1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Fevereiro de 2016:
PAISAGENS QUE DÃO TANTA BELEZA À VIDA, ABULIA E ESQUECIMENTO
Para combater o excesso de peso, e a ferrugem dos músculos e articulações,
males provocados pela idade e pelos excessos alimentares, muitas vezes
na companhia de amigos e camaradas, faço muitos passeios sozinho, em
marcha forçada, no Parque da Cidade que fica perto da minha casa.
Habituado desde muito jovem na minha aldeia, às longas caminhadas que me
levavam a todos os sítios da sua área agrícola e florestal,
ultimamente comecei a sentir saudades desses espaços mais amplos e
diversificados, com outra lonjura dos caminhos do Parque, que consigo
percorrer numa hora.
Pelo prazer das caminhadas, dos espaços amplos e das paisagens que
entram pelo olhar e dão tanta beleza à nossa vida, recordo-me também
dos anos da Guiné e das caminhadas que fiz por lá, com melhores pernas
do que actualmente.
Nos primeiros meses em Buba, fiz grandes caminhadas com o pelotão, que
já mostrava alguns sinais de cansaço para acompanhar o periquito, que
eu era, pois eles já tinham sete meses de mato.
Sem nunca sair para
fora da área que estava atribuída à companhia eu achava que devia ter conhecimento do terreno, para maior segurança psicológica, pela
utilidade que poderia ter nalguma emergência, por outro lado era também
levado pela curiosidade em explorar as paisagens de floresta e bolanha
que me rodeavam. Nesses longos "passeios" tivemos a sorte de nunca nos
cruzarmos com o inimigo, e confesso que como amante da vida ao ar livre
e da natureza, foi das melhores experiências que tive na Guiné.
Problemas e azares, de que já falei, houve depois, nos últimos meses da
comissão, para lá dos ataques mensais ao aquartelamento, que o Nino
Vieira parecia fazer para cumprir calendário, que nos assustavam mas
nunca magoavam ninguém. A norte da bolanha dos Passarinhos, que
tínhamos que cruzar na estrada de terra batida, que nos ligava a Nhala,
para fazer protecção às frequentes colunas de reabastecimento, havia
uma enorme bolanha, que já não recordo se seria a sua continuação ou
outra. Nesta grande área de bolanha só estive uma vez, com toda a
companhia e terá sido das poucas vezes que o capitão saiu. Gostei muito
de conhecer esse enorme descampado pouco arborizado e rodeado de
floresta, talvez por alguma nostalgia da parte planáltica da minha
aldeia, onde se cultivava o trigo e o centeio.
A nossa imaginação
transporta para toda a parte as cópias das gentes e das paisagens onde
nascemos e fomos criados e gostamos de as encontrar projectadas noutros
ambientes. Fui algumas vezes na direcção de Fulacunda, que sendo
bastante distante de Buba, parecia-me que havia entre as duas tabancas,
muita terra de ninguém que poderia ser controlada pelo PAIGC. Fulacunda
que talvez por ter um nome sonante e quase mágico e pela vizinhança
confinante com Buba ainda que um pouco distante, sempre foi para mim um
mistério a despertar a minha curiosidade.
O José Teixeira, que fez tropa em Buba, antes de mim, e é um grande
andarilho, que já voltou algumas vezes à Guiné, falou-me duma povoação
nessa direcção, não muito longe de Buba, controlada pelo inimigo,
segundo testemunho que recolheu junto de habitantes dela. Nunca soube
ou não me apercebi da existência dessa tabanca. Saindo de Buba, próximo da
pista de aviação, havia um troço de estrada abandonado, onde já crescia
algum mato, que segundo parece não levava a parte nenhuma, que eu nunca
percorri em toda a sua extensão até por ser um caminho muito exposto.
Terá sido uma tentativa frustrada de abrir uma estrada, no tempo de
companhias anteriores, na direcção de Aldeia Formosa.
Na direcção de Empada, a sudoeste, só me recordo de ter ido duas
vezes com dois pelotões, numa espécie de patrulhamento sem outro
objectivo definido, que não fosse observar se haveria vestígios da
passagem ou actividade do inimigo, que por vezes nos atacava dessa
zona, ainda perto do quartel, do outro lado do Rio Grande Buba.
Paisagem da Guiné - Pôr-do-sol no Pelundo
Depois de Buba, rumei para Mansabá, recomendado, por erro de
casting, como bom combatente, como me chegou a dar a entender o Capitão Abreu, Comandante do COP, e para aborrecimento do capitão miliciano da
companhia, que chegou uns dias depois de mim, Economista na vida civil e
que tinha tanto jeito como eu para a vida militar. Bom homem esse
capitão, pois se ele fosse rigoroso na aplicação do RDM, eu provavelmente
teria cumprido mais alguns meses de Guiné.
Mal recordo a actividade operacional. Lembro-me de fazermos uma
operação, no sentido contrário à mata do Morés, não recordo qual o
objectivo. Sei que andei muito tempo a pé por uma mata bastante
densa e não me recordo porque motivo cheguei a andar de helicóptero,
talvez para ver a paisagem.
Foi nessa ou noutra operação, que de manhã cedo a companhia estava toda
formada na parada à minha espera, e o capitão danado pela minha demora, e
eu a chegar impassível e abstracto a olhar para ele.
Já escrevi algures no blogue que por muita pena minha nunca pude
entrar na mata do Morés, por proibição conjunta do PAIGC e das
autoridades militares, já que nessas operações somente eram utilizadas
tropas especiais. Mas eu gostaria tanto de conhecer essa grande extensão
de floresta, de preferência sem tiros nem bombas.
Pelo prazer que sempre tive em conhecer os campos e florestas da Guiné, se
revelam as minhas origens camponesas. Se pudesse tinha dado a volta a
toda a Guiné a pé.
Por causas
várias que talvez não consiga analisar objectivamente, ou porque isso
não me agrade agora, reconheço que nos meses passados em Mansabà, já
estava um pouco "apanhado pelo clima" e o meu comportamento reflectiu
bastante isso, confirmado recentemente pela minha irmã, mais próxima da
minha idade, que há dias me falou do meu regresso a casa.
As nossas irmãs, essas jovens que desde cedo desenvolviam em relação a
nós, uma mistura de sentimentos fraternais e maternais e alguma
admiração e curiosidade pelas nossas diferenças físicas e psicológicas.
As nossas irmãs, que nesses anos de aflição das famílias, acrescentavam
tanto carinho e afectividade à que nos era dedicada pelos pais e que,
segundo ela, eu tratei com tanta indiferença quando regressei. Nunca
demos muito realce ao amor e sofrimento dessas jovens como se elas
fossem obrigadas a isso por dever familiar. Tantos anos passaram e só
agora esta irmã me fez esta "queixa", que surgiu somente, por acaso, no
decorrer de uma conversa sobre o passado comum.
Outros factos que não
sabia e outros que esqueci, por exemplo que a minha mãe chorava muito
porque eu não dava notícias, e ela culpava as filhas por me escreverem
pouco quando isso até não seria verdade. Note-se que a nossa mãe tinha
a quarta classe mas bastante ocupada nas múltiplas tarefas que tinha
que fazer no lar, cozinhar, costurar, chulear, tecer e outras, entre as
quais ir na burra à horta, uma grande paixão para além dos filhos,
encher as alforjes com as diferentes qualidades de hortaliça, atribuía a
responsabilidade da escrita dos aerogramas às filhas.
Talvez esse estado de espírito, de que falei, em que se misturava
abulia e esquecimento tenha varrido da minha memória muito do que se
passou e vivi em Mansabá. Algumas recordações conservo e já aqui falei
delas, sobretudo a cordialidade e camaradagem que senti da parte de
todos.
Durante muitos anos, como
muitos camaradas, voltei as costas à Guiné, quis esquecê-la e riscar da minha vida os dois anos que por lá passei. Há três anos, com a
descoberta do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e com a
premência causada pelos dias intermináveis dos primeiros meses da
reforma e o avançar da idade, comecei a sentir mais a necessidade de
fazer um balanço da minha vida pelo que tentei explicar e integrar
esses dois anos na corrente e sucessão dos outros de forma a reconciliar-me com a memória dos tempos de brasa da juventude.
Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de fevereiro de 2016
Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)