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segunda-feira, 20 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Quando surgiu este livro em 1998, foi um murro no estômago para muita gente. Uma das figuras gradas do jornalismo mundial que acompanhara sistematicamente os eventos do continente africano durante mais de quatro décadas, punha a nu novas e velhas tiranias de regimes exclusivamente africanos, com a sua encenação de massacres, genocídios, lideres paranoicos e corruptos. É impossível não sentir um calafrio a ver quilómetros de sucata soviética posta ao serviço de um terrível conflito no Corno de África. Como ele escreve: "Não é um livro sobre África, mas sim sobre algumas pessoas de lá. É um continente demasiado grande para poder ser descrito. É um verdadeiro oceano, um planeta independente, um cosmos variado e rico. É apenas por uma questão de simplicidade e de comodidade que falamos de 'África'. De facto, essa África não existe sequer, a não ser como conceito geográfico".

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1)

Beja Santos

Ryszard Kapuscinski é reconhecido como um dos nomes maiores do jornalismo moderno, um repórter inigualável na cena mundial. Foi um observador direto do início do fim da era da colonização e nos quarenta anos seguintes aqui voltou, deixando testemunhos marcantes de golpes de Estado, massacres hediondos, desvelamento de estranhíssimas guerras tribais e a emergência do racismo. Para quem quer saber o que se tem passado nessa África independente é fundamental conhecer esta obra-prima do jornalismo: “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski, Livros do Brasil/ Porto Editora, 2018.

Tudo começa no Gana, em 1958, tempo impulsivo e de inocência, Kwame Nkrumah ainda é tratado como um semideus. E vai anotando, para que o leitor europeu saiba diferenciar em vez de minimizar ou ridicularizar:
“Os europeus e os africanos têm noções de tempo completamente distintas. A perceção que têm do tempo é diferente, como é diferente a relação que com ele mantêm. O europeu está convencido de que o tempo tem uma existência exterior a ele próprio, uma existência objetiva e com uma natureza mensurável e linear. O europeu vê-se a si próprio como um escravo do tempo, está dependente dele, é-lhe submisso. Para poder existir e funcionar tem de respeitar as suas leis férreas e imutáveis, as suas regras e princípios inflexíveis. Os africanos vêem o tempo de modo diferente. O tempo é para eles uma categoria bastante ligeira, elástica, subjetiva. O homem influencia a configuração do tempo, o modo como ele decorre e o ritmo (obviamente só o homem que vive em boas relações com os seus antepassados e com os deuses o consegue). Uma inversão completa do pensamento europeu. Daí que um africano, depois de entrar num autocarro, nunca pergunte quando vai partir; entra, senta-se no lugar livre e passa imediatamente a um estado no qual passa uma grande parte da sua vida – à espera”.

E segue-se outra observação, que se deve atrelar à anterior: “O problema de África é a contradição entre o homem e o ambiente, entre a imensidão africana e o homem indefeso, descalço e pobre que é o seu habitante. Para onde quer que nos voltemos, a paisagem é sempre imensa, tudo está vazio, sem ninguém a perder de vista. Antigamente tinham de se percorrer centenas, até milhares de quilómetros para se encontrar outras pessoas. Não havia informação, saber, progresso técnico, riqueza, mercadorias, experiências diferentes – tudo isto se mantinha longe, não chegava até ali, porque não encontrava o caminho”.

O jornalista viaja, está agora em Kampala, o Uganda dentro de dias será independente. E ele comenta:
“A política interna africana e a dos seus estados é complicada e difícil de perceber. Tal situação deve-se, sobretudo, ao facto de, aquando da partilha de África entre eles, os colonizadores europeus terem reduzido a pouco mais de quarenta colónias os cerca de dez mil pequenos reinados, federações e associações de tribos não estatais, mas independentes, que existiam neste continente na segunda metade do século XIX. Muitos desses reinos e associações tinham um longo historial de conflitos e guerras entre si. E, de repente, viram-se forçados, sem que ninguém lhes pedisse a sua opinião, a integrar a mesma colónia, sendo regidos pela mesma potência (estrangeira) e pelas mesmas leis. Mas tinha começado a era da descolonização. As antigas relações interétnicas, que tinham sido congeladas ou pura e simplesmente ignoradas pelas potências estrangeiras, ressuscitavam, tornando-se de novo ativas. Surgia a oportunidade de libertação, mas uma libertação sob a condição de que os inimigos de outrora formassem agora um estado comum, ao qual servissem em conjunto, económica, patriótica e militarmente”.

Um grande repórter é forçosamente um observador subtil, de cultura aprimorada e dotado para a escrita como escritor maior. Veja-se como Kapuscinski nos apresenta a Etiópia:
“A Etiópia Central é um planalto vasto e grandioso, atravessado por numerosos vales e desfiladeiros. Na época das chuvas, surgem imensos rios no fundo destes enormes despenhadeiros. Nos meses de verão, a maioria seca e desaparece, deixando à mostra o solo seco e gretado e fazendo com que o vento levante nuvens negras de lama, transformada em cinza pelo sol. Ao longo deste planalto, existem montes com três mil metros de altura, que em nada fazem lembrar os graníticos Alpes cobertos de neve, os Andes ou os Cárpatos. Estes são compostos por rocha cor de cobre e bronze, exposta à erosão com os cumes achatados e tão planos que poderiam até servir de aeroportos naturais”.

Apresentada a geografia, informa-nos sobre uma situação bélica descomunal:
“Estamos em meados dos anos setenta. África encontra-se no limiar de duas décadas de maior seca da sua história. Guerras civis, golpes de Estado, massacres e ainda a fome que passavam milhões de pessoas na zona do Sahel (África Ocidental) e na África Oriental (sobretudo no Sudão, no Chade, na Etiópia e na Somália) – eram algumas das facetas da crise. A maioria dos países do continente tinha sacudido o colonialismo e iniciado a sua existência de Estados independentes. Nas ciências políticas e económicas prevalecia naquela altura a convicção de que a liberdade trazia o bem-estar, de que a liberdade iria transformar, da noite para o dia, regiões miseráveis num mundo onde corressem, com abundância, leite e mel. Mas a realidade provou ser muito diferente. Nos novos países africanos, estalaram lutas pelo poder, em que ninguém olhava a meios: conflitos tribais e tensões étnicas, o poder do Exército, as tentações de corrupção, ameaças de morte. Simultaneamente, os Estados davam provas de fraqueza e incapacidade de cumprir as suas principais funções. E tudo isto numa época em que o mundo estava sob o domínio da Guerra Fria, transportada para África tanto pelo Ocidente como pelo Leste. Uma caraterística marcante da Guerra Fria consistia em ignorar pura e simplesmente os problemas e interesses dos Estados fracos e dependentes, encarando os seus dramas e acontecimentos apenas na perspetiva dos interesses próprios, sem lhes atribuir uma importância específica”.

E assim chegamos a Idi Amin, o ditador mais conhecido em toda a história da África Moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23359: Notas de leitura (1456): Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso (Mário Beja Santos)