quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13818: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (14): A Galiza, do interior, no rio Minho, até ao Atlântico, Vigo

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
Acabou-se a passeata, bonda de catedrais, museus, jardins, linhas ferroviárias e vinho alvarinho, bem bom para acompanhar mexilhões.
O estado de alma viandante era de candura e tranquilidade, deu para apreciar o que ia mudando no relevo à saída de Castela e Leão até chegar à verdejante Galiza, com rios e rias e muito casario em granito, parece que estamos em Trancoso ou Vila Nova de Cerveira.
Uma passeata para conhecer alguns dos grandes contrastes do Norte de Espanha. E percorrer caminhos por onde andaram os bisavós e os avós dos portugueses.

Um abraço do
Mário


Biblioteca em férias (14) 

A Galiza, do interior, no rio Minho, até ao Atlântico, Vigo

Beja Santos


Na fase dos preparativos da viagem, decidi que não queria fazer um estirão entre León e um local de regresso, até pensei em Salamanca e entrar em Miranda do Douro, tudo impensável: as ligações ferroviárias eram remotas ou impossíveis. E atraiu-me o nome do lugar e a imagem do colossal mosteiro: Monforte de Lemos. Foi este o ponto de passagem escolhido, como se andasse a viajar de mala posta. A viagem de comboio ajuda a esclarecer o que distingue o termo de Castela e Leão desta Galiza verdejante, Terras de Lemos, mais a mais sofreram a ocupação napoleónica, logo me mostrei solidário. Nem pensei duas vezes se este magnífico edifício e a elogiada ponte de Monforte, atribuída aos romanos, toda ela graciosa com as suas belas arcadas ficariam perto. Pois enganei-me. Desembarquei ao lusco-fusco, a arquitetura pareceu-me monótona, muito cimento em carne viva, disseram-me que o albergue era um pouco para lá do sol-posto, segui por passeios monótonos e silenciosos até chegar a uma granja que deve ter tido um passado com alguma sumptuosidade. Pelo caminho, ia rindo para mim, então não é que o mosteiro não fica lá no alto, e eu a julgar que me era acessível, lá dar um salto? É bem-feita, faz perguntas antes de fazer turismo, aprende de uma vez. O estômago a bater horas, no ar elétrico escapuliam-se trovões, indicaram-me a dedo um antro iluminado, ali me apresentei e me banqueteei com uma canja de aletria, pimentos assados e um pratinho de cozido à galega, que tanto aprecio. Adormeci arregalado, e pelas matinas apanhei o comboio.


Aqui está Tui e a sua fabulosa catedral, que se prende com a nossa História, é um regalo para os olhos sobretudo para quem vive em Valença, é panorama obrigatório. Passa-se de comboio resvés, fico sempre furioso pois todas as vezes que vou até Compostela não há meio de aqui andarilhar, e quanto lamento. Saí da Galiza interior e não lhe tomei o gosto, vi água abundante serpenteando ao lado do caminho-de-ferro, sente-se que estamos próximos do Minho, não pela arquitetura mas pelos solos, pela exuberância do verde e por aqueles vinhedos de alvarinho. Ontem à noite bebi um alvarinho de nome Martim Codax, no rótulo lá vinha um poema, uma cantiga de amigo, está ali um dos pais da nossa língua. Viva o alvarinho! E cheguei a Vigo, o mar está próximo, vou já arrumar os trastes e aproveitar o dia. À cautela, deixo-vos um registo da chamada arte pública de Vigo, bem curiosa por sinal:




Deambulando pela Porta do Sol, perguntei-me o que há de ícone neste “O Sireno”, talvez um homem-peixe ou peixe voador, ninguém desconhece que Vigo é cidade piscatória, um peso-pesado. Depois, na Praça de Espanha encontrei este grupo escultórico “Os cavalos”, não sei o que se homenageia, importa não esquecer que nem tudo é mar por aqui, bem próximo há extensos olivais, quem contempla a cidade a partir do Monte do Castro desfruta a impressionante baía de Vigo, que noutras perspetivas até parece criar a ilusão que estamos a ver uma ilha, como estar na Horta e ver o Pico, ou coisa parecida. E descendo até ao porto encontrei mais esta arte pública, parece um gigante afocinhado, enfim é arte pública que enche o olho e corta a monotonia, não sei se há mais substância. É domingo, descubro rapidamente que não vale a pena procurar museus, fecham às duas da tarde e outros nem abrem. Mas tenho sorte quando passo pela Fundação Barrié, está ali patente uma prodigiosa exposição intitulada “Compañeiros de oficio”, nome dado por Le Corbusier aos velhos artesãos da construção, é uma exposição que pretende refletir sobre o papel de uma humilde arquitetura anónima utilizada como referente na obra de grande nomes da arquitetura contemporânea, caso de Mies van der Rohe, Alvar Aalto, Alejandro de la Sota, Siza Vieira, Souto de Moura ou Glen Murcutt. Para mim foi uma delícia percorrer séculos e ver materiais que chegaram ao nosso tempo, relacionados com o meio e o clima e que levaram génios da arquitetura a compreender que o génio do povo não lhes é inferior.


Saio consolado (como se diz nos Açores) agora vou até ao casco histórico, passo pelo Instituto Camões em pedra e granito, passo por um belo jardim paralelo ao porto, não vou sair daqui sem comer peixe. Numa esplanada, pedi uma sopa de cebola, uns mexilhões e bom naco de tortilha, lambo a beiça com alvarinho, que bom é a vida de turista! Agora é passear à beira-mar, ainda estive tentado a tomar um barco até às ilhas Cíes, situadas à entrada de ria de Vigo, e que formam parte do Parque Nacional das Ilhas Atlânticas. Não, quero algo de mais prosaico, apanho um ferryboat e vou até Cangas, no outro extremo. E não me arrependi, e daqui vos deixo as últimas imagens:



Sei muito bem que não há aqui nada de deslumbrante, imagens de porto a remeter para outra localidade são aos milhões. E o passeio marítimo em Cangas, avistando Vigo ao longe também não tem nada de transcendente. Mas o ânimo era de muitíssima boa disposição, caminhava-se para o termo de uma passeata encetada em Bilbau, estou de barriga regalada, pois uma boa viagem deve sempre cruzar o olhar entre a civilização e a cultura, dar tempo a contemplar a natureza, descobrir preciosidades onde o chamado senso-comum adverte que há mais monotonia e vulgaridade que grandes surpresas.

Tudo o que se começa tem o seu acabamento. Janto umas tapas, adormeço seráfico, é preciso partir bem cedo de Vigo para o Porto. É uma bonita despedida da Galiza, e depois passamos para Portugal, qual monotonia, viajamos perto do rio Lima, tudo luxuriante, até avistei o Casino Afifense, e num tiro se chegou à Campanhã, daqui houve nome de Portugal, já estou a avistar Portus Callus. Agora sigo para Lisboa. Chegou o momento azado de começar a pensar em nova viagem: que tal o sul de Itália? E conhecer o Montenegro? E visitar finalmente a Irlanda? Ou passear-me por Bruxelas, que conheço menos mal? Logo se vê. Depois dou notícias. Ponto final.
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Nota do editor

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