1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2014:
Queridos amigos,
Acabou-se a passeata, bonda de catedrais, museus, jardins, linhas ferroviárias e vinho alvarinho, bem bom para acompanhar mexilhões.
O estado de alma viandante era de candura e tranquilidade, deu para apreciar o que ia mudando no relevo à saída de Castela e Leão até chegar à verdejante Galiza, com rios e rias e muito casario em granito, parece que estamos em Trancoso ou Vila Nova de Cerveira.
Uma passeata para conhecer alguns dos grandes contrastes do Norte de Espanha. E percorrer caminhos por onde andaram os bisavós e os avós dos portugueses.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (14)
A Galiza, do interior, no rio Minho, até ao Atlântico, Vigo
Beja Santos
Na fase dos preparativos da viagem, decidi que não queria fazer um estirão entre León e um local de regresso, até pensei em Salamanca e entrar em Miranda do Douro, tudo impensável: as ligações ferroviárias eram remotas ou impossíveis. E atraiu-me o nome do lugar e a imagem do colossal mosteiro: Monforte de Lemos. Foi este o ponto de passagem escolhido, como se andasse a viajar de mala posta. A viagem de comboio ajuda a esclarecer o que distingue o termo de Castela e Leão desta Galiza verdejante, Terras de Lemos, mais a mais sofreram a ocupação napoleónica, logo me mostrei solidário. Nem pensei duas vezes se este magnífico edifício e a elogiada ponte de Monforte, atribuída aos romanos, toda ela graciosa com as suas belas arcadas ficariam perto. Pois enganei-me. Desembarquei ao lusco-fusco, a arquitetura pareceu-me monótona, muito cimento em carne viva, disseram-me que o albergue era um pouco para lá do sol-posto, segui por passeios monótonos e silenciosos até chegar a uma granja que deve ter tido um passado com alguma sumptuosidade. Pelo caminho, ia rindo para mim, então não é que o mosteiro não fica lá no alto, e eu a julgar que me era acessível, lá dar um salto? É bem-feita, faz perguntas antes de fazer turismo, aprende de uma vez. O estômago a bater horas, no ar elétrico escapuliam-se trovões, indicaram-me a dedo um antro iluminado, ali me apresentei e me banqueteei com uma canja de aletria, pimentos assados e um pratinho de cozido à galega, que tanto aprecio. Adormeci arregalado, e pelas matinas apanhei o comboio.
Aqui está Tui e a sua fabulosa catedral, que se prende com a nossa História, é um regalo para os olhos sobretudo para quem vive em Valença, é panorama obrigatório. Passa-se de comboio resvés, fico sempre furioso pois todas as vezes que vou até Compostela não há meio de aqui andarilhar, e quanto lamento.
Saí da Galiza interior e não lhe tomei o gosto, vi água abundante serpenteando ao lado do caminho-de-ferro, sente-se que estamos próximos do Minho, não pela arquitetura mas pelos solos, pela exuberância do verde e por aqueles vinhedos de alvarinho. Ontem à noite bebi um alvarinho de nome Martim Codax, no rótulo lá vinha um poema, uma cantiga de amigo, está ali um dos pais da nossa língua. Viva o alvarinho! E cheguei a Vigo, o mar está próximo, vou já arrumar os trastes e aproveitar o dia. À cautela, deixo-vos um registo da chamada arte pública de Vigo, bem curiosa por sinal:
Deambulando pela Porta do Sol, perguntei-me o que há de ícone neste “O Sireno”, talvez um homem-peixe ou peixe voador, ninguém desconhece que Vigo é cidade piscatória, um peso-pesado. Depois, na Praça de Espanha encontrei este grupo escultórico “Os cavalos”, não sei o que se homenageia, importa não esquecer que nem tudo é mar por aqui, bem próximo há extensos olivais, quem contempla a cidade a partir do Monte do Castro desfruta a impressionante baía de Vigo, que noutras perspetivas até parece criar a ilusão que estamos a ver uma ilha, como estar na Horta e ver o Pico, ou coisa parecida. E descendo até ao porto encontrei mais esta arte pública, parece um gigante afocinhado, enfim é arte pública que enche o olho e corta a monotonia, não sei se há mais substância.
É domingo, descubro rapidamente que não vale a pena procurar museus, fecham às duas da tarde e outros nem abrem. Mas tenho sorte quando passo pela Fundação Barrié, está ali patente uma prodigiosa exposição intitulada “Compañeiros de oficio”, nome dado por Le Corbusier aos velhos artesãos da construção, é uma exposição que pretende refletir sobre o papel de uma humilde arquitetura anónima utilizada como referente na obra de grande nomes da arquitetura contemporânea, caso de Mies van der Rohe, Alvar Aalto, Alejandro de la Sota, Siza Vieira, Souto de Moura ou Glen Murcutt. Para mim foi uma delícia percorrer séculos e ver materiais que chegaram ao nosso tempo, relacionados com o meio e o clima e que levaram génios da arquitetura a compreender que o génio do povo não lhes é inferior.
Saio consolado (como se diz nos Açores) agora vou até ao casco histórico, passo pelo Instituto Camões em pedra e granito, passo por um belo jardim paralelo ao porto, não vou sair daqui sem comer peixe. Numa esplanada, pedi uma sopa de cebola, uns mexilhões e bom naco de tortilha, lambo a beiça com alvarinho, que bom é a vida de turista! Agora é passear à beira-mar, ainda estive tentado a tomar um barco até às ilhas Cíes, situadas à entrada de ria de Vigo, e que formam parte do Parque Nacional das Ilhas Atlânticas. Não, quero algo de mais prosaico, apanho um ferryboat e vou até Cangas, no outro extremo. E não me arrependi, e daqui vos deixo as últimas imagens:
Sei muito bem que não há aqui nada de deslumbrante, imagens de porto a remeter para outra localidade são aos milhões. E o passeio marítimo em Cangas, avistando Vigo ao longe também não tem nada de transcendente. Mas o ânimo era de muitíssima boa disposição, caminhava-se para o termo de uma passeata encetada em Bilbau, estou de barriga regalada, pois uma boa viagem deve sempre cruzar o olhar entre a civilização e a cultura, dar tempo a contemplar a natureza, descobrir preciosidades onde o chamado senso-comum adverte que há mais monotonia e vulgaridade que grandes surpresas.
Tudo o que se começa tem o seu acabamento. Janto umas tapas, adormeço seráfico, é preciso partir bem cedo de Vigo para o Porto. É uma bonita despedida da Galiza, e depois passamos para Portugal, qual monotonia, viajamos perto do rio Lima, tudo luxuriante, até avistei o Casino Afifense, e num tiro se chegou à Campanhã, daqui houve nome de Portugal, já estou a avistar Portus Callus. Agora sigo para Lisboa. Chegou o momento azado de começar a pensar em nova viagem: que tal o sul de Itália? E conhecer o Montenegro? E visitar finalmente a Irlanda? Ou passear-me por Bruxelas, que conheço menos mal? Logo se vê. Depois dou notícias. Ponto final.
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Nota do editor
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Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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quarta-feira, 29 de outubro de 2014
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Guiné 63/74 - P13780: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (13): Em Castela-e-Leão, para me prostrar em duas catedrais assombrosas
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2014:
Queridos amigos,
A magnificência destas catedrais não faz perder de vista como a nossa história tem aqui as suas raízes, há que regressar para visitar Segóvia e Ávila, Salamanca e Valhadolid.
As catedrais de Burgos e Leão são muitíssimo diferentes, Burgos é o fausto extremo, a opulência com marcas de muito bom gosto; León é o somatório de um espaço airoso que aloja quilómetros de vitrais, estão entre os mais belos da humanidade.
Senti-me compensado e decidido a regressar aos solos dos avós de Portugal.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (13)
Em Castela-e-Leão, para me prostrar em duas catedrais assombrosas
Beja Santos
Sai-se de Logroño, já não há mais o Ebro, depois de Miranda de Ebro, vamos a caminho da região mais extensa da União Europeia, Castela e León, um pouco maior que Portugal, aqui o Douro pontifica, pela via ferroviária avistam-se cordilheiras ao fundo, aos poucos a vegetação torna-se rala, sigo para Burgos, mas depois do que li e das imagens que vi iria com igual vontade até Ávila, Salamanca, Segóvia ou Valhadolid, referências incontornáveis da nossa História, por aqui andaram reis e príncipes e diplomatas portugueses a fazer tratados ou a preparar casamentos. Paciência, tudo tem o seu tempo. Aqui começou a Espanha, aqui houve as capitais que antecederam a Madrid, aqui se erguem as inconfundíveis e gigantescas catedrais de Burgos e León, móbil desta visita. Zamora já conhecia, quando fui visitar a Miranda do Douro o Abel Rodrigues, da CCAÇ 12, com quem convivi e fiz estima em Bambadinca, levou-me a Zamora expressamente para visitar a catedral e as faustosas tapeçarias flamengas. A estação ferroviária fica a alguma distância de Burgos, impôs-se uma viagem de táxi, arrumei os pertences e ala que se faz tarde, a partir de agora a cidade está por minha conta, amanhã de manhã, por inteiro, será a visita da catedral. Começo pelo passeio de Espolón, virei à esquerda depois de passar pelo monumento ao Cid, cujos restos mortais e os de Jimena, estão debaixo da fabulosa abóbada da catedral. E paro no Arco de Santa Maria, vou aproveitar a última luz para ficar com a sua imagem.
Dizem os livros que é o arco mais bonito da cidade, encerra um salão de exposições e um museu de farmácia. No seu interior, que contém excelente artesanato e estuques mudéjares, esteve instalado o Concelho de Burgos até ao século XVIII. E parti para a catedral, àquela hora começava um concerto na Plaza Mayor, fui pelas ruas laterais, as paredes gigantescas da catedral estão à mostra, já sei que amanhã vou entrar pela Porta Real ou do Perdão, com o seu magnífico frontão, um conjunto flanqueado por altas torres que terminam em agulhas finas. Estou embasbacado, é pesado e leve, é denso e diáfano, é desmesurado e íntimo.
Desculpem a imagem atabalhoada, cortei uma das agulhas, trata-se de uma porta lateral, não é a Porta Real, não posso perder tempo, está cada vez mais escuro, vou circundar a ver se apanho uma outra boa imagem.
O templo religioso, Património da Humanidade desde 1984, é simétrico, ao longo dos séculos evolui-se do gótico para o plateresco, enxertaram-se capelas, abriram-se e fecharam-se portas. Gostei muito desta torre, confrontada com património urbano civil, não sei porquê lembrei-me da Sé de Braga, associação disparatada, não faz mal, esta imponência a caminho dos céus será a última imagem do dia. Mas não foi, vi ali ao pé uma fonte, devia ter matado a sede a muito peregrino, ao longo dos séculos, ainda estamos na rota para Santiago, gosto muito da rusticidade das figuras:
Esta fonte poligonal atraiu-me pela conjugação feliz com o tardo-gótico como pano de fundo. Não há turistas, a esta hora devem estar a encaminhar-se para os comedouros, aqui pontifica a morcela de arroz, também estou interessado em prová-la.
Venho com o tempo contado, há ainda que tomar um táxi até à estação, o comboio para Leão parte às 13h30, antes de entrar pela Porta Real cirandei e captei este ângulo das torres, são imponentes de onde quer que se avistem. E agora vou encafuar-me no tesouro mais valioso de Burgos.
Não fosse eu um tosco fotógrafo amador e teria captado esta extraordinária cúpula, um dos pontos fundamentais da visita. Se acaso o leitor acreditar no que lhe digo é certo e seguro que numa das suas próximas saídas virá até aqui. Por fora, já se viu que este maciço é flanqueado por altas torres, por dentro este edifício gótico tem por base a cruz latina, de nave transversal e três longitudinais e dezanove capelas, um cadeiral soberbo que tem o grave senão de cortar a perspetiva ao viandante que se posiciona na entrada e que supõe que toda aquela majestade só ganharia com o absoluto desafogo, são assim as coisas da ostentação. É pena não poder registar imagens, esta velha câmara tem o flash proibido. Já me deliciei com o “Papa-moscas”, personagens do mecanismo de relojoaria, depois entrei no golfão dos sepulcros, retábulos, dentro e fora das capelas, sentei-me extasiado na capela do Contestável, dedicada a Pedro Fernández de Velasco, Condestável de Castela, detive-me na Escadaria Dourada e bem estiquei o pescoço para ver se não perdia detalhe da abóbada com a estrela de oito bicos, filigrana em pedra nunca vi assim. Está na hora de partir, saí zonzo de tanto esplendor e antes de rumar para o hotel apanhei esta igreja ali ao lado, parece que íamos ter cerimónia:
Lembrou-me uma igreja italiana que vi em Florença, mas o que me impressionou foi estar ali bem pertinho da catedral e ter esta escadaria boa para penitentes, apropriada para quem vai pedir perdão. Adeus Burgos, hasta la próxima…
Não guardei impressão da viagem, seguramente que dormitei, tal o peso das emoções. Sei muito bem que saí da estação de Leão e encaminhei-me para o objetivo por uma avenida monumental, era uma tarde aprazível, a temperatura tem vindo ligeiramente a arrefecer. Fiz ao auto na Casa de Botines, ela aqui está, obra modernista do genial Antonio Gaudí, felizmente que não vinha distraído e sabia da existência desta joia arquitetónica. Desculpem a imagem não estar bem centrada, não há muito a esperar deste fotógrafo remendão, mas confessem que o Gaudí está sempre a pregar partidas.
Quando se fala da catedral de Leão a primeira referência vai para os 1800 metros quadrados, só tem rival com Chartres, perto de Paris. É uma injustiça não elogiar a sumptuosa fachada, aquelas torres que encimam as três entradas, uma delas corta a respiração, é um rendilhado de pedra, não sei porquê ocorreu-me pensar no Pórtico da Glória, em Compostela, os fiéis ficam pequeninos com o arrojo destes escopos e cinzéis que bordaram a entada principal. Felizmente que não há dezanove capelas para visitar, como em Burgos, só os vitrais dão imenso trabalho, sai-se daqui com a alma atestada, vou tirar as últimas fotografias, e despedir-me de Leão e da sua catedral, foi visita de médico.
Surpreende as tonalidades da pedra, o perceber-se sem qualquer dificuldade que há aqui diferentes intervenções ao longo dos séculos, deve ser um mistério bem guardado como esta grandiosidade de pedra, que terá custado uma fortuna na época foi feita em tempo recorde, coisa da fé dos homens. E antes de virar as costas a esta construção tão delicada e à imersão no banho de vitrais, não resisti a mais um pormenor escultórico desta faustosa entrada da catedral:
Simulei que tinha dons para regressar ao passado, supus que era assim que o crente medieval olhava a bíblia de pedra e entrava reconfortado no tempo. Mesmo que tenha suposto erradamente, esta obra-prima é um documento de fé empolgante. E digo adeus a Leão, sigo para a província de Lugo, vou até Monforte de Lemos, e de lá parto para Vigo. Depois conto.
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13738: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (12): Viagens pelo Norte de Espanha: Em Logroño, e já a pensar nas catedrais de Burgos e León
Queridos amigos,
A magnificência destas catedrais não faz perder de vista como a nossa história tem aqui as suas raízes, há que regressar para visitar Segóvia e Ávila, Salamanca e Valhadolid.
As catedrais de Burgos e Leão são muitíssimo diferentes, Burgos é o fausto extremo, a opulência com marcas de muito bom gosto; León é o somatório de um espaço airoso que aloja quilómetros de vitrais, estão entre os mais belos da humanidade.
Senti-me compensado e decidido a regressar aos solos dos avós de Portugal.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (13)
Em Castela-e-Leão, para me prostrar em duas catedrais assombrosas
Beja Santos
Sai-se de Logroño, já não há mais o Ebro, depois de Miranda de Ebro, vamos a caminho da região mais extensa da União Europeia, Castela e León, um pouco maior que Portugal, aqui o Douro pontifica, pela via ferroviária avistam-se cordilheiras ao fundo, aos poucos a vegetação torna-se rala, sigo para Burgos, mas depois do que li e das imagens que vi iria com igual vontade até Ávila, Salamanca, Segóvia ou Valhadolid, referências incontornáveis da nossa História, por aqui andaram reis e príncipes e diplomatas portugueses a fazer tratados ou a preparar casamentos. Paciência, tudo tem o seu tempo. Aqui começou a Espanha, aqui houve as capitais que antecederam a Madrid, aqui se erguem as inconfundíveis e gigantescas catedrais de Burgos e León, móbil desta visita. Zamora já conhecia, quando fui visitar a Miranda do Douro o Abel Rodrigues, da CCAÇ 12, com quem convivi e fiz estima em Bambadinca, levou-me a Zamora expressamente para visitar a catedral e as faustosas tapeçarias flamengas. A estação ferroviária fica a alguma distância de Burgos, impôs-se uma viagem de táxi, arrumei os pertences e ala que se faz tarde, a partir de agora a cidade está por minha conta, amanhã de manhã, por inteiro, será a visita da catedral. Começo pelo passeio de Espolón, virei à esquerda depois de passar pelo monumento ao Cid, cujos restos mortais e os de Jimena, estão debaixo da fabulosa abóbada da catedral. E paro no Arco de Santa Maria, vou aproveitar a última luz para ficar com a sua imagem.
Dizem os livros que é o arco mais bonito da cidade, encerra um salão de exposições e um museu de farmácia. No seu interior, que contém excelente artesanato e estuques mudéjares, esteve instalado o Concelho de Burgos até ao século XVIII. E parti para a catedral, àquela hora começava um concerto na Plaza Mayor, fui pelas ruas laterais, as paredes gigantescas da catedral estão à mostra, já sei que amanhã vou entrar pela Porta Real ou do Perdão, com o seu magnífico frontão, um conjunto flanqueado por altas torres que terminam em agulhas finas. Estou embasbacado, é pesado e leve, é denso e diáfano, é desmesurado e íntimo.
Desculpem a imagem atabalhoada, cortei uma das agulhas, trata-se de uma porta lateral, não é a Porta Real, não posso perder tempo, está cada vez mais escuro, vou circundar a ver se apanho uma outra boa imagem.
O templo religioso, Património da Humanidade desde 1984, é simétrico, ao longo dos séculos evolui-se do gótico para o plateresco, enxertaram-se capelas, abriram-se e fecharam-se portas. Gostei muito desta torre, confrontada com património urbano civil, não sei porquê lembrei-me da Sé de Braga, associação disparatada, não faz mal, esta imponência a caminho dos céus será a última imagem do dia. Mas não foi, vi ali ao pé uma fonte, devia ter matado a sede a muito peregrino, ao longo dos séculos, ainda estamos na rota para Santiago, gosto muito da rusticidade das figuras:
Esta fonte poligonal atraiu-me pela conjugação feliz com o tardo-gótico como pano de fundo. Não há turistas, a esta hora devem estar a encaminhar-se para os comedouros, aqui pontifica a morcela de arroz, também estou interessado em prová-la.
Venho com o tempo contado, há ainda que tomar um táxi até à estação, o comboio para Leão parte às 13h30, antes de entrar pela Porta Real cirandei e captei este ângulo das torres, são imponentes de onde quer que se avistem. E agora vou encafuar-me no tesouro mais valioso de Burgos.
Não fosse eu um tosco fotógrafo amador e teria captado esta extraordinária cúpula, um dos pontos fundamentais da visita. Se acaso o leitor acreditar no que lhe digo é certo e seguro que numa das suas próximas saídas virá até aqui. Por fora, já se viu que este maciço é flanqueado por altas torres, por dentro este edifício gótico tem por base a cruz latina, de nave transversal e três longitudinais e dezanove capelas, um cadeiral soberbo que tem o grave senão de cortar a perspetiva ao viandante que se posiciona na entrada e que supõe que toda aquela majestade só ganharia com o absoluto desafogo, são assim as coisas da ostentação. É pena não poder registar imagens, esta velha câmara tem o flash proibido. Já me deliciei com o “Papa-moscas”, personagens do mecanismo de relojoaria, depois entrei no golfão dos sepulcros, retábulos, dentro e fora das capelas, sentei-me extasiado na capela do Contestável, dedicada a Pedro Fernández de Velasco, Condestável de Castela, detive-me na Escadaria Dourada e bem estiquei o pescoço para ver se não perdia detalhe da abóbada com a estrela de oito bicos, filigrana em pedra nunca vi assim. Está na hora de partir, saí zonzo de tanto esplendor e antes de rumar para o hotel apanhei esta igreja ali ao lado, parece que íamos ter cerimónia:
Não guardei impressão da viagem, seguramente que dormitei, tal o peso das emoções. Sei muito bem que saí da estação de Leão e encaminhei-me para o objetivo por uma avenida monumental, era uma tarde aprazível, a temperatura tem vindo ligeiramente a arrefecer. Fiz ao auto na Casa de Botines, ela aqui está, obra modernista do genial Antonio Gaudí, felizmente que não vinha distraído e sabia da existência desta joia arquitetónica. Desculpem a imagem não estar bem centrada, não há muito a esperar deste fotógrafo remendão, mas confessem que o Gaudí está sempre a pregar partidas.
Quando se fala da catedral de Leão a primeira referência vai para os 1800 metros quadrados, só tem rival com Chartres, perto de Paris. É uma injustiça não elogiar a sumptuosa fachada, aquelas torres que encimam as três entradas, uma delas corta a respiração, é um rendilhado de pedra, não sei porquê ocorreu-me pensar no Pórtico da Glória, em Compostela, os fiéis ficam pequeninos com o arrojo destes escopos e cinzéis que bordaram a entada principal. Felizmente que não há dezanove capelas para visitar, como em Burgos, só os vitrais dão imenso trabalho, sai-se daqui com a alma atestada, vou tirar as últimas fotografias, e despedir-me de Leão e da sua catedral, foi visita de médico.
Surpreende as tonalidades da pedra, o perceber-se sem qualquer dificuldade que há aqui diferentes intervenções ao longo dos séculos, deve ser um mistério bem guardado como esta grandiosidade de pedra, que terá custado uma fortuna na época foi feita em tempo recorde, coisa da fé dos homens. E antes de virar as costas a esta construção tão delicada e à imersão no banho de vitrais, não resisti a mais um pormenor escultórico desta faustosa entrada da catedral:
Simulei que tinha dons para regressar ao passado, supus que era assim que o crente medieval olhava a bíblia de pedra e entrava reconfortado no tempo. Mesmo que tenha suposto erradamente, esta obra-prima é um documento de fé empolgante. E digo adeus a Leão, sigo para a província de Lugo, vou até Monforte de Lemos, e de lá parto para Vigo. Depois conto.
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13738: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (12): Viagens pelo Norte de Espanha: Em Logroño, e já a pensar nas catedrais de Burgos e León
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
Guiné 63/74 - P13738: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (12): Viagens pelo Norte de Espanha: Em Logroño, e já a pensar nas catedrais de Burgos e León
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2014:
Queridos amigos,
Prossegue a viagem pelo Norte de Espanha.
Tive o palpite que Logroño traria surpresas. E trouxe mesmo. Não está nas principais rotas turísticas, não compete com Granada, Sevilha, Ávila ou Toledo. Tem uma harmonia soberba entre a urbanização moderna e o casco histórico. O povo é simpático, os estrangeiros deambulam aos magotes, são os peregrinos de Santiago, vêm fazer os trilhos do caminho francês. A arquitetura religiosa é valiosíssima, há para aqui a imagem de um tímpano medieval que nos deixa assarapantados. E que deliciosos são os vinhos de Rioja!
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (12)
Em Logroño, e já a pensar nas catedrais de Burgos e León
Beja Santos
A viagem de Bilbau até Logroño faz-se lindamente de comboio, primeiro são os maciços pétreos, não sei se espinhaços ou se cordilheiras, são rochedos que às vezes intimidam o passageiro, parece que vão rolar lá das alturas. E quando toda esta pedra desaparece, o comboio anda na berma do Ebro, são campos extensos, nunca vi tanto milho, até que os vinhedos tomam conta da paisagem, abeiramo-nos da comunidade autónoma de La Rioja. Sai-se numa estação de caminho-de-ferro moderna e logo se entra em quilómetros de habitação, só mais tarde me apercebi do facto que a cidade de aproximadamente 160 mil habitantes mais que duplicou dos anos 1970 para cá. Arrumados os pertences, percorrem-se avenidas largas e sempre perguntando onde é o casco histórico, é esta a razão da visita, ver os peregrinos de Santiago de Compostela, procurar duas ruas afamadas em todo o mundo onde se comem tapas e se bebe o supremo néctar da região. O calor é sufocante, a temperatura inusual, a rondar os 30 graus. Começa-se a ver referências ao General Espartero, vê-se mesmo que é um ícone da terra. À noite fui retirar referências deste Baldomero Espartero, Príncipe de Vergara, Duque da Vitória, Duque de Morella, Conde de Luchana e Visconde de Banderas, Regente do Reino durante a menor idade de Isabel II, fixou a sua residência em Logroño e aqui morreu em 1879. Ainda não sei que no dia seguinte lhe vou visitar a casa onde terei uma das maiores surpresas desta viagem, o museu de La Rioja é surpreendente, depois direi porquê. Chegámos ao casco histórico e estamos na concatedral de Santa Maria de La Redonda, tem duas imponentes torres gémeas do século XVII, o interior é faustoso, e por detrás do altar podemos ver uma crucificação atribuída a Miguel Ângelo.
Entardece, já estou ambientado aos horários espanhóis, o estômago pode muito bem esperar pela hora da ceia, depois logo se vê o que há de tapas e de néctares de La Rioja. E vai-se deambulando até à igreja de São Bartolomeu, iniciada no século XII. O tímpano da fachada principal é esmagador, mais a mais esta construção tem uma excelente torre em estilo mudéjar. Meu Deus, que beleza de tímpano, vejam lá se eu não tenho razão, se este estilo protogótico não conclama o sopro do divino:
E agora a última visitação, antes de ir aos comes e bebes. Chama-se Igreja Imperial de Santa Maria de Palacio, construída entre os séculos XII e XIII, estava em obras, encerrada, fica aqui a imagem da torre sineira, mais imponência não se pode ter:
É no casco histórico de Logroño à noite que se percebe a intensidade da sua restauração noturna. Há duas ruas que constam dos roteiros dos viajantes de todo o mundo: a San Juan e a Laurel. O movimento é febril, as bodegas iluminadas e ruidosas prometendo tapas e pinchos a preço módico, tal como o preço do Rioja a copo. É uma tentação não andar a petiscar tortilha, croquetes, coisas do fumeiro, daquelas lojas emanam odores convidativos, as ardósias que nos convocam com iguarias e preços de ucharia são fartas. E por ali se anda, é uma deambulação de feira, nada de tão belo e inesperado no senso gastronómico se suspeitava. E aqui fica a recordação de uma dessas ruas icónicas, para que conste dos possíveis roteiros de quem amavelmente acompanha esta viagem:
Agora vou à deita, o tempo finalmente esfriou, nem ligo o televisor, vai por aqui uma histeria descomunal com as manifestações da Catalunha, vi em Bilbau muitas bandeiras da Escócia, felizmente que no nosso terrunho só somos surpreendidos episodicamente pelas diatribes do Alberto João Jardim, quando quer desviar as atenções. Começo o dia pelo museu de Rioja, depois as muralhas e as pontes, a seguir comida de Rioja e regresso à estação ferroviária, a meio da tarde sigo para Burgos.
É um pequeno museu, mas com uma organização primorosa. Aproveita a estrutura do Palácio de Espartero, aqui viveu o tal ícone com a sua mulher Jacinta Martínez Sicilia, depois de se ter retirado definitivamente da política em 1856. O museu foi ampliado em 2003, tem salas dedicadas à Pré-História, ao período da romanização de Rioja, chega à pintura dos séculos XIX e começo do século XX. Impressionou-me a museografia, sugestiva, didática, apelativa, devorei tudo do princípio ao fim. Fixei-me numa pintura antiga, num quadro de São Francisco e o irmão Leão, saído da oficina de El Greco e acima de tudo, à má fila, captei um São João Baptista do século XIII, que me encheu as medidas:
Volto às ruas de Logroño, captei mais imagens, uma delas ficou muito boa, a da fachada do museu. Passeei-me de novo junto da igreja de São Bartolomeu, desta vez consegui apanhar a torre mudéjar, num românico sóbrio, do mais bonito que vi. Segui para a rua Vieja, a zona dos peregrinos, passei pelo Centro de Cultura da Rioja, uma intervenção moderníssima num edifício que me pareceu às moscas, passei a ponte de ferro sobre o Ebro, do lado de lá desfruta-se uma bela panorâmica de Logroño. O tempo passa, o estômago está a dar horas, Logroño convenceu-me, small is beautiful, recupero os meus pertences, sigo para a estação, vejo mais peregrinos estrangeiros que demandam Santigo, agora vou a ler o que me espera em Burgos e Léon. Depois conto, está prometido. E aqui seguem as últimas imagens de Logroño, seguramente que convenceram os últimos vacilantes de que Logroño é um refrigério para a alma e para os olhos:
Agora é que me despeço mesmo, ficaria mal comigo se não vos mostrasse a fachada de uma casa senhorial na rua Vieja, temos a mania que só cá é que deixamos arquitetura esplendorosa em ruínas, pois este palácio aguarda melhores dias, resignado. Oxalá que na próxima visita a Logroño ele já esteja reabilitado, nem que seja um hotel de charme… Até à próxima!
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13708: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (11): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau é muito Bilbau, e ainda bem. E sigo para Logroño
Queridos amigos,
Prossegue a viagem pelo Norte de Espanha.
Tive o palpite que Logroño traria surpresas. E trouxe mesmo. Não está nas principais rotas turísticas, não compete com Granada, Sevilha, Ávila ou Toledo. Tem uma harmonia soberba entre a urbanização moderna e o casco histórico. O povo é simpático, os estrangeiros deambulam aos magotes, são os peregrinos de Santiago, vêm fazer os trilhos do caminho francês. A arquitetura religiosa é valiosíssima, há para aqui a imagem de um tímpano medieval que nos deixa assarapantados. E que deliciosos são os vinhos de Rioja!
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (12)
Em Logroño, e já a pensar nas catedrais de Burgos e León
Beja Santos
A viagem de Bilbau até Logroño faz-se lindamente de comboio, primeiro são os maciços pétreos, não sei se espinhaços ou se cordilheiras, são rochedos que às vezes intimidam o passageiro, parece que vão rolar lá das alturas. E quando toda esta pedra desaparece, o comboio anda na berma do Ebro, são campos extensos, nunca vi tanto milho, até que os vinhedos tomam conta da paisagem, abeiramo-nos da comunidade autónoma de La Rioja. Sai-se numa estação de caminho-de-ferro moderna e logo se entra em quilómetros de habitação, só mais tarde me apercebi do facto que a cidade de aproximadamente 160 mil habitantes mais que duplicou dos anos 1970 para cá. Arrumados os pertences, percorrem-se avenidas largas e sempre perguntando onde é o casco histórico, é esta a razão da visita, ver os peregrinos de Santiago de Compostela, procurar duas ruas afamadas em todo o mundo onde se comem tapas e se bebe o supremo néctar da região. O calor é sufocante, a temperatura inusual, a rondar os 30 graus. Começa-se a ver referências ao General Espartero, vê-se mesmo que é um ícone da terra. À noite fui retirar referências deste Baldomero Espartero, Príncipe de Vergara, Duque da Vitória, Duque de Morella, Conde de Luchana e Visconde de Banderas, Regente do Reino durante a menor idade de Isabel II, fixou a sua residência em Logroño e aqui morreu em 1879. Ainda não sei que no dia seguinte lhe vou visitar a casa onde terei uma das maiores surpresas desta viagem, o museu de La Rioja é surpreendente, depois direi porquê. Chegámos ao casco histórico e estamos na concatedral de Santa Maria de La Redonda, tem duas imponentes torres gémeas do século XVII, o interior é faustoso, e por detrás do altar podemos ver uma crucificação atribuída a Miguel Ângelo.
Entardece, já estou ambientado aos horários espanhóis, o estômago pode muito bem esperar pela hora da ceia, depois logo se vê o que há de tapas e de néctares de La Rioja. E vai-se deambulando até à igreja de São Bartolomeu, iniciada no século XII. O tímpano da fachada principal é esmagador, mais a mais esta construção tem uma excelente torre em estilo mudéjar. Meu Deus, que beleza de tímpano, vejam lá se eu não tenho razão, se este estilo protogótico não conclama o sopro do divino:
E agora a última visitação, antes de ir aos comes e bebes. Chama-se Igreja Imperial de Santa Maria de Palacio, construída entre os séculos XII e XIII, estava em obras, encerrada, fica aqui a imagem da torre sineira, mais imponência não se pode ter:
É no casco histórico de Logroño à noite que se percebe a intensidade da sua restauração noturna. Há duas ruas que constam dos roteiros dos viajantes de todo o mundo: a San Juan e a Laurel. O movimento é febril, as bodegas iluminadas e ruidosas prometendo tapas e pinchos a preço módico, tal como o preço do Rioja a copo. É uma tentação não andar a petiscar tortilha, croquetes, coisas do fumeiro, daquelas lojas emanam odores convidativos, as ardósias que nos convocam com iguarias e preços de ucharia são fartas. E por ali se anda, é uma deambulação de feira, nada de tão belo e inesperado no senso gastronómico se suspeitava. E aqui fica a recordação de uma dessas ruas icónicas, para que conste dos possíveis roteiros de quem amavelmente acompanha esta viagem:
Agora vou à deita, o tempo finalmente esfriou, nem ligo o televisor, vai por aqui uma histeria descomunal com as manifestações da Catalunha, vi em Bilbau muitas bandeiras da Escócia, felizmente que no nosso terrunho só somos surpreendidos episodicamente pelas diatribes do Alberto João Jardim, quando quer desviar as atenções. Começo o dia pelo museu de Rioja, depois as muralhas e as pontes, a seguir comida de Rioja e regresso à estação ferroviária, a meio da tarde sigo para Burgos.
É um pequeno museu, mas com uma organização primorosa. Aproveita a estrutura do Palácio de Espartero, aqui viveu o tal ícone com a sua mulher Jacinta Martínez Sicilia, depois de se ter retirado definitivamente da política em 1856. O museu foi ampliado em 2003, tem salas dedicadas à Pré-História, ao período da romanização de Rioja, chega à pintura dos séculos XIX e começo do século XX. Impressionou-me a museografia, sugestiva, didática, apelativa, devorei tudo do princípio ao fim. Fixei-me numa pintura antiga, num quadro de São Francisco e o irmão Leão, saído da oficina de El Greco e acima de tudo, à má fila, captei um São João Baptista do século XIII, que me encheu as medidas:
Volto às ruas de Logroño, captei mais imagens, uma delas ficou muito boa, a da fachada do museu. Passeei-me de novo junto da igreja de São Bartolomeu, desta vez consegui apanhar a torre mudéjar, num românico sóbrio, do mais bonito que vi. Segui para a rua Vieja, a zona dos peregrinos, passei pelo Centro de Cultura da Rioja, uma intervenção moderníssima num edifício que me pareceu às moscas, passei a ponte de ferro sobre o Ebro, do lado de lá desfruta-se uma bela panorâmica de Logroño. O tempo passa, o estômago está a dar horas, Logroño convenceu-me, small is beautiful, recupero os meus pertences, sigo para a estação, vejo mais peregrinos estrangeiros que demandam Santigo, agora vou a ler o que me espera em Burgos e Léon. Depois conto, está prometido. E aqui seguem as últimas imagens de Logroño, seguramente que convenceram os últimos vacilantes de que Logroño é um refrigério para a alma e para os olhos:
Agora é que me despeço mesmo, ficaria mal comigo se não vos mostrasse a fachada de uma casa senhorial na rua Vieja, temos a mania que só cá é que deixamos arquitetura esplendorosa em ruínas, pois este palácio aguarda melhores dias, resignado. Oxalá que na próxima visita a Logroño ele já esteja reabilitado, nem que seja um hotel de charme… Até à próxima!
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13708: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (11): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau é muito Bilbau, e ainda bem. E sigo para Logroño
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Guiné 63/74 - P13708: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (11): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau é muito Bilbau, e ainda bem. E sigo para Logroño
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2014:
Queridos amigos,
A viagem realizou-se no início de Setembro, penso que estão esquecidos mas eram dias acalorados.
Cheguei a Bilbau com 36º, não esmoreci, não se peregrina na expetativa de um puro deleite com o Guggenheim, não há caloraça na bolanha que nos intimide. E Bilbau é mesmo Bilbau, o diálogo entre o antigo e o moderno é ousado e provocante, a cidade está bem emoldurada, as colinas dão-lhe graciosidade, passeei-me com a recordação de uma fotografia de Robert Capa, datada de 1937, Bilbau vai ser bombardeada, todos olham para o céu, uma mãe aperta a mão da filha, a Guerra Civil foi implacável com o País Basco. Adiante.
Foi viagem inesquecível. É bom partilhá-la convosco.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (11)
Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau é muito Bilbau, e ainda bem. E sigo para Logroño
Beja Santos
Braque é a recordação pictórica mais impressiva que trouxe do Guggenheim Bilbau. Trata-se de uma grande retrospetiva organizada por ocasião do 50º aniversário da morte do grande artista (1882-1963), foi primeiramente apresentada o Grand Palais de Paris, no Outono de 2013, cobre todas as etapas da trajetória de um dos artistas mais importantes do século XX. Criador, juntamente com Picasso e Juan Gris, do cubismo nos seus diferentes matizes, iniciador dos papiers collés, Braque veio a centrar a sua obra posterior na exploração metódica da natureza morta e da paisagem. Continua a ser considerado o pintor francês por excelência, herdeiro da tradição clássica e percursor da abstração do Pós-Guerra. Exposição gigante, impossível a digestão em horas de tão faustoso banquete, abarca o seu génio prolífico, desde o período fauvista até à sua obra tardia, parece que se conseguiu concentrar neste evento prodigioso o que nos legou de mais representativo, incluindo a sua passagem pelas artes cénicas, pela escultura, até às paisagens aparentemente rudimentares do final da sua vida. Recordo que ando com um singela câmara, não posso usar o flash e é por isso que o que vos mostro é uma mera reprodução do que podem encontrar no site do Guggenheim, mas eu devorei tudo com estes olhos que a terra há de comer, saí dali alquebrado mas radioso, de alma plena. Bonda de adjetivos, abram-se as alas para Monsieur Braque, vejamos primeiro uma natureza morta, de 1934:
Para aguçar o apetite de quem segue esta viagem, esta exposição reúne qualquer coisa como 250 peças, entre óleos, aguarelas, esculturas e outros, até material documental que esclarece outros aspetos da sua atividade, como a colaboração que teve com Picasso, a estreita relação da sua arte com a música, a cumplicidade com poetas e alguns intelectuais renomados do seu tempo. Foi também a ocasião para ver fotografias da obra de Braque da autoria de Man Ray ou Henri Cartier-Bresson. E põe-se em sequência três imagens que vão do fauvismo ao cubismo, digam lá se Monsieur Braque não ultrapassou todas as vanguardas.
É altura de sair do Guggenheim Bilbau onde pontifica o titânio como se fosse uma metalização sob a forma de escamas de peixe, estou rendido a este extraordinário edifício, a tudo o que de ousado e atrevido ele pode significar, estou deleitado com o último grande museu do século XX. E agora vou para o casco velho de Bilbau.
Contorno o rio, agora tenho tempo para ver a ponte de Santigo Calatrava e detenho-me mesmo em frente a uma estação de metro desenhado por Norman Foster, aproveitou uma velha fachada e gerou uma lógica sublime entre o antigo e o prenúncio de futuro. Atravesso uma ponte e vou até à zona antiga. Paro no Arenal, um amplo passeio que acolhe muitas das atividades urbanas. Toda esta zona teve de ser reabilitada depois das inundações de 1983, é aqui que se ergue o Teatro Arriaga. É lindo que se farta, por favor, confiram se vale a pena ou não vir aqui ouvir música, teatro ou ópera, desculpem a imagem truncada:
Entrei na zona antiga, vinha inicialmente com vontade de visitar o museu do povo basco, acabei por me desconcentrar em certos pormenores e ainda bem. Vejam esta fonte, um resquício do século XIX, pois está lá claramente escrito que foi erigida (ou refeita?) em 1800:
E sigo para o mercado, é obra de grande requalificação, gostei, passei-me entre talhos e peixarias, estancos de especialidades e de bons vinhos, os olhos também comem, fica-se com a sensação que os bilbaínos não se tratam mal com as coisas da mesa e que gostam de espaços iluminados com vitrais vistosos:
Imaginem que na montra de uma retrosaria, pasme-se, encontrei este cartaz anti-touradas, achei-o profundamente original, é daquelas coisas que nos levam a acreditar que uma imagem vale por mil palavras:
E agora vou à última etapa antes de partir de comboio para Logroño, o Museu de Belas Artes de Bilbau, alguém me disse que foi impecavelmente renovado, dá gosto ir conversar com os primitivos catalães, os flamengos, os piedosos pintores espanhóis do Século de Ouro, há lá obras de Ribera, Murillo e Zurbarán, mas de gente muito mais próxima e que tanto aprecio, como Bacon, Chillida e Tàpies. A fachada, envidraçada, tem pouco para contar. Mas um pormenor me tocou, um diálogo entre o antigo e o remodelado, uma boa escultura ergue-se, voadora, e sobrepõe-se aos painéis de vidro, impressionou-me:
O que me parecia uma visita para encarar de frente algumas obras-primas como a morte de Lucrécia, de Lucas Cranach, o Velho, transformou-se num festival em torno da arte japonesa e do japonismo, surpreendente. O museu alberga uma impressionante coleção, a chamada coleção Palacio de arte oriental, mais de 200 peças, foi um festival à volta de pinturas, estampas, sabres, caixas de todos os tamanhos, objetos Namban e cerâmica para a cerimónia do chá. Algumas destas peças são excecionais, digo-vos eu. Está na hora de partir, da estação ferroviária de Bilbau para Logroño, a capital de La Rioja, são quase três horas vendo e apreciando espinhaços e cordilheiras, e muitos quilómetros de vinhedo à beira do rio Ebro. Será um belo passeio, digo-vos eu. Mas não resisti, antes de partir, em registar este espetacular vitral, não há muito restaurado, vem do tempo em que a dignidade do trabalho era cantada e exaltada nos espaços públicos, era arte pública para desfrutar e respeitar a dignidade do trabalho de um povo. Como podem ver:
Ainda não vos disse mas arrefeceu de ontem para hoje, estão só 30 graus, o melhor é andar pela sombra, foi o que fiz pelos jardins de Bilbau, bem floridos e mantidos, e agora vou de abalada, nem pressinto a belíssima viagem que me espera e o prazer de visitar Logroño, tão agradável surpresa parecia-me impensável.
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13674: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (10): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável Museu Guggenheim
Queridos amigos,
A viagem realizou-se no início de Setembro, penso que estão esquecidos mas eram dias acalorados.
Cheguei a Bilbau com 36º, não esmoreci, não se peregrina na expetativa de um puro deleite com o Guggenheim, não há caloraça na bolanha que nos intimide. E Bilbau é mesmo Bilbau, o diálogo entre o antigo e o moderno é ousado e provocante, a cidade está bem emoldurada, as colinas dão-lhe graciosidade, passeei-me com a recordação de uma fotografia de Robert Capa, datada de 1937, Bilbau vai ser bombardeada, todos olham para o céu, uma mãe aperta a mão da filha, a Guerra Civil foi implacável com o País Basco. Adiante.
Foi viagem inesquecível. É bom partilhá-la convosco.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (11)
Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau é muito Bilbau, e ainda bem. E sigo para Logroño
Beja Santos
Braque é a recordação pictórica mais impressiva que trouxe do Guggenheim Bilbau. Trata-se de uma grande retrospetiva organizada por ocasião do 50º aniversário da morte do grande artista (1882-1963), foi primeiramente apresentada o Grand Palais de Paris, no Outono de 2013, cobre todas as etapas da trajetória de um dos artistas mais importantes do século XX. Criador, juntamente com Picasso e Juan Gris, do cubismo nos seus diferentes matizes, iniciador dos papiers collés, Braque veio a centrar a sua obra posterior na exploração metódica da natureza morta e da paisagem. Continua a ser considerado o pintor francês por excelência, herdeiro da tradição clássica e percursor da abstração do Pós-Guerra. Exposição gigante, impossível a digestão em horas de tão faustoso banquete, abarca o seu génio prolífico, desde o período fauvista até à sua obra tardia, parece que se conseguiu concentrar neste evento prodigioso o que nos legou de mais representativo, incluindo a sua passagem pelas artes cénicas, pela escultura, até às paisagens aparentemente rudimentares do final da sua vida. Recordo que ando com um singela câmara, não posso usar o flash e é por isso que o que vos mostro é uma mera reprodução do que podem encontrar no site do Guggenheim, mas eu devorei tudo com estes olhos que a terra há de comer, saí dali alquebrado mas radioso, de alma plena. Bonda de adjetivos, abram-se as alas para Monsieur Braque, vejamos primeiro uma natureza morta, de 1934:
Para aguçar o apetite de quem segue esta viagem, esta exposição reúne qualquer coisa como 250 peças, entre óleos, aguarelas, esculturas e outros, até material documental que esclarece outros aspetos da sua atividade, como a colaboração que teve com Picasso, a estreita relação da sua arte com a música, a cumplicidade com poetas e alguns intelectuais renomados do seu tempo. Foi também a ocasião para ver fotografias da obra de Braque da autoria de Man Ray ou Henri Cartier-Bresson. E põe-se em sequência três imagens que vão do fauvismo ao cubismo, digam lá se Monsieur Braque não ultrapassou todas as vanguardas.
É altura de sair do Guggenheim Bilbau onde pontifica o titânio como se fosse uma metalização sob a forma de escamas de peixe, estou rendido a este extraordinário edifício, a tudo o que de ousado e atrevido ele pode significar, estou deleitado com o último grande museu do século XX. E agora vou para o casco velho de Bilbau.
Contorno o rio, agora tenho tempo para ver a ponte de Santigo Calatrava e detenho-me mesmo em frente a uma estação de metro desenhado por Norman Foster, aproveitou uma velha fachada e gerou uma lógica sublime entre o antigo e o prenúncio de futuro. Atravesso uma ponte e vou até à zona antiga. Paro no Arenal, um amplo passeio que acolhe muitas das atividades urbanas. Toda esta zona teve de ser reabilitada depois das inundações de 1983, é aqui que se ergue o Teatro Arriaga. É lindo que se farta, por favor, confiram se vale a pena ou não vir aqui ouvir música, teatro ou ópera, desculpem a imagem truncada:
Entrei na zona antiga, vinha inicialmente com vontade de visitar o museu do povo basco, acabei por me desconcentrar em certos pormenores e ainda bem. Vejam esta fonte, um resquício do século XIX, pois está lá claramente escrito que foi erigida (ou refeita?) em 1800:
E sigo para o mercado, é obra de grande requalificação, gostei, passei-me entre talhos e peixarias, estancos de especialidades e de bons vinhos, os olhos também comem, fica-se com a sensação que os bilbaínos não se tratam mal com as coisas da mesa e que gostam de espaços iluminados com vitrais vistosos:
Imaginem que na montra de uma retrosaria, pasme-se, encontrei este cartaz anti-touradas, achei-o profundamente original, é daquelas coisas que nos levam a acreditar que uma imagem vale por mil palavras:
E agora vou à última etapa antes de partir de comboio para Logroño, o Museu de Belas Artes de Bilbau, alguém me disse que foi impecavelmente renovado, dá gosto ir conversar com os primitivos catalães, os flamengos, os piedosos pintores espanhóis do Século de Ouro, há lá obras de Ribera, Murillo e Zurbarán, mas de gente muito mais próxima e que tanto aprecio, como Bacon, Chillida e Tàpies. A fachada, envidraçada, tem pouco para contar. Mas um pormenor me tocou, um diálogo entre o antigo e o remodelado, uma boa escultura ergue-se, voadora, e sobrepõe-se aos painéis de vidro, impressionou-me:
O que me parecia uma visita para encarar de frente algumas obras-primas como a morte de Lucrécia, de Lucas Cranach, o Velho, transformou-se num festival em torno da arte japonesa e do japonismo, surpreendente. O museu alberga uma impressionante coleção, a chamada coleção Palacio de arte oriental, mais de 200 peças, foi um festival à volta de pinturas, estampas, sabres, caixas de todos os tamanhos, objetos Namban e cerâmica para a cerimónia do chá. Algumas destas peças são excecionais, digo-vos eu. Está na hora de partir, da estação ferroviária de Bilbau para Logroño, a capital de La Rioja, são quase três horas vendo e apreciando espinhaços e cordilheiras, e muitos quilómetros de vinhedo à beira do rio Ebro. Será um belo passeio, digo-vos eu. Mas não resisti, antes de partir, em registar este espetacular vitral, não há muito restaurado, vem do tempo em que a dignidade do trabalho era cantada e exaltada nos espaços públicos, era arte pública para desfrutar e respeitar a dignidade do trabalho de um povo. Como podem ver:
Ainda não vos disse mas arrefeceu de ontem para hoje, estão só 30 graus, o melhor é andar pela sombra, foi o que fiz pelos jardins de Bilbau, bem floridos e mantidos, e agora vou de abalada, nem pressinto a belíssima viagem que me espera e o prazer de visitar Logroño, tão agradável surpresa parecia-me impensável.
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13674: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (10): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável Museu Guggenheim
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
Guiné 63/74 - P13674: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (10): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável Museu Guggenheim
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2014:
Queridos amigos,
Foi como meter o Rossio na Betesga. Surpreendentemente, teve um final feliz. Aterra-se em Bilbau, no dia seguinte parte-se para Logroño, a capital de La Rioja, e no dia seguinte Burgos, mais adiante Léon, depois Monforte de Lemos e Vigo até ao Porto-Campanhã.
Não podia ter enchido mais as medidas com aquele pedacinho do Norte de Espanha, que inteiramente desconhecia. E confirma-se que por melhor que se prepare o indivíduo para compreender o outro, para amortecer as novas sensações, etc. e tal, há sempre um denominador que acaba por ganhar – a surpresa. É a surpresa, mas suas múltiplas formas de contemplação, a mola de arranque para a viagem bem sucedida. E para o gozo do viajante.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (10)
Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável museu Guggenheim
Beja Santos
Admitia na minha cabeça que só se justificava ir a Bilbau para conhecer o colosso de titânio e vidro desenhado por Frank O. Gehry, o arquiteto genial que Pedro Santana Lopes, então à frente da autarquia de Lisboa, convidou para apresentar um novo figurino do Parque Mayer. Beneficiei da minha ignorância para ser surpreendido por uma Bilbau, capital económica do País Basco, dinâmica, aprazível, moderna, e com um espantoso equilíbrio entre o passado e o presente. Pensava que Bilbau fora profundamente afetada pela Guerra Civil. Talvez tenha sido, mas os edifícios significativos do século XIX, caso do Teatro Arriaga, lá estão para testemunhar o triunfo da burguesia bilbaína com as suas empresas siderúrgicas navais, a recordar que já houve o esplendor mineiro e a exportação de lãs e curtumes. Estava impaciente por conhecer com os meus olhos o Guggenheim, aterrei, apanhei o autocarro para a cidade, pus os pertences na hospedaria, ala que se faz tarde, nada de conhecer o metro de Norman Foster nem a ponte que saiu do traço de Santiago Calatrava. A suar estopinhas (36 graus e uma humidade guineense), lá fui cirandando pela esplanada junto ao rio Nervión, e com a língua encortiçada cheguei ao deslumbrante Guggenheim.
Caminhei para a entrada da arquitetura mais vanguardista que conheço, fui ver o menu, as exposições que me esperam: Richard Serra e uma exposição admirável de Georges Braque. Toca a descer a escadaria, de boca à banda, não conheço nada de tão audaz e para lá do tempo. Pelo caminho, escolhendo recatadas sombras, vou disparando para as imagens dos séculos futuros, digam lá se eu não tenho razão
Os reformados têm sorte, naquele dia podia-se entrar por 6,50€ e até às 20h. Mas pouco antes de ingressar no interior do templo de arte retive esta imagem de uma face da modernidade, ao princípio chocou-me a seguir cativou-me:
Qual Richard Serra qual Georges Braque, quais exposições temporárias, primeiro quero andar na vida airada, a confirmar o que se escreve no prospeto de boas-vindas: “O edifício está composto de uma série de volumes interconectados, uns de forma octogonal e recobertos de pedra e outros curvados e retorcidos, cobertos por uma pele metálica de titânio. Estes volumes combinam-se com paredes de vidro que dotam de transparência todo o edifício. Devido à sua complexidade matemática, as sinuosas curvas de pedra, vidro e titânio foram desenhadas por computador. O calcário foi a pedra escolhida, devido à sua tonalidade, funde-se perfeitamente com a fachada da Universidade de Deusto”. E sigo embasbacado, já vi este miolo dezenas de vezes em livros e revistas, mas isto é como a Praça Vermelha ou a Pirâmide do Louvre ou ao Centro Georges Pompidou, é preciso ver claramente visto com os nossos olhos, naquele dia e àquela hora, é com satisfação que vos dou as imagens que iam empolando o meu estado de espírito, sentia-me muito feliz:
E mais adiante:
Já estou mais relaxado, petisquei o suficiente para poder conversar com as obras de arte, à nossa espera, antes de ir ver uma mostra da coleção Guggenheim Bilbau fixei esta instalação de Jenny Holzer, perturba a vista, avançamos e recuamos, não há dúvida que é vistoso, parece-me mais uma guloseima visual, nem sempre o que enche o olho provoca descarga estética, o deleite contemplativo vejam só:
Pronto, enveredei por salas enormes, parece que estou no CCB, não desfazendo. Dos vários autores expostos nesta mostra, dou-vos conta de José Manuel Ballester, alguém que escolheu para a sua arte a combinação da pintura e da fotografia, e acabei por concordar com o que li nos textos fixados acerca de Ballester. Ele interessa-se por espaços vazios, investiga a solidão do indivíduo e as contradições do mundo moderno através da arquitetura, transformando espaços em cenas artificiais. É um jogo entre o claro-escuro, entre o oculto e o visível, o público e o privado. A imagem que vos mostro vem da série Espaços Ocultos, reinterpretações da história de arte, no caso presente Ballester pegou num ícone do romantismo francês, a Jangada da Medusa, de Géricault, retirou-lhe as pessoas, a representação fotográfica de Ballester mostra os restos da jangada depois do resgaste dos sobreviventes e do desaparecimento dos cadáveres. Achei uma beleza.
Saí da mostra e fui até à instalação permanente onde estão oito esculturas em aço de Richard Serra, autor que conheci numa visita ao Museu Berardo. A instalação chama-se a matéria do tempo, tratar-se-á de uma reflexão à volta dos aspetos físicos do espaço e da natureza da estrutura. Richard Serra pretende estabelecer uma relação direta com o espetador, como se a experiência com o objeto passasse a formar parte essencial do seu significado. Andamos por aquelas elipses, à medida que as percorremos elas transfiguram-se, gera-se uma sensação de espaço em movimento. Vi gente aturdida com aquelas massas de aço, as espirais e as elipses, paredes que aprecem desabar, andamos à volta com se andássemos num labirinto até se chegar ao vazio. E quando se vê a exposição de um ponto alto acaba-se por concordar com o autor: temos ali matéria do tempo, e a cor terrosa daquelas toneladas de aço como se girassem desarticuladas, levam-nos a supor que a escultura contemporânea não se assemelha ao torvelinho fabril, é um maquinismo silencioso onde se passeia o indivíduo na era do vazio:
Não vos vou hoje estafar com o prato de substância, a esplendorosa exposição de Georges Braque, há muito que estava com apetite para ver algo de tão grandioso, multidimensional. Faz de conta que vou sair e depois volto, hoje ou amanhã, venho novamente ao exterior do Guggenheim. Um dos símbolos mais vistosos de Bilbau é o Puppy, concebido por um dos artistas mais conceituado da atualidade, Jeff Koons. É vistoso, não contesto. Mas dou comigo a pensar se este Puppy não faz parte do estado líquido da nossa modernidade, esta arte engraçadinha, tão engraçadinha como as telenovelas broncas e a imprensa porno soft, tão engraçadinha como os romances históricos escritos às três pancadas e com um mínimo de vocábulos. É assim também o nosso tempo em que se força a mistura entre Frank O. Gehry como Jeff Koons e fica tudo numa boa. Mas é engraçadinho, não há dúvida:
Mais tarde falaremos do Georges Braque, e do casco histórico de Bilbau e do seu Museu de Belas Artes onde referenciei santos do meu culto como El Greco e Francis Bacon. Bilbau enche-me as medidas. Ainda não parti e apetece-me voltar, juro.
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13643: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (9): Dentro do Peak District, a vasculhar belezas incomparáveis
Queridos amigos,
Foi como meter o Rossio na Betesga. Surpreendentemente, teve um final feliz. Aterra-se em Bilbau, no dia seguinte parte-se para Logroño, a capital de La Rioja, e no dia seguinte Burgos, mais adiante Léon, depois Monforte de Lemos e Vigo até ao Porto-Campanhã.
Não podia ter enchido mais as medidas com aquele pedacinho do Norte de Espanha, que inteiramente desconhecia. E confirma-se que por melhor que se prepare o indivíduo para compreender o outro, para amortecer as novas sensações, etc. e tal, há sempre um denominador que acaba por ganhar – a surpresa. É a surpresa, mas suas múltiplas formas de contemplação, a mola de arranque para a viagem bem sucedida. E para o gozo do viajante.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (10)
Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável museu Guggenheim
Beja Santos
Admitia na minha cabeça que só se justificava ir a Bilbau para conhecer o colosso de titânio e vidro desenhado por Frank O. Gehry, o arquiteto genial que Pedro Santana Lopes, então à frente da autarquia de Lisboa, convidou para apresentar um novo figurino do Parque Mayer. Beneficiei da minha ignorância para ser surpreendido por uma Bilbau, capital económica do País Basco, dinâmica, aprazível, moderna, e com um espantoso equilíbrio entre o passado e o presente. Pensava que Bilbau fora profundamente afetada pela Guerra Civil. Talvez tenha sido, mas os edifícios significativos do século XIX, caso do Teatro Arriaga, lá estão para testemunhar o triunfo da burguesia bilbaína com as suas empresas siderúrgicas navais, a recordar que já houve o esplendor mineiro e a exportação de lãs e curtumes. Estava impaciente por conhecer com os meus olhos o Guggenheim, aterrei, apanhei o autocarro para a cidade, pus os pertences na hospedaria, ala que se faz tarde, nada de conhecer o metro de Norman Foster nem a ponte que saiu do traço de Santiago Calatrava. A suar estopinhas (36 graus e uma humidade guineense), lá fui cirandando pela esplanada junto ao rio Nervión, e com a língua encortiçada cheguei ao deslumbrante Guggenheim.
Caminhei para a entrada da arquitetura mais vanguardista que conheço, fui ver o menu, as exposições que me esperam: Richard Serra e uma exposição admirável de Georges Braque. Toca a descer a escadaria, de boca à banda, não conheço nada de tão audaz e para lá do tempo. Pelo caminho, escolhendo recatadas sombras, vou disparando para as imagens dos séculos futuros, digam lá se eu não tenho razão
Os reformados têm sorte, naquele dia podia-se entrar por 6,50€ e até às 20h. Mas pouco antes de ingressar no interior do templo de arte retive esta imagem de uma face da modernidade, ao princípio chocou-me a seguir cativou-me:
Qual Richard Serra qual Georges Braque, quais exposições temporárias, primeiro quero andar na vida airada, a confirmar o que se escreve no prospeto de boas-vindas: “O edifício está composto de uma série de volumes interconectados, uns de forma octogonal e recobertos de pedra e outros curvados e retorcidos, cobertos por uma pele metálica de titânio. Estes volumes combinam-se com paredes de vidro que dotam de transparência todo o edifício. Devido à sua complexidade matemática, as sinuosas curvas de pedra, vidro e titânio foram desenhadas por computador. O calcário foi a pedra escolhida, devido à sua tonalidade, funde-se perfeitamente com a fachada da Universidade de Deusto”. E sigo embasbacado, já vi este miolo dezenas de vezes em livros e revistas, mas isto é como a Praça Vermelha ou a Pirâmide do Louvre ou ao Centro Georges Pompidou, é preciso ver claramente visto com os nossos olhos, naquele dia e àquela hora, é com satisfação que vos dou as imagens que iam empolando o meu estado de espírito, sentia-me muito feliz:
E mais adiante:
Já estou mais relaxado, petisquei o suficiente para poder conversar com as obras de arte, à nossa espera, antes de ir ver uma mostra da coleção Guggenheim Bilbau fixei esta instalação de Jenny Holzer, perturba a vista, avançamos e recuamos, não há dúvida que é vistoso, parece-me mais uma guloseima visual, nem sempre o que enche o olho provoca descarga estética, o deleite contemplativo vejam só:
Pronto, enveredei por salas enormes, parece que estou no CCB, não desfazendo. Dos vários autores expostos nesta mostra, dou-vos conta de José Manuel Ballester, alguém que escolheu para a sua arte a combinação da pintura e da fotografia, e acabei por concordar com o que li nos textos fixados acerca de Ballester. Ele interessa-se por espaços vazios, investiga a solidão do indivíduo e as contradições do mundo moderno através da arquitetura, transformando espaços em cenas artificiais. É um jogo entre o claro-escuro, entre o oculto e o visível, o público e o privado. A imagem que vos mostro vem da série Espaços Ocultos, reinterpretações da história de arte, no caso presente Ballester pegou num ícone do romantismo francês, a Jangada da Medusa, de Géricault, retirou-lhe as pessoas, a representação fotográfica de Ballester mostra os restos da jangada depois do resgaste dos sobreviventes e do desaparecimento dos cadáveres. Achei uma beleza.
Saí da mostra e fui até à instalação permanente onde estão oito esculturas em aço de Richard Serra, autor que conheci numa visita ao Museu Berardo. A instalação chama-se a matéria do tempo, tratar-se-á de uma reflexão à volta dos aspetos físicos do espaço e da natureza da estrutura. Richard Serra pretende estabelecer uma relação direta com o espetador, como se a experiência com o objeto passasse a formar parte essencial do seu significado. Andamos por aquelas elipses, à medida que as percorremos elas transfiguram-se, gera-se uma sensação de espaço em movimento. Vi gente aturdida com aquelas massas de aço, as espirais e as elipses, paredes que aprecem desabar, andamos à volta com se andássemos num labirinto até se chegar ao vazio. E quando se vê a exposição de um ponto alto acaba-se por concordar com o autor: temos ali matéria do tempo, e a cor terrosa daquelas toneladas de aço como se girassem desarticuladas, levam-nos a supor que a escultura contemporânea não se assemelha ao torvelinho fabril, é um maquinismo silencioso onde se passeia o indivíduo na era do vazio:
Não vos vou hoje estafar com o prato de substância, a esplendorosa exposição de Georges Braque, há muito que estava com apetite para ver algo de tão grandioso, multidimensional. Faz de conta que vou sair e depois volto, hoje ou amanhã, venho novamente ao exterior do Guggenheim. Um dos símbolos mais vistosos de Bilbau é o Puppy, concebido por um dos artistas mais conceituado da atualidade, Jeff Koons. É vistoso, não contesto. Mas dou comigo a pensar se este Puppy não faz parte do estado líquido da nossa modernidade, esta arte engraçadinha, tão engraçadinha como as telenovelas broncas e a imprensa porno soft, tão engraçadinha como os romances históricos escritos às três pancadas e com um mínimo de vocábulos. É assim também o nosso tempo em que se força a mistura entre Frank O. Gehry como Jeff Koons e fica tudo numa boa. Mas é engraçadinho, não há dúvida:
Mais tarde falaremos do Georges Braque, e do casco histórico de Bilbau e do seu Museu de Belas Artes onde referenciei santos do meu culto como El Greco e Francis Bacon. Bilbau enche-me as medidas. Ainda não parti e apetece-me voltar, juro.
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13643: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (9): Dentro do Peak District, a vasculhar belezas incomparáveis
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