz, grossa e rouca, incomodava e ele sabia-o, pelo que abusava da fama para tirar proveito. Aparentemente não tinha grandes amigos e o alferes acompanhava-o de perto, para evitar sarilhos.
- Ah agora chora?! Mas há minutos despertou toda a gente do abrigo, e não foi a primeira vez. São seus colegas, devem merecer-lhe respeito. Disse-lhe o alferes, zangado. Que se passa Joaquim? Parece que está interessado em levar com uma participação ao comandante e apanhar mais meio ano de comissão!
- Se o meu alferes soubesse...
- Quero saber, antes de pensar no castigo que lhe vou dar!? Fale!

O silêncio que se seguiu entrecortado por soluços disse ao alferes, que algo de grave se passava, pelo que esperou pacientemente.
- O meu alferes sabe que sou casado e tenho uma filha. Tinha dois meses quando abalamos para a Guiné. Não sente a dor que me persegue... não pode sentir... amo a minha mulher... adoro a minha filha que mal conheço...
- Talvez, mas também tenho outras dores, que você não sente. Essa é a sua dor, mas todos nós, que aqui estamos, sofremos. A saudade mata, bem sabe... e cada um tem os seus dilemas. Temos de saber gerir os problemas com senso e você... se pensa que essa dor lhe dá o direito de incomodar os seus camaradas estás enganado!
- Não, meu alferes. Peço desculpa... estou confuso... não sei o que hei de fazer...
- Desembuche homem!
- Todas as semanas escrevo à minha mulher, e ela me escreve. Desde há dois meses queixa-se que não recebe a minha correspondência, e eu sempre lhe escrevi. Juro! Acusa-me de abandono, e até insinua que a troquei por uma madrinha de guerra. Não sei que fazer... eu amo-a e não quero perdê-la nem à minha filhinha! Alguém me desvia a correspondência, mas quem? Quem está interessado em arruinar o meu casamento? Ou será ela que me está a fintar?

O problema era grave. Não havia palavras que atenuassem a dor do Joaquim, pensou o alferes, optando por alimentar o diálogo. Talvez conseguisse que o Joaquim encontrasse a solução. Mais ninguém o conseguiria.
- Diga-me uma coisa. A sua família mora por perto?
- Sim. E aí é que está o problema. A minha mãe, que vive a cerca de dois quilómetros, escreve-me maravilhas da Ana Maria e da Anita. Passa lá por casa todos os dias com a menina. Almoça aos sábados e dispõe a tarde para ela, e a menina conviverem com os meus pais. O meu tio, que nos cedeu uma casinha junto à sua, para ela lá viver, para economizar uns cobres, acusa-a de ser depravada, porque nunca está em casa e que deve ter-me trocado por outro.
- E você em que acredita? Na sua mãe? Ou no seu tio...
- Eu quero acreditar na minha mãe, mas... ela está trolaró desde que o meu irmão morreu na guerra, em Angola. O meu tio... ela vive lá... e ele vê tudo.
- O seu irmão morreu em combate?
- Sim. Era condutor e pisou uma mina anticarro. O meu alferes sabe que essas não perdoam...
- Sim... Lamento... disse o alferes, comovido.

O alferes pensou: tenho de arranjar maneira de despachar este homem para casa, talvez a lei o permita, dado que o irmão morreu em combate, mas agora devo ajudá-lo a resolver o problema.
- Tem de encontrar formas de fazer chegar os seus aerogramas à sua mulher. Nunca se lembrou em enviá-los para a morada da sua mãe?
- Pois! E a minha mãe ficava a saber os nossos segredos. Nunca!
- Já pensou em ir de férias? Assim descobria o segredo da correspondência desviada... via a menina e aclarava a vossa relação afetiva. Merece ser feliz.
- Meu alferes o senhor sabe que na tropa ganhamos muito pouco. Dá para a cerveja e pouco mais.
- Porra! Tem ou não dinheiro para comprar a passagem? O que está primeiro, o dinheiro ou a sua felicidade e a da sua esposa? Amanhã vamos falar com o sargento e vai de férias. É uma ordem.
- Se o meu alferes assim entende! Ai que bom será, ver a minha menina!
- E a sua mulher. Ela merece confiança. Por favor, acredite na sua mãe. Amanhã vai escrever-lhe uma carta. Eu forneço-lhe o papel e o envelope. Mete dentro um aerograma para a Ana Maria e pede à tua mãe para lho entregar. Até ir de férias é assim que vai fazer e o seu problema fica resolvido. Pode crer.

E aqueles dois homens calejados por uma guerra ingrata, perderam-se na conversa, e encerraram este encontro, já o sol despontava, abraçados um no outro.

José Teixeira

(Continua)
Abril de 2008 > José Teixeira em Canamine
Abril de 2008 > Recepção em Guileje
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23351: Estórias do Zé Teixeira (52): Amores em tempo de guerra: I - Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

E o resto da História?

Abraço,

António Graça de Abreu

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Boa pergunta, Zé, a o António Graça de Abreu... E então o resto da história ?

Alguns destes casos (que foram reais), acabaram mal. Outros, tiveram um final feliz...

Um alferes à altura, o teu José Barbosa, capaz de saber ouvir e entender estes pequenos grandes dramas dos seus soldados... De facto, a saudade e o ciúme podem "matar"...

E, já agora, por onde anda o J. B. ?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, a história merece seguimento, uma II parte... Entende estes "reparos e sugestões" como críticas construtivas... Afinal trata-se de um "conto" (que deve ter um princípio, meio e fim).

Quando nasceu a minha Joana, em 1978, eu contava-lhe histórias para adormecer... Depressa esgotei as histórias infantis tradicionais: Os Três Porquinhos e o Lobo Mau, O Capucinho Vermelho, A Bela Adormecida, a Branca de Neve e os Setes Anões, Os Sete Cabritinhos e o Lobo Mau, etc. (que agora ando a contar à minha neta, filha do João)...

Esgotado o "stock", tive que começar a "inventar" histórias "malucas"... Mas a Joana, "resistente", nunca me deixava pôr o ponto final... E tramava-me com a pergunta: "Então, e depois ?"... Quando era a vez da mãe lhe contar a história para adormecer, a Alice respondia, pragmática e despachada: "E depois, morreram as vacas e ficaram os bois"...

Os teus leitores são como as crianças: não lhes podes deixar com água na boca...ou mlehor, com perguntas sem respostas...

Aqui fica um desafio para o teu fim de semana criativo... LG

PS - Agora mesmo, o correio bateu à porta para me entregar, pessoalmente, o teu livrinho de poemas, "Palavras que o Vento (E)leva"... Fico sensibilizado, eu e a Alice, pela tua dedicatória e pela tua oferta... Sei que só o vais lançar na quadra natalicia... Mas é um presente de Natal que vamos adorar... Eu, que te fiz o prefácio, prometo voltar a lê-lo, agora à beira-mar... e talvez com outra "grelha de leitura"... Merece ser lido e relido... Parabéns!



José Teixeira disse...

Meu caro Graça Abreu, é evidente que a estória / conto tem continuidade. Está escrita e vai aparecer em breve.
Luís. Não vi qualquer sentido de crítica na questão levantada pelo Graça Abreu. Pelo contrário, está incompleta. a seu tempo...
Foi uma situação real vivida por mim e não pelo Alferes, que é uma figura fictícia, mas que
pretende homenagear dois alferes da minha companhia que fiquei a admirar pela sua forma de ser e estar na tropa e na guerra da Guiné o JOSÉ Belo e o Joaquim BARBOSA. Está integrada num possível livro que anda a escrevinhar onde pretendo aprofundar os sentimentos humanos que o ambiente de guerra, por vezes, fazia esquecer, mas estavam dentro de cada um.

Com os meus filhos acontecia o mesmo - E depois? conta mais pai! Engendrei uma histórinha - Pedro Pedrinho Pedro Pedrão que depois de burro foi sabichão - e a história cresceu, cresceu. Há tempos tive de a reescrever para o meu filho contar os meus netinhos.

Sobre o livro de poemas que editei, e vai entrar no mercado em breve, é uma forma de pessoal de ver e escrever poesia. Obrigado mais uma vez pelo carinho que puseste no Prefácio. Vejamos o que dirão os leitores

Abraços
do Zé Teixeira


Anónimo disse...

As outras “batalhas” enfrentadas.
Como as das picadas,ou mata,acabavam por ser vencidas caminhando-se em frente.

O José Teixeira,uma das “pedras” importantes do grupo de combate “ Os Quilhöes Negros”, lá estava para observar solidariamente.

Um abraço do JBelo